domingo, 2 de fevereiro de 2020

Filmes - parte 3

Diário de um cinéfilo

Uma mulher em guerra, 2018, Benedikt Erlingsson,  Iceland (Islandia)
Hear the Silence (Escuta do silêncio), 2016, Ed Ehrenberg
Bacurau, 2019, Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Parasita (Gisaengchung) 2019,  Joon-ho Bong
The dead don't die (Os mortos não morrem), 2019, Jim Jarmusch
O gabinete do doutor Caligari, 1920,  Robert Wiene
Boi neon, 2015, Gabriel Mascaro
Little Woods, 2018, Nia DaCosta
Paraiso perdido, 2018, Monique Gardenberg
Coringa, 2019, Todd Phillips
Lola Montes, 1955, Max Ophuls
O leopardo, 1963,  Luchino Visconti
Era uma vez em...Hollywood, Once Upon a Time... in Hollywood, 2019, Quentin Tarantino
Nefta football Club, Nefta Futebol Clube, 2018, Yves Piat
O farol, 2019, Robert Eggers


02/08/2019
Uma mulher em guerra, 2018, Benedikt Erlingsson,  Iceland (Islandia)



Desde a primeira cena de Uma Mulher em Guerra já é possível entender e sentir fascínio pelo tom que o filme emana. Em um amplo campo da Islândia, vemos uma mulher vestida e munida como se estivesse pronta para uma batalha de vida ou morte, preparando mais um "ataque" às linhas de energia de sua cidade em forma de protesto contra a indústria de alumínio. Para Halla (Halldóra Geirharðsdóttir), o ativismo deve ser visto, literalmente, como algo sobre vida ou morte. A busca por justiça é visível em seu olhar e no modo como se porta quando está sozinha no campo, longe dos olhos daqueles que não entendem sua luta ou ideais. É desta forma que a personagem é apresentada para o público: livre e selvagem, exatamente o oposto do que é edificado com o passar da narrativa.

Desde a trilha sonora, que literalmente participa das cenas na forma de três músicos que interagem com Halla e quebram a quarta parede, até a passagem por diversos estilos (comédia, drama e uma parcela de musical), Uma Mulher em Guerra é um filme completo, e a melhor parte é que ele não aparenta querer atingir tal crédito. Por soar o mais natural possível dentro de suas situações apresentadas, algumas mais inusitadas que outras, a diversão é inevitável. E a aproximação com a protagonista é mais ainda.

A guerra solitária que Halla trava com a indústria local acaba tomando proporções enormes e, mesmo com os riscos iminentes, ela ainda não desiste de fazer o que acredita. Mas mesmo sob o codinome de "Mulher da Montanha" nas horas vagas, ela continua a trabalhar durante o dia como professora de música, atuando como mais uma cidadã comum da cidade islandesa. Ninguém parece notar o espírito ativista de Halla, mas tendo em vista quais pôsteres estão pendurados na sala de estar (estampando Mandela e Gandhi), não é como se ela estivesse o escondendo do mundo.

O forte tema do ativismo ambiental se une a um desejo pessoal de Halla, que é o de adotar. Em meio aos desafios relacionados à sua missão de ajudar o mundo, ela finalmente vê outro caminho de ajudar a sociedade: dando lar a uma criança que necessita. O roteiro apresenta este lado mais "comum" de Halla após conhecermos sua rebeldia, e a nuance dentro de sua personalidade é como se fosse o impulso final para que esta personagem se torne ainda mais forte. Quando se abre a explicação de que Halla está no fim de uma longa lista de espera de adoção, temos uma mulher em guerra de um lado e uma mulher em busca de paz do outro. Tal constraste a humaniza mais e serve como uma casca, que vai sendo retirada aos poucos.
Não há nenhuma indicação no início, mas Uma Mulher em Guerra é um filme de muito coração. A jornada de Halla vai ao encontro com a possibilidade de ganhar pessoas nas quais pode confiar, no senso de família e no dever de cuidar do nosso planeta. É, também, um lembrete sobre conflitos humanos e naturais e do quanto eles podem reagir negativamente. A mudança climática é só um dos ganchos da trama e entrega críticas com relação ao que estamos fazendo aqui. Tais críticas vão em direção à posição jornalística com relação ao meio ambiente e, por fim, chegam ao papel da adoção e de como ela pode ampliar nossa visão do mundo.

Halla começa como heroína, passa por mártir, "vilã" e finaliza como alguém muito humana. É emocionante e ao mesmo tempo cruel acompanhar o trajeto de alguém que tem tanto a dizer e tenta fazer o possível para mudar a realidade do próximo. A intensa cena final de Uma Mulher em Guerra traz uma parcela da paz que Halla tanto procurou, assim como uma parcela de calamidade que ela tanto avisou por meio de seus atos. Nem tudo está em suas mãos, mas a protagonista está disposta a agarrar o máximo que puder. (AdoroCinema)

Em tempo: impactante, obrigatório.


29/08/2019
Hear the Silence (Escuta do silêncio), 2016, Ed Ehrenberg





Em tempo: humano e insuspeito


Bacurau, 2019, Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho



Pouco após a morte de dona Carmelita, aos 94 anos, os moradores de um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro, chamado Bacurau, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa. Aos poucos, percebem algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade pela primeira vez. Quando carros se tornam vítimas de tiros e cadáveres começam a aparecer, Teresa (Bárbara Colen), Domingas (Sônia Braga), Acácio (Thomas Aquino), Plínio (Wilson Rabelo), Lunga (Silvero Pereira) e outros habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

Em tempo: IMPERDÍVEL

05/09/2019
Parasita (Gisaengchung) 2019,  Joon-ho Bong



Afinal, quem, nos arranjos de nossa sociedade, é o parasita de quem?
Toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo num porão sujo e apertado. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família comece a dar aulas de inglês à garota de uma família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe, filho e filha bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custarão caro a todos. (Plano Crítico)

Em tempo: o melhor filme que vi em 2019


06/09/2019
The dead don't die (Os mortos não morrem), 2019, Jim Jarmusch



Para a encenação do apocalipse, Jim Jarmusch, o autor, declara-se morto numa das lápides do cemitério. Depois, convoca um conjunto impressivo de caras conhecidas para a matança final, como carne para canhão: Bill Murray, Tom Waits, Adam Driver, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, RZA, Tilda Swinton, Danny Glover, Larry Fessenden, Rosie Perez ou Selena Gomez, muitos deles colaboradores regulares do realizador. O palco é Centerville, uma pequena cidade do interior, onde todos os habitantes se conhecem e comentam as novidades do quotidiano numa das cafetarias locais. Um dos clientes habituais, Farmer Miller (Steve Buscemi), usa um boné com a inscrição “Make America White Again”, uma referência à extrema direita norte-americana que se inspira no slogan “Make America Great Again” popularizado por Donald Trump. 

O xerife Cliff Robertson (Bill Murray) e o ajudante Ronnie Peterson (Adam Driver) investigam o desaparecimento de uma galinha pertencente a Farmer Miller, que acusou o eremita Hermit Bob (Tom Waits) pela ocorrência, quando os relógios e os telemóveis deixam de funcionar, os animais de estimação desaparecem ou têm comportamentos agressivos e a noite tarda a cair. Na televisão, uma jornalista (Rosie Perez) anuncia a alteração na rotação da Terra provocada pelo fracturamento hidráulico nas zonas dos Polos. Quando, finalmente, anoitece, dois mortos (Iggy Pop, Sara Driver) emergem da terra no cemitério e dirigem-se à cafetaria para esventrar e degustar as vísceras de dois corpos, terminando com uma boa dose de café, que engolem com satisfação.
    
Em tempo: um Jarmusch afiadíssimo 

09/09/2019
O gabinete do doutor Caligari, 1920,  Robert Wiene



O impacto que as inovações narrativas

Entre as palavras que podem ser usadas para definir O Gabinete Do Dr. Caligari (1920), “pioneiro” talvez seja a mais acertada. Dirigido por Robert Wiene, o filme se tornou o principal marco do Expressionismo Alemão, com seu visual único influenciando outras grandes obras que o sucederam neste período, como Nosferatu (1922) e Metrópolis (1927). O projeto também trouxe recursos narrativos inéditos para o cinema, que continuam a ser utilizados atualmente, como a reviravolta final, o narrador não confiável e a história-moldura. É impossível para o espectador de hoje imaginar o impacto que as inovações narrativas e principalmente estéticas do filme tiveram na época, mas O Gabinete do Dr. Caligari envelheceu muito bem, e ainda guarda muito de sua magia. (Plano Crítico)

Boi neon, 2015, Gabriel Mascaro



Iremar (Juliano Cazarré) é um vaqueiro de curral que viaja pelo Nordeste, ao lado de Galega (Maeve Jinkings) e a pequena Geise (Samya de Lavor). Por onde passa Iremar recolhe revistas, panos e restos de manequins, já que seu grande sonho é largar tudo para iniciar uma carreira como estilista no Pólo de Confecções do Agreste.

“Um consenso entre a imprensa especializada é que no Brasil falta aquele tipo de produção considerado como “filme médio”, ou seja, a obra que não tem pretensões de ser o novo “Glauber Rocha”, nem se trata de uma comédia televisiva caça-níquel. Pois com a profissionalização do mercado nacional, aos poucos essa realidade tem se alterado – embora ainda sem o merecido reflexo nas bilheterias. Casa Grande (2014) e Que Horas Ela Volta? (2015) são exemplos recentes dessa safra, na qual se colhe também o ótimo Boi Neon. Com um pé no cinema de arte (o que se confirma, por exemplo, nos clipes impactantes da mulher que dança vestindo uma cabeça de cavalo – e que, sim, têm relação com a dramaturgia do filme), a nova produção de Gabriel Mascaro (Ventos de Agosto) - que assina também o roteiro - passa por um cinema, ao mesmo tempo, de fácil assimilação pelo grande público” (AdoroCinema)


05/10/2019
Little Woods, 2018, Nia DaCosta



Ollie (Tessa Thompson) costumava contrabandear remédios através da fronteira canadense, mas seus dias de ação criminosa ficaram para trás e ela está prestes a conseguir um emprego que lhe dará a oportunidade de deixar a cidadezinha de interior de Little Woods, na Dakota do Norte. Isto é, até que sua mãe morre e ela e sua problemática irmã, Deb (Lily James), são deixadas com a enorme dívida da hipoteca da casa para pagar.

Em tempo: O cinema independente com a garra de sempre


31/11/2019
Paraiso perdido, 2018, Monique Gardenberg



Paraíso Perdido é um clube noturno gerenciado por José (Erasmo Carlos) e movimentado por apresentações musicais de seus herdeiros. O policial Odair (Lee Taylor) se aproxima da família ao ser contratado para fazer a segurança do jovem talento Ímã (Jaloo), neto de José e alvo frequente de homofóbicos, e aos poucos o laço entre o agente e o clã de artistas românticos vai se revelando mais e mais forte - com nós surpreendentes.

“Sem lançar filmes desde Ó, Paí Ó, Monique Gardenberg retorna com uma obra caprichada que conjuga as reflexões sobre passado e comunidade exploradas em seus principais longas e o notório talento no comando de performances musicais. Diretora de shows e DVDs de nomes como Caetano Veloso, Marina Lima, Roberto Carlos e Ana Carolina, a cineasta conta história(s) cujo núcleo é uma casa noturna comandada por figura vivida por ninguém mais, ninguém menos que Erasmo Carlos, o Tremendão, Como o classudo cinema apresentado aqui por Monique, o espaço chamado Paraíso Perdido não parece ter semelhantes facilmente encontráveis no mundo real. O povoam diferentes gerações de um clã sentimental, unidas contra homofobia, violência doméstica e racismo. São defensores do ,, adeptos do diálogo e estrelas de shows diários que têm como repertório músicas “rasga coração” que só tias assumem que adoravam, perfeitas para destruir o clima alegre de qualquer karaokê.” (AdoroCinema)

Em tempo: surpreendente


04/01/2020
Coringa, 2019, Todd Phillips



'Coringa' mostra crueldade do homem de gostar de rir dos outros

Filme que mostra a passagem de psicótico a psicopata de um jovem numa cidade decadente nos anos 1980

O horror não está no horror —repetia Júlio Bressane nos anos 1970, no Brasil. O horror não está no horror— parece insistir Todd Phillips em seu “Coringa”. Ali ele nos fala da origem do mais célebre e temível inimigo de Batman, como se sabe.
Mais do que isso, porém, é da passagem de psicótico a psicopata de um jovem que vive na Gotham City (ou Nova York) de 1981, ano de “Um Tiro na Noite”, mas também da tomada do poder por Ronald Reagan.

É uma cidade suja, infestada por ratos, tomada por despossuídos, habitantes de rua e prédios sujos. Lembra até certos filmes de John Carpenter. Mas lembra, mais do que tudo, que Reagan foi o instaurador da política neoliberal nos Estados Unidos. Quisesse ou não, foi essa a política econômica que tem propiciado o crescimento abissal das desigualdades sociais no mundo.
Não por acaso, pouco depois de o filme começar sabemos que o serviço social onde o jovem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o futuro Coringa, trata de seus problemas mentais teve a verba cortada. Vai-se assim a terapia e, junto, os remédios que recebia gratuitamente.
Resta-lhe cuidar da mãe, exercer sua profissão de palhaço (do tipo que atrai pessoas para lojas, visita hospitais etc.), ver televisão e sonhar em se tornar astro de comédia stand-up e apresentador de talk shows.

É então que entra em cena outro elemento-chave do filme: a televisão (o primeiro, claro, sãos as HQs). Ali trabalha Thomas Wayne, um dos mestres do talk show. Aquele que veio de baixo e teve oportunidade de subir, de chegar ao sucesso. Aquele que, de passagem, não hesita em humilhar os “freaks”, os desajustados como Arthur Fleck. Ok, as piadas de Arthur não fazem rir, mas fazem com que riam dele.
Dá audiência, faz a fortuna dos Thomas Wayne (pai do futuro Batman, para os distraídos) ou Murray Franklin (outro rei dos talk shows).
Ok, eles não são os únicos culpados. Nem Ronald Reagan. Nem só a doença que faz o futuro Coringa rir nos momentos mais inconvenientes. Há também uma crueldade inerente ao homem: gostamos de rir dos outros. Então ou fazemos os outros rirem, ou os outros rirem de nós.
Será que na visão de Todd Phillips não somos uma espécie perversa? Ou que a televisão seja uma parte central dessa perversidade? (A TV está no centro de tudo neste filme). Ou que a tendência à ganância a qualquer preço esteja dentro de uma tendência natural ou, pelo menos, de uma decadência civilizatória?

Pode-se ver as coisas assim. Elas não estariam tão longe do olhar de um Tim Burton (autor de vários filmes de Batman já feitos). O certo é que os fãs de Batman nunca mais poderão olhar o Coringa com os mesmos olhos. Junto com a imagem do incompreensível, insuportável vilão de outros filmes, veremos também a de um jovem triste, torturado, sem pai conhecido. Em suma, revoltado. E é impossível não compreender sua revolta.

Uma palavra sobre Todd Phillips, que fez carreira sobretudo em comédias sarcásticas, em especial a muito bem-sucedida “Se Beber Não Case” (a primeira), onde manejava elementos de absurdo e crueldade com desenvoltura. Mas é aqui que, aparentemente, obteve a independência para fazer um trabalho pessoal.

Por fim, “Coringa” não seria o mesmo sem Joaquin Phoenix. Seu Arthur Fleck parece ter se inspirado em Antonin Artaud (1896-1948 ), no Artaud do fim da vida, pós-hospício, o de “Artaud le Momo”, dessa máscara que ri, faz rir, zomba e geme ao mesmo tempo.
Pode ser que não, mas quem quiser fazer um filme sobre Artaud já sabe onde encontrar o ator. É um gênio, também.

Inácio Araújo, 02/10/2019


07/01/2020
Lola Montes, 1955, Max Ophuls



A história de Lola Montès (Martine Carol), dançarina e cortesã célebre por seus romances escandalosos com figuras públicas, como o compositor Franz Liszt e o Rei Ludwig I da Baviera.

"Lola Montès", de Max Ophuls, é uma obra-prima!

... Max Ophuls (1902/1957), realizador globetrotter, e de raro brilhantismo e singularidade na história da chamada sétima arte, começa a fazer filmes na Alemanha na década de 30 e depois na Itália, Estados Unidos (onde fez uma obra-prima do intimismo cinematográfico de todos os tempos:Carta de uma desconhecida/Letter from an Unknown Woman, 1948, com Louis Jordan e Joan Fontaine), e França, quando, nos anos 50 realiza três preciosidades de sutileza, de finesse, de delicadeza no trato da alma feminina e na análise do meio social circundante com um apuro estético inexcedível: Conflitos de amor (La ronde, 1950), com Anton Walbrook, Simone Signoret,O prazer (Le plaisir, 1952), com Jean Gabin, Jean Servais, Daniel Gélin (que foi amante de Danusa Leão nesta época), Danielle Derrieux, Desejos proibidos (Madame de..., 1953), com Danielle Derrieux, Charles Boyer, e Vittorio De Sica.

Tomo emprestadas as palavras de Claude Beylie, ilustre ensaísta cinematográfico francês para situar melhor a importância de Lola Montès. Antes, porém, lembrar que François Truffaut, uma vez, escreveu o seguinte: "Quem nunca viu Lola Montès não pode entender de cinema". Mas vamos às palavras de Beylie: "Hoje, que as paixões se aplacaram, devemos reter Lola Montès. Antes de mais nada, uma rigorosa denúncia do sensacionalismo espetacular e da promoção da mídia. Ophuls que, a este respeito, estava vários passos à frente de sua época, ocultava suas intenções: "As perguntas que o público do circo faz a Lola me foram inspiradas pelos jogos radiofônicos de programas publicitários tremendamente impudicos. Acho apavorante esse vício de tudo saber, essa falta de respeito diante do mistério." No entanto, ao mesmo tempo e paradoxalmente, ele realiza o desejo wagneriano de um espetáculo total: o tratamento original da cor (na tradição de Jean Renoir e Vincente Minnelli), o uso de caches, que permitem modificar à vontade o formato da imagem em cinemascope (o que cria a impressão de uma tela variável, submetida a sutis mudanças de cenário na mesma tomada..."Além da já citada assombrosa agilidade da câmera. Ostravellings e as panorâmicas de Ophuls são, por assim dizer, coisa do outro mundo. É bem de ver o que disse Beylie: a cor é trabalhada com tal intensidade que se ajusta como uma luva ao tecido dramático, tornando-se um elemento de composição importante da mise-en-scène... (Setaros Blog)

09/01/2020
O leopardo, 1963,  Luchino Visconti



1860, Sicília. Durante o período do "Risorgimento", o conturbado processo de unificação italiana, o príncipe Don Fabrizio Salina (Burt Lancaster) testemunha a decadência da nobreza e a ascensão da burguesia. Num cenário caótico de fortes contradições políticas, ele luta para manter seus valores.

O Leopardo (1963): opulência e ruína, jogo de forças entre a nostalgia do passado e a mola propulsora que dirige o presente ao futuro. Bailes aristocráticos, quadros valorosos, tapeçarias cuidadosas, bustos estatuários, cômodos intermináveis, a grandeza, o encanto visual; em paralelo, o pó, a melancolia, o vagar paralítico, a indefinição, o tédio, a morbidez, a iminência do fim. 

A obra-prima de Luchino Visconti é esse mosaico de sensações, faz conviver elementos tensionados sem nunca os resolver completamente, sempre respeitando a complexidade do que não se unifica.
Os amantes da obra do diretor italiano já conhecem bem as intersecções de sua arte com sua vida. Sabe-se que Visconti nasceu em berço de ouro e vem de família aristocrática; que sua maturação foi embebida pelas belas artes; que o menino Visconti assistia, maravilhado, às festas magníficas que seus pais proporcionavam à elite italiana; e que, indo ao ponto mais importante, este compósito de vivências viria a engendrar, no artificioso diretor, temáticas recorrentes e obsedantes: o peso da História (assim, com agá maiúsculo), os rituais característicos de certas classes sociais, o medo do fim, o arruinamento das vidas...(Plano Crítico)


Era uma vez em...Hollywood, 2019, Quentin Tarantino


Depois de oito longas-metragens, Quentin Tarantino possui plena consciência da fama que construiu para si, e sabe exatamente o que os fãs esperam dele. O diretor tem contribuído a alimentar a imagem de ícone do cinema B, grande conhecedor de terror, ação, policial e exploitation, exímio coordenador de cenas de ação, com um humor autoparódico e desmesurado. Espera-se de Tarantino que carregue as tintas nos tiros e explosões, nas referências à cultura pop, na condução voluntariamente gratuita da violência. No entanto, em seus últimos filmes, o cineasta tem privilegiado a vertente de “grande autor”, substituindo aos poucos o prazer do sangue pela maestria dos diálogos e da mise en scène.

Os Oito Odiados trabalhava, durante aproximadamente uma hora de filme, a apresentação dos personagens, sua origem e suas motivações, à medida que se deslocavam pela neve. Esta apresentação, espécie de antessala ao conflito que desencadearia a ação principal, tem ocupado um espaço cada vez maior na filmografia do diretor. Ele prefere deixar em segundo plano as reviravoltas espetaculares para privilegiar a criação de personagens, brincando com estas figuras como quem brinca de bonecos dispostos em situações desconexas, pelo simples prazer do jogo. A abordagem lúdica resulta na estrutura surpreendente de Era uma Vez... em Hollywood, projeto de três horas de duração que passa mais de duas horas introduzindo personagens e deslocando-os livremente pelo mundo do cinema... (AdoroCinema)

Em tempo: um Tarantino menor.

13/01/2020
Nefta football Club, 2018, Yves Piat


A caminho de casa, os jovens irmãos Abdallah e Mohammed encontram-se no deserto com uma mula carregada que vagueia desorientada com fones de ouvido. Os dois decidem trazer a carga para a aldeia. Mas eles têm planos diferentes para o uso desta descoberta.

Em tempo: uma graça este curta metragem candidato ao Oscar 2020


17/01/2020
O farol, 2019, Robert Eggers


Uma tela quadrada (ou próxima disso, em formato 1.19:1). Uma fotografia em preto e branco, extremamente contrastada, com textura antiga, suja. Personagens que caminham em silêncio e, em determinado momento, param e encaram diretamente para o espectador. O início de The Lighthouse evoca o cinema soviético do início dos anos XX e os recursos de linguagem do cinema mudo. O diretor Robert Eggers continua buscando nos símbolos do passado o material para ilustrar os medos contemporâneos. Após A Bruxa, constrói uma fábula sobre isolamento e loucura, sobre a monstruosidade real ou imaginária – sua versão pessoal de “A Volta do Parafuso”.

Logo, os dois homens falam, até demais. Thomas Wake (Willem Dafoe) corresponde ao imaginário do capitão bêbado e agressivo, exceto pelo fato de que se tranca dentro do farol, à noite, completamente nu, e emite alguns gemidos de prazer. Ephraim Winslow (Robert Pattinson) é anunciado como o típico novato explorado pelo chefe, ainda que esconda alguns segredos no passado e ostente um comportamento, digamos, instável. A narrativa está repleta de sugestões de violência e erotismo – nunca sabemos ao certo se os dois homens vão se matar ou fazer sexo um com o outro. Tudo passa pelo corpo, como atesta a quantidade impressionante de brigas, bebedeiras, trabalhos forçados, urina, fezes, sangue, vômito, esperma e flatulência. (AdoroCinema)





sábado, 25 de janeiro de 2020

Sumário do Blog

Pedro  09/08/2020

73 vacas  08/08/2020

Hiroshima 75 anos  06/08/2020

App da inclusão  01/08/2020

Educação vigiada   24/07/2020

Marguerite Duras  24/07/2020

Florestan  23/07/2020

Mumbuca  21/07/2020

Filmes parte 7  19/07/2020

Um de nós morrerá  16/07/2020

O desprezo  11/07/2020

Tudo acaba em barro  07/07/2020

INTOLERÂNCIA  03/O7/2020

Covid nas aldeias brasileiras  29/06/2020

Filmes a levar na mala  29/06/2020

O debate selvagem: ensino presencial ou EaD  27/06/2020

O ensino remoto, a pandemia, a alienação e o produtivismo  21/06/2020

O que é alienação em Marx  20/06/2020

Filmes - parte 6  19/06/2020

A economia pré e pós pandemia e seu reflexos no mundo do trabalho  15/06/2020

Poema para meu irmão branco  12/06/2020

AULA AO PÉ DO OUVIDO  06/06/2020

UFES (1954 - 2020) perdas e ganhos  30/05/2020

Tempos da peste  15/05/2020

Um virus entre duas crises  14/05/2020

O neoliberalismo e a pandemia  08/05/2020

A pandemia e o desmonte neoliberal no país  06/05/2020

 De frente para a tragédia na escola pública 04/05/2020

Filmes parte 5   02/05/2020

O ensino a distância na Educação Básica e a Invasão dos bárbaros  1/05/2020

Fordismo científico  27/04/2020

Uma república profanada    25/04/2020

Educação Básica no Brasil 2019  20/04/2020

Educação Superior no Brasil 2018  19/04/2020

A falsa cordialidade dos brasileiros  13/04/2020

'Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela'  11/04/2020

Filmes parte 4   06/04/2020

SÓ!  28/03/2020

Quem fará a ruptura no Brasil?  26/03/2020

Tatiana Leskova  23/03/2020

Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil  16/03/2020

MISSA DO GALO  04/03/2020

Filmes - parte 3  02/02/2020

Paraisópolis: a política do extermínio, 25/01/2020 

Monogamia, 13/01/2020 

A igreja branca, 10/01/2020 

GRETA, 17/11/2019

Universidade e negócios, 24/11/2019

Eliane Brum, 27/10/2019 

Ofensiva final contra os povos indígenas, 15/10/2019

Bacurau e o Brasil brutal, 07/10/2019 

Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil, 24/09/2019

O Narciso de Caravaggio, 07/09/2019

Tupi, 29/08/2019                                                                                                              

ANGUSTIA de Graciliano, 16/08/2019                                                                      

Elzita, 05/08/2019                                                                                                          

Altamira e Belo Monte, 03/08/2019                                                                          

Filmes - parte 2, 30/07/2019


Ítala Nandi, 09/07/2019

Serra Pelada e o desastre ambiental, 07/07/2019

Moro, o justiceiro vingador e o PT, 05/07/2019

Canudos, 09/06/2019

Um Brasil Mad Max, 05/06/2019

Caravaggio Imortal, 10/05/2019

Abraço da serpente, 29/04/2019

LULA, 27/04/2019

Paulo Freire, 14/04/2019

Filmes, 06/04/2019

Ana Paula e a vida na senzala, 18/03/2019

Roma - o filme, 12/03/2019

O país sem alvará para funcionar, 13/02/2019

Brumadinho: crime anunciado, 28/01/2019

Sob velha direção, 01/01/2019

SALTEADORES DA TESSÁLIA, 28/12/2018

Sexo sem culpa, 21/12/2018

Yawanawás, 16/12/2018

O espelho, 12/12/2018

Mônica, 12/12/2018

Emilia Galindo, 28/11/2018

Virginie Despentes, 22/11/2018

Um casamento feliz, 18/11/2018

Sistema Internacional de Unidades: atualização, 16/11/2018

Escola sem partido, 06/11/2018

A guerrilha do recalque, 16/10/2018

Vidas Secas, 11/10/2018

Tratar um câncer transforma a vida, nem sempre para pior, 13/09/2018

Violência no Brasil, 25/08/2018

Porque escrevo (Ensaios de risco), 24/08/2018

Catástrofe a vista, 17/08/2018

A dor da existência, 10/08/2018

Nossas dores, 26/07/2018

Cão sem plumas, 16/07/2018

As minhas seleções, 14/07/2018

Três pinos, 23/06/2018

Deus salve o casamento, 22/05/2018

Sexo forte, 12/05/2018

Daniela Vega, 30/04/2018

Lou, 26/04/2018

Minha libido foi comprar cigarro, 21/04/2018

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Paraisópolis: a política do extermínio

A economia política do extermínio: Paraisópolis e a próxima “tragédia”…

Será que conseguiremos confrontar o poder burguês no Brasil sem colocar no centro da agenda política o enfrentamento ao extermínio da população negra? Como colocar no centro da cena política a questão do extermínio?

Publicado em 13/01/2020

Por Jones Manoel.

Tenho uma foto do que era, na época, minha turma de segunda série. Eram dez alunos que estudavam nos fundos da Igreja Católica São Francisco de Assis na favela da Borborema, em Recife. Das dez crianças presentes na foto, apenas duas estão vivas. Eu e mais um. Fui o único a fazer curso superior. Os outros oito morreram. Todos de forma violenta, com tiros ou facadas. Seis deles eu vi os corpos estendidos na rua, esperando o carro do IML chegar. Nas favelas e morros do Brasil há uma estranha curiosidade mórbida por ficar olhando o corpo até ele ser recolhido. Minha mãe, na melhor das intenções, também tinha uma pedagogia um pouco macabra (costume comum a várias mães): levar o filho para ver o corpo e saber como termina quem “entra na vida errada” para tentar dissuadi-lo das “tentações do crime”.

Ampliando um pouco mais a memória, consigo lembrar rapidamente de quase trinta nomes de amigos e colegas com os quais convivi durante infância, adolescência e parte da vida adulta, que foram mortos de maneira violenta. Lembro com clareza de Rafael, que dava em cima da minha irmã, e foi morto com 16 anos em um bar porque um cara estava com ciúmes de sua namorada. Lembro de Juruna, meu colega de capoeira que foi morto com um tiro no olho por um policial. Lembro também de Neto, morto perto do Aeroporto do Recife, também em um bar, com mais de sete tiros etc.

Parando para pensar sociologicamente, eu tenho memórias de guerra. Conheço centenas de pessoas assassinadas. Vi muitos corpos e muito sangue espalhado na rua. Porém, teoricamente, eu não estive em uma guerra. Tudo isso aconteceu durante o período auge da linda e pujante democracia brasileira.
Acrescento outro registro de memória pessoal. Quando tinha onze anos de idade, meu pai foi assassinado. Desde muito cedo, aprendi com os filmes de Hollywood que toda polícia tem um departamento de investigação ultramoderno, cheio de técnicas e artifícios capazes de descobrir qualquer crime e, enfim, fazer justiça. Esperava que acontecesse o mesmo com a morte do meu pai. Não foi o que ocorreu. Mais de 80% dos homicídios no Brasil não são investigados ou solucionados. Sem falar na qualidade dos inquéritos e sentenças judiciais dos casos ditos “solucionados”. Meu pai Luis Manoel, ou Mané do Bode (como os amigos chamavam), foi só mais um, entre milhares, a ter a vida ceifada como se não fosse nada.

Esses registros pessoais de memória, depois que me tornei militante e professor, passaram a ser lidos dentro de um prisma sociológico. Note: no Brasil, há um complexo que articula aparatos do Estado e da mal chamada sociedade civil numa sinergia intensa de modo a reproduzir e legitimar uma política de extermínio de milhares de pessoas todos os anos – cerca de 60 mil. Ergue-se toda uma institucionalidade paralela ou um conjunto de leis oficiosas, que todo mundo  conhece muito bem, sem que isso implique qualquer contradição fundamental com a estrutura jurídico-política formal do Estado.

Exemplo básico disso. Desde os meus dez anos de idade, ando com o RG no bolso. Até hoje faço isso. Minha mãe me ensinou que não posso sair sem carteira de identificação na rua. A ideia implícita é que eu, garoto negro, pobre e favelado, poderia ser morto e o mínimo era identificar meu corpo. Minha mãe também me ensinou, ainda criança, que quando eu visse a polícia na rua deveria lembrar de nunca correr ou fazer qualquer movimento brusco, pra não correr o risco de provocar algum disparo por parte deles.

Nesses ensinamentos está contida uma sabedoria prática que retrata a realidade não inscrita nos códigos jurídicos ou na Constituição, mas que registra o funcionamento concreto do poder político no Brasil. Aprendi desde cedo formas de tentar tornar-me um pouco menos “matável” – embora ainda tenha que andar com o RG, pois, a despeito do que eu faça, eu continuo um ser matável. E essa realidade material de extermínio convive bem com o Judiciário, o Legislativo, o Executivo, os intelectuais, a universidade, as igrejas, o cinema, os partidos políticos etc.
O fato de termos pessoas que têm memórias e experiências de vida semelhantes ou piores que as de um iraquiano ou um sírio (pra citar países que, nos últimos anos, passaram por guerras brutais fruto de invasão neocolonial do imperialismo) não é uma questão central na política brasileira – mais do que isso: não é e não foi para nenhum presidente da República no chamado período democrático. Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer contêm poucas diferenças entre si nessa questão. A grande diferença é Bolsonaro, que consegue ser o pior de todos.

O único líder político no pós-ditadura empresarial militar que pode bater no peito e dizer fez ou tentou fazer algo para parar esse extermínio no Brasil chama-se Leonel de Moura Brizola (em sua gestão à frente do governo do estado do Rio de Janeiro). De resto, ou no discurso se coloca um pouco contra (mas mantém tudo na prática) ou reforça a legitimidade da política de extermínio no discurso. Essa legitimação tem ampla guarida inclusive na “esquerda”. Lula da Silva, em 2007, depois de a Polícia Militar matar dezenove pessoas no Rio de Janeiro, disse que “não se enfrenta bandidos com rosas”. A prova de que as dezenove pessoas mortas eram “bandidos” foi… a PM dizer que eles eram bandidos. Lula nunca foi devidamente cobrado por declarações como essas.

Em 2015, depois da Rondesp matar doze jovens negros, o governador petista da Bahia, Rui Costa, disse que os policiais são como artilheiros na hora de fazer um gol e que às vezes erram. Rui também nunca foi cobrado como se deve por atitudes como essa e é cotado para uma… candidatura presidencial.

Isso para não falar de como se fazem reflexões sobre Direito, sistema político, democracia, cultura, desigualdade, instituições e afins não incorporando esse dado básico da realidade brasileira: todos os anos mais de 60 mil pessoas são assassinadas. Talvez, e isso é apenas uma hipótese, o centro da questão esteja na economia política: o capital, a acumulação capitalista no Brasil, não sente falta dessa força de trabalho exterminada. Note um dado curioso: mesmo com mais de 60 mil assassinados por ano, formando 1 milhão de mortos em 17 anos, o capital não sente falta ou escassez de força de trabalho. Antes, talvez, o contrário: esse extermínio perene seja funcional ao controle do exército industrial de reserva, ou superpopulação relativa, sempre crescente e com níveis cada vez mais assustadores na periferia do sistema capitalista.

O brilhante sociólogo francês Loïc Wacquant demonstrou com substância a relação entre o neoliberalismo e a onda punitiva de encarceramento em massa. O sistema prisional dos Estados Unidos, por exemplo, chegou a superar os dois milhões de encarados a partir da contrarrevolução neoliberal comandada por Ronald Reagan. Ao sintetizar seus estudos, Wacquant fala de três formas fundamentais de controle da pobreza: a) socialização (por meio de políticas sociais); b) medicalização (por exemplo: internar pessoas em situação de rua, como se o alcoolismo e outros problemas se resumissem a fenômenos biomédicos); e c) encarceramento1. A tese de Wacquant a respeito da relação orgânica entre neoliberalismo e encarceramento se mostra corretíssima, guardadas suas particularidades, também para o Brasil, mas o pensador francês que já escreveu coisas bastante interessantes sobre o nosso país, não percebeu que aqui temos uma quarta estratégia central de controle: o extermínio.

O projeto neoliberal, ampliando o desemprego, o trabalho precário e informal e a chamada marginalidade, veio acompanhado, em nosso país, não só do encarceramento em massa, mas também do aumento sempre crescente da letalidade do Estado. Por isso nosso sistema prisional não pode ser encontrado nas páginas do Vigiar e Punir, de Michel Foucault: ele assemelha-se muito mais a um campo de concentração, com rodadas periódicas também de extermínio e mortes em decorrência de doenças como tuberculose.

A constatação desse dado básico das últimas décadas reforça a hipótese aqui levantada: o neoliberalismo tornou ainda mais funcional à reprodução da ordem capitalista no Brasil o extermínio permanente de milhares todos os anos. O sangue, majoritariamente negro, deve correr para manter o capital lubrificado. Agrego que se faz necessário incorporar um dado fundamental. É incorreto falar somente de extermínio no âmbito da violência direta. Disse certa vez Bertold Brecht,

“Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”

Quantos não morrem todos os anos de fome, falta de atendimento médico, trabalho desumano, precariedade do transporte, ausência de remédios, péssimas condições nos hospitais, secas, grandes obras – como Belo Monte – e afins? Dois anos atrás um militante comunista e enfermeiro me garantiu, durante um debate sobre o tema do extermínio da população negra, que o Brasil não tem menos que 120 mil mortos todos os anos.

Liberais, conservadores, socialdemocratas, “socialistas democráticos” e até certos marxistas, em especial meus amigos trotskistas, adoram fazer contabilidade de corpos na URSS ou na China Popular. Mas que tal fazermos esse exercício aqui mesmo no Brasil?

Poderíamos aprofundar ainda mais a questão e pensar a história da formação social brasileira em longa duração histórica. O genial Darcy Ribeiro já falou do Brasil como um “moinho de gastar gente”, tratando dos ciclos de extermínio de indígenas, negros e afins2. Na história recente do Brasil, é difícil pensar em um momento de modernização desprovido de um grande massacre para coroar as transformações no padrão de dominação política e acumulação de capital: Canudos, Contestado, Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Carandiru etc.

Em suma, ontem, como hoje, somos um moinho de gastar gente. Uma fantástica fábrica de cadáveres que convive normalmente, com Estado de Direito, “com supremo, com tudo”. Trata-de um genocídio permanente, com sangue e corpos nas ruas todos os dias, com crianças sendo assassinadas com balas de fuzil atravessando seu corpo e nada acontece (um amigo de militância estudou Medicina em Cuba e teve dificuldade de explicar para os cubanos como tem tiroteio todo dia no Brasil e como é normal ver corpos na rua, sendo que não estamos em guerra civil).

Mas e Paraisópolis? Essa é a grande questão. O massacre de Paraisópolis foi o massacre do momento por uma semana. Já passou a repercussão. A família, alguns movimentos populares e juristas com compromisso popular é que ficam até o fim com compromisso com a verdade. O caso passa. A vida volta ao normal. Depois vem “outro caso”. Depois outro. E outro. E assim segue. Desde que me tornei militante, em 2010, não passou um mês sem um “grande caso” da polícia matando alguém. Cláudia, Amarildo, DG, 111 tiros no Costa Barros, Cabula, chacina de Fortaleza etc. etc. etc.
Aqui mora o centro da questão: esse extermínio é normal. E normal aqui no sentido sociológico da palavra, como conceito: uma série de práticas sociais e suas correspondentes ideologias de legitimação aceitas como parte constitutiva da sociedade em seu funcionamento cotidiano. É como a pobreza. Embora em discurso seja dito que ela é um problema e precisa ser combatida, não deixamos de comer, dormir, beber, estudar, se divertir ou sair toda semana na rua por causa da pobreza. Eu, você e todos nós saímos na rua, vemos pessoas na miséria, voltamos para nossa casa e segue a rotina.


O extermínio brasileiro não é uma anomia, nos termos colocados por Émile Durkheim.
Aconteceu Paraisópolis, e vai acontecer a próxima “tragédia”. E a próxima… Usar os “casos” para provar que a polícia é uma máquina no genocídio da população negra ou que existe racismo estrutural é um discurso que tem um impacto na hora, momentâneo, e depois volta tudo ao normal.
Numa coluna anterior aqui do Blog da Boitempo chamada “Duas teses sobre a questão racial no Brasil” eu apontei a importância do antirracismo revolucionário na estratégia da Revolução Brasileira. Será que conseguiremos confrontar o poder burguês no Brasil sem colocar no centro da agenda política o enfrentamento ao extermínio da população negra? Aliás, como podemos colocar no centro da cena política a questão do extermínio? Como tirar esse massacre cotidiano da normalidade, da naturalização, do “é isso mesmo”?

Essas são perguntas centrais para esse ano que se inicia. Para fazer com que massacres como o de Paraisópolis deixem de ser comuns. E não vou tentar, agora, fornecer as respostas. No decorrer do ano, voltaremos a esse tema no âmbito das nossas reflexões sobre o antirracismo revolucionário. O primeiro passo, porém, é entender o que disse a música:

“O pedido do secretário de segurança é especifico:
Soldados, atenção! Sem testemunha e feridos;
abatam pelo cabelo, pela roupa, pela cor.
Só cuidado com a laje, com cinegrafista amador.
Dá um vazio vê que ainda não fiz o escrito
com o poder de evitar os enterros coletivos;
impedir que os antigos vizinhos de rua
depois dos bum se tornem vizinhos de sepultura.

Eduardo Taddeo, “A era das chacinas”, A fantástica fábrica de cadáver.

NOTAS
1 Loïc Wacquant, Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (3° edição). Editora Revan, Rio de Janeiro, 2007.
2 Darcy Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Global editorial, São Paulo, 2017.

Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB.

A VER
Sangue preto e sangue indígena como moeda de negociação

24/01/2020

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Monogamia

Monogamia é cômoda e barata, mas absolutamente frágil, diz sexólogo

Para Manuel Lucas Matheu Bolsonaro e Trump exploram valores familiares nos quais ninguém realmente acredita


Sexólogo espanhol Manuel Lucas Matheu, 70, presidente da Sociedade Espanhola de Intervenção em Sexologia, bem como membro vitalício da Academia Internacional de Sexologia Médica - Reprodução/Universidad de Antioquia


A expertise do espanhol Manuel Lucas Matheu, 70, é sexo. Presidente da Sociedade Espanhola de Intervenção em Sexologia há quase duas décadas e membro da Academia Internacional de Sexologia Médica desde 2011, ele é frequentemente requisitado a falar sobre temas que aparecem cada vez mais no noticiário e na boca de governantes conservadores, como homossexualidade, poligamia e casamento. Sua visão sobre o assunto é liberal. Critica presidentes como Jair Bolsonaro e Donald Trump que, segundo ele, exploram pretensos valores familiares nos quais ninguém realmente acredita. Diz que estudos apoiam a teoria de que o medo, a ansiedade e a aversão que alguns heterossexuais sentem a gays e lésbicas podem crescer com a repressão de seus próprios desejos homossexuais.

"A sexualidade não é algo sujo. A sujeira está nas mentes que foram contaminadas com uma sexofobia patológica e doente, cheia de medos e insatisfações", afirma.

Afirma também que a monogamia estrita é quase um mito. "A monogamia não é uma lei universal e está mais ligada à pobreza que à riqueza. E, quando falo de riqueza, no caso dos humanos, não me refiro apenas à riqueza econômica, mas também à estética, intelectual, social etc."

O sexólogo diz que aqueles que fazem críticas a gays, como Bolsonaro, podem estar reprimindo seus próprios desejos homossexuais. "Pois que tomem nota o senhor Bolsonaro e os que têm o mesmo discurso homofóbico e se olhem no espelho." Segundo Matheu, "a sexualidade é um valor e uma capacidade de desenvolver, e não algo sujo."

Para ele, ações educativas são o único caminho para um futuro saudável nas camas do mundo todo. "Precisamos com urgência do fomento de atitudes de igualdade e equidade, seja qual for sua condição ou forma de viver sua sexualidade. Só assim as relações sexuais deixarão de ser genitalizadas e falocráticas."

Em uma entrevista à BBC, o senhor falou que só somos monogâmicos porque somos pobres. O senhor poderia explicar melhor esse pensamento?


Eu não disse exatamente isso. Disse que a monogamia está muito mais presente em toda a escala filogenética quando há escassez de recursos.

A monogamia só está presente em 3% dos mamíferos.

Ela tampouco é uma moda muito frequente entre nossos parentes mais próximos, os primatas. Em um estudo realizado por Ford e Beach em 185 sociedades humanas, menos de 16% restringiam seus membros à monogamia.

Em outro estudo sobre as 238 diferentes sociedades humanas em todo o planeta, Murdoch encontrou casamento monogâmico em apenas 43 delas.

Definitivamente, o verdadeiro título da minha entrevista, e não aquele que a imprensa divulgou, é que a monogamia não é uma lei universal, que as formas de relação sexual são muito diversas e que a monogamia real e efetiva está mais ligada à pobreza que à riqueza. E, quando falo de riqueza, no caso dos humanos, não me refiro apenas à riqueza econômica, mas também à estética, intelectual, social etc. Supondo que todos os seres acordassem ricos da noite para o dia.


O senhor acredita que as pessoas abandonariam imediatamente a monogamia?

A monogamia real e estrita é quase um mito. Está muito mais ligada à dificuldade de romper vínculos ou de acessar outros pares e é sustentada por fortes regras morais e religiosas. A monogamia é cômoda e barata, mas absolutamente frágil.

A monogamia está de algum modo ligada à infelicidade?

A construção amorosa ocidental se baseia em um malabarismo quase impossível: o amor apaixonado. O amor apaixonado acaba quando o amor é consumado e tão logo se transforma em amor consumido, seja pela rotina ou pelo cumprimento de um contrato amoroso daquele tipo que ninguém lê as letrinhas pequenas antes de assinar. E é um contrato diabolicamente difícil de cumprir, porque é um contrato não apenas amoroso, mas econômico, sexual, de poder, de tarefas, recreativo, e, se há filhos, pedagógico.

Qual o segredo para que um relacionamento aberto funcione?

Ainda que eu não creia que a monogamia esteja necessariamente ligada à infelicidade, um amor maduro e relativamente feliz precisa de bons conhecimentos sobre como construí-lo, e isso ninguém ensina nem na escola nem na família. Conhecimentos para resolver os conflitos inerentes aos casais, para se comunicar, para se compreender. As conveniências sociais e econômicas e fortes repressões religiosas são capazes de manter muitos casais quando eles realmente não são felizes juntos. Ainda que, repito, não seja impossível ser feliz.

No Brasil, vivemos uma onda conservadora que diz agir em defesa da família e da moral. Por que o senhor acha que, de tempos em tempos, as pessoas retornam à ideia de que a forma correta de fazer sexo é com um marido/esposa?

Estou mais preocupado do que nunca. Já tivemos de tudo na Casa Branca, mas nunca um descerebrado machista, homofóbico, racista, provincianos rico, polígamos sequencial, mal-educado e sobretudo egocêntrico. Ao lado de Putin, Bolsonaro, Boris Johnson etc., Trump explora pretensos valores familiares nos quais ninguém realmente acredita.

O presidente do Brasil já se envolveu em situações que tinham o sexo como protagonista, como quando usou sua conta oficial no Twitter para perguntar o que é golden shower e pública fixação por criticar homossexuais. Uma pessoa falar de sexo sempre com uma conotação suja pode indicar algum distúrbio?

Elizabeth Badinter, discípula de Simone de Beauvoir, disse: "A homofobia contribui para reforçar a frágil heterossexualidade de muitos homens". Isso vem corroborar um estudo multicêntrico conduzido por uma equipe formada por investigadores da Universidade de Rochester, da Universidade de Essex, e da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara que conclui que a homofobia se dá com mais assiduidade em indivíduos com uma atração não reconhecida pelo mesmo sexo.

As descobertas apoiam a teoria de que o medo, a ansiedade e a aversão que alguns heterossexuais sentem a gays e lésbicas podem crescer com a repressão de seus próprios desejos homossexuais. Pois que tomem nota o senhor Bolsonaro e os que têm o mesmo discurso homofóbico e se olhem no espelho.

A sexualidade é um valor e uma capacidade de desenvolver, e não algo sujo. A sujeira está nas suas mentes, que foram contaminadas com uma sexofobia patológica e doente, cheia de medos e insatisfações, de origem multifatorial, onde têm relação com fatores educativos, traumas infantis e graves problemas de apego.


As pessoas têm pensado mais em sexo e por isso a pornografia é tão popular ou as pessoas têm pensado mais em sexo porque a pornografia é tão popular?

A pornografia, como é produzida e comercializada, retrata claramente um modelo de relações sexuais reducionista, genitalizado, falocrático, masculinizado, produtivista, desportivo e marginalizador. E não só retrata este modelo como o consolida. Por isso é tão preocupante que este tipo de pornografia esteja disponível para todas as idades.

E, fora do ambiente virtual, as pessoas têm feito mais sexo no mundo?

As novas tecnologias têm um impacto importante na sexualidade humana. Uma das vantagens é que o acesso à informação sobre sexo fica mais democrático, bem como o acesso às terapias sexuais. O ponto negativo é a progressão de uma nova forma de solidão, a eletrônica.

Há pessoas que se fecham em si e na comodidade do seu rincão cibernético. Isso pode produzir problemas psicológicos, e, sobretudo, a amputação dos campos sensoriais em detrimento de um dos aspectos fundamentais da sexualidade: o contato corporal e a satisfação da sede de pele, que é tão intensa no ser humano.

 

Marcella Franco

SÃO PAULO, 13/01/2020

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A igreja branca

A igreja branca tem que acabar

Dodô Azevedo, 9/01/2020

Lemos e ouvimos por aí um discurso arrogante, oportunista e preconceituoso que diz: “A esquerda precisa conversar com os evangélicos, chegar às periferias”. Oportunista porque se vale da ingenuidade dos que não conhecem a natureza diversa da periferia e o universo evangélico e crêem em qualquer um que escreva:: “Eu vim da periferia, vocês não sabem o que se passa lá. Eu sei, e vou contar para vocês.” Arrogante, porque se coloca como voz única do que é necessariamente polifônico. Preconceituoso porque parte do princípio que pobres e evangélicos têm a cabeça vazia, são espécie de teletubies que aderem ao primeiro discurso que a eles chegar, a quem se apresentar mais próximo.

Uma das belezas do projeto Quadro-negro, é a oportunidade convidar as muitas vozes que, juntas, apresentam uma visão mais honesta do que tem se tornado um produto feitichizado para ser consumido por brancos “entusiastas das periferias e dos pobres”. Ronilso Pacheco é teólogo e pastor de São Gonçalo e ativista colaborador de diversas organizações de direitos humanos no Brasil. Atualmente mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA), o organizador do livro  “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018, escreveu recentemente, em uma de suas redes sociais:
“A impressão é que, nas periferias, nos territórios empobrecidos, evangélicas e evangélicos formam um grupo inculto e obtuso, limitado politicamente, incapaz de pensar por si mesmo e criar suas próprias linhas de fuga e sobrevivência.”

E aqui ele escreve sua primeira colaboração para o Quadro-negro, publicado um dia após a censura ao trabalho do Porta dos Fundos, explicando que, para além disso, o que ele chama de  “cristianismo branco” em nada se parece com a igreja original, que surgiu após a passagem de Jesus Cristo pela terra.

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O Fim da Igreja branca é o fim de uma Igreja que não tolera a diversidade e a solidariedade – Por Rosilso Pacheco

Eu já escrevi que a bíblia é um livro negro de hermenêutica branca. Com “negro”, me refiro a toda diversidade que há na bíblia (de povos, culturas, tradições, religiosidade), e que foram violentamente deturpadas e invisibilizadas para prevalecer a forma europeia-colonial de lê-la e se projetar nela. A negação e a repressão desta diversidade nos afetou profundamente. E esta é uma das razões pelas quais a igreja branca precisa acabar. Ou ela vai nos destruir enquanto sociedade.

Mesmo não achando necessário, faço questão de dizer que quando falo da “igreja branca” não estou me referindo às pessoas “brancas” que estão na igreja (ao menos não de maneira direta). Indivíduos, brancos e brancas, não precisam se acharem tanto. Eu estou falando necessariamente de um modelo de igreja que foi construído com padrões determinados de teologia, de construção de referências de vida cristã, e de formas de conhecer a Bíblia, a Deus e a Fé.

O neocalvinismo, por exemplo, que está cada vez mais assentado no governo Bolsonaro (e cada vez mais o apoia) hoje, tem como seu principal articulador e formulador o teólogo e político Abraham Kuyper, um holandês, no século XIX. Kuyper, por sua vez desenvolveu uma ideia de “cosmovisão cristã” a partir da leitura da obra de James Orr, um escocês, e que foi influenciado por Wihelm Dilthey, um alemão. Uma construção teológica nasce em quintal branco, masculino e europeu, e isto é universalizado como genuína compreensão de Deus, da bíblia e “teologia de verdade”. Isto é a igreja branca.

Isto é um problema? Obviamente que sim. Neocalvinistas em torno do governo Bolsonaro estão comprometidos com uma visão de livre mercado, apoiam políticas hostis à imigrantes, negam o escravidão e os efeitos do racismo na sociedade brasileira, e rezam em uma cartilha neoliberal que moraliza e responsabiliza excessivamente o indivíduo, enquanto poupa e sacraliza a estrutura (por mais desigual, homofóbica, violenta e racista que a estrutura possa ser).
O que une pentecostais e neopentecostais, calvinistas e luteranos, batistas ou metodistas, em maior ou menor grau, em uma frente de conservadorismo que cada vez mais surpreende e assusta, com seu discurso de ódio nas relações, preconceituoso nas interações, violento na política e ganancioso na economia, é uma identidade branca da igreja que herdamos, ou a branquitude da identidade da mesma.

O que está sendo exposto são os limites de uma igreja estruturada no imaginário branco de ser igreja. De cara, este imaginário é racista. Mas ele também hostiliza os pobres, é violento, moralizador e punitivista (ou culpabilizador). Isto é a igreja branca, e ela precisa deixar de existir. Isto é um modelo de igreja que formou e dominou o Brasil na sua organização colonial, escravista, exploradora e que “batizou” a elite e seus privilégios.

Ronilso Pacheco é autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Ed. Novos Diálogos)


Ronilso Pacheco, colunista convidado da semana, é pastor e mestrando em Teologia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque (Foto: Divulgação / Paulo Barros)



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

GRETA

Greta Thunberg foi recebida como heroína em Lisboa ao descer com outros cinco passageiros de um pequeno barco a vela com o qual tinham cruzado o Atlântico para não poluir. Mas nessa recepção, no dia 3, houve um viajante que não apareceu na entrevista coletiva no píer: o pai da ativista adolescente, Svante. Ele sempre a acompanha, mas fica em segundo plano. Tampouco manda em sua filha, dizem numerosas pessoas que convivem com a “personalidade do ano” escolhida pela revista Time, a adolescente sueca de 16 anos que inspirou um movimento global para lutar contra a crise climática.



A família Thunberg, no Natal de 2018


Desde que se tornou conhecida, há 15 meses, Thunberg é alvo de suspeitas de que alguém está por trás dela. Seus pais, agências de publicidade ou o bilionário George Soros foram apontados em teorias da conspiração que acabaram sendo desmanteladas. Seu entorno afirma que ela é “sua própria chefa” e sua desenvoltura em público transmite essa sensação.

Durante sua permanência em Madri, do dia 6 ao 11, para a Cúpula do Clima da ONU, Thunberg esteve rodeada de um punhado de pessoas de confiança. Além de Svante, foi acompanhada por Erika Jangen, uma amiga da família que a conhece desde que nasceu. Um grupo reduzido de assistentes, pessoas com experiência no mundo do ativismo climático, ajudou-a com a agenda. Sua mãe, Malena Ernman, e sua irmã, Beata, dois anos mais nova que Greta, permaneceram na Suécia.
Segundo o relato familiar, não são os pais que influenciam a menor, mas sim o contrário. Greta caiu aos 11 anos em uma forte depressão que a levou a parar de comer e de conversar com estranhos.

Diagnosticada com síndrome de Asperger, ela diz que sua paixão por salvar o planeta se deve em parte à forma de ver o mundo de uma pessoa autista, capaz de concentrar toda a sua atenção e todos os seus esforços em um único tema. Sua mãe, uma famosa cantora de ópera que representou a Suécia no festival Eurovision de 2009, e seu pai, um ator de teatro, mudaram sua forma de pensar graças a ela. Tornaram-se veganos, reduziram seu consumismo e pararam de viajar de avião. Relataram isso no livro Nossa Casa Está em Chamas, a versão em português de uma autobiografia familiar lançada na Suécia em 23 de agosto de 2018 com o título de Scener ur Hjärtat (Cenas do coração).

Três dias antes da publicação do livro, Greta tinha iniciado seu histórico protesto. Instalou-se sozinha diante do Parlamento sueco com um cartaz que dizia “Greve escolar pelo clima”, publicou sua foto nas redes sociais, e a revolução começou. A imagem de uma estudante de 15 anos que não ia às aulas para se manifestar em defesa do meio ambiente viralizou, e em poucas horas apareceram os primeiros jornalistas suecos, dos jornais Dagens ETC e Aftonbladet. Ajudou o fato de a Suécia estar a poucos dias da realização de eleições gerais. O jornal britânico The Guardian, que há anos dá uma atenção especial ao clima, foi o primeiro veículo de comunicação internacional a entrevistá-la, na semana seguinte. Depois vieram os convites para dar uma palestra TED em Estocolmo, ir a fóruns internacionais, as manifestações em massa e assim por diante até hoje.

No livro, assinado pelos quatro membros da família, mas narrado na voz da mãe, os pais de Greta se apresentam como duas pessoas que acreditam com firmeza na causa. Contam de maneira explícita as brigas, insultos e choros em um lar em crise devido à condição das duas pequenas. Beata foi diagnosticada com transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. As doenças mentais que proliferam no Ocidente são, como relatam, a manifestação em nossa parte do mundo da crise de sustentabilidade gerada por um modelo que gira em torno do crescimento sem limites. As consequências desse sistema em outros continentes seriam as secas, os deslizamentos de terras e o aumento do nível do mar.

Foi durante as férias que Greta teve a ideia de iniciar a greve escolar. Inspirou-se nos adolescentes americanos do movimento Zero Hour, frustrados pela passividade dos políticos em relação ao clima. Seus pais, meio reticentes no início, apoiaram-na ao ver o entusiasmo despertado por sua filha, até então triste e avessa a se relacionar com estranhos.
Greta já havia previsto que sua greve atrairia a atenção da mídia. Nos dias anteriores, sua energia aumentou e, durante suas férias, fazendo trilha na área do lago Trollsjön, na Lapônia sueca, não parava de perguntar ao seu pai como deveria fazer. Svante a orienta.

− Você vai ouvir toda hora: “Foram seus pais que lhe disseram que fizesse isso?”.

− Então vou responder a verdade. Que fui eu que influenciei vocês, e não o contrário.

Em seu primeiro discurso em público, na praça Nytorget de Estocolmo em 8 de setembro do ano passado, o público deu a Greta uma sonora ovação. Uma mulher ao lado de Svante lhe perguntou se ele estava orgulhoso. “Não, não estou orgulhoso, só muito feliz porque vejo que Greta está bem”.

“Só estou aqui como pai”

Em público, Greta já deu muitas amostras de estar no controle da situação, inclusive durante sua estadia na Península Ibérica. Quando os repórteres cruzavam com Greta em Lisboa ou Madri, nenhum adulto se interpunha. Em uma ocasião, enquanto tomava suco com seu pai e os companheiros da viagem de barco na Praça do Comércio, saiu sozinha do estabelecimento para pedir a alguns jornalistas que por favor não os gravassem no local.

“É ela que está interessada, que está motivada, que faz com que seu pai se mova, foi ela que teve essas ideias”, diz Riley Whitelun, o navegante australiano que ofereceu seu barco para levá-la dos EUA para a Europa. Durante 21 dias, conviveu com eles no catamarã e viu que as teorias de que ela seria uma marionete são falsas: “Não se pode esconder uma farsa dessa magnitude 24 horas por dia”.

Nem Greta nem Svante quiseram fazer declarações para esta reportagem. “Só estou aqui como pai”, limitou-se a dizer Svante na terça-feira, enquanto esperava que sua filha terminasse uma reunião na Cúpula do Clima com Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. “É ela que decide o que quer fazer, aonde vai e o que diz”, afirma Alejandro Martínez, um espanhol de 25 anos que participou de reuniões com Thunberg e sua equipe em Madri.
Thunberg também consulta um grupo de destacados cientistas climáticos, entre eles Kevin Anderson, professor da Universidade de Manchester, e Johan Rockström, diretor do Instituto de Postdam para os Estudos Climáticos.

Sua turnê pela América do Norte e Europa foi custeada pela família. Ela pode cobrir parte dos gastos graças a dois documentários que está gravando. Um deles é filmado por uma equipe da BBC que teve acesso exclusivo a ela em Lisboa e Madri.

Greta decidiu limitar sua exposição pública após sua chegada à Europa. Nos Estados Unidos, tinha aparecido em programas de televisão de grande audiência, como os de Ellen DeGeneres e Trevor Noah. Também se deixou ver com o ex-presidente Barack Obama e com os atores Leonardo DiCaprio e Arnold Schwarzenegger.

Se quisesse, teria aparecido em todo lugar em Madri. Autoridades, políticos, artistas e jornalistas quiseram aparecer com ela, segundo seu entorno, mas ela disse chega. A bola da mídia foi longe demais e ela sentiu que sua voz estava impedindo que fossem ouvidos outros ativistas do movimento contra a mudança climática, como cientistas ou pessoas dos países mais expostos a desastres naturais.
“A atenção da mídia é completamente desproporcional em relação à que deveriam ter os cientistas ou os líderes jovens do Sul global”, diz Luisa Neubauer, que apresentou juntamente com Greta dois painéis na Cúpula do Clima.

Greta, que tirou um ano sabático em sua escola secundária, ainda não anunciou seus planos para 2020. Agora ela está viajando para a Suécia com seu pai, de trem, ônibus e carro elétricos, para passar o Natal em família. Apesar do perfil mais discreto, seu círculo acredita que a ativista recarregará as energias para seguir em frente, porque, como ela disse mais de uma vez, esta luta deu à sua vida “um significado”.

Fernando Peinado
Madri, 14/12/2019
El Pais