domingo, 30 de maio de 2021

A estética fascista

E as fantasias de Bolsonaro e Mussolini com motos

Fascismo italiano se apropriou do culto às máquinas do futurismo como ideal de elevação da raça

FÁBIO PALÁCIO Folha de São Paulo, 28/05/2021 

[RESUMO] Passeios de motocicleta incentivados por Bolsonaro em apoio a seu governo remetem a manifestações semelhantes patrocinadas por Mussolini nos anos 1930, quando o fascismo italiano se apropriou de certas características do movimento futurista, como a recusa da tradição e o culto às máquinas, para fixar no imaginário seu ideal de sociedade viril e de raça superior.

O presidente Jair Bolsonaro passou a incentivar passeios de motocicleta para mobilizar seus apoiadores. No último fim de semana, promoveu um no Rio, após ter feito outro em Brasília.

Muita gente atentou para um fato curioso: também o líder fascista Benito Mussolini promovia passeios semelhantes de moto. Pouco se falou, contudo, sobre um ponto crucial: por que, afinal, eles viram nas motocicletas um símbolo de seu ideário?
 

 
Ilustração (esq.) publicada no semanário La Tribuna Illustrata, em 1933, retrata Benito Mussolini em passeio de moto com apoiadores; Foto (dir.) de Jair Bolsonaro durante passeio com motociclistas no Rio de Janeiro - Reprodução e André Borges - 23.mai.21/AFP 
 
A resposta pode ser encontrada nos manifestos futuristas do poeta Filippo Tommaso Marinetti. Como sabemos, no início do século 20 pipocavam uma série de vanguardas artísticas que, em seu conjunto, iriam configurar o modernismo. A primeira —e talvez a mais importante— dessas vanguardas foi o futurismo. Em consonância com seu nome, esse movimento pregava uma oposição radical ao passado, em favor de uma arte atirada ao moderno, que procurasse louvar e prefigurar o futuro.

O movimento, que tem início com a publicação do primeiro manifesto de Marinetti no jornal francês Le Figaro, logo se espalharia por vários países. Em Portugal, Fernando Pessoa fez poesia futurista a partir de seu heterônimo Álvaro de Campos. No Brasil, havia na Semana de Arte Moderna de 1922 artistas como Anita Malfatti e Oswald de Andrade, ambos influenciados pelo futurismo. Na Rússia, se desenvolveu uma vertente própria, que teve na poesia de Vladimir Maiakóvski um de seus destaques. A versão russa acabaria se ligando à experiência de construção do socialismo, a ponto de muitos coletivos futuristas externarem sua simpatia e mesmo sua lealdade ao Partido Comunista. 

Já na Itália aconteceu o contrário: o movimento pendeu para o lado do fascismo. Isso surge claro na trajetória de futuristas como Gabriele D'Annunzio. Esse poeta tem, aliás, uma história curiosa. Abro um parêntese para resumi-la. Havia, nas proximidades da fronteira entre a Itália e o antigo Império Austro-Húngaro, uma cidade chamada Fiume, que hoje se chama Rijeka e é uma das principais da Croácia. Era uma cidade multicultural, habitada por italianos, alemães, húngaros, austríacos, croatas, eslovenos e outras etnias.

 Funcionárias trabalham na fábrica de munições Brewey Road Works, em 1916 - Archive of Modern Conflict London / Reuters

Com o final da Primeira Guerra e a derrota do Império Austro-Húngaro, o status de Fiume ficou indefinido. A Itália, de um lado, e o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (futura Iugoslávia), de outro, passaram a reivindicar a cidade, ambos com base em alegações sobre sua composição étnica. 

Em meio a um período de disputa e indefinição, durante o ano de 1919 a cidade foi tomada por uma milícia de ativistas, poetas e intelectuais nacionalistas italianos, chefiada por D’Annunzio. Ele e seus sequazes criaram um Estado chamado Regência Italiana de Carnaro, que durou pouco mais de um ano. Nesse período, D’Annunzio chegou a redigir uma Constituição, de caráter utópico-poético. Ele afirmava ter a pretensão de construir a partir de Fiume uma “nova Roma”. Esse movimento, que passou à história como fiumanismo ou d’annunzismo, serviria de inspiração aos fascistas. 

Sobre a relação entre d’annunzismo e fascismo, o peruano José Carlos Mariátegui afirma em seu livro “Biología del Fascismo”: “D’Annunzio não é fascista. Mas o fascismo é d’annunziano. O fascismo usa [...] uma retórica, uma técnica e uma postura d’annunzianas. O grito fascista de ‘Eia, eia, alalá!’ é um grito da epopeia de D’Annunzio. As origens espirituais do fascismo estão na literatura de D’Annunzio”.  Essa história de relação com o fascismo não é só de D’Annunzio, mas também de outros futuristas, com destaque para Marinetti. Com a diferença de que, se aquele teve uma ligação frouxa e instável, este foi ativo militante e chegou a defender que a ideologia de Mussolini representava uma extensão das ideias futuristas.

Os manifestos de Marinetti — foram mais de 20, lançados entre 1909 e 1914 — permitem surpreender a gestação do ideário fascista. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft231102.htm Este não surge da noite para o dia. Forma-se ao longo de anos, alimentando-se de movimentos intelectuais preexistentes, como explica Mariátegui: “O futurismo —que foi um dos rostos, um episódio do fenômeno d’annunziano— é outro dos ingredientes ideológicos do fascismo. [...] Futuristas e d’annunzianos criaram na Itália um humor megalômano, anticristão, romântico e retórico”.
Isso não quer dizer que o futurismo italiano tenha sido um movimento direta e abertamente fascista. No entanto, ele acabou servindo de antessala, de “incubadora”: ajudou a fermentar certas ideias que mais tarde se tornariam caras ao fascismo.

Um dos bunkers da Villa Torlonia, que tinha cerca de 60 metros quadrados. Na época fascista o local tinha telefone e cama dobrável - Fabio Campana

A esta altura é legítima a pergunta: o que tem tudo isso a ver com os passeios de motocicleta? Ocorre que uma característica central do futurismo, que surge clara desde o primeiro manifesto de Marinetti, é o culto às máquinas, principalmente as máquinas motorizadas, tomadas como ícone de modernidade.  Em seu “Dicionário de Termos Literários”, o professor Massaud Moisés afirma: “Centrando-se, assim, no moderno, os futuristas faziam a apologia da velocidade, da máquina, do automóvel (‘um automóvel é mais belo que a Vitória de Samotrácia’, dizia Marinetti no seu primeiro manifesto), da agressividade, do esporte, da guerra, do patriotismo, do militarismo [...]”. 

É interessante recorrermos ao próprio Marinetti. Vejamos como essas ideias surgem em um de seus manifestos: “Arte vida explosiva. Italianismo paroxístico. Antimuseu. Anticultura, Antiacademia, Antilógica, Antigracioso, Antissentimental. Contra as cidades mortas. — Modernolatria. Religião da nova originalidade velocidade. Desigualdade. — Intuição e inconsciência criadoras. Esplendor geométrico. Estética da máquina”. 

Outro trecho afirma: “Compenetração e simultaneidade de tempo espaço longe-perto, exterior-interior, vivido-sonhado. Arquitetura pura (ferro-cimento). Imitação da máquina. Luz elétrica decorativa — Sínteses teatrais, de surpresa sem técnica e sem psicologia. Simultaneidades cênicas de alegre-triste realidade-sonho — [...] Arte dos ruídos. Sonoros. Arcos inarmônicos — Pesos medidas prêmio do gênio criador. Tactilismo e mesas tácteis. Em busca de novos sentidos. Palavras em liberdade e sínteses teatrais e olfativas — Flora artificial. Completo plástico motorruidoso — Vida simultânea — Proteção das máquinas [...]”. 

Estamos diante do debate sobre concepções de modernidade, e o fascismo também esboçou a sua. É um tipo de ideário mecanicista, que tende a ver o futuro do ser humano à luz da metáfora da máquina. Esta importa em dois sentidos. Primeiro, porque reforça a concepção fascista de “sociedade orgânica”.
Nessa perspectiva, a sociedade é vista como um organismo vivo, composto de partes que são os seus “órgãos”; essas partes devem colaborar harmonicamente entre si —como as engrenagens de uma máquina. Se há peça operando como contramola, colocando-se de forma antissistêmica, ela é vista como disfuncional e deve ser extirpada. O ser humano é concebido, nessa perspectiva, como mero autômato a serviço da elevação da raça. E aqui vamos adentrando o segundo sentido da metáfora da máquina. Sabemos que imagens de força, potência e vigor são caras ao fascismo. Elas contribuem para fixar no imaginário a ideia de “raças superiores”. Nessa visão, a tecnologia é concebida como extensão do corpo humano, capaz de torná-lo mais vigoroso. É este o significado que se oculta por trás da apologia fascista das armas e outras engenhocas, incluindo meios de transporte como o automóvel, o avião... e a motocicleta. 

Não por acaso, as motocicletas são signo frequente em filmes de caráter distópico, como “Mad Max” (1979), de George Miller, e “Rollerball — os Gladiadores do Futuro” (1975), de Norman Jewison. São narrativas de um futuro autoritário e violento, em que tudo se resolve na base da força bruta.
Neles, as motocicletas surgem não como meios de transporte, mas como armas, artefatos que ampliam o potencial belicoso do ser humano. “A guerra é bela porque realiza, pela primeira vez, o sonho de um homem com o corpo metálico”, diz Marinetti em seu manifesto apologético da Guerra Ítalo-Etíope (quando Mussolini invadiu a Abissínia, atual Etiópia).

A imagem marinettiana do “corpo metálico” parece especialmente atraente para quem vê o futuro como choque de civilizações, e não como paz entre os povos. Isso quer dizer que a cultura motociclística é fascista? De maneira nenhuma! Significa apenas que o fascismo reclama essa formação cultural, como também várias outras —incluindo a própria cultura automobilística.
Mussolini, apaixonado por automóveis e competições, era proprietário de um Alfa Romeo 6C 1750, carro que competiu nas mil milhas italianas de 1936, dirigido por seu motorista particular Ercole Boratto, que tinha sido piloto de testes da mesma Alfa Romeo.

Motoqueiros acompanham Bolsonaro em passeio na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, na manhã de 23/05/2021- Foto de Carl de Souza /AFP

Os fascistas reivindicam para seu patrimônio simbólico inúmeras culturas e valores. Para citar mais um exemplo, como dizia Mariátegui, eles “ambicionavam o monopólio do patriotismo”. Ora, será isso suficiente para dizermos que possuem esse monopólio? O patriotismo é, em si, um valor fascista? Não seria razoável pensar assim. Em contraposição ao nacionalismo conservador e autoritário dos fascistas, os democratas propugnam um nacionalismo democrático e popular, em que o povo não é vítima, mas herói e autor da nacionalidade. 

Coisa semelhante pode ser dita da vanguarda futurista. Embora possua ideias comuns a todas as suas manifestações, como a recusa do passado e a exaltação do moderno, é preciso reconhecer que esse núcleo ideológico se volatiliza nas mais diversas interpretações. O movimento assumiu colorações variadas conforme a região e o país. Se na Itália o futurismo se inclinou em direção ao fascismo, na Rússia outra abordagem se construiu, em aliança com o movimento socialista. O futurismo russo não subordinava o destino do ser humano a uma razão técnica todo-poderosa. Não concebia, como ainda hoje o fazem os modernos cloroquiners, a panaceia tecnológica como solução para a tragédia humana. Exaltava, sim, a tecnologia, mas como instrumento para uma libertação do trabalho que só poderia vir, no entanto, do próprio ser humano.

A política sempre guardou relação com as ideias estéticas. Os fascistas reivindicam essa conexão de modo especial. Como afirma Walter Benjamin em seu célebre ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, os fascistas promoveram a estetização da política.

Trata-se de uma tendência que não se pode subestimar. É preciso entender o enorme poder —político, inclusive — das ideias estéticas. Quem não compreende esse poder acaba sofrendo, inadvertidamente, seus efeitos.

Fábio Palácio
Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

sábado, 29 de maio de 2021

Ontologia da imagem fotográfica

André Bazin (1) 

Uma psicanálise das artes plásticas consideraria talvez a prática do embalsamamento como um fato fundamental de sua gênese. Na origem da pintura e da escultura, descobriria o ‘complexo” da múmia. A religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava a sobrevivência à perenidade material   do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é   salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida. Era natural que tais aparências fossem salvas na própria materialidade do corpo, em suas carnes e ossos. A primeira estátua egípcia é a múmia de   um homem curtido e petrificado em natrão. Mas as pirâmides e o labirinto de corredores não eram   garantia suficiente contra uma eventual violação do sepulcro; havia que se tomar ainda outras  precauções contra o acaso, multiplicar as medidas de proteção. Por isso, perto do sarcófago, junto   com o trigo destinado à alimentação do morto, eram colocadas estatuetas de terracota, espécies de múmias de reposição capazes de substituir o corpo caso este fosse destruído. Assim se revela, a partir das  suas  origens religiosas, a função primordial da estatuária: salvar o ser pela aparência. E provavelmente   pode-se   considerar   um   outro aspecto do mesmo projeto, tomado na sua modalidade ativa, o urso de argila   crivado  de flechas   da  caverna pré-histórica, substituto mágico, identificado à fera viva, como um voto ao êxito da caçada. 

É ponto pacífico que a evolução paralela da arte e da civilização destituiu as artes plásticas de suas funções mágicas (Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com o seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta evolução, tudo o que conseguiu foi sublimar, pela via de um pensamento lógico, esta  necessidade incoercível de exorcizar o tempo. Não  se acredita mais na identidade ontológica, de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual. 

A fabricação da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocêntrico. O que conta não é mais a sobrevivência do homem e sim, em escala mais ampla, a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo. “Que coisa vã a pintura”, se por trás   de  nossa  admiração absurda não se apresentar a necessidade primitiva de vencer o tempo pela perenidade da forma! Se a história das artes plásticas não é somente a de sua estética, mas antes a de sua   psicologia, então ela é essencialmente a história da semelhança, ou, se se quer, do realismo.  
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A fotografia e o cinema, situados nestas perspectivas sociológicas,   explicariam   tranqüilamente   a   grande crise espiritual e técnica da pintura moderna, que se origina por volta de meados do século passado.  Em seu artigo de Verve, André Malraux escrevia que “o cinema não é senão a instância mais evoluída do  realismo plástico, que principiou com o Renascimento e alcançou a sua expressão limite na pintura barroca”.  

É verdade que a pintura universal alcançara diferentes tipos   de   equilíbrio   entre   o   simbolismo   e   o   realismo   das formas, mas no século XV o pintor ocidental começou a se afastar   da   preocupação  primordial   de   tão   só   exprimir   a realidade espiritual por meios autônomos  para combinar a  sua expressão com a imitação mais ou menos integral  do mundo exterior. O acontecimento decisivo foi sem dúvida a invenção do primeiro sistema científico e, de certo modo, já mecânico: a  prespectiva  (a câmara escura de  Da Vinci prefigurava a de Niepce). Ele permitia ao artista dar a ilusão de um espaço de três dimensões onde os objetos podiam se situar como na nossa percepção direta.  

Desde então, a pintura viu-se esquartejada entre duas aspirações:  uma  propriamente   estética — a   expressão  das realidades espirituais em que o modelo se acha transcendido pelo simbolismo das formas –, e outra, esta não mais que um desejo puramente psicológico de substituir o mundo exterior pelo seu duplo. Esta necessidade de ilusão, alcançando rapidamente a sua própria satisfação, devorou pouco a pouco as artes plásticas. Porém, tendo a perspectiva resolvido o problema das formas, mas não o do movimento, era natural que o realismo se prolongasse numa busca da expressão dramática no instante, espécie de quarta dimensão psíquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte barroca (2).  

É claro que os grandes artistas sempre conseguiram a síntese   dessas   duas   tendências:   hierarquizaram-nas, dominando a realidade e absorvendo-a na arte. Acontece, porém, que nos   achamos em face de dois  fenômenos essencialmente  diferentes, os quais uma crítica subjetiva precisa   saber dissociar, a fim de compreender a evolução pictórica. A necessidade de ilusão não cessou, a   partir do século XVI, de instigar interiormente a pintura. Necessidade de natureza mental, em si mesma não estética, cuja origem só se poderia buscar na mentalidade mágica, mas necessidade eficaz, cuja atração abalou profundamente o equilíbrio das artes plásticas. 

A polêmica quanto ao realismo na arte provém desse mal-entendido, dessa confusão entre o estético e   o psicológico, entre o verdadeiro realismo, que implica exprimir a significação a um só tempo concreta e essencial do mundo, e o pseudo-realismo do  trompe l’oeil (ou do trompe l’esprit), que se contenta com a ilusão das formas (3). Eis porque a arte medieval, por exemplo, parece não sofrer tal conflito: violentamente realista e altamente espiritual ao mesmo tempo, ela ignorava esse drama que as possibilidades técnicas vieram revelar. A perspectiva foi o pecado original da pintura ocidental. 

Niepce e Lumiére foram os seus redentores. A fotografia, ao redimir o barroco, liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. Pois a pintura se esforçava, no fundo, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte, enquanto  a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem   definitivamente, por sua própria essência, a obsessão de realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo inferior à pintura na imitação das cores), mas num fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído. A solução não estava no resultado, mas na gênese (4).  

Eis porque o conflito entre estilo e semelhança vem a ser um fenômeno relativamente moderno, cujos traços quase não são encontráveis antes da invenção da placa sensível. Bem se  vê que a objetividade   de Chardin  nada   tem a ver com aquela do fotógrafo. É no século  XIX que inicia para valer a crise do realismo, da qual Picasso é hoje o mito, abalando ao mesmo tempo tanto as condições de existência formal das artes  plásticas quanto os seus fundamentos sociológicos. Liberado do complexo de semelhança, o pintor moderno o relega à massa (5), que então passa a identificá-lo, por um lado, com a fotografia, e por outro com aquela pintura que a tanto se aplica. 

A   originalidade da  fotografia   em   relação   à   pintura reside,   pois,   na   sua   objetividade   essencial.   Tanto   é   que   o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao  olho humano, denomina-se precisamente “objetiva”. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente,  sem a intervenção criadora do homem, segundo  um rigoroso  determinismo. A  personalidade  do fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientação, pela pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. Ela age sobre nós como um fenômeno “natural”, como uma flor ou um cristal de neve   cuja   beleza é inseparável de sua origem vegetal ou telúrica.  

Esta  gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pictórica. Sejam quais forem as objeções do nosso espírito crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado, literalmente re-presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço.   A fotografia se   beneficia  de   uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução (6). O desenho o mais fiel pode nos fornecer mais indícios acerca do modelo; jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade. 

Por isso mesmo, a pintura já não passa de uma técnica inferior da semelhança, um sucedâneo dos procedimentos de reprodução. Só a objetiva nos dá do objeto uma imagem capaz de  “desrecalcar”,   no   fundo  do   nosso  inconsciente,   esta necessidade de substituir o objeto por algo melhor do que um decalque aproximado: o próprio objeto, porém liberado das contingências   temporais.   A   imagem   pode   ser   nebulosa, deformada,  descolorida,  sem   valor  documental,  mas  ela provém   por   sua   gênese   da   ontologia   do   modelo;   ela   é   o modelo.  Daí  o  fascínio  das  fotografias  de  álbuns.  Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagóricas, quase ilegíveis, já  deixaram de ser tradicionais retratos  de  família  para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria corrupção.
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Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica. O filme não se contenta mais em conservar  para nós o objeto lacrado no  instante, como no âmbar o corpo intacto   dos insetos de uma era extinta, ele livra a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação. 

As   categorias (7) da   semelhança que especificam   a imagem fotográfica determinam, pois, também a sua estética em relação à pintura. As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real. O reflexo na calçada molhada, o gesto de uma criança, independia de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; somente a impassibilidade da objetiva, despojando o objeto de hábitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual com que a minha percepção o revestia, poderia torná-lo virgem à minha atenção e, afinal, ao meu amor. Na fotografia, imagem natural de um mundo que não sabemos ou não podemos ver, a natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte: ela imita o artista. 

E pode até mesmo ultrapassá-lo em criatividade. O universo estético do pintor é heterogêneo ao universo que o cerca. A moldura encerra um microcosmo essencial   e substancialmente diverso. A existência do objeto fotografado participa, pelo contrário, da existência do modelo como uma impressão digital.  Com  isso, ela  se acrescenta realmente  à criação natural, ao invés de substituí-la por uma outra.

Foi o que o surrealismo vislumbrou, ao recorrer à gelatina da placa sensível para engendrar a sua teatrologia plástica. E que, para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da impressão mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o imaginário e o real tende a ser abolida. Toda imagem deve ser sentida como objeto e todo objeto como imagem. A fotografia  representava, pois,  uma técnica privilegiada para a criação surrealista, já que ela materializa uma imagem que participa   da   natureza: uma alucinação  verdadeira. A utilização do trompe  l’oeil  e a precisão meticulosa dos detalhes na pintura surrealista são disto a contraprova.  

A fotografia vem a ser, pois, o acontecimento  mais importante da história das artes plásticas. Ao mesmo tempo sua libertação e manifestação plena, a fotografia permitiu à pintura   ocidental   desembaraçar-se   definitivamente   da obsessão realista e reencontrar a sua autonomia estética. O “realismo” impressionista, sob seus álibis científicos, é o oposto do trompe l’oeil. A cor, aliás, só pôde devorar a forma porque  esta   não   mais   possuía  importância  imitativa. E quando, com Cézanne, a forma se reapossar da tela, já não será, em todo caso,  segundo a geometria  ilusionista  da perspectiva. A imagem mecânica, ao opor à pintura uma concorrência que atingia, mais que a semelhança barroca, a identidade do modelo, por sua vez obrigou-a a se converter em seu próprio objeto.

Nada mais vão doravante que a condenação pascaliana, uma vez que a fotografia nos permite, por um lado, admirar em sua reprodução o original que os nossos olhos não teriam sabido amar, e na pintura um puro objeto cuja referência à natureza já não é mais a sua razão de ser. 

Por outro lado, o cinema é uma linguagem.

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(Traduzido de André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? vol. 1, Paris, Editions du Cerf, 1958). In XAVIER, Ismail.  A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro : Edições Graal: Embrafilmes, 1983, p. 121 ss.


(1) Estudo retomado a partir de Problèmes de la peinture, 1945.

(2) Seria  interessante, desse  ponto de  vista,  acompanhar nos  jornais ilustrados de 1890 a 1910 a concorrência entre a reportagem fotográfica, ainda nas suas origens,   e   o desenho.   Este   último   atendia sobretudo à necessidade barroca do dramático (cf. Le Petit Journal illustré). O sentido do documento fotográfico só se impôs aos poucos. Constata-se e, de resto, além de uma certa saturação, um retorno ao desenho dramático do tipo “radar”. 

(3) Talvez a crítica comunista, em particular, devesse, antes de dar tanta importância ao expressionismo realista em pintura, parar de falar desta como se teria  podido fazê-lo no século XVIII, antes da fotografia e do cinema. Importa muito pouco, talvez, que a Rússia Soviética produza má pintura   se   ela   já   produz   bom   cinema:   Eisenstein   é   o   seu   Tintoretto. Importa, isso sim, Aragon querer nos convencer a tomá-lo por um Repine.

(4) Seria o caso, porém, de se estudar a psicologia dos gêneros plásticos menores,   como   a   modelagem   de   máscaras   mortuárias,   os   quais apresentam, também eles, um certo automatismo na reprodução. Nesse sentido, poder-se-ia considerar a fotografia como uma modelagem,  um registro das impressões do objeto por intermédio da luz. 

(5) Mas será mesmo “a massa” que se acha na origem do divórcio entre o estilo e a semelhança que efetivamente constatamos hoje em dia? Não seria antes o advento do “espírito burguês”, nascido com a indústria e que serviu justamente de ponto de repulsão para os artistas do século  XIX, espírito  que  se  poderia  definir  pela  redução   da  arte  a  categorias psicológicas? Por sinal, a fotografia não  foi historicamente  a  sucessora direta do realismo barroco e Malraux observa muito a propósito que a princípio ela não tinha outra preocupação que não a de “imitar a arte”, copiando ingenuamente o estilo  pictórico. Niepce e a maioria dos pioneiros da fotografia buscavam, aliás, copiar por esse meio as gravuras. Sonhavam produzir obras de arte sem serem realistas, por decalcomania. Projeto típico e essencialmente burguês, mas que confirma a nossa tese, elevando-a, por assim dizer, ao quadrado. Era natural que a obra de arte fosse a princípio o modelo mais digno de imitação para fotógrafo, pois aos seus olhos ela, que já imitava a natureza, ainda a “melhorava” de quebra. Foi   preciso  algum  tempo  para  que,  tornando-se  ele  próprio   artista, compreendesse que não podia imitar senão a natureza.

(6) Seria preciso introduzir aqui uma psicologia da relíquia e do “souvenir”, que   se   beneficiam   igualmente   de   uma   transferência   de   realidade proveniente do  complexo   da  múmia.   Assinalemos  apenas   que o   Santo Sudário de Turim realiza a síntese entre relíquia e fotografia.

(7) Emprego o termo “categoria” na acepção que lhe dá M. Gouthier em seu livro   sobre  o  teatro,  quando  distingue  as   categorias  dramáticas  das estéticas. Assim como a tensão dramática não implica nenhuma qualidade artística, a perfeição da imitação não se identifica com a beleza; constitui somente uma matéria-prima sobre a qual o fato artístico vem se inscrever.





terça-feira, 25 de maio de 2021

Inês Etienne

À memória de Inês Etienne Romeu (1942 - 2015) 

A sua história nos fala de um Brasil doloroso de encarar

Cristina Serra, FSP, 24/05/2021

Em 5 de maio de 1971, Inês Etienne Romeu, então com 28 anos, militante de uma organização de resistência à ditadura, caía nas garras do delegado Sérgio Fleury, em São Paulo. Inês (que morreu em 2015, aos 73 anos) desceria ao inferno nos três meses que passou em poder do aparato de repressão do regime militar.

Foi a única sobrevivente de um centro clandestino de tortura que viria a ser conhecido como "A casa da morte de Petrópolis". Em 14 episódios, costurados com suspense de thriller, o podcast Roteirices, do jornalista Carlos Alberto Jr., reconstitui a incrível trajetória de Inês, como ela conseguiu sobreviver aos suplícios e pôde memorizar fragmentos de informação que levariam à localização da "casa da morte".

Muito já se sabe sobre Inês, que, inclusive, prestou testemunho à Comissão Nacional da Verdade e ajudou a identificar torturadores. Mas o podcast se ampara no depoimento de outro personagem fundamental dessa história. Trata-se de Sérgio Ferreira, ex-integrante do Comitê Brasileiro pela Anistia e um dos amigos mais próximos de Inês, que, pela primeira vez, dá uma entrevista com riqueza de detalhes sobre como foi possível identificar a "casa da morte" e denunciar os torturadores que lá agiam com requintes de sadismo.

Sérgio conheceu Inês quando buscava pistas sobre o paradeiro de outro militante, seu primo, Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na "casa da morte". Não quero dar spoiler, portanto, paro por aqui e sugiro que o leitor vá ao podcast.

E por que falar de Inês Etienne Romeu agora ? Porque ela é personagem de primeira grandeza, à espera de um biógrafo. E também porque a história de Inês nos fala de um Brasil doloroso de encarar. Não se trata de revanche, mas de conhecimento histórico.

Se soubéssemos tudo o que aconteceu nessa "página infeliz da nossa história", talvez hoje não estivéssemos às voltas com um governo de generais que celebram, como selvagens em motocicletas, o extermínio de meio milhão de brasileiros.

 
Inês Etienne Romeu antes de audiência pública da Comissão Nacional da Verdade, no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro - Daniel Marenco - 25.mar.2013/Folhapress




segunda-feira, 24 de maio de 2021

3ª onda de Covid no Brasil

Prepare-se para 3ª onda de Covid e 500 mil mortos até julho

Marcelo Leite, FSP, 22/05/2021

A repetição do colapso hospitalar é tão previsível quanto batimentos cardíacos, nesse paciente intratável chamado Brasil

Sístoles e diástoles: assim como o coração se contrai e relaxa para bombear sangue, a epidemia de Covid também segue um ritmo pulsante, ditado pelo grau de distanciamento social. Na ausência de vacinas suficientes para garantir imunidade coletiva, quer dizer.

No Brasil, a primeira dose de imunizantes mal chegou a um quinto da população, por culpa federal de você-sabe-quem. Nessas condições, unidades de saúde só veem escassear doentes prostrados pelo corona quando autoridades estaduais e municipais apertam restrições à mobilidade.

No pulso seguinte, com o enésimo relaxamento das medidas restritivas, unidades básicas, prontos-socorros e UTIs voltam a se encher. Leitos lotam, suprimentos para intubação rareiam, oxigênio passa a faltar, mais e mais mortes acontecem. Já vimos esse filme.
A repetição do colapso hospitalar é tão previsível quanto batimentos cardíacos, nesse paciente intratável chamado Brasil. A analogia para por aqui, porque sístoles e diástoles se sucedem em frações de segundos, ao passo que altos e baixos de casos e óbitos na epidemia avançam com defasagem de três a quatro semanas.

O intervalo que separa o aumento no número de infecções da subida na quantidade de mortos corresponde ao tempo de progressão da doença nos infectados sintomáticos. Entre mais pessoas entrarem em circulação, contraírem o vírus, desenvolverem sintomas, serem internadas e precisarem de cuidados intensivos, vários dias transcorrem; uma vez intubados na UTI, demora outro tanto até que 80% sucumbam.

Retomando a analogia: ao longo da vida, o coração se desgasta sob o esforço de bater 100 mil vezes a cada 24 horas, 36 milhões por ano, década após década, e um dia para; a fadiga social com idas e vindas da Covid, porém, se manifesta bem mais rápido.
Nem saímos do segundo ciclo, e já bastou para população, governadores e prefeitos, exaustos, baixarem mais um pouco a guarda (de resto, imperfeita). Ninguém aguenta mais a falta de amigos, respeito, parentes, popularidade, sossego, recursos, vacinas, empregos, sedativos, renda, solidariedade, leitos, decência...
“Lockdown” virou palavra maldita, pecado mortal, graças aos esforços genocidas de Jair Bolsonaro. Seus adversários políticos fogem da providência como a cruz que se aparta do demônio. Nunca fizemos nada parecido com o trancamento geral.  

Após tanta negligência com providenciar vacinas, testes em massa e rastreamento com separação de infectados seriam a única medida capaz de derrubar as curvas funéreas de maneira sustentável.
Na falta de tudo, torna-se fácil antever novo repique de mortes em poucas semanas. Pode parecer irresponsável tal presságio, quando o número de óbitos está em queda, mas até crianças sabem que a água do mar recua antes de tudo submergir no tsunami.

Não deveria haver espaço para alívio quando quase 2.000 brasileiros morrem por dia. Ainda por cima, a quantidade de infectados parou de cair e volta a subir em vários lugares. A lotação de UTIs ultrapassa alarmantes 80% na maioria dos estados e capitais.
Fique aqui a previsão, coisa mais arriscada para um jornalista fazer: em poucas semanas chegará uma terceira e mortífera onda. O Brasil alcançará a cifra chocante de meio milhão de mortos em meados de junho, ou logo depois.

É para anotar e cobrar a coluna quando chegar a hora. Nada dará mais satisfação do que errar, nesse caso.

Aos que acreditam em Deus, contudo, recomenda-se muita oração. Dos humanos, com ou sem poder de decisão, já não cabe esperar quase nada.


domingo, 23 de maio de 2021

Fusão de empresas gigantes

É nova etapa da guerra do streaming

Mauricio Stycer, Colunista do UOL, 23/05/2021

Grupo Warner e Discovery confirmam fusão e criam novo streaming

O mercado de produção e distribuição de conteúdo audiovisual está vivendo um momento de enorme agitação nos Estados Unidos, país que concentra as principais empresas destes ramos da indústria. Na segunda-feira (17/05/21) foi confirmada a criação de uma nova empresa, ainda sem nome, fruto da fusão da Discovery com a WarnerMedia (HBO, CNN, TNT e muitos outros), que pertence à AT&T.
A fusão, que ainda depende de aprovação das agências reguladoras, colocará esta nova empresa em condições melhores de competição com duas gigantes já bem estabelecidas na guerra do streaming, a Netflix e a Disney +.

No final de 2020, a HBO MAX contava com 61 milhões de assinantes, e a Discovery+, no final de abril, tinha 15 milhões. A Netflix hoje tem 204 milhões, e as plataformas Disney (Disney+, ESPN+, Hulu), 146 milhões.

Um dia depois deste anúncio, tornou-se público que a Amazon está perto de adquirir a MGM, um negócio igualmente destinado a fortalecer a posição da empresa neste mesmo mercado. Segundo o "The New York Times", a aquisição do histórico estúdio Metro Goldwyn Mayer pode ser avaliada em entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões. Nesta transação, a Amazon, cuja plataforma Prime Video tem 175 milhões de assinantes em todo mundo, adquiriria o catálogo de 4.000 títulos da MGM.

 Há um mês, as duas maiores redes de televisão de língua espanhola, a mexicana Televisa e a americana Univisión, anunciaram uma fusão com mesmo objetivo: conquistar um mercado potencial de 600 milhões de pessoas, permitindo competir com as gigantes já estabelecidas.

No Brasil, por ora, não se vê movimentações semelhantes, mas é de conhecimento geral que o Globoplay busca se estabelecer como o principal fornecedor de conteúdo brasileiro no país.
"Vai ter muita gente se pegando aí. Vai ter Netflix se pegando com Amazon, se pegando com Disney, com HBO. Deixa eles se pegarem e a gente vai se diferenciar no conteúdo brasileiro, que é aquilo em que somos muito bons", disse Erick Bretas, diretor de produtos e serviços digitais da Globo, em setembro de 2020.

No final do ano passado, o Globoplay anunciou uma parceria comercial com a Disney + na oferta de pacotes dos dois serviços. Fala-se também num acordo para gravações da empresa americana nos estúdios da brasileira. É curioso observar que os concorrentes da Globo na TV aberta parecem assistir a toda esta movimentação como se não lhes dissesse respeito.

sábado, 22 de maio de 2021

Filmes parte 15

Diário de cinéfilo

Entre Facas e Segredos (Knives Out), 2019, Rian Johnson

A Carta (1999), de Manoel de Oliveira

Amigos Verdadeiros (Vernye druz'ya), 1954, Mikhail Kalatov Mikhail Kalatozov 

Agonia de Amor (The Paradine Case), 1947, Alfred Hitchcock

A Nova Babilônia (Novyy Vavilon), 1929, Grigoriy Kozintsev, Leonid Trauberg 

Comuna de Paris, 1871 (2000) (La commune - Paris, 1871), Peter Watkins

Terra, (Zemlya), 1930, Aleksandr Dovzhenko

O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait), 1943, Ernst Lubitsch

Nas Garras da Ambição (The Tall Men ), 1955, Raoul Walsh

O Duelo (The Duel), 2016, Kieran Darcy-Smith

Vera Cruz, 1954, Robert Aldrich

O Rosto (Ansiktet), 1958, Igmar Bergman

Homem-Aranha 2 (Spider-Man 2), 2004, Sam Raimi

O Anjo Azul (Der blaue Engel), 1930, Josef von Sternberg

Salvatore Giuliano (O Bandido Giuliano), 1962, Francesco Rosi

Clube Havana (Club Havana), 1945, Edgar G. Ulmer

Oneguim (Paixão proibida), 1999, Martha Fiennes

O Morcego Vampiro (The Vampire Bat), 1933,  Frank R. Strayer 

A Canção Prometida (A Song Is Born), 1948, Howard Hawks

Os Poderosos Também Caem (Boss Nigger), 1974, Jack Arnold

Apuros de um xerife ou O xerife do queixo quebrado (The Sheriff of Fractured Jaw), 1958,  Raoul Walsh

Quo vadis, Aida?, 2020, Jasmila Zbanic

Coronel Redl (Oberst Redl), 1985, István Szabó

Antonio Gramsci – Os Dias do Cárcere (Antonio Gramsci: i giorni del carcere), 1977, Lino Del Fra

La chienne (A Cadela), 1931, Jean Renoir 

A regra do jogo (La règle du jeu), 1939, Jean Renoir

O Cavalo de Turin (A torinói ló), 2011, Bela Tar

O Tango de Satã (Sátántangó), 1994, Bela Tarr

O Homem De Londres (A londoni férfi), 2007, Béla Tarr, Ágnes Hranitzky (co-director)

Hacker (Blackhat), 2015, Michael Mann

Union Pacific (Aliança de Aço), 1939, Cecil B. DeMille 

Crime e Castigo (Crime and Punishment), 1935, Josef von Sternberg

 

02/04/2021

Entre Facas e Segredos (Knives Out), 2019, Rian Johnson

Sobre  Christopher Plummer (1929–2021) 

Mario Abbade, 12/12/2019

A trama apresenta Harlan Thrombey (Christopher Plummer), um rico autor de livros de mistério que foi encontrado morto em sua mansão na Nova Inglaterra, justamente na comemoração de seu aniversário de 85 anos. Sua família esquisita e disfuncional, enquanto aguarda o funeral e a leitura do testamento, está sendo investigada pela polícia e também pelo excêntrico detetive Benoit Blanc (Daniel Craig, hilário). 

Conduzido com maestria por Rian Johnson (de “Star Wars: Os últimos Jedi”, 2017), que desta vez assina direção e roteiro, o filme é uma rica mistura de suspense, humor, drama e mistério. A cada nova pista e reviravolta, a narrativa também recebe outros significados e temas. O texto é tão abundante de ideias que em certos momentos chega a lembrar uma peça de Tchekhov, principalmente quando evidencia a rejeição do propósito moral normalmente presente na estrutura das obras tradicionais do gênero.

Em 2005, com “A ponta de um crime”, Rian já tinha demonstrado extrema habilidade em trabalhar os elementos visuais e psicológicos do filme noir (luz, fatalismo, injustiça, moral ambígua) de uma maneira nova — no caso, no cenário de uma escola. Em “Knives out” (no original), ele mais uma vez deu frescor ao gênero, incorporando outros elementos, desta vez dentro de uma mansão.

O projeto conta com um elenco dos sonhos, em que todos brilham. O material escrito por Rian permite que cada um dos atores possa desenvolver seu personagem de maneira crível com suas idiossincrasias. Até mesmo nos casos em que os atores têm pouco tempo na tela. Pelo que se vê, Daniel Craig, Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Toni Collette, Michael Shannon, Chris Evans, Ana de Armas e Jaeden Martell se divertem tanto quanto o público.

Além dos livros de Agatha Christie, Rian ainda adicionou elementos da série de TV “Assassinato por escrito” (1984-1996) e do filme “Jogo mortal” (1972), porque o objetivo parece ser inserir o maior número de referências a fim de confundir o público e assim dificultar a solução buscada pelo detetive, aquele que existe em cada espectador. 

03/04/2021

A Carta (1999), de Manoel de Oliveira

A Carta no ioutubi aqui 

Maria João Pires plays Schubert - Drei Klavierstücke - D.946 

La Princesse de Clèves

Adaptação do romance La Princesse, de Madame de la Fayette, publicado no século XVII, atualizando a história para o século XX. Depois de sofrer sua primeira desilusão amorosa, Mademoiselle de Chartres (Chiara Mastroianni) aceita casar com Jacques de Clèves (Antoine Chappey), um renomado médico, mesmo sem amá-lo. O coração da jovem, no entanto, redescobre a paixão ao conhecer o cantor Pedro Abrunhosa (interpretado pelo próprio cantor). O diretor português Manoel de Oliveira define seu filme como "uma história passional, com fragmentos de uma visão social que nos mostra a desordem que assola, com a mesma crueldade do passado, nosso mundo incorrigível". 

O filme recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 1999, alcançando até então, a maior glória do cinema português.

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Começando em 2006, antes de se tornar o presidente francês, Nicolas Sarkozy fez alguns comentários negativos sobre o livro, argumentando que era ridículo que os exames de admissão no serviço civil tivessem incluído perguntas sobre La Princesse de Clèves . Como resultado, durante o longo movimento de professores universitários em 2009 contra suas propostas, foram realizadas leituras públicas de La Princesse de Clèves em cidades de todo o país. As vendas do romance aumentaram rapidamente.

Em relação a isso, o romance é usado pelo cineasta francês Christophe Honoré para seu filme La Belle Personne de 2008. O enredo do filme segue aproximadamente o do romance, mas muda o cenário para o de um moderno liceu francês (ensino médio), referindo-se assim tanto ao romance quanto à razão de sua fama contemporânea. O romance foi também a base do filme de 1961, de Jean Delannoy , com o mesmo título (adaptado por Jean Cocteau ), do filme The Letter, de Manoel de Oliveira , de 1999 , e de Fidelity (estrelado por Sophie Marceau ) , de Andrzej Żuławski .

O romance foi a base do filme de 2011 de Regis Sauder , Nous, princesas de Clèves , em que adolescentes de uma escola da cidade estão estudando o romance para o exame de Bacharelado. O romance foi dramatizado como uma peça de rádio dirigida por Kirsty Williams transmitida pela BBC Radio 3 em 28 de fevereiro de 2010 - veja La Princesse de Clèves (peça de rádio).

04/04/2021

Amigos Verdadeiros (Vernye druz'ya), 1954, Mikhail Kalatov Mikhail Kalatozov 

Sobre Mikhail Kalatov (Eu sou Cuba, 1960, A carta que não se enviou, 1960,  Quando voam as cegonhas, 1957) 

Sinopse: Era uma vez três garotos que moravam em um subúrbio de Moscou. 30 anos se passaram e Bora tornou-se o famoso cirurgião Tchizhov; Sashka, o professor de pecuária Lapin; e Vaska, o doutor em arquitetura Nestratov. Lembrando-se da promessa dada um ao outro quando crianças, eles partem em uma jangada pelo rio Volga e passam por muitas aventuras.

A CPC-Umes lança mais um clássico do cinema soviético, Amigos Verdadeiros, de 1954. O filme me lembrou muito outro clássico, mas este do cinema italiano: Meus Caros Amigos, de 1975, do Mario Monicelli. Nos dois casos amigos de meia idade saem aprontando por aí como se fossem adolescentes. Embora o filme italiano seja mais engraçado pois lança mais gags por minuto, ambos são divertidos e tem momentos tocantes.

Amigos Verdadeiros conta a história e três amigos que se reencontram e resolvem subir o rio Volga numa pequena balsa feita de madeira. No decorrer da aventura algumas coincidências fazem com que os conhecimentos de cada um dos amigos (um cirurgião, um arquiteto e um professor de pecuária) seja fundamental para a resolução de algum problema. Apesar de fazer a narrativa avançar, as coincidências são um tanto forçadas mas o charme dos atores e o ritmo descontraído acabam nos fazendo relevar.

A excelente cópia da CPC-Umes valoriza ainda mais a bela fotografia do filme, que conta com diversas locações interessantes, tanto nas cidades quanto no rio e os efeitos práticos (na maior parte do filme os atores estão mesmo em uma balsa de madeira em um rio) dão uma sensação real de aventura. É um filme que vale a pena ser revisto de tempos em tempos. A edição tem lindas artes de capa, estampa do DVD, arte interna e os extras são escritos, como é de praxe nas edições da CPC-Umes.

05/04/2021

Agonia de Amor (The Paradine Case), 1947, Alfred Hitchcock

Agonia e amor no iutubi aqui 

Agonia de Amor (1947)

Quando se mudou para os Estados Unidos para trabalhar em Hollywood, Alfred Hitchcock acabou preso a um contrato de sete anos com o chefão David O. Selznick – que costumava tomar o controle criativo de quase todos os filmes que produzia. Drama de tribunal com elenco all-star, inclusive com a presença de astros europeus (o inglês naturalizado norte-americano Charles Laughton, o francês Louis Jordan e a italiana Alida Valli), “Agonia de Amor” foi o último dos filmes que Hitch dirigiu para Selznick, um fracasso de bilheteria muito por conta da imposição do produtor em ter suas ideias colocadas no filme. Apesar da produção bem cuidada e de todo o esforço da direção, quase não há suspense e o clima dramático se perde em meio ao excesso de diálogos e de reviravoltas na trama. Destaque para a música composta por Franz Waxman e a fotografia de Lee Garmes.

Um drama de tribunal sem muito brilho, mas com a marca de um mestre

Quem nunca assistiu “O Homem Errado”, “Um Barco e Nove Destinos” ou “Um Casal do Barulho” tem a falsa impressão de que Alfred Hitchcock era somente um ótimo diretor de filmes de suspense ou que seus filmes eram superficiais, que não levantavam questões sociais ou discutiam temas polêmicos. “Agonia de Amor” não é nem de longe um dos melhores exemplares da sua filmografia, mas se servisse para apenas uma coisa, seria para mostrar como Hitchcock discutia sim várias questões, sem nunca deixar de lado aquilo tudo que conhecemos como características técnicas de suas obras mais famosas. (...)

por marcavlis em 05/06/2013

06/04/2021

A Nova Babilônia (Novyy Vavilon), 1929, Grigoriy Kozintsev, Leonid Trauberg 

A nova Babilônia no iutubi aqui  

A comuna de Paris, suas origens, vitórias e combates, através da vida e da morte de uma empregada de uma grande loja. "Quando fizemos A nova Babilônia a maior contribuição foi de Zola. Todos nós havíamos lido suas obras completas", declarou a atriz Kuzmina. (...) Sem dúvida, cada imagem do filme é um pouco objetiva demais, mas uma grande emoção, revelando-se algumas incorreções de detalhes franceses, sucede a brincadeira   das primeiras partes. Direção refinada e suntuosa.

A nova Babilonia, Yelena Kuzmina

Melhores sequências: o café-concerto, a marcha dos alemães para Paris, os canhões de Montmartre e de Versalhes, os primeiros mortos lamentados, as execuções. 

Filme importante e bastante desconhecido até 1975 na França, onde se exibiu em Paris (21 de novembro) a versão integral, acompanhada da partitura de Dmitri Schostakowitsch, executada pelo conjunto "Ars Nova" sob a regência de Marius Constant. Coisa que nã era feita, mesmo na Rússia desde 1929. (Georges Sadoul, 1993. Dicionário de filmes. p. 283, L&PM)

A Comuna de Paris: construção histórica e legado político, Milton Pinheiro

Sobre a comuna de Paris (dossiêr) https://marxismo21.org/a-comuna-de-paris/

08/04/2021

Comuna de Paris, 1871 (2000) (La commune - Paris, 1871), Peter Watkins

A comuna de Paris  (2000) - parte 1 no iutubi aqui 

La commune Paris, 1871 (2000) Part 2

A comuna de Paris  (2000) - parte 2 no iutubi aqui

Filme La Commune – A Comuna de Paris foi televisionada , 23 de novembro de 2013

Um filme ao mesmo tempo vibrante e reflexivo: assim podemos definir La Commune, do diretor inglês Peter Watkins. A obra retrata a Comuna de Paris pelo lado de dentro, vista em meio à classe trabalhadora, que, por poucas semanas em 1871, “tomou o céu de assalto”.

Com duração de 5 horas e 45 minutos e todo em preto e branco, La Commune pretende ser uma cobertura popular e documental da Comuna de Paris, mostrando o seu dia a dia por meio de uma TV fictícia criada pelos communards. Ao mesmo tempo em que faz a dramatização da cobertura dos eventos, o filme também os contextualiza, exibindo informações históricas em formato de documentário – um gênero chamado docudrama, em inglês. Também trata do papel da mídia de massas, tanto no passado quanto no presente.

Peter Watkins

Logo nos primeiros dias da Comuna, ao perceberem que a mídia burguesa mentia, omitia e distorcia os fatos, os communards viram a necessidade de ter seu próprio veículo de comunicação. Assim, criaram a TV Comuna, que com seus dois repórteres acompanhará toda a revolução em seus aspectos mais particulares.

Um filme militante

O calor transmitido pela obra é contagiante. O povo se reúne e debate a organização da nova sociedade a todo o momento. As novas cooperativas de trabalhadores reativando oficinas abandonadas, a nova organização das mulheres, a nova administração e a nova educação desvinculada da Igreja, enfim, não há um só minuto de silêncio no decorrer do filme, com exceção das cenas que mostram como o canal de televisão da burguesia noticiava esses mesmos fatos.

Mas a característica mais marcante da obra é que, por diversos momentos, perde-se a barreira que separa o que é ficção e o que é realidade, o que é passado e o que é presente: durante o filme, os próprios atores são questionados sobre determinadas cenas da Comuna que estão representando. É assim, por exemplo, quando durante a defesa em uma barricada contra o avanço do exército de Versalhes, o repórter da TV Comuna se aproxima para entrevistar uma trabalhadora que ali lutava. No entanto, ele ultrapassa a linha do ficcional e entrevista não a personagem, mas a própria atriz, que lhe responde sob a emoção da cena que continua em andamento com os outros atores.

La Commune é também um filme para reflexão. A obra registra debates políticos entre os atores, ainda trajando seus figurinos dentro do cenário, sem que se avise antes ao telespectador que foi interrompido o fluxo dos eventos e que entramos em uma discussão sobre o mundo atual. Somente no decorrer do diálogo é que se percebe que ocorreu tal transição.

Meses antes das filmagens, cada ator estudou sobre a Comuna de Paris e sobre o que considerou necessário para compreender o tema. Suas opiniões registradas nos debates, portanto, resultaram do confronto entre suas leituras, a recriação dos eventos da Comuna e os debates com outros atores. E foi o resultado de todas essas experiências o que levou uma atriz a revelar durante um debate: “Quando eu ouvi falar desse filme eu reli Valles, Louise Michel, Lissagaray. Eu terminei os três livros e pensei: eu entendi Lênin!”. Para ela, foi somente pela experiência de recriação da Comuna de Paris que foi possível perceber a necessidade de uma organização centralizada como proposta por Lênin para dirigir a revolução – o Partido Comunista –, o que, em sua opinião, faltou na Comuna. Quando outro ator discorda de sua posição devido à repressão ao levante de Kronstadt (um levante que colocava em perigo o novo poder soviético), ela ainda replica: “Sim, mas eles [os bolcheviques] venceram a revolução”.

Por ser um filme engajado, militante, não se poderia esperar, obviamente, que fosse facilmente financiado. E a própria obra denuncia isto, quando, após um debate entre os atores, escreve: “A participação do elenco na produção deste filme é exatamente o que a mídia global teme, e uma das principais razões dos canais de televisão, aos quais foram solicitados recursos para este filme, terem se recusado a financiá-lo. O que a mídia teme, mais especificamente, é ver o homem no pequeno retângulo [televisão] ser substituído por uma multidão de pessoas, pelo público”.

Apesar de lançado no ano 2000, as dificuldades de financiamento e distribuição impediram sua ampla divulgação, somando-se o fato de que suas únicas legendas originais são em inglês (com áudio em francês). No entanto, graças à livre colaboração na internet, já é possível encontrar legendas não oficiais também em português. La Commune é um filme obrigatório.

Glauber Ataide, Belo Horizonte

09/04/2021

Terra, (Zemlya), 1930, Aleksandr Dovzhenko

Terra no iutubi aqui 

A Ucrânia foi duramente atingida pela coletivação da agricultura, na mesma época em que Terra, terceiro longa-metragem da trilogia de Dovjienko, estava sendo finalizado, em 1930. A violência contra os kulaks foi tanta que se instalou uma revolta espontânea em território ucraniano, obrigando o governo a uma breve suspensão das medidas, o que, ironicamente, foi suficiente para que o filme fosse exibido nas cidades. Terra (Zemliá) reinstala o conflito da coletivação entre as camadas geracionais de kulaks, articulando os procedimentos poéticos que Dovjienko desenvolvera nos trabalhos anteriores com o propósito de captar a transformação mental daquele momento histórico. A ambiguidade (deliberada) do resultado final foi saudada no seu país natal, mas a recepção crítica dos porta-vozes do Partido em Moscou foi áspera: o ucraniano Demian Bedny, poeta e satirista oficial (próximo de Stálin) escreveu uma semana antes do lançamento no Izviéstia, em versos, que o filme era "contrarrevolucionário e derrotista". Em sua autobiografia, Dovjienko narra o encontro com Bedny poucos dias depois da publicação, na cerimônia de cremação de Maiakóvski - a atmosfera pesada pelo suicídio do poeta materializou-se quando o realizador encarou seu crítico-algoz e pensou: "Morra! Mas ela era imune. Saímos do crematório vivos e ilesos"

Hoje existem pelo menos seis versões diferentes de Terra, resultado das mutilações sofridas ao longo da tumultuada recepção da obra. A dialética de Dovjienko era particular: nas imagens em que os personagens dirigem o olhar para à audiência, com o objetivo de implica-lo na luta e sublinhar a unidade da família e da classe social, a fonte de inspiração foram os ícones ortodoxos, figuras sacras pintadas sobre madeira com um fundo sem perspectiva - só que, em lugar da figura sacra, surge o rosto potencialmente revolucionário. A aura religiosa foi adaptada ao materialismo prevalente na visão estético-ideológica do Partido. E não apenas nos retratos em primeiro plano dos heróis, vilões e vítimas do processo histórico, mas também de objetos e da natureza. Circundados por um halo produzido por um sutil fora de foco, as imagens em primeiro plano - rostos, flores, objetos mecânicos - adquirem uma significação corpórea que despertam uma sensação de toque no espectador. Uma combinação, por certo, que provoca forte efeito de estranhamento: cinema-poesia, que se articula com a premência do momento histórico da revolução socialista para produzir uma consciência da transição e superação históricas, sustentando ao mesmo tempo uma subjetividade fecunda e original. (João Lanari Bo, Cinema para russos, cinema para soviéticos. pp. 109 e 110. Bazar do Tempo, 2019)

Tarkovsky says for this movie ''One of the most beautiful and meaningful films in cinema history'' (Erdem Beyaz)

10/04/21

O Diabo Disse Não (Heaven Can Wait), 1943, Ernst Lubitsch

O diabo disse não no iutubi aqui

Sinopse

Ao morrer, aos 70 anos, o rico e aristocrata Henry Van Cleve bate às portas do inferno, por acreditar que merece ser castigado pela vida de mulherengo, marcada por infidelidades à esposa, que teve em vida, na Terra. Não estando convencido que ele se enquadre no tipo de pessoas que mereçam estar ali, Satanás, tratado como Sua Excelência, pede-lhe que conte toda sua vida para uma melhor avaliação. Assim, através de um enorme flashback, a história retorna a 1892, ano de seu nascimento.

Ainda de fraldas sujas, Henry já tem mulheres brigando por ele: sua mãe e sua avó. Depois, vêm as babás e, aos 15 anos, numa época em que as famílias abastadas de Nova York costumavam ter empregadas francesas, entra em sua vida a Srta. Yvette Blanchard, por quem ele se apaixona. A jovem é demitida ao ser apanhada bêbada, juntamente com ele.

No dia em que completa 26 anos, seus pais promovem uma grande recepção, ocasião em que seu primo Albert chega com sua noiva, Martha, e seus futuros sogros, o Sr. e a Sra. Strabel. O Sr. Strabel é um dos maiores empresários da indústria de carne, no Kansas. Enquanto todos acham-se reunidos, assistindo a um recital de uma cantora lírica, Martha, ao ter uma crise de espirros, retira-se do local e entra na biblioteca da mansão, onde se encontra com Henry. Os dois já haviam se conhecido, casualmente, numa livraria, quando Henry sentiu-se fortemente atraído por ela.

Ao vê-la sozinha, ele a seduz e os dois saem juntos para se casarem. O mal-estar é geral, com o Sr. Strabel dizendo que não quer mais ver sua filha. O casal tem um filho, Jack. O tempo passa e, quando Henry completa 36 anos, Martha descobre duas faturas de caríssimos braceletes por ele comprados, concluindo que se tratam de presentes para suas amantes. Indignada, decide viajar para Kansas e enfrentar seus pais. Embora hesitem em princípio, eles terminam acolhendo-a. Henry recebe um telegrama dela, pedindo-lhe que não a siga.

Entretanto, com a ajuda de seu avô, Hugo Van Cleve, Henry vai à Kansas, onde convence Martha a voltar a viver com ele. Os anos se passam e o casal mantém-se unido. Quando Jack se torna adulto e se envolve com uma corista, Peggy Nash, Henry a procura e, sem saber que os dois já haviam rompido a relação, oferece-lhe US$ 5 mil para que ela se afaste do filho. Na oportunidade, Peggy lhe diz que deve ser difícil para um grande conquistador, como ele, sentir-se ultrapassado e lhe propõe US$ 25 mil para que ela não mais procure Jack, proposta por ele aceita.

No dia em que Henry e Martha comemoram suas bodas de prata, ele descobre que a mulher está seriamente doente, com poucos meses de vida. Depois que ela morre, Henry comenta que ela fez com que esses últimos meses fossem os melhores de suas vidas. Sentindo-se muito solitário, ele adoece e vem a morrer aos 70 anos de idade, sendo assistido por Nellie Brown, uma bela e jovem enfermeira.

Depois de ouvir atentamente sua história de vida, Sua Excelência, o Satanás, considera que Henry não tem o perfil para entrar no inferno, encaminhando-o ao céu por ter ele feito tantas mulheres felizes.

Comentários

Baseado na peça "Birthday" de Leslie Bush-Fekete, "O Diabo Disse Não" é uma sofisticada e muito bem produzida comédia dos anos 40. Produzida e dirigida pelo cineasta alemão, Ernst Lubitsch, sua trama gira em torno de um homem que, após a morte, procura o inferno mas, após ouvir sua história, o Satanás não o aceita, encaminhando-o ao céu. Lubitsch realiza um excelente trabalho ao apresentar uma história interessante e, de uma certa forma, original, o que lhe valeu três indicações ao Oscar, inclusive aos de Melhor Filme e Melhor Direção. A fotografia de Edward Cronjager, também indicada à famosa estatueta, é um outro ponto alto do filme. No elenco, a bela Gene Tierney está ótima no papel da esposa que, mesmo conhecendo as fraquezas do marido, o ama assim mesmo. Don Ameche, por outro lado, mostra-se convincente no papel do homem mulherengo. Este clássico do cinema conta, ainda, com nomes de peso como os de Charles Coburn, Louis Calhern, Signe Hasso, Spring Byington e Trudy Marshall, entre outros.

12/04/21

Nas Garras da Ambição (The Tall Men ), 1955, Raoul Walsh

Nas garras da ambição no iutubi aqui 

Sobre Jane Russel  Jane Russell (1921–2011)

Sinopse

Território de Montana, 1866 – "Eles vieram do Sul, atraídos pelos campos de ouro... Ben e Clint Allison , homens solitários e desesperados. Cavalgam para longe das lembranças dolorosas de Gettysburg, procurando uma nova vida. Uma história de homens altos – e sombras longas." 

Os dois irmãos lutaram na Guerra Civil, no bando de Quantrill, como voluntários sulistas. Quando chegam a Montana estão sem nenhum dinheiro e tiveram que negociar despojos de guerra com o dono do estábulo local, mas eles tinham um plano terrível em mente: iam cometer um assalto. 

Quando entram no bar pra tomar um trago e sondar o ambiente, observam o rico empresário Nathan Stark colocando, em um cinturão, grandes quantidades de dinheiro com o qual iria comprar gado no Texas. Quando ele vai pegar seu cavalo no estábulo, Ben e Clint o assaltam. Para que Stark não possa dar o alarme, o seqüestram. Enquanto é conduzido pelas montanhas nevadas, Stark porta-se como um homem inteligente e comedido, contudo, adverte aos seus seqüestradores que o dinheiro que eles estão roubando é de notas de cem dólares e novas. Desta forma, será difícil gastá-las, pois deixarão pistas visíveis aos detetives da Pinkerton. Então lhes faz uma proposta tentadora: ajudá-lo a comprar gado no Texas, por 3 ou 4 dólares a cabeça e revendê-lo a 50 dólares a cabeça, em Montana. Mas a jornada será de 1.500 milhas, conduzindo um rebanho por terras hostis até Mineral City, Montana. O lucro obtido na empreitada será dividido meio a meio.Visualizando a chance de suas vidas, aceitam a sociedade. (...)

Despedida de Jane Russell 

No dia de agosto de 2011, faleceu a atriz Jane Russell, vítima de problemas respiratórios, aos 89 anos de idade. Seu nome de batismo era Ernestine Jane Geraldine Russell. Seu primeiro filme foi O Proscrito (The Outlaw, 1943), que contava a história de Billy The Kid, dirigido por Howard Hughes, um magnata em vários ramos de negócios. 

O filme "O Proscrito" foi terminado em fevereiro de 1941, mas estreou somente em 1943, devido a problemas com a censura, então reinante em Hollywood, que exigiu cortes e revisões no filme. Não havia nenhuma cena de sexo ou algo mais picante; a raiz do problema foi que os censores implicaram com o busto generoso da atriz novata, Jane Russell, então com vinte e dois anos de idade. Howard Hughes desafiou o "Hays Code", que controlava a "moralidade" dos filmes de Hollywood.

Achando que as câmeras não fizeram jus aos dotes de Jane Russell, Hughes projetou um sutiã especial para realçar as formas da atriz. Ele acrescentou barras de aço curvas, que suspendiam os seios. As barras foram presas às cintas do sutiã no ombro. Isto permitiu que os seios fossem levantados e realçados. A ênfase ao busto da atriz foi demais para o HPCA (Hollywood Production Code Administration), o "Código Hays", como era chamado. Para obter o sêlo de aprovação, Hughes, relutantemente, removeu aproximadamente meio minuto das cenas que mostravam o busto da atriz. As controvérsias continuaram, até que Hughes resolveu promover um "clamor público" contra a censura do filme. Depois, Hughes resolveu lançar o filme sem o sêlo do "Motion Picture Code", dando início ao fim da censura existente em Hollywood. 

Em 5 de fevereiro de 1943, o filme foi lançado nos cinemas de São Francisco, Califórnia, e causou grande sensação. A duração do filme era de 115 minutos, mas houve cortes de cenas após as exibições. Aborrecido, Hughes não lançou o filme em Nova Iorque, conforme estava programado e arquivou o filme até 1946.

15/04/2021

O Duelo (The Duel), 2016, Kieran Darcy-Smith

Sobre Alice Braga aqui 

Crítica, Bianca Zasso

É possível que um gênero atinja o seu ápice? A resposta para essa dúvida é difícil, mas talvez o exemplo mais claro de um tipo de filme que hoje se tornou cópia das cópias seja o faroeste. Não apenas porque os diretores que sabiam filmar pradarias como ninguém não mais estão entre nós, mas porque, por mais criativo que seja o roteiro ou ousada a câmera, tudo parece já ter sido visto em outros tempos. O Duelo, dirigido pelo australiano Kieran Darcy-Smith, deixa claro desde a sua abertura que pretende ser um clássico. Não se pode culpá-lo por sonhar alto, já que essa vontade é o que garante o ritmo da história.

David Kingston (Liam Hemsworth) é um Texas Ranger, defensor da lei ligado ao governo, mas que institui suas próprias regras para capturar bandidos. Em seu passado, ele tem a lembrança do duelo entre seu pai e o misterioso Abraham Brant (Woody Harrelson), um líder religioso que prega o ódio aos mexicanos em plena fronteira. O primeiro elemento que remete ao desejo de O Duelo de ser um clássico está na apresentação do personagem de Harrelson. Numa briga de facas na chuva contra o pai do então pequeno David, Abraham não poupa o adversário e a lama onde o embate ocorre ganha poças vermelhas de sangue. Tudo isso mostrado em contra-plongée e com uma trilha sonora épica ao fundo.

A intenção de grandiosidade irá se diluir ao longo da trama, mas por um bom motivo. A aparente simples vingança da morte do pai por um filho fica em segundo plano do meio para o final de O Duelo e a atmosfera que surge é fantasmagórica, fazendo lembrar de grandes produções do faroeste que também colocaram um pé no horror, como Um Homem Chamado Cavalo (1970), de Elliot Silverstein, e O Estranho Sem Nome, de Clint Eastwood. Abraham afirma ver o futuro e curar doentes, mas David sabe que isso não passa de enganação. Só que não será apenas à bala que ele terá de resolver as coisas. Sua esposa, Marisol, interpretada pela brasileira Alice Braga, cai no feitiço do suposto guia espiritual e David precisa lutar sozinho. É o conflito que faz com que o suspense, que até então imperava nos movimentos de câmera e nas atuações, dê lugar à ação propriamente dita.

Alice Braga nas filmagens

Ao público mais acostumado aos faroestes, sejam os clássicos ou os revisionistas, o início de O Duelo parece lento demais, quase um drama existencial ambientado no Texas. Mas, assim como as armas que precisam de um tempo para ter seus gatilhos movidos, o filme prepara o terreno para garantir um duelo final empolgante e até poético, que deixaria nomes como o do diretor Anthony Mann orgulhosos. O filme pode não se perpetuar na memória dos cinéfilos ou, daqui algumas décadas, integrar alguma lista de melhores faroestes já realizados. Mas uma coisa é certa: o gênero considerado por André Bazin como o cinema norte-americano por excelência não está morto. Apenas realiza um sono recompensador de tempos em tempos.

16/04/2021

Vera Cruz, 1954, Robert Aldrich

Por volta de 1860, ao escoltarem uma condessa até Vera Cruz, dois aventureiros americanos voluntariamente se envolvem na derrubada do Imperador mexicano Maximiliano.

Sobre Robert Aldrich(1918–1983) aqui

18/04/21

O Rosto (Ansiktet), 1958, Igmar Bergman

O rosto no iutubi aqui  

Este filme de Ingmar Bergman não é uma obra-prima, e nem mesmo um bom filme, mas visivelmente um filme feiro por um mestre. Tem uma atmosfera de expectativa de conto de fadas, como aquelas que começam assim: "Fomos ver o rei, e no meio do caminho encontramos...". Depois, torna-se confuso e discursivo. Mas as imagens misteriosas de Max von Sydow como hipnotizador do século XIX, Vogler, e Ingrid Thulin como seu auxiliar, Aman (a esposa de Vogler, Manda, disfarçada de homem), trazem tamanha carga latente que dominam o material juntado às pressas. Bergman chama o filme de comédia, embora as plateias talvez não concordem. É uma história gótica metafísica, com algumas cenas de baixa comédia e algumas brincadeiras horrendas envolvendo um olho ou mão. O tema - magia versus racionalismo, ou, se se preferir, fé versus ceticismo, ou arte versus ciência, ou ilusão versus realidade - é tratado de modo demasiado teatral para sustentar diálogos tão pesados como: "Eu sempre ansiei por uma faca que cortasse minha língua e meu sexo - cortasse todas as impurezas". A momentos em que teríamos o prazer em entregar essa faca a Bergman. (Pauline Kael. 1001 noites no cinema. p. 429, Companhia das Letras, 1994.)

20/04/2021

Homem-Aranha 2 (Spider-Man 2), 2004, Sam Raimi

Victor Bianchini

Sinopse: Há dois anos, Peter Parker descobriu que, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Disposto a usar seus dons para o bem, ele assumiu a identidade do Homem-Aranha para combater o crime. Mas quando o jovem fotógrafo vê suas notas caírem, a situação econômica de sua Tia May se agravar e sua relação com a ex-vizinha Mary Jane Watson ruir, se dá conta de que o fardo de ser um super-herói pode ser mais pesado do que possa carregar. E esse conflito existencial não poderia chegar em pior hora, pois Nova York está prestes a conhecer um novo e poderoso vilão: o Dr. Octopus.

Positivo/Negativo: Se existe uma constante em todas as adaptações cinematográficas é a presença de um grupo de fãs sempre alertas para apontar o que "faltou" no filme. Foi assim em O Senhor dos Anéis, Tomb Raider, Harry Potter, e até Resident Evil. Não importa de qual mídia os personagens tenham saído, o simples fato de a história já ter sido contada acaba virando uma preocupação extra para os roteiristas, que carregam a difícil missão de selecionar o que será usado e o que será deixado de lado.

Quando se trata de adaptações de HQs, essa situação fica ainda mais complicada, já que, na maioria dos casos, existem décadas de continuidade a serem levadas em conta. O roteiro final acaba virando uma espécie de amálgama, formado pelos elementos principais das mitologias dos personagens, e muitos aspectos apreciados pelos fãs acabam não indo parar na tela grande. Alguns exemplos: as ausências dos Sentinelas nos filmes dos X-Men, e de Gwen Stacy nas produções do Homem-Aranha.

Mas o que acontece quando o processo toma o sentido contrário, e os filmes são adaptados para os quadrinhos? O fato é que, se anos e anos de continuidade representam revistas demais para serem adaptadas em um filme de duas horas, uma produção desse tamanho também constitui roteiro demais para ser condensado em uma HQ de 48 páginas. E essa relação torna-se gritante quando se compara Homem-Aranha 2, o filme, com Homem-Aranha 2, o gibi.

Se a nova aventura cinematográfica do Aranha consagra-se por juntar um roteiro inteligente, uma produção caprichada e o alto grau de dedicação de todos os envolvidos, num filme legal, sensível, emocionalmente impactante e visualmente espetacular, a revista em quadrinhos segue o rumo contrário. No papel, toda a grandiosidade da película é dissolvida em uma história apática, estéril e com ar de "feita às pressas". O gibi é uma colagem de "resumos" das cenas vistas no cinema. Não há a sensação de continuidade, a narrativa é forçada e, muitas vezes, a trama fica tão imediatista, que os personagens se descaracterizam em relação ao filme.

A urgência do roteiro (afinal, vale lembrar: são 126 minutos de película para 48 páginas de história) "atropela" todas as passagens importantes da aventura, excluindo completamente da versão em quadrinhos o belíssimo teatro emocional construído por Sam Raimi ao longo da produção.

Na página 31, por exemplo, é reproduzido o momento em que Peter Parker conta à Tia May que é responsável pela morte do Tio Ben. Além de reduzir um dos momentos mais importantes do filme a uma única página, o argumento de Roberto Aguirre-Sacasa ainda consegue deixar a cena extremamente fraca, insossa e, pior, desinteressante.

Entre as descaracterizações de personagens, pode-se citar Mary Jane gritando com a secretária eletrônica (no filme, a ruiva está tão desconsolada com Peter, que nem sequer vê propósito em fazer algo do tipo); o Dr. Octavius citando T. S. Eliot quando, na produção, diz que, mesmo após tantos anos, ainda não entende o autor; o vilão autodenominando-se Dr. Octopus (na versão cinematográfica ele nunca se refere a si mesmo assim) e, posteriormente, conversando com os tentáculos ("o que vocês estão dizendo, meus braços queridos?"), um clichê absurdo que Sam Raimi jamais deixaria passar em sua obra, entre muitos outros. A cereja no topo do bolo? Peter brigando (isso mesmo!) com o tio falecido durante a conversa imaginária entre os dois.

Seria injusto culpar Aguirre-Sacasa pelo fracasso do roteiro dessa versão em quadrinhos. A obrigação de condensar mais de duas horas de filme em um espaço equivalente a duas edições normais de uma HQ americana pesaria mesmo sobre os ombros de um escritor experiente. O fato é que, antes de tudo, a adaptação oficial de Homem-Aranha 2 é um produto que tem como objetivo atrair aqueles que gostaram do filme mas nunca encostaram em uma revista em quadrinhos. Logo, fazer uma história mais extensa iria, além de encarecer, desviar interesse da publicação. Portanto, escrever o argumento dessa adaptação era uma missão ingrata, mas necessária. Vale lembrar que Chuck Austen, em 2003, passou exatamente pela mesma situação ao ser encarregado de adaptar X-Men 2, e obteve um resultado tão ruim quanto.

Salvam-se neste especial os desenhos do trio Ron Lim, Pat Olliffe e Staz Johnson (este último é também o ilustrador da minissérie Homem-Aranha/Doutor Octopus: Exposição Negativa, publicada por aqui na revista regular do aracnídeo). A arte não é excepcional, mas funciona de forma até agradável. O que, considerando a revista como um todo, já é um ganho.

21/04/2021
O Anjo Azul (Der blaue Engel), 1930, Josef von Sternberg


O anjo azul no iutubi aqui 


Em 1934, o diretor Jean Vigo, com seu filme Zero de Conduta, mostrava a rebelião juvenil dentro de um sistema educativo extremamente repressivo, no qual os adultos eram representados de maneira caricata. Recorro a esse anacronismo de quatro anos e uma comparação até inusitada para, basicamente, dizer que O Anjo Azul, de 1930, é como o outro lado da mesma história. Em contraste a energia anárquica de Vigo, o longa de Josef von Sternberg é rígido e melancólico, dando protagonismo, desta vez, a um acadêmico, Immanuel Rath (um espetacular Emil Jannings), uma figura repleta de conservadorismo. Apesar disso, não é ele quem é unidimensional, mas justamente seus alunos, retratados como meros agentes do caos e da perversão dos valores tradicionais.

Logo na cena em que o professor é apresentado, já conhecemos um pouco de sua personalidade solitária. Isso se dá tanto pela decoração da sua casa, que literalmente parece ser só um amontoado de livros empilhados, quanto por sua ritualidade na hora de tomar café. Além disso, seu passarinho acabara de morrer, quase como se a tristeza perseguisse este homem, prenunciando o que virá a seguir. Em seguida, Sternberg faz questão de apresentar uma sequência acômica dentro de uma sala de aula. Assim, nossa primeira impressão de Rath é a de uma figura inflexível — ele briga com os alunos por pronunciarem palavras erradas — ao mesmo tempo que assoa o nariz de maneira bem tosca. Ao descobrir que seus pupilos andam distraídos por estarem indo ao cabaret O Anjo Azul, estando fascinados pela performista Lola-Lola (Marlene Dietrich), o protagonista decide ir ao local impuro para realizar um flagra naqueles estudantes.

A partir de então, o que acontece em O Anjo Azul é este encontro de mundos, entre o moralismo do professor e a vulgaridade do cabaret. Quando entra nos bastidores da apresentação pela primeira vez, ele se depara com este ambiente exótico, no qual seu diálogo com Lola vai sendo interrompido por palhaços e ursos que passam, praticamente como se estivesse em um pesadelo dentro de um território desconhecido. Aos poucos, a sedução da performista vai desarmando aquele homem, até que ele se torne um bobo apaixonado por ela. Trata-se de uma desconstrução gradual de personalidade, com Sternberg já enxergando como Marlene Dietrich (o primeiro trabalho de muitos entre diretor e atriz) consegue tirar uma enorme potência dos pequenos gestos, como o simples tirar de uma meia arrastão com os olhos fixos no professor. Desse modo, a decupagem do diretor aposta muito neste jogo de plano e contraplano, no qual a sensualidade de Dietrich é recebida por reações cômicas de um Jannings que parece nunca ter visto uma mulher na vida, evidenciando sua inocência.
 
Precisamente pela maneira como explora exaustivamente a falta de malícia de Rath, assistir a sua história é como acompanhar uma tragédia anunciada, na qual só o mesmo não percebe que está sendo feito de palhaço. No início do filme, a montagem alterna entre momentos do professor em casa com seus alunos desenhando caricaturas no quadro negro da sala de aula. De tal forma, isso nos coloca como cúmplices do ato de crueldade feito pelas costas. Já no terceiro ato, aquela ridicularização deixa de acontecer às sombras e torna-se literal, com o professor virando um palhaço durante uma apresentação. Sendo humilhado por toda uma plateia, desta vez diretamente em sua cara, isso lhe leva ao estopim para seu surto psicológico.

Sem dúvidas, uma das coisas que faz O Anjo Azul perdurar até hoje é a complexidade de seu protagonista. Por um lado, pode-se dizer que estamos diante de uma história conservadora, ao mostrar a decadência de um homem cheio de valores ao confiar demais em “elementos subversivos”. Afinal, existe um certo coitadismo na maneira em que Sternberg dirige Jannings, que cria uma persona meio boba demais. Por outro lado, não se pode negar a interpretação de que se trata de um conto sobre a amolecimento de um homem amargurado e tímido, que volta a enxergar a felicidade na vida, ainda que atrelado a um fatalismo trágico. Já outros poderão dizer que é uma obra anti-conservadora, alegando que o próprio professor fez o seu destino, uma vez que ele nunca conseguiu abandonar seus ímpetos de controle, transportando o domínio sob seu alunos para sua esposa, sendo justamente seu ciúme possessivo que levou ao seu declínio. No fim, a preocupação de Sternberg é menos em dar uma resposta, e mais em estudar este encontro entre os dois mundo. Ao perder tudo, a única coisa que sobra a Rath é voltar a sala de aula, o único lugar que ele se sentia no controle. A partir de então, o que acontece em O Anjo Azul é este encontro de mundos, entre o moralismo do professor e a vulgaridade do cabaret. Quando entra nos bastidores da apresentação pela primeira vez, ele se depara com este ambiente exótico, no qual seu diálogo com Lola vai sendo interrompido por palhaços e ursos que passam, praticamente como se estivesse em um pesadelo dentro de um território desconhecido. Aos poucos, a sedução da performista vai desarmando aquele homem, até que ele se torne um bobo apaixonado por ela. 


Trata-se de uma desconstrução gradual de personalidade, com Sternberg já enxergando como Marlene Dietrich (o primeiro trabalho de muitos entre diretor e atriz) consegue tirar uma enorme potência dos pequenos gestos, como o simples tirar de uma meia arrastão com os olhos fixos no professor. Desse modo, a decupagem do diretor aposta muito neste jogo de plano e contraplano, no qual a sensualidade de Dietrich é recebida por reações cômicas de um Jannings que parece nunca ter visto uma mulher na vida, evidenciando sua inocência.
 
Precisamente pela maneira como explora exaustivamente a falta de malícia de Rath, assistir a sua história é como acompanhar uma tragédia anunciada, na qual só o mesmo não percebe que está sendo feito de palhaço. No início do filme, a montagem alterna entre momentos do professor em casa com seus alunos desenhando caricaturas no quadro negro da sala de aula. De tal forma, isso nos coloca como cúmplices do ato de crueldade feito pelas costas. Já no terceiro ato, aquela ridicularização deixa de acontecer às sombras e torna-se literal, com o professor virando um palhaço durante uma apresentação. Sendo humilhado por toda uma plateia, desta vez diretamente em sua cara, isso lhe leva ao estopim para seu surto psicológico.
Sem dúvidas, uma das coisas que faz O Anjo Azul perdurar até hoje é a complexidade de seu protagonista. Por um lado, pode-se dizer que estamos diante de uma história conservadora, ao mostrar a decadência de um homem cheio de valores ao confiar demais em “elementos subversivos”. Afinal, existe um certo coitadismo na maneira em que Sternberg dirige Jannings, que cria uma persona meio boba demais. 
Por outro lado, não se pode negar a interpretação de que se trata de um conto sobre a amolecimento de um homem amargurado e tímido, que volta a enxergar a felicidade na vida, ainda que atrelado a um fatalismo trágico. Já outros poderão dizer que é uma obra anti-conservadora, alegando que o próprio professor fez o seu destino, uma vez que ele nunca conseguiu abandonar seus ímpetos de controle, transportando o domínio sob seu alunos para sua esposa, sendo justamente seu ciúme possessivo que levou ao seu declínio. No fim, a preocupação de Sternberg é menos em dar uma resposta, e mais em estudar este encontro entre os dois mundo. 
Ao perder tudo, a única coisa que sobra a Rath é voltar a sala de aula, o único lugar que ele se sentia no controle. 

22/04/21
Salvatore Giuliano (O Bandido Giuliano), 1962, Francesco Rosi



Salvatore Giuliano no iutubi aqui 

O Bandido Giuliano´, o melhor de Rosi

Francesco Rosi é um mestre na arte de representar a História no cinema. E essa arte atinge o ápice em O Bandido Giuliano, filme de 1962. Os ingredientes todos estavam lá, dados: um personagem real, uma época convulsiva, eventos emblemáticos do modo de funcionamento do mundo das coisas e dos homens. O homem é Salvatore Giuliano, bandido siciliano que se esconde nas montanhas por ter matado um policial. A época é da liberação da Sicília, no final da guerra. Grupos separatistas acham que o momento é propício para agir e resolvem cooptar Giuliano. Este luta lado a lado com os separatistas, o movimento não prospera e fica isolado. Há depois o episódio sangrento de Portella della Ginestra, em que homens, mulheres e crianças, reunidos num comício pró-comunista foram baleados e mortos pelos homens de Giuliano. Tudo isso é reconstituído por Rosi, mas não de maneira convencional. Tudo é impactante mas também anticlimático.

No começo já se vê o corpo de Giuliano, baleado num pátio de Montelepre. A história é reconstituída em flash-backs. Vai-se ao passado a partir das imagens do presente. Exatamente como faz qualquer historiador. A partir das imagens desse corpo, morto em julho de 1950, Rosi reconstrói os fatos da história recente da Sicília. E o que aparece nessa história? De modo nu e cru, um povo que sai da guerra ainda mais empobrecido do que quando havia entrado. O subdesenvolvimento no sul da Itália era uma triste realidade (a questão meridional, diziam os italianos do norte). A maior parte da população era pobre e analfabeta, mas os barões da terra eram ricos. Nesse meio, Giuliano passa de bandido a herói. Uma pessoa do povo resume a imagem que se faz dele: rouba dos ricos e dá aos pobres. Essa parece uma constante universal, em torno do mito de Robin Hood. Vai de Giuliano a Lampião, acontece em qualquer favela carioca ou periferia paulistana, e motivou um estudo do historiador Eric Hobsbawm sobre o banditismo social. Giuliano é mito e como mito é observado por Rosi. 

Desconstruído, desmontado camada após camada, num processo cirúrgico implacável do ponto de vista conceitual e impecável, esteticamente. As sequências progridem com o pathos de uma tragédia grega e a elegância de um teorema matemático. Giuliano é um bandido, um marginal tão comum que nem precisa ocupar a cena de um filme que tem seu nome. De fato, pouco vemos dele durante a ação. Além do corpo morto, ele é visto de costas, ou de perfil, em cenas rápidas. Giuliano é uma ausência, um vazio, ou melhor, um emaranhado de significados. Em torno dele se organizam interesses, em especial os das classes dominantes. Quando se vê o filme não se consegue esquecer que a Sicília é a terra de Giuseppe Tommasi di Lampedusa, a terra de O Leopardo. Aquela em que tudo deve mudar para que tudo continue na mesma, conforme ensina Tancredi, o sobrinho do príncipe Salinas no romance de Lampedusa. É também aquela terra velha demais para se abrir as mudanças reais, como afirma o mesmo livro. Lá, um zé-ninguém como Giuliano pode ser usado para uma luta separatista e descartado quando ela acaba não dando certo. 

Há os separatistas, mas há também a máfia e os políticos. Todos, de uma maneira ou de outra, comprometidos e imbricados uns com os outros. Um sistema corrupto e inexorável. Aliás, os mesmos temas estão em O Contexto, título de um livro de outro siciliano genial, Leonardo Sciascia. Em sua intuição confusa, mas não totalmente desprovida de razão, o homem simples acerta em ver em Giuliano o seu herói. Não porque o bandido seja um Robin Hood sincero ou tenha qualquer veleidade de resgatar os miseráveis do seu destino. Nada há de convencionalmente político em Giuliano. Política é a situação em que ele surge, torna-se útil, depois descartável e finalmente incômoda. E grande é a arte de Rosi, que expõe a estrutura dessa luta pelo poder com todos os seus detalhes, em toda a sua dureza e com sua espantosa e paradoxal beleza.
Agencia Estado, 11 de outubro de 2001

23/04/21

Clube Havana (Club Havana), 1945, Edgar G. Ulmer


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Rosalind (Margaret Lindsay) retorna para sua casa em Miami após um divórcio para ver seu namorado Johnny Norton (Don Douglas) Eles visitam a boate Club Havana, onde Johnny conta a Rosalind que está apaixonado por outra mulher. Triste, Rosalind tenta se matar, mas Bill Porter (Tom Neal) a impede de fazer isso. Enquanto isso, Jimmy (Eric Sinclair) descobriu que Joe Reed (Marc Lawrence), que assassinou a artista de clube Julia Dumont, foi libertada porque a polícia acredita que não há evidências suficientes de que Joe a matou. Embora Jimmy tenha testemunhado o assassinato, ele tem medo de ver a polícia, temendo que Joe vá atrás de sua namorada Isabelita (Lita Baron) Em vez disso, Jimmy decide telefonar para a polícia, mas Myrtle (Sonia Sorel) ouve a ligação e informa Joe sobre as ações de Jimmy. Joe contrata um atirador para assassinar Jimmy, mas o assassino atira em Myrtle depois que ela grita um aviso para Jimmy, e ela acaba acertando o atirador com seu carro. Enquanto Jimmy vai à delegacia para testemunhar, Johnny e Rosalind decidem voltar para casa.

23/04/21

Oneguim (Paixão proibida), 1999, Martha Fiennes


Quando concebeu, em 1831, a novela em versos Onegin, o russo Alexander Pushkin criou seu personagem Evgeny a imagem da aristocracia de São Petersburgo. Um ser enxertado de vaidade, cinismo e despeito que, na trama de Pushkin torna-se vítima da própria postura de indiferença para com o que a vida lhe oferece. Onegin viria a se tornar uma aclamada ópera de Tchaikovsky em 1879. Em 1999, virou filme nas mãos da diretora estreante Martha Fiennes, irmã de Ralph Fiennes que divide o protagonismo do longa com Liv Tyler. No Brasil, a produção ganhou o infeliz título de Paixão proibida (Onegin, Reino Unido).

Tratado com esmero e elegância em todos os detalhes técnicos, Paixão proibida revela-se uma cuidadosa reprodução visual (e quase psicológica) da sociedade russa no século 19, já tão explorada pela literatura (Tolstoy; Dostoyevsky). Uma sociedade que insistia em absorver os maneirismos da cultura francesa e sofria com isso. Essa negação contra si e contra a própria identidade causa a tragédia romântica que sucede a Evgney Onegin (Ralph Fiennes).

Cansado da vida cercada de soberba e tédio que levava na aristocracia, Onegin viaja ao interior para receber a gorda herança de um tio. Chegando lá, aproxima-se do nativo Lensky (Tob Stephens), que sonha em tornar-se um poeta ao mesmo tempo que nutre paixão por Olga (Lena Headay), sua provinciana noiva. Ao contrário de Olga, sua irmã Tatyana (Tyler) tem um espírito libertário e logo chama a atenção do sofisticado Onegin. Este percebe a simpatia da moça ao informar que pretende arrendar as terras do falecido tio para os próprios vassalos da mansão; um escândalo para a época.
Imaginativa e fiel ao arrepio da própria pele, Tatyana começa a demonstrar a Onegin suas intenções afetivas, mas tromba com a frieza do aristocrata. Muito embora ele revele paixão no primeiro contato visual com Tatyana, Onegin insiste no discurso “não sou homem feito para o amor ou casamento”, obedecendo sua formação alicerçada nas aparências. O filme dá uma reviravolta e, seis anos depois, as posições são trocadas mas a essência dos personagens é mantida. Tatyana continua sentido uma dor no peito quando chega perto de Onegin, e entende a razão disso. O aristocrata começa a sofrer do mesmo mal, mas já não domina a razão para controlar sua emoção.

Fiennes, sob a direção da irmã, talvez tenha exagerado na frieza do personagem resvalando na insipidez de sua própria interpretação. Apesar de trazer na bagagem criações honestas que convencem sofrendo elegantemente por amor (vide O paciente inglês, Oscar & Lucinda, Sunshine e Fim de caso), aqui ele descarta o que de melhor costuma dar às suas criaturas perturbadas de paixão: impetuosidade. Já Tyler consegue nos informar da gravidade de seu sentimento pelo silêncio e pela postura etérea que deposita em sua menina russa. Ganha ainda mais força com a graça e a moldura que lhe cai da direção de arte – que cuida com riqueza barroca da cenografia e locação.

Mas o grande mérito de Onegin é mesmo a requintada fotografia de Remi Adefarasin (que concorreu ao Oscar pelo seu trabalho em Elizabeth, de 1998). O sombrio tom que sua lente capta do ambiente cercando o aristocrata de Fiennes é o maior aliado do ator em cena. Adefarasin cria verdadeiros quadros de gênero, como as pinturas que o holandês Jan Vermeer fazia no século 17. Com parcas cores e delicados efeitos de luz, Adefarasin transforma composições visuais em suave poesia.
A maior prova que os atores perdem terreno para a imagem em Paixão proibida está na sequência em que os protagonistas travam o derradeiro e decisivo diálogo. A fotografia (luz para Tatyana, sombra pra Onegin), o cenário (ambiente amplo e imaculado, com o mínimo de mobília) e o figurino (branco para a integridade de Tatyana, preto para perturbação de Onegin) parecem dizer mais que os atores. É estranho, mas bonito de ver.

27/04/21
O Morcego Vampiro (The Vampire Bat), 1933,  Frank R. Strayer 


O morcego vampiro no iutubi aqui 

Paulo Blob, 15/01/2015  

Um pequeno vilarejo chamado Kleinschloss (que embora o filme não especifique, suponho que se localize na Alemanha) está tomado pelo pânico. Uma série de crimes assola o lugar, pessoas aparecem mortas na calada da noite, os cadáveres apresentam pequenos furos no pescoço e ausência de sangue. A população acredita que há um vampiro aterrorizando a região.
A histeria toma conta até das autoridades da aldeia, do burgomestre (Lionel Belmore) até o respeitável dr. Otto von Niemann (Lionel Atwill) – todos parecem acreditar na ameaça vampírica, com exceção do inspetor de policia Karl Brettschneider (Melvyn Douglas). As suspeitas recaem sobre Herman (Dwight Frye), o louco da aldeia que adora morcegos. Caberá ao inspetor resolver o mistério e salvar sua namorada Ruth Bertin (Fay Wray), que corre risco de morte.

Produção barata da produtora Majestic Pictures, especialista em filmes B lançada em 1933. Aqui eles reaproveitaram a dupla Fay Wray e Lionel Atwill, que estrelaram duas obras dirigidas por Michael Curtiz: Doctor X, lançado no ano anterior, e Mystery of the Wax Museum, rodado no mesmo ano – na verdade este último tinha sido filmado antes de Vampire Bat, mas a Majestic teve a manha de conseguir terminar as filmagens e lançar seu filme mais de um mês antes da obra de Curtiz. Vale lembrar que em 1933 Fay Wray alçaria o estrelato com o mítico King Kong.

Como aconteciam ocasionalmente, estúdios mais pobres alugavam cenários prontos de estúdios em melhores condições, uma forma de baratear custos, já que é mais fácil do que partir para construir do zero. Sendo assim a Majestic Pictures acabou utilizando como o cenário da casa do dr. Otto von Niemann, a mansão de The Old Dark House (1932) de James Whale, da Universal. The Vampire Bat não só reutilizou o set do filme de Whale, como trouxe também o ator Melvyn Douglas.
A trama é boboca e previsível, não trata exatamente de vampirismo em sua resolução, porém o filme lembra outras produções anteriores, como Drácula, Frankenstein e O Gabinete do Dr. Caligari, assim como tem certa semelhança com uma produção italiana de 1957, o clássico I Vampiri, primeiro filme de horror italiano do pós-guerra, co-dirigido por Riccardo Freda e Mario Bava.

A força do filme está em sua fotografia soturna e climática (a cargo de Ira H. Morgan, que, inclusive, trabalhou com Charlie Chaplin). Ao contrário da maioria dos filmes B do período, a câmera aqui não se mantem estática, fazendo alguns movimentos interessantes, influenciado direto pelo Expressionismo Alemão. Outro ponto de destaque é o elenco, com Fay Wray no auge de sua beleza, o competente Lionel Atwill e Dwight Frye no papel de que se especializou, o louco. A única peça que destoa é a personagem de Maude Eburne como a tia hipocondríaca de Ruth; claramente é o papel de alívio cômico, mas que não funciona sempre.

A direção ficou a cargo de Frank R. Strayer, criador da série cômica, hoje esquecida, da personagem Blondie (que aqui no Brasil ficou conhecida como Florisbela), interpretada pela loirinha Penny Singleton. Strayer dirigiu 19 títulos dessa série. Seu currículo contabiliza com 85 títulos. The Vampire Bat é hoje sua obra mais conhecida.

Lançado nos cinemas brasileiros como O Vampiro, essa obra saiu em dvd pela Works como O Morcego Vampiro, num programa duplo com Mortos Que Andam (Dead Men Walk, 1943) de Sam Newfield. Com status de cult, Vampire Bat é um bom e eficiente passatempo para quem gosta de filmes B antigos.

28/04/21
A Canção Prometida (A Song Is Born), 1948, Howard Hawks

 
A canção prometida no iutubi aqui 


É raro eu não gostar de um filme de Howard Hawks, um dos meus cineastas favoritos. Por isso, quando digo que não gosto de OS HOMENS PREFEREM AS LOURAS (1953) muita gente fica admirada. Enquanto não o rever, continuarei achando o filme vulgar. A CANÇÃO PROMETIDA (1948) é outro desses filmes menores do diretor, mas que aos poucos foi me ganhando até chegar ao bonito, ainda que ingênuo, final. Que combina com o personagem do estudioso de música que se apaixona por cantora de boate ligada com gângsteres da pesada.

A história é praticamente a mesma à do superior BOLA DE FOGO (1941), mas tem um diferencial: a música. Que, aliás, foi outra coisa que não me agradou a princípio, pois achava que aquilo que aqueles músicos pensavam que sabiam sobre a música do mundo – e que pretendiam incluir numa enciclopédia – era numa visão bem estereotipada.
Até mesmo a visão simplificada como eles tentam resumir a história da música negra nos Estados Unidos me pareceu fraca. Outra coisa: entre tantos cantores de jazz e blues e outras correntes da música negra daquele período, por que justamente trouxeram uma cantora branca para ser a cantora de blues (é blues mesmo o que ela canta?) e ser o interesse amoroso do protagonista?

Falando assim, até parece que eu quero dar uma de Spike Lee, mas ficou essa impressão de que os negros ficaram como meros coadjuvantes, apesar de serem vitais na construção da música americana. Inclusive, numa cena em que um dos trabalhadores negros toca umas notas no piano, o que ouvimos ali é uma espécie de proto-rock’n’roll. Mas temos que ver o ano em que foi produzido o filme: se até os anos 60, os negros eram colocados sempre em posição subalterna, imagine naquela época.
Na trama, professor e pesquisador de música (Danny Kaye) sai em boates e casas de música da cidade depois de perceber que ficou muito tempo afastado do que estava acontecendo na música contemporânea. Conhece uma cantora em uma boate (Virginia Mayo), apresenta-se em seu camarim, mas logo é deixado de escanteio pela moça. Acontece que ela passa a ser perseguida por um grupo de gângsteres e o seu grupo, entre eles o seu namorado, acha por bem aceitar a ideia de ela ficar na casa desse músico, que vive com mais seis amigos mais velhos, enquanto a poeira assenta. Ela não fala nada sobre quem é realmente e, aos poucos, o sensível, tímido e ingênuo professor começa a se apaixonar por ela.
Como se trata de uma comédia (com alguns momentos musicais) mais ou menos convencional, é de se esperar que haja um final feliz. E felizmente Hawks faz com que o final saísse divertido e bonito, ainda que fique no ar aquela sensação de que acabamos de ver um Hawks bem abaixo da média. Na entrevista para Bogdanovich, tanto o entrevistador quanto ele acharam o filme fraco. Hawks chegou a dizer que nunca o viu montado e só o fez por causa do valor exorbitante que o produtor Samuel Goldwyn lhe ofereceu. Para ver como às vezes dinheiro só estraga as coisas.

28/04/21

Os Poderosos Também Caem (Boss Nigger), 1974, Jack Arnold


Os poderosos também caem no iutubi aqui 


Reconhecido principalmente por suas primeiras façanhas na ficção científica e gêneros de terror da década de 1950, Jack Arnold é um diretor que possui uma filmografia complexa com muitos outros temas cults como: Horror, Ficção, Crime e outros. E podemos citar como exemplos: Tarântula, O Monstro da Lagoa Negra e O Incrível Homem Que Encolheu. No entanto, em 1974, ele decidiu mergulhar em uma direção completamente diferente para seu estilo. Pesquisou mais profundamente o mundo do Blaxploitation e conheceu um ex-jogador profissional de futebol americano que virou uma lenda neste seguimento. 
Após já terem trabalho juntos em um thriller “Black Eye”, mais uma vez estaria com Fred "The Hammer" Williamson. Os dois trabalhariam juntos mais uma vez em “Chefe Negro” explosivamente, batizado por Williamson e que teve créditos pelo roteiro e produção.

A história passa-se ao final dos anos 1800. Boss (Fred Williamson) e seu parceiro Amós (D' Urville Martin) viajam pelas planícies no sudoeste atrás de recompensas, muitas vezes fazendo uso de força letal. Em meio a uma tentativa frustrada de estuprarem uma jovem negra depois de assistir seu pai ser morto, Boss e Amós repelem os bandidos com facilidade e deixam a jovem Clara Mae (Carmen Hayworth) com uma família de mexicanos na periferia da cidade, e descobrem que entre um deles há um foragido com recompensa por sua cabeça. Enquanto isso, Amós se depara com uma carta implicando o prefeito da cidade, perto de San Miguel que tem alguma associação com o líder da gangue local, Jed Clayton.

Ao chegarem à cidade de San Miguel carregando o cadáver deste foragido que por coincidência é um dos homens de Jed para receberem a sua recompensa, deparam-se com o escritório do xerife deserto, e para o horror das pessoas brancas que repudiam negros em San Miguel, são negativamente notados e criticados. Com a cidade sem lei, e com espanto dos moradores, o prefeito Griffin (R.G. Armstrong) se aproxima deles no escritório do xerife, reclamando descaradamente e antes de terminar seu discurso de boas vindas é rapidamente colocado para fora por Boss que começa a perceber muitas coisas erradas no local e começa a pressioná-lo. Boss e Amós elegem-se xerife por conta própria para terem direito em imporem suas próprias leis redigidas em anúncios públicos fixados no comercio e em toda a cidade.
Boss expressa totalmente a sua intenção de capturar Jed Clayton para receber a grande recompensa por sua cabeça, e que ele pretende utilizar-se da associação de Jed ao prefeito para fazê-lo. Não demora muito e o xerife e seu assistente começam a ter problemas diversos com vários outros subordinados da quadrilha de Jed Clayton e que eventualmente em uma briga no saloon acabam matando dois e ferindo outro. A cidade agora está cada vez mais inflamada pelas ações dos dois negros, Boss então passa a usar ainda mais a força bruta na posição de xerife, aconselhando a todos causando medo e retaliação da quadrilha Clayton contra eles.


A história se desenrola com inúmeras interações hilariantes entre Boss, Amós e os habitantes da cidade unicamente de população branca e irremediavelmente ignorantes. Um exemplo notável é entre Boss e a professora local desferindo-lhe indiretas, a senhorita Pruitt (Barbara Leigh), Pruitt declara: "Quando eu visitei meus amigos em Boston, os negros podiam dançar e cantar. Gostaria de vê-los, foi um momento muito divertido." Boss responde: "Senhorita Pruitt Bem, agora você pode dizer a seus amigos em Boston que você já conhece alguns negros que não dançam ou cantam".
A história continua com situações similares leve, até o momento de ação entre Boss, Amós e quadrilha Clayton com armas e corpos que começam a cair por toda parte.

O Blaxploitation realmente ficou conhecido também como subgênero ao longo da década de 1970, sempre vinculado em vários outros seguimentos como horror, ação, guerra, crime, sexo e sleaze. Tudo era aproveitado. “Chefe Negro” não foi exceção e aproveitando o sucesso do cinema europeu, Investiram nesse que sem dúvida popularmente possui grandes e pesadas influências do Spaghetti Western . Chefe Negro dá ao gênero western um toque moderno com uma atenção especial e ainda um tema atual quando se refere ao preconceito. Reflete o urbanismo contemporâneo que vivemos hoje. A música base de fundo revela a ligação ao funky com guitarra wah-wah clássica dos anos 70. A música-tema do filme é nada menos que a faixa-título de "Boss Nigger". Chefe Negro possui uma trilha sonora imortal e única.

É poderosamente magnética, e frisa que sem piedade ele “Boss”, pode tirar qualquer coisa do seu caminho. A música persiste em fazê-lo continuar vibrando devido ao seu conteúdo lírico fortemente satírico. A música diz simplesmente: "Ele é tão mau... Eles o chamam de chefe... Ele é o chefe... Chefe Negro". Este filme e este seu tema foi fortemente censurado ao final da década de 70. Chefe Negro é uma narrativa maluca do caos estabelecido na humanidade. Uma dupla de negros que escolhem em viver entre uma era racista optando por não se esconder dela, mas sim a enfrentando com força total, sem rodeios e zombando de suas muitas audácias.

Parafraseando as palavras de Amós: "Depois de anos sendo caçado pelo homem branco, eles escolheram uma profissão em que eles por sua vez, agora são aqueles que fazem a caça". Outra situação é a que Amós é desprezado por um casal de cidadãos em chamá-lo de negro em público, eles são conduzidos ao delegado de plantão Boss, e cobram-lhe uma multa de trinta dólares de fiança para a sua libertação em descumprirem uma lei. Boss também simula um engraxate tímido e medroso antes de fazer um buraco no sapato de um infrator no saloon.

É um filme com puro humor negro sobre como devem ser tratados famigerados bandidos, desordeiros e infratores de qualquer espécie e tendo com justificativa o combate ao racismo com a violência. A única linguagem capaz de trazer o fim da força é usando a força. Fred Williamson é inesquecível neste filme em que curiosamente carrega consigo um rifle de cano serrado em seu coldre ao invés do tradicional Colt, então nos deparamos com um hilário desfile de buracos ensanguentados por causa disso. A aventura lembra uma boa e sólida produção de filmes B como mencionei. Não é um western magistral, mas é um belo e bem produzido "blaxploitation". Muito bom pelo humor bem dosado. Quando Williamson escreveu o roteiro ele já tinha em mente os atores e escolheria um velho amigo veterano, Jack Arnold para dirigir e o resultado foi superável às suas expectativas. Amós deixa claro o seu passado de ex- escravos e que decidiu caçar os brancos para usar isso como uma espécie de vingança legal e estabelecem-se no Oeste para se tornarem caçadores de recompensa. A trama trás lembranças de Yojimbo de Akira Kurosawa, incluindo até mesmo uma cena em que Tom é capturado e espancado quase até a morte pelos bandidos, somente para ter motivo pra se recuperar e voltar para o banho de sangue final com seu Winchester de cano serrado. Como em outros filmes de Williamson e de Martin, o carisma e as situações humorísticas, são bem elaborados e contracenados por eles.

Todos os personagens do filme tem seu desempenho marcante fazendo com que o filme não leve a atenção somente a dupla e sim a todos de um modo engraçado e divertido. Gosto do ritmo da ação mas este filme já foi considerado muito violento por críticos. Quanto a violência estaria parelho a "Il Grande Silencio" ou "Por um Punhado de Dólares", no qual lembra em alguns momentos. Williamson conseguiu fazer uma boa comédia western com clichês do Espaghetti. Um filme de sucesso que alcança os seus objetivos modestamente, que nada mais é o de se viver um bom momento em que o público descarrega pra fora algumas tensões envolvendo-se em uma batalha racista baseada em fatos historicamente reais. A deixa final: "Não há nada pior para um homem negro arrastar-se em torno de um branco". 

Seria difícil imaginar Fred Williamson encabeçando essa aventura sarcástica em 1974/75, sabendo-se que iria crescer como ator, escritor e produtor futuramente com seus próprios recursos.
Muito fiel da parte de Williamson colocar todos os bandidos nos créditos; Só o dublê Neil Summers que já havia feito algumas pontas como “O Esquilo” no duelo com os copos de whisky no saloon em “Meu Nome é Ninguém” com Terence Hill, não apareceu. É um dos melhores Westerns Blacksploitation já feitos. Tem o seu merecido lugar entre os bons westerns americanos e deve-se levar em consideração a fase negra e amarga que a América também atravessou com a escravatura quando em meados de 1800. Foi um dos países que viraram uma página trágica sobre os escravos nesta época e o livro ainda continua aberto seja na América ou em qualquer lugar no mundo, infelizmente.

Os Poderosos Também Caem - Brasil
Chefe Negro - Brasil, The Black Bounty Hunter - USA, Boss - USA

Direçao: Jack Arnold
Produção: 18 de Agosto 1975
Escrito: Fred Williamson
Duração: 87 minutos
Musica: Leon Moore
Fotografia: Robert Caramico
Edição: Eva Ruggiero e Gene Ruggiero
Locações: Eaves Movie Ranch,
105 Rancho Alegre Road,
Santa Fe, Novo México, USA.
Elenco
Fred Williamson - Boss Nigger
D'Urville Martin – Amós/Amos
William Smith - Jed Clayton
R.G. Armstrong - Prefeito Griffin
Barbara Leigh - Professora Sra. Pruitt
Carmen Hayward (Carmen Hayworth) - Clara Mae
Carmen Zapata - Margarita
Bruce Gordon - Lojista
Ben Zeller - Blacksmith
Sonny Robbins - Bad Foot
Don Hayes - Park
Jonathan Bahnks - Drunk
Sonny Cooper - Lavadeira
Phil Mead - Capanga do prefeito
Harry Luck – Homem alto
Elizabeth Saxon – Esposa do homem alto
Paul Barby - Criado
Luke Jones - Dan
Don Hawn - Paul
Paul Conlan - Todd
Mark Brito - Pancho
Joe Alfasa - Pedro
Lou Brito – Espoda de Pedro
Kip Allen - Clerk
Jackson D. Kane (Jackson Kane) - Bandido
Hardy Phelps - Bandido
Michael Eiland (Mike Eiland) - Bandido
Dickson Newberry - Bandido
Leo Petrie - Bandido
Wayne Waterhouse - Bandido
George Oja - Bandido
Neil Summers - Bandido Dentuço
Otis Lewellen - Bandido
Joe Kurtzo - Bandido
V. Phipps-Wilson – Bubbles
Don 'Red' Barry (Don Red Barry).

30/04/21

Apuros de um xerife ou O xerife do queixo quebrado (The Sheriff of Fractured Jaw), 1958,  Raoul Walsh


Apuros de um xerife no iutubi aqui 

Crítica

Anos 1880. De uma família de negociantes britânicos, Jonathan Tibbs (More) tem a ideia de incrementar os negócios do ramo vendendo as armas da companhia, fundada em 1605, no Veho Oeste americano. Ele vai parar na sem lei Fractured Jaw, há tempos sem ninguém como xerife, por temor de ter o mesmo fim que seus antecessores, por parte dos dois grupos locais constantemente em conflito entre si e com a lei. Tibbs fica hospedado na pensão-saloon da atraente loura Kate (Mansfield).
Ocasionalmente prisioneiro de um grupo de índios Injuans, com seus métodos excêntricos, rapidamente torna-se reconhecido não apenas como um deles, como filho do chefe. Essa amizade o salvará, posteriormente, do conflito sanguinário que se apresenta entre os Box T e os Lazy S. Com a cidade em paz, o casamento entre Jonathan e Kate se consuma.  

O que há de pouco comum nesse western de pretensões cômicas nada excepcionais talvez seja a vagareza com que vai delineando seu enredo. Com um terço dele transcorrido se coroa a personagem do típico britânico de modos aristocráticos o xerife de uma cidade um tanto bárbara do Oeste americano e que, pelo mesmo motivo, ninguém pretende sê-lo. Tira partido criativo dos ecos das galerias rochosas que a dupla principal atravessa, em que Kate abre seu coração cantando, e a repetição de determinados trechos da canção faz às vezes de eco. E ainda mais dos índios, que se tornam aliados do herói contra os dois grupos de cowboys que iam se digladiar e se encontravam contrários ao xerife. 

Como homem que consegue dobrar seus opositores sem fazer uso da violência ele próprio, Tibbs é a própria encarnação da “civilização” sem que os atravessadores dessa, yankees, assumam a cena, como habitual. Dos índios não se espera nada além da coadjuvância habitual, aqui regada por um paternalismo em que são transformados em algo no limite da idiotia. Curiosamente o filme apresenta cenas filmadas de fato em locação com planos mais aproximados que – talvez por motivos de dificuldade de orquestração do equipamento de filmagem – são evidentes cenas com back projection. Provavelmente última produção em que o nome de Mansfield esteve associado a um dos grandes estúdios em seu fugaz estrelato. 
Não é a toa que a primeira escolha para Tibbs havia sido Clifton Webb, sendo que o filme com More, tenta neutralizar a excessiva ausência de virilidade de Webb, que já havia sido tema desde os idos do cinema narrativo (Algie, the Miner), aproximando-se mais de tipos como o Oscarito de Matar ou Correr, mesmo sendo mais moderado no escracho – não falta, no entanto, a típica cena da pouca desenvoltura no montar à cavalo. 

01/05/2021
Quo vadis, Aida?, 2020, Jasmila Zbanic


Agonia de viver genocídio em câmera lenta marca 'Quo vadis, Aida?', indicado ao Oscar
Drama da Bósnia retrata de forma angustiante e íntima a história real do último genocídio europeu reconhecido pelo Tribunal de Haia: o massacre de Srebrenica, em 1995

Por Rodrigo Ortega, G1, 24/03/2021

O retrato íntimo do desespero de uma mãe para salvar a família do fuzilamento tem como cenário o registro histórico de como oficiais das Nações Unidas (ONU) presenciaram, omissos, ao maior crime de guerra na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial.
"Quo vadis, Aida?", filme da Bósnia-Herzegovina indicado na categoria internacional do Oscar 2021, amarra bem esse drama particular ficcional com a reconstrução do (infelizmente real) Massacre de Srebrenica, assassinato de 8 mil bósnios por soldados sérvios em 1995.
O filme também foi indicado à categoria internacional e de direção do Bafta, premiação britânica que é um dos termômetros do Oscar. O filme estreia em streaming no dia 21 de abril no Brasil em plataformas de aluguel e compra.

Tradutora do desespero

A sacada da roteirista e diretora Jasmila Zbanic é a posição em que ela coloca Aida (Jasna Djuricic), a protagonista. Ela é tradutora da ONU em Srebrenica, pequena cidade bósnia que era (ou deveria ser) protegida pelas forças internacionais durante a invasão do exército sérvio.


A heroína que tudo vê e quase nada consegue fazer é uma das personagens mais marcantes de uma temporada cheia de histórias angustiantes no Oscar 2021 - incluindo o vizinho do leste europeu "Collective", ótimo documentário sobre a corrupção no sistema de saúde da Romênia.
Aida presencia todas as conversas entre os oficiais holandeses da ONU e os invasores sérvios. Os soldado da Holanda fazem de tudo para demonstrar controle, mas Aida nota que eles perderam totalmente a capacidade de protegê-los.

Família ficcional, fatos reais

Aida e sua família são personagens criados pela cineasta. Mas o resto do filme mostra bem a espetacular falha dos guardiões despreparados da "zona segura", um fato histórico. Sem equipamentos nem reforço, eles simplesmente deixaram os bósnios serem levados para a morte.
Os comandantes das forças sérvias foram condenados pelo Tribunal Internacional pelos crimes de guerra. O ex-general Ratko Mladic está em prisão perpétua pelo genocídio. Mas a Holanda também foi julgada parcialmente responsável pela falha de suas forças em garantir a segurança dos bósnios.
Esse assombro de ver uma atrocidade numa época nem tão antiga, num cenário que lembra qualquer cidade atual do leste europeu, e na cara da comunidade internacional, é bem ilustrado nas conversas entre os oficiais estrangeiros e a tradutora (ficcionais, mas potentes).
Ao entender o risco para seus vizinhos e, principalmente, para seu marido e os dois filhos, Aida corre desesperada entre as salas improvisadas do abrigo. A aparente segurança - afinal, a ONU está presente - se esfacela em câmera lenta. A quem recorrer? O que fazer?



Sinopse: Aida é tradutora da ONU na pequena cidade de Srebrenica. Quando o Exército sérvio assume o controle da cidade, sua família está entre os milhares de cidadãos que procuram abrigo no acampamento da ONU. 
Direção: Jasmila Zbanic
Título Original: Quo Vadis, Aida? (2020)
Gênero: Guerra | Drama Histórico
Duração: 1h 41min
País: Bósnia e Herzegovina | Áustria | Romênia | Holanda | Alemanha | Polônia | França | Noruega | Turquia

Quanto Vale uma Vida?

“Quo Vadis, Aida?” é um filme potente. Com fotografia e câmera incisivas, toma conta do espectador logo na primeira sequência, descendente de um cinema clássico com travellings suaves, montagem precisa e fotografia que explora os campos e os corpos de suas personagens. Apesar da coprodução com mais oito países, o longa-metragem representa a Bósnia e Herzegovina na noite do dia 25 de abril, após obter uma das cinco indicações ao Oscar 2021 de melhor filme internacional. Junto ao favorito “Druk – Mais uma Rodada” também chega forte para a premiação.
A tradutora Aida, interpretada por Jasna Đuričić, mostra sua força ao longo da película. Sua atuação, aliás, é ponto de destaque em um filme que prima pela contenção densa ao invés de efusivas interpretações. São as córneas e as testas franzidas que denunciam a tensão. Em um ambiente de guerra, movimentos bruscos não são bem-vindos. Jasmila Žbanić, diretora e roteirista da obra que, com 46 anos, já guarda uma dezena de filmes em seu currículo, imprime um ritmo próprio que baila perfeitamente com os atores que escolheu.


Não por acaso, “Quo Vadis, Aida?” também concorre ao BAFTA de melhor filme de língua não inglesa e de melhor direção. Sua estreia nos Estados Unidos se deu em março e já acumula uma série de elogios, mas a produção permanece inédita no Brasil.
Assim, junto ao já citado representante da Dinamarca, dirigido por Thomas Vinterberg, talvez seja o filme estrangeiro que consiga combinar melhor ingredientes que os votantes da Academia adoram. Uma certa pungência, mas com os pés no chão. O conflito sérvio como pano de fundo para a aflição da tradutora funciona bem como drama de guerra e apresenta qualidade técnica. Não me arrisco a dizer, no entanto, que ganhará mesmo que me pareça ser um dos melhores do ano.

Os movimentos cada vez mais inquietos de Aida antecipam o conflito inevitável e nos levam a uma espécie de viagem ao purgatório junto a nossa personagem principal. Temendo pelo desfecho da cidade, mas também de sua família, a interprete é aquela que acaba como mediadora de notícias que preferia não portar. Embora umas palavras saiam de sua boca, seu descontentamento aflora em sinais corporais. Poder e medo caminham de lados opostos, entretanto, de mãos dadas. Essa não é, certamente, uma característica específica de momentos de guerra, mas talvez ela se torne mais visível e palpável quando dos conflitos territoriais e ideológicos que já transcenderam nossa capacidade de diálogo.
Nesse sentido, Aida guarda com ela um saber essencial: o de permitir o entendimento entre partes. Ainda assim, ela é apenas uma parte frágil da engrenagem. Tentando manter suas partes como mãe e esposa vivas em um ambiente de borra todas as relações – e ao mesmo tempo as demarca – a protagonista traz para perto de si seus familiares.

Ao nos ofertar olhar a guerra com a partir desses dois prismas, Žbanić nos aproxima de uma realidade que não foi vivida de perto por todos nós – pelo menos não enquanto guerra civil declarada. Somos muitas coisas de mais diversas maneiras diferentes ao mesmo tempo e as tramas paralelas que são experimentadas enquanto o cenário de guerra ainda vive trazem um pouco dessa complexidade humana. Isso, a guerra não apaga. Quando a guerra (seja ela travestida das cores que for) acabar, continuaremos a ser muitos e cheios de conflitos. Temos que conviver com nossas diversas facetas e com múltiplas guerras.

Ao enxerga-las como embates sempre em constante mutação, compreendemos que nossas negociações mais cotidianas podem se transformar em pequenas guerras. E, sempre poderemos estar de um lado ou do outro. Sabemos como gostaríamos de ser tratados quando na posição mais vulnerável. Essa pode ser uma pista de como poderíamos conduzir nossos embates, os gigantescos e os minúsculos, e entender que aprender a sentir a dor dos outros é também aprender a sentir um pouco de nossa própria dor. No final, esse sim dilacerante, a gente descortina a obviedade dona de alguns de nossos medos mais profundos: um corpo não é somente um corpo.
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Como estão os julgamentos de crimes de guerra envolvendo os conflitos na antiga Iugoslávia
Saiba o que aconteceu aos principais protagonistas dos conflitos na antiga Iugoslávia na década de 90
 
Redação, O Estado de S.Paulo, 09 de junho de 2021

PARIS - Relembre o destino dos principais protagonistas dos conflitos na antiga Iugoslávia na década de 90, após o veredicto que confirmou a prisão perpétua do ex-chefe militar sérvio da Bósnia, Ratko Mladic, por genocídio. 

Julgamentos em andamento

-Ratko Mladic, com cerca de 80 anos, antigo chefe militar dos sérvios da Bósnia e conhecido como o "açougueiro dos Bálcãs".
Preso em 2011, após 16 anos foragido, foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia em 2017, em primeira instância, à prisão perpétua pelos crimes cometidos durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), que deixou 100 mil mortos e 2,2 milhões de cidadãos deslocados.
Nesta terça-feira, o Mecanismo de Tribunais Penais Internacionais (MPTI), que assumiu o controle do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia após seu fechamento em 2017, rejeitou o recurso de Mladic e manteve sua condenação por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
 
-Hashim Thaçi, de 53 anos, ex-primeiro-ministro e ex-presidente de Kosovo (2016-2020).
Ele foi um líder político do Exército de Libertação de Kosovo (UCK), que lutou contra os sérvios durante o conflito de 1998-1999. Ele conduziu seu país à independência em 2008.
Em junho de 2020, o processo do Tribunal Especial para Kosovo em Haia acusou-o de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, incluindo assassinato, desaparecimento forçado de pessoas, perseguição e tortura.
Ele renunciou em novembro e foi transferido para o centro de detenção do tribunal especial de Haia, onde se declarou inocente em seu primeiro comparecimento. 

Condenados

-Radovan Karadzic, de 75 anos, ex-dirigente dos sérvios na Bósnia preso em 2008 após 13 anos de clandestinidade. Após apresentar recurso, foi condenado à prisão perpétua por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade em 2019.
Ele é o mais alto oficial condenado pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia e considerado responsável por perseguição, morte, estupro, tratamento desumano ou deslocamentos forçados, especialmente durante o cerco de quatro anos a Sarajevo, que causou mais de 10 mil mortes.

-Biljana Plavsic, de 90 anos, vice-presidente e posteriormente presidente da República Sérvia da Bósnia.
Ela é a única mulher julgada pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, condenada a 11 anos de prisão por crimes de guerra em 2003, e libertada em outubro de 2009. 

-Vojislav Seselj, de 66 anos, líder ultranacionalista sérvio.

Em 2016, para surpresa geral, foi absolvido pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia de todas as acusações de limpeza étnica contra croatas, muçulmanos e outros grupos não sérvios. O processo de apelação terminou em 2018, após uma sentença de 10 anos por crimes contra a humanidade. Após passar 12 anos em prisão preventiva, foi libertado e mais tarde até se tornou deputado no Parlamento sérvio.

Absolvido
 
-Ante Gotovina, 65 anos, ex-general croata. Condenado em primeira instância a 24 anos de prisão por crimes contra a humanidade e crimes de guerra, foi absolvido em 2012.

Mortos 

-Slobodan Milosevic, presidente da Sérvia entre 1990 e 2000.
Ele morreu em 2006, aos 64 anos, no centro de detenção de Haia, onde foi julgado por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. 

-Franjo Tudjman, presidente da Croácia de 1990 até sua morte em 1999.
Este nacionalista levou seu país à independência em 1991, o que gerou um conflito iniciado pelos sérvios da Croácia que causou cerca de 20 mil mortes, em sua maioria de croatas. Se ele não tivesse morrido, teria sido condenado por crimes de guerra.
 
-Zeljko Raznatovic, também conhecido por Arkan, chefe do grupo paramilitar sérvio "Tigres".
Em 1997, ele foi condenado por crimes contra a humanidade, e crimes de guerra na Bósnia em 1995, embora a acusação só tenha se tornado pública depois de seu assassinato nunca resolvido, em janeiro de 2000, em um hotel de Belgrado.
  
-Slobodan Praljak, ex-chefe militar bósnio-croata.
Em novembro de 2017, ele cometeu suicídio ao ingerir cianeto em plena audiência, depois que juízes confirmaram sua sentença a 20 anos de prisão por crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos contra muçulmanos bósnios./AFP
 

04/05/2021
Coronel Redl (Oberst Redl), 1985, István Szabó



Coronel Redl no iutubi aqui 



No início do século 20, Alfred Redl (Klaus Maria Brandauer), um jovem e ambicioso militar, usando as pessoas, surge de um passado como camponês, para se transformar em um importante membro do exército Austro-Húngaro . Porém, quando Redl é enviado como espião no Império Russo, sua missão é comprometida por sua dupla vida secreta como homossexual. Enquando o mundo fica à beira de uma guerra, os muitos inimigos de Redl tramam sua queda.

Mais um belo trabalho da equipe que produziu Mephisto ( 1981 ), desta vez contando a história de um personagem real ( e também inspirado na peça A patriot for me, de John Osborne. Brandauer está magnífico no papel título. Zdenko Tamassy, que já demonstrara sua competência em Mephisto, dá aqui nova aula de como utilizar a música no cinema.
Postado por Eugênio 

07/05/2021
Antonio Gramsci – Os Dias do Cárcere (Antonio Gramsci: i giorni del carcere), 1977, Lino Del Fra

 
Antonio Gramsci – Os Dias do Cárcere no iutubi aqui 

O filme se concentra nos anos em que Gramsci esteve preso, vítima da perseguição do regime fascista de Benito Mussolini. Acompanhamos a relação de Gramsci com os outros presos políticos, a sua posição crítica ao stalinismo, o célebre rompimento com Palmiro Togliatti, do partido comunista italiano, e, principalmente, a criação dos Cadernos do Cárcere, sua monumental obra de ciência política, que analisa a relação entre o Estado e a sociedade civil.




La chienne (A Cadela), 1931, Jean Renoir 


 

Uma das portas de entrada para o Realismo Poético Francês, A Cadela (1931) — obra que seria refilmada como um noir, por Fritz Lang, em Almas Perversas (1945) — é o tipo de filme que deixa o espectador enraivecido por uma considerável parte da projeção. O “triângulo amoroso” formado por Maurice (Michel Simon), Lulu (Janie Marèse) e Dédé (Georges Flamant) tem um ciclo de toxidade e exploração física, financeira e emocional chegando a um ponto da narrativa que fica difícil para o espectador segurar algumas palavras de ordem mental para este ou aquele personagem, basicamente cobrando deles a fuga da situação de infame dependência em que se encontram.

Escrito e dirigido por Jean Renoir e baseado na obra de Georges de La Fouchardière, A Cadela faz um jogo de exposição social dos personagens ao mesmo tempo que investiga e também explora seus desejos, suas ações, seus pecados. Do início até bem avançado momento da narrativa, Maurice é o “cão sarnento” da relação, um homem velho que só desperta a atenção de uma prostituta porque tem dinheiro, passando a ser explorado financeiramente e permitindo-se mais gastos do que seu orçamento o deixava fazer… tudo isso em troca de algum tipo de carinho que, na verdade, não vem. Pelo menos não genuinamente.

Janie Marèse e Georges Flamant

Neste Universo de Renoir — e que seria a marcada do Realismo Poético em narrativa –, a miséria humana é explorada nas mais diversas intensidades, partindo de necessidades distintas de cada personagem. Os dois homens e a mulher que protagonizam a obra sonham com coisas diferentes e acabam sendo forçados por uma força emocional ou por um impulso incontrolável, a buscar a realização de seus sonhos nos lugares menos prováveis, nas pessoas que não lhes trarão felicidade ou realização alguma. As aparências, para os três personagens, são mantidas e cada um deles terá o seu momento de sofrimento, rápida felicidade e ação infame.
Tratando-se de um filme de 1931, ainda é possível encontrar aqui certos elementos do cinema silencioso, como o uso de intertítulos para marcar as muitas passagens do tempo, o que infelizmente quebra partes do andamento narrativo. No todo, o diretor construiu a obra como a representação de um espetáculo teatral, uma ficcionalização da vida que, segundo o mais sério dos bonecos que introduzem a ação, não é nem um cenário moral e trágico (bem… na verdade é), nem uma comédia cheia de valores para transmitir.

A Cadela é um filme com um número absurdo de semelhanças com relacionamentos abusivos que observamos em nosso cotidiano. Aqui os personagens são vistos de maneira desconfiada pela câmera, que sempre procura se afastar dos indivíduos, ampliar a profundidade de campo, contextualizar a todos e fazê-los se perder em meio à multidão, tornando-os “mais um em meio aos que sofrem“. A direção também tem seus momentos de ousadia, como na cena em que Lulu e Dédé dançam uma valsa e lá está a câmera dançando com eles, para então discretamente se afastar e contemplar a cena à distância, preenchendo-a com uma amargura que não deveria haver em uma cena de dança (e digo isso no sentido positivo da construção da cena e de seu significado). 

Em A Cadela, todos os personagens sofrem e fazem sofrer. E a maioria acaba pagando preços muito altos por sustentar essa postura a longo prazo. Assim como na vida, um jogo íntimo de amores, ódio e injustiças pessoais e sociais.

A Cadela (La Chienne) — França, 1931
Direção: Jean Renoir
Roteiro: Jean Renoir (baseado na obra de Georges de La Fouchardière)
Elenco: Michel Simon, Janie Marèse, Georges Flamant, Roger Gaillard, Romain Bouquet, Pierre Desty, Mlle Doryans, Lucien Mancini, Jane Pierson, Christian Argentin, Max Dalban, Jean Gehret, Magdeleine Bérubet

Sobre Janie Marèse (1908–1931): Died in a road accident in the car driven by actor Georges Flamant after completion of the film A Cadela (1931).

Sobre Georges Flamant (1903–1990)

12/05/2021
A regra do jogo (La règle du jeu), 1939, Jean Renoir


 
A Regra do Jogo | França | 1939 | Jean Renoir

Diversas vezes considerado o melhor filme já feito, a comédia “A Regra do Jogo”(França, 1939), de Jean Renoir, foi proibida pelo governo francês, cerca de um mês após o seu lançamento, sob a alegação de ofender os bons costumes. Quando a Alemanha ocupou a França, o partido nazista também censurou a obra e queimou muitas das suas cópias. Mais tarde, os negativos originais foram acidentalmente destruídos. Somente em 1956, foram reunidas partes do filme espalhadas por toda a França, o que permitiu uma remontagem acompanhada pelo próprio Renoir, e, segundo ele, ficou faltando apenas uma pequena cena do corte original. Por todos estes motivos, "A Regra do Jogo" é um filme que todo cinéfilo precisa ver antes de morrer!

Reiterando o que já foi dito acima, aqui está um trecho da matéria assinada pelo jornalista Marcelo Rezende, para a Folha de S. Paulo: "Dos negativos destruídos durante a Segunda Guerra (em 1942) e de um momento ainda distante da aclamação mundial que fez de "A Regra do Jogo" o oponente mais constante de "Cidadão Kane" (1941), de Orson Welles, na disputa ao título de melhor filme já produzido na história." (leia abaixo o texto na íntegra)

Jean Renoir ainda dita "A Regra do Jogo"

Quando Jean Renoir (1894-1979) surge no início de "A Regra do Jogo" -um homem de meia-idade um pouco acima do peso, com uma calvice insinuante- e corre em direção ao piloto André Jurieu, avisa: "Não, ela não virá".
E não é apenas a marquesa de la Chesnaye, o pivô do riso, do amor e da tristeza desse filme realizado em 1939 -de volta agora aos cinemas em nova cópia- que não chegará para iniciar a ciranda da decadência da burguesia francesa.

Renoir anuncia, de maneira involuntária, os anos em que seu filme permanecerá desprezado e incompreendido. A glória, ao menos por enquanto, não virá.
Fala do tempo do esquecimento e da tragédia. Dos negativos destruídos durante a Segunda Guerra (em 1942) e de um momento ainda distante da aclamação mundial que fez de "A Regra do Jogo" o oponente mais constante de "Cidadão Kane" (1941), de Orson Welles, na disputa ao título de melhor filme já produzido na história.


Mas o que fez de Renoir um mito -e em grande parte ou, talvez, totalmente, em consequência de "A Regra"- foi sua capacidade de prever mais.
Para um país que se dividia entre a direita fascista e a esquerda radical, não sabendo ao certo como lidar com encantamento por um regime de força, "A Regra do Jogo" era, nas palavras do próprio Renoir, "uma descrição exata da burguesia de nosso tempo".

Algo que, de alguma maneira, às vésperas da tragédia que foi a guerra, era também o retrato do estrago e de uma certa devassidão. O jovem piloto, antes mesmo de se encontrar com Octave (Renoir o interpreta), já é o novo herói francês por ter atravessado o oceano, solitário, em um avião.
E ele conta que fez tudo não pela glória da França, mas por uma mulher. A mesma que não veio. A dama que está ausente porque é casada com um nobre -ou apenas um milionário com um título de nobreza.

Infidelidade

Aos poucos os detalhes aparecem. O marquês de la Chesnaye (um colecionador de "objetos mecânicos e sonoros") se relaciona amorosamente com alguém mais do que apenas com sua mulher oficial.
Para ele e seu grupo de alta classe, a infidelidade é apenas mais um dado aceitável da vida, que só está sujeito a uma regra: enquanto houver diversão, tudo é aceitável.
Todos os amantes - dos apaixonados aos ignorados - se reúnem para uma temporada no campo. E, após bailes, teatro caseiro e uma caçada, a tragédia, motivada pela mágoa, acontece.

Um drama de dimensões épicas? Rigorosamente, não. Filho do pintor Auguste Renoir, a educação de Jean se deu na aceitação de que não há dogmas. Há superação. "Penso que a novidade no filme de Renoir está em uma conjunção de gêneros. Renoir sabe que na vida a tragédia se mistura com o burlesco, e o cômico, com o heróico. O grande mérito de 'A Regra do Jogo' é reunir esses gêneros que se acreditava inconciliáveis", escreveu Marcel Lapierre na estréia.

Mas a aceitação do talento de Renoir foi custosa. Quando chegou aos cinemas, foi um fracasso. Tentou outra vez em 1948 (uma cópia foi achada em 1946) e, mais uma vez, foi rejeitado. A versão que vemos agora é de 1965, sonhada pelo cineasta e viabilizada com a ajuda do crítico francês André Bazin.
Para o diretor François Truffaut, um pouco da história da rejeição vem do fato de que a "Regra do Jogo" é o filme dos cineastas e, por consequência, dos amantes alucinados do cinema.
Sua iluminação não nasce do manejo original da técnica ou do efeito. Não há um destaque ou um motivo isolado.

"A Regra do Jogo" só acontece quando todos os elementos -especialmente o carinho de Renoir pelos seres que parece desprezar- se unem. Da encenação à angulação correta da câmera.
Enfim, o trabalho de um gênio selvagem, como notou rapidamente um brasileiro que, por acaso, visitava Paris em 1939. Seu nome, Paulo Emilio Salles Gomes.

14/04/2021
O Cavalo de Turin (A torinói ló), 2011, Bela Tar


O cavalo de Turim no iutubi aqui 

Com planos longos, 'O Cavalo de Turim' merece ser visto de joelhos

O húngaro Béla Tarr https://www.imdb.com/name/nm0850601/?ref_=tt_ov_dr
é um dos maiores cineastas contemporâneos. Herdeiro de Andrei Tarkovski e do cinema novo húngaro da década de 1960, chegou à plenitude de seu estilo com a obra-prima "Sátántangó", de 1994.
Por isso é um acontecimento o lançamento, ainda que tardio, de seu último longa, "O Cavalo de Turim" (2011), no circuito comercial paulistano. Não importa o atraso. O filme merece ser visto de joelhos. Desde o início, quando é narrada, com a tela em negro, a história pela qual passou Nietzsche em Turim.
Num passeio, o filósofo se apiedou de um cavalo que estava sendo maltratado, entrando em surto que durou até sua morte, dez anos depois.

Logo depois desse episódio narrado de modo soturno, vemos um cavalo conduzindo um homem em uma carroça. É um plano de quatro minutos e meio, executado com uma música solene ao fundo, que nos faz entrar no mundo cinematográfico construído cuidadosamente. Um mundo de tempos lentos, densidade narrativa, personagens mudos e taciturnos em um preto e branco assombroso.
Talvez seja bom explicar que Béla Tarr, como Tarkovski e Kenji Mizoguchi, é antes de tudo um cineasta do plano. Ou seja, dessa unidade pertencente a uma cena e localizada entre dois cortes.
Se num filme comercial um plano geralmente dura entre dois e dez segundos, os planos de Béla Tarr costumam ultrapassar um minuto, e por vezes têm muito mais. Consequentemente, cada plano é muito bem pensado e realizado.


Em "O Cavalo de Turim", temos um homem, o dono do cavalo, que mora com sua filha numa casa isolada. Eles vivem quase sem contato com a humanidade e parecem esperar alguma coisa.
Dias melhores? A escuridão eterna? O apocalipse? Não é o tipo de filme que entrega soluções dramatúrgicas convencionais para apaziguar nossos corações.
O espectador verá que a resposta é coerente com o cinema sempre instigante e reflexivo de Béla Tarr. E com a informação de que este longa, infelizmente, é sua despedida do cinema. 





15/05/21

O Tango de Satã (Sátántangó), 1994, Bela Tarr



Sete horas de tango satânico


O acontecimento cinematográfico do ano em Belo Horizonte tem dia, hora, lugar e tempo de duração marcados. Amanhã, às 14h30, no Oi Futuro Klauss Vianna, começa a projeção de "Sátántangó", filme monumental do diretor húngaro Béla Tarr, com 7 horas e 30 minutos de duração - divididas em 12 partes e dois intervalos. O longa, em película 35mm, foi trazido à capital pela produtora Zeta Filmes para a retrospectiva de Tarr, uma das atrações da mostra Indie 2011, cuja programação segue até a próxima quinta-feira.
Lançado em 1994, "Sátántangó" (em português, seria "o tango de Satã") adapta o romance de László Krasznahorkailogo. O autor colaborou no roteiro do filme.


O enredo acompanha o cotidiano numa fazenda coletiva da Hungria que entra em colapso durante um rigoroso inverno. Ao mesmo tempo em que os trabalhadores recebem uma quantia financeira como indenização, eles ficam temerosos ao saberem que um antigo morador do local - com fama de feiticeiro e bruxo - estaria voltando.
"Sátántangó" foi considerado a obra-prima de Tarr, diretor cuja carreira se iniciara em 1977 com "Ninho Familiar" e tivera uma primeira grande guinada em 1987 com "Maldição" (também conhecido por "Danação" ou "Condenação"). O filme foi recebido com entusiasmo nos meios culturais, incluindo um ensaio elogioso da escritora Susan Sontag (1933-2004), no qual ela o considerava "devastador e apaixonante em cada minuto de suas sete horas". E completava: "Eu ficaria feliz em vê-lo todos os anos pelo resto da minha vida".

Apocalipse. Para Ranieri Brandão, crítico de cinema e editor da revista eletrônica Filmologia, é em "Sátántangó" que Tarr atinge a plenitude narrativa, tanto material quanto espiritual. "É aqui que, finalmente, aquela espécie de ‘frações de mundo’ de seus outros filmes se acomodam numa narração mais pautada, mais limpa e controlada pelo diretor", frisa Brandão. O crítico aponta um caráter de apocalipse iminente em toda a obra de Béla Tarr, cujo ápice se dá em "Sátántangó". Brandão acredita que o tom de fim do mundo se deva à queda do comunismo na Hungria, ocorrida em 1989 após 42 anos de regime.

"Essa mudança histórica serviu ao filme para o estabelecimento do cenário, o clima de abandono, a deterioração dos espaços no país", afirma o crítico. "O mundo que se abre para a Hungria de Tarr, depois do regime, é extremamente misterioso e material demais e está explicitado nas paredes descascadas e sujas".
Béla Tarr - hoje com 56 anos de idade e, segundo ele mesmo revelou no Festival de Berlim em fevereiro deste ano, aposentado do cinema depois de "O Cavalo de Turim", seu filme mais recente (e incluído no Indie) - diz ter se inspirado na cadência do tango para estruturar o filme, com a ideia de seis passos para a frente e seis para trás. O ritmo está impresso no desenvolvimento marcadamente redundante dos personagens e na própria separação em 12 capítulos. Esteticamente, o filme leva ao ápice o rigor do cineasta. Não apenas pelas mais de sete horas de duração, mas pelo ritmo racionalista, de planos fixos e movimentos de câmera lentíssimos, enquadrados pela fotografia em preto e branco de Gábor Medvigy.


"Tarr talvez queira dizer muito pouco, mas a intensidade do que diz faz valer cada minuto", escreve a curadora Francesca Azzi no catálogo do Indie. "Cada evento (no filme) é contado mais de uma vez, sob um outro ponto de vista, criando um quebra-cabeças engenhoso e soturno".

Erika Bók: Erika Bók is an actress, known for O Cavalo de Turin (2011), O Homem De Londres (2007) and O Tango de Satã (1994).


“Time is very cruel, only some films survive” – Béla Tarr on Sátántangó at 25

A Tribute to Béla Tarr - Light and Darkness  https://www.youtube.com/watch?v=Hp_d80WdgGc 

 "Without light in the darkness you cannot make movies." - Béla Tarr
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Mais sobre O Tango de Satã 
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad (UFG/RC)


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28/05/21
O Homem De Londres (A londoni férfi), 2007, Béla Tarr, Ágnes Hranitzky (co-director) 



O Homem de Londres, 2007
Maloin (Miroslav Krobot), um vigilante numa zona portuária, observa uma luta entre homens que culmina na queda de um dos homens ao mar, enquanto o outro, Brown (János Derzsi), foge. Quando Maloin acorre ao local, tudo o que encontra é uma mala, contendo dinheiro. No dia seguinte, na taberna, Maloin ouve o inspector Morrison (István Lénárt) confrontar Brown, dizendo-lhe que sabe que ele que roubou dinheiro e o quer de volta. Tal perturba Maloin que tem de decidir o que fazer com o dinheiro encontrado, enquanto vai espalhando o seu nervosismo para cima da esposa Camélia (Tilda Swinton) e da filha Henriette (Erika Bók).

Análise:

Em 2007, Béla Tarr, continuando a sua internacionalização, filmou parcialmente em França um filme adaptado de um livro do célebre escritor policial belga Georges Simenon. Tratou-se, mais uma vez, de uma co-produção envolvendo vários países, e com argumento escrito a meias com o seu habitual colaborador László Krasznahorkai, e usando principalmente actores húngaros, a que se juntavam o checo Miroslav Krobot e a inglesa Tilda Swindon.

Foi a aproximação de Tarr ao imaginário do Film Noir, numa produção marcada por dificuldades, entre as quais o suicídio do produtor Humbert Balsan. Os cortes financeiros levaram à perda de alguns dos sets em plena rodagem, e dificuldades técnicas como ruídos constantes obrigaram à dobragem de todas as vozes (em inglês e francês), a qual correu mal. A história foca-se em Maloin (Miroslav Krobot), um trabalhador numa zona portuária, interface com linhas de ferro, onde serve de vigia. Numa noite, Maloin testemunha altercações violentas entre alguns homens, que resultam na queda de um ao mar. Quando se aproxima, Maloin descobre uma mala, que recolhe, e se revela estar cheia de dinheiro.
A suspeita de que está a ser vigiado por um dos homens, de nome Brown (János Derzsi) enerva Maloin, sentindo culpa e medo, o que o torna irascível em casa, para com a esposa Camélia (Tilda Swinton) e a filha Henriette (Erika Bók). Na taberna que frequenta, Maloin ouve uma conversa entre o inspector inglês Morrison (István Lénárt) e Brown, com o inspector a acusar Brown de ter roubado o dinheiro. Mais tarde Morrison visita Maloin no seu posto de trabalho, para inquirir sobre o que este poderá ter visto na noite do roubo.

No dia seguinte Maloin encontra, na mesma taberna, Morrison a interrogar a esposa de Brown (Ági Szirtes), que ele ameaça pelo não cumprimento do marido. Em casa, Henriette diz ao pai que encontrou um homem na cabana junto ao mar, e fechou-o lá dentro. Maloin vai à cabana, entra e sai visivelmente perturbado. Procura então Morrison, devolve o dinheiro, e confessa ter morto Brown. Morrison confirma que Brown morreu em luta com Maloin na cabana deste, e regressa, com dois envelopes, um para Maloin, que para ele agiu em legítima defesa, e merece parte da recompensa pelo dinheiro encontrado, e outro para a agora viúva de Brown, a quem ele pede desculpa.

Mantendo as características do seu cinema, feito de longos planos-sequência, onde a montagem parece ausente, Tarr deixa os personagens comportarem-se num realismo que os torna quase irrelevantes para a câmara, que nem sempre os acompanha. Os ritmos continuam lentos, e as interpretações minimalistas, com grandes planos a deixarem ao espectador o preenchimento dos espaços, que são o interior dos personagens. Há, no entanto, em “O Homem de Londres”, uma maior formatação num modo convencional de filmar, estruturado numa narrativa mais coesa que nos filmes precedentes de Tarr, que se preocupa mais com uma psicologia pessoal, que com um difuso realismo social de características metafóricas. Talvez por isso, o filme foi um pouco mais mal recebido pela crítica que os dois anteriores.
Como dito atrás, é o universo Noir que marca “O Homem de Londres”. Se ele está implícito na obra de Simenon, através dos olhos de Maloin (com a perspectiva do espectador a confundir-se muitas vezes com a do personagem), é claro estarmos na presença de alguém, alheado da sua sociedade, em conflitos internos (como se vê na sua interacção com a família), e que decide por conta própria os assuntos que o ultrapassam. Maloin entra na história do dinheiro roubado por acaso, decide ficar com ele, alheando-se de moralidade ou consequências, e é quase por acaso que sai também da história, quando confrontado com Brown, sem o esperar.

Dir-se-ia que há duas histórias em Maloin. Por um lado a sua, com uma casa para manter, e o futuro de uma filha a decidir, entre discussões e incompreensões. Por outro a história da mala de dinheiro, que é para ele (como para nós) apenas um acaso, algo a que ele não pertence, e que não o leva a planear, agir, entusiasmar-se. Tarr mantém, como habitual, uma fotografia nublada, de cinzentos húmidos e escuros, onde a imagem é ela própria perpetradora de distância, frieza e cinismo.
A mesma história de Simenon resultara já nos filmes “L’homme de Londres” (1943) de Henri Decoin in 1943, e “O Porto da Tentação” (Temptation Harbour, 1947) de Lance Comfort.

19/05/21
Hacker (Blackhat), 2015, Michael Mann



O hacker não é um “personagem” da cibercultura que exerce papeis apenas negativos, tal como muitos filmes e reportagens divulgam na mídia. Para compreender o desenvolvimento deste filme, por exemplo, é preciso que o espectador saiba diferenciar a tríade Black Hat, White Hat e Gray Hat, termos que designam o grau de periculosidade dos indivíduos que acessam sistemas computacionais sem que os seus donos tenham plena consciência disso. São termos que abrem precedentes para discussões polêmicas acerca do popular uso da cor “preta” há eras para designar coisas negativas, tópico que não será levado em consideração aqui para evitarmos dispersões e outros encaminhamentos para a reflexão cinematográfica e cibernética, combinado?

O Black Hat é o que podemos chamar de “hacker do mal”, estereótipo bastante presente nas produções que apresentam a internet como o espaço do perigo constante. Ele é o foco de Hacker, dirigido por Michael Mann, cineasta guiado pelo roteiro de Morgan Davis Foehl. Eles enganam robôs, burlam algoritmos e causam devastações, tais como a manipulação dos reatores e os demais desastres abordados no filme em questão, protagonizado por Chris Hemsworth. O Gray Hat é, como o próprio nome nos dá a entender, aquele que fica em posição intermediária. No caso do White Hat, temos os manipuladores de sistemas que agem de maneira favorável á ordem, digamos assim, direcionado por leis e diretrizes, sem ferir a ética, etc.

Estes não são conceitos rígidos, por sinal, mas uma ideia geral para que não caiamos no erro de considerar o hacker, na figura de um personagem de cinema, como uma entidade maligna em prol da destruição alheia, etc. Os maliciosos, na verdade, são chamados de crackers, os verdadeiros vilões da ordem estabelecida em sociedade, figuras rebeldes que agem conforme o que se convencionou chamar de terrorismo. No geral, todos eles, dos bonzinhos aos maléficos, carregam em si os estereótipos já cristalizados pela indústria cinematográfica, isto é, pessoas com atividade social reduzida, vaidosos em relação ao que produzem e são capazes, pesquisadores natos, nerds com mania de experimentação constante, arredios quando o assunto são as regras denominadas por instituições.

É aqui que adentramos na narrativa dirigida por Michael Mann, um filme de ação repleto de elementos típicos de seu cinema. O uso de CGI é reduzido ao mínimo e quando solicitado, atende as alegorias dramáticas da narrativa, sem precisar disfarçar falhas de conteúdo, como acontece constantemente no cinema de ação hollywoodiano, visualmente deslumbrante, mas muitas vezes estéril dramaticamente. Um plano situacional passeia por cabos de internet e adentra o espaço interno de um computador, num passeio visual que representa o modo interno de funcionamento de um software e o seu colapso diante da ação de um malfeitor.

Assim somos apresentados ao personagem-título: Nick Hathaway (Hemsworth), um homem condenado a 15 anos de prisão por cometer crimes que violaram leis cibernéticas. As coisas podem mudar quando parte de um código criado por ele logo no começo de suas interações na internet são identificadas na ação de um hacker que agiu contra o sistema de uma fábrica chinesa e transformou a economia dos envolvidos num caos sem precedentes. É Chen Dawai (Archie Kao) que identifica falhas na investigação do FBI durante a apresentação de um relatório. Parte integrante do processo, ele aponta os problemas que segundo a sua opinião, não seriam cometidos nem por estagiários, o que pede a presença de Nick para a solução. Ele enxerga na situação a verdadeira resolução do problema, mas também uma alternativa de transformar a vida do detento.

Explicando: eles são amigos e no passado, na fase estudantil, desenvolveram o tal código juntos. Diante do exposto, Shum pede para Carol Barret (Viola Davis), uma das orquestradoras da investigação, a liberação de Nick por meio de negociações. Inicialmente, a oferta envolve a liberação do esquema prisional durante a investigação e resolução do caso. Ciente de seu potencial, o prisioneiro só aceita colaborar se for solto e ao resolver a crise, ter a sentença reduzida. Há algum constrangimento e resistência, mas o FBI não enxerga outra possibilidade. Henry Pollack (John Ortiz) assume o papel do chefe de Barret, questionador das decisões da investigadora, mas sempre na colaboração para o avanço dos processos.
Hemsworth interpreta adequadamente uma figura que tal como conhecemos pela representação ficcional e midiática, é o indivíduo com dedicação exclusiva aos processos que envolvem a sua função de reconhecer e transformar aspectos internos de programas e redes, tendo em vista buscar soluções para problemas que envolvem conhecimentos muito específicos, dominado por poucos, dai o seu valor de troca mercadológico. No caso do hacker de Hemsworth, temos um homem que negocia a sua sentença por saber a importância que a resolução do caso tem para vários setores da sociedade, do político ao econômico, não apenas nos Estados Unidos, mas no âmbito das necessárias relações internacionais que envolvem o caso para o qual foi convocado.

Vistoriado constantemente por Jessup (Holt McCallany), Nick é a representação da rebeldia. Ele não acata ordens da maneira como são estabelecidas. Mexe onde não deve, afronta Barret, mas depois se aproxima da personagem, age de maneira arrogante, justamente por saber da sua importância para o que está em jogo entre os estadunidenses e chineses, além de se envolver amorosamente com a irmã do amigo, Chen Lien (Wei Tang), relação que ora surge como dispersão, ora nos reforça que pode ser algo positivo para o personagem que veste a camisa do estereótipo nerd, mas guarda consigo mesmo um circuito interno de sentimentos.
Interessante observar como a personagem feminina, tal como a presença de Carol Barret, não explora estereótipos femininos frágeis e incautos. São mulheres fortes em suas dinâmicas internas no desenvolvimento da história que sai dos Estados Unidos e alcança dimensões globais ao passo que a investigação se torna mais acirrada, perigosa e complexa no encontro de soluções. Há estragos que não podem ser solucionados e você, caro leitor, provavelmente já teve uma experiencia cibernética dentro desta perspectiva, nem que seja pelo caminho mais simplório da perda de dados não recuperados por um vírus. Quem nunca? Sair da prisão, ser parte central da investigação de um tema que quase ninguém domina e ter em volta todo o aparato tecnológico para acionar comandos e interpretar os problemas não garante ao hacker de Hemsworth as respostas que ele espera encontrar. A sua proposta redenção também pode torna-lo um errante.

Para nos contar a sua história, Michael Mann depende bastante do design de produção de Guy Hendrix Dyas, cuidadoso nos pormenores visuais, gestor da direção de arte, da cenografia, dos figurinos e dos efeitos visuais condicentes com a temática cibernética, setor que coaduna com as escolhas da direção de fotografia de Stuart Dryburgh, profissional bem direcionado pelo cineasta que comanda a produção, veterano conhecido por empregar um estilo visual próprio aos seus filmes. Há, constantemente, traços iconográficos futuristas, material típico de filmes que abordagem a cibercultura em seus desdobramentos temáticos. O néon se faz presente como elemento adicional nas cenas mais escuras, ora sozinho como parte da escuridão, ora em confluência com os feixes luminosos que representam uma sociedade em conexão constante.

Conduzidos pela música eficiente de Harry Gregson-Williams, Hacker é também um trabalho primoroso de som, setor que atenua os efeitos dramáticos da história por meio de seu design sonoro ao longo dos 133 minutos de narrativa. O tempo de duração, demasiadamente extenso, prolonga arcos que funcionariam melhor caso fossem mais econômicos. A sensação é a de término do filme em alguns momentos, algo que nos surpreende quando a produção resolve continuar e esticar um pouco mais as situações, prolongamento prejudicial, mas que não desmerece a qualidade geral da produção e suas discussões sobre política, jogos de poder, manipulação midiática, impactos da tecnologia na vida cotidiana das pessoas comuns e dos poderosos, dentre outras abordagens voltadas ao que se reflete sobre cibercultura e sociedade.

Ademais, Hacker é a representação cabal do poder gigantesco nas mãos de apenas um indivíduo que ao acionar a tecla “enter”, pode devastar o que almeja em proporções inimagináveis. É o poder nas mãos de poucos, algo apenas imaginado na cultura prévio ao processo de democratização e popularização da internet. Ora revolucionários, ora desordeiros e inimigos do poder público, os hackers estabeleceram uma nova forma de gerir os sistemas computacionais. Interessante que a produção foge do otimismo comum ao cinema que pretende colocar todas as peças no lugar e estabelecer a ordem no desfecho de suas histórias, tendo em vista deixar as plateias mais tranquilas ao sair da sessão. As escolhas em Hacker não seguem bem esse caminho fácil, demonstração cabal da presença de problemas crônicos e circulares que assolam a atual Era da Informação.

20/05/21
Union Pacific (Aliança de Aço), 1939, Cecil B. DeMille 


Um dos melhores westerns já realizados até hoje tem como tema a construção da estrada de ferro que, pouco antes de 1870, possibilitou aos trens expressos rodarem do Pacífico a Nova Iorque. Estimulados por enormes prêmios governamentais, duas empresas rivais não respeitam a vida dos operários, nem os deus nem os dos outros, nem búfalos nem índios, e correm os piores riscos, tendo bandidos a seu serviço. Cecil B. De Mille, o pioneiro de Hollywood, simpatizava profundamente com esses antigos pioneiros do Pacific Express. Multiplicando as cenas ao estilo de grande espetáculo, realizou um filme absorvente, estuante da vida e força selvagem. . (Georges Sadoul, 1993. Dicionário de filmes. p. 24, L&PM)


21/05/21
Crime e Castigo (Crime and Punishment), 1935, Josef von Sternberg



Crime e castigo no iutubi aqui 


Há quase todos os problemas que possamos imaginar nesta versão hollywoodiana dirigida por Josef von Sternberg, mas tem um grande Raskolnikov: Peter Lorre. Só lhe deram na vida três papeis que aproveitaram todo o seu talento - o assassino de crianças em M, o vampiro de Dusseldorf, o herói de Máscara de fogo e este Raskolnikov admiravelmente sugestivo e espirituoso... (Pauline Kael. 1001 noites no cinema. p. 121, Companhia das Letras, 1994.)