Luis Fernando Veríssimo na crônica "Matem o cavalo!" publicada em O Globo de 22/11/2007, trata de como são perigosos os símbolos representativos dos ídolos populares. É preciso trucidar a sua memória, emporcalhar a sua legenda e apagar qualquer vestígio simbólico da sua rebeldia, escreve Veríssimo. No filme Viva Zapata (1952) dirigido por Elia Kazan, escrito por John Steinbeck, com Marlon Brando no papel do revolucionário mexicano, o intelectual Fernando Aguirre (interpretado por Joseph Wiseman) antigo aliado dos zapatistas trai o guerreiro e insiste para que os soldados não deixem escapar com vida o cavalo branco de Emiliano Zapata. "Matem o cavalo! Matem o cavalo" grita em vão. A última cena do filme é a do cavalo branco solto numa montanha, um símbolo não muito sutil do espírito que sobreviveu ao sacrifício do dono para inspirar outras gerações e outras revoltas. O intelectual entende que símbolos são perigosos e que não basta abater o homem para anular o exemplo.
O irônico ou o trágico da história: "Zapata" foi o nome escolhido para uma das empresas de George Bush, o pai. Arrisco uma explicação: é porque George, texano, gostava das botas e do chapéu do Emiliano.
Na recente execução de Osama Bin Laden (maio de 2011) a operação militar da Marinha dos EUA tinha qual nome? GERÔNIMO. Foi com o código "Geronimo-E KIA", uma contração de "Geronimo Enemy Killed in Action" (Inimigo morto em ação), que a Casa Branca recebeu o comunicado da missão do comando das forças militares.
Sobre o tema Jânio de Freitas escreveu na Folha de São Paulo de 05/05/2011: "O nome-código dado a Bin Laden para a comunicação de sua morte à Casa Branca –Gerônimo - não suscitou curiosidade até agora. Mas sua escolha tem significações ricas. Não é nome de brancos nem de negros americanos, em tempo algum. É nome indígena. Foi o nome de um dos mais ou o mais bravo chefe a resistir, e vencer muitas vezes, às tropas que conquistavam terras da América do Norte para os colonizadores com o genocídio dos habitantes originais. Gerônimo foi transformado em objeto de ódio branco que lhe deu lugar destacado na história das guerras dos Estados Unidos listadas pelo Departamento de Defesa. Chamar Bin Laden de Gerônimo foi injustiça com o dono autêntico do nome, mas o conceito de justiça parece aplicar-se, no episódio atual, apenas às afirmações de Obama e de Bush, segundo os quais a morte do terrorista fez justiça."
Loretta Tuell, assessora chefe do Comitê de Assuntos Indígenas do Senado dos EUA lamentou "O emprego impróprio de ícones da cultura indígena é muito comum em nossa sociedade. Suas consequências sobre o espírito das crianças indígenas e não indígenas é devastadora".
O espírito indianismo hostil nos Estados Unidos remonta aos primórdios do cinema em Hollywood. Os filmes tratavam os índios como bandidos assassinos e não como rebeldes que lutavam por terras e alimentos. Índio bom é índio morto. No entanto a partir da década de 1970 alguns filmes produzidos em Hollywood fizeram um mea culpa. Cito dois: Pequeno grande homem (Little big man) de 1970 dirigido por Arthur Penn e Gerônimo: uma legenda americana (Geronimo: an american legend) de 1993 dirigido por Walter Hill. Recomendo este último para entender Gerônimo, o rebelde com causa.
Goyathlay, mais conhecido pelos brancos como Gerônimo (1829 – 1909), era um apache bedonkohe. Depois de um tempo considerava-se um chiricahua. Viveu com sua gente entre o sudoeste dos EUA (Arizona) e nordeste do México. Os apaches lutaram décadas contra a imposição pelos brancos de reservas tribais. Além de Gerônimo, nestes embates são notórias as figuras de Cochise (1815 – 1874) e Victorio (1825 -1880). A história mostra que os indígenas, ao contrário do senso comum, depois de muita luta queriam viver em paz. Assinaram acordos com o governo que geralmente eram descumpridos. Houve tentativas de apaziguar os rebeldes. Lideranças ligadas ao exército tentaram cumprir os acordos firmados. Eram os "corações divididos". Cito alguns: General George Crook, John Clum, Hugh Scott. Mas os gaviões de Washington não eram divididos. Queriam o confinamento dos rebeldes, seus seguidores e familiares.
No livro Dee Brown, Bury my heart at Wounded Knee, (Enterrem meu coração na curva do rio, L&PM, 2010) relata um depoimento singular do General Crook: "Com todos os interesses que estão em jogo, não podemos nos dar o luxo de combatê-los (os apaches). Somos culpados demais, como nação, pela situação atual. Isso quer dizer que devemos mostrar-lhes que doravante serão tratados com justiça e protegidos da invasão dos brancos." No filme Gerônimo, uma legenda americana, um dos "corações divididos", (Britton Daves, interpretado por Matt Damon), ao final da Campanha Gerônimo, conclui: "Transporto na memória aqueles dias de coragem e crueldade, de heroísmo e engano. Ainda tenho de enfrentar uma verdade inquestionável: um modo de vida que durara milhares de anos tinha terminado."
O final da história: Gerônimo e outros guerreiros foram prisioneiros em 1887 e confinados na Florida. Ele nunca retornou à terra onde nasceu. Morreu de pneumonia em 1909 e enterrado como prisioneiro de guerra. Os chiricahuas estavam marcados para a extinção; haviam lutado demais para que mantivessem a liberdade.
Diz a lenda que ao se ver encurralado na borda de uma ribanceira, Gerônimo, em vez de se render, tomou impulso e saltou, montado em seu cavalo. Na queda, antes de afundar no pequeno rio que passava lá embaixo, o índio gritou seu nome com toda a força: "Gerônimooooooooo!". Ele e o cavalo se recuperaram da queda e escaparam a galope.
Gerônimo (e seu cavalo) se foi, mas o herói é reverenciado até hoje em qualquer lugar do mundo. Mas não tenho dúvida, é uma canalhice associar o seu nome com à execução de Bin Laden.
Edson Pereira Cardoso
Maio de 2011
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