segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Sight and Sound e os melhores filmes do mundo

Lista de melhores filmes mais famosa do mundo expressa ideologia de cada época

De 'Ladrões de Bicicleta' a 'Jeanne Dielman', escolhas da revista Sight and Sound refletem questões políticas e de mercado 

Filipe Furtado, FSP, 15/12/2022

Crítico de cinema, fundador da revista Abismu e do blog Anotações de um Cinéfilo

[resumo] Nova lista dos melhores filmes do cinema, da revista Sight and Sound, traz as mudanças mais drásticas da história da tradicional votação. Pela primeira vez um filme dirigido por uma mulher, Chantal Akerman, chega ao topo, e obras experimentais e mais recentes ganham espaço enquanto a produção comercial dos EUA pré-1970 perde posições, o que reflete as demandas dos tempos atuais por mais inclusão e uma nova leitura do cânone cinematográfico.

No início deste mês, a tradicional revista britânica Sight and Sound publicou sua mais recente pesquisa sobre os cem melhores filmes da história do cinema. Não é uma pesquisa qualquer: a revista realiza uma nova versão dela a cada dez anos, desde 1952.

A abrangência e a regularidade conferiram à lista um peso de autoridade que a distinguem de outros esforços similares, mesmo que seja saudável suspeitar de eventos desse tipo. É natural, portanto, que a cada nova divulgação da pesquisa sejam retomados debates acerca de mudanças no cânone cinematográfico.

Não foi diferente neste ano. Das oito listas já produzidas pela revista, talvez esta de 2022 tenha despertado mais polêmica, uma vez que nenhuma anterior trouxe mudanças tão drásticas. A começar pelo primeiro lugar, "Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelas" (1975), filme da cineasta belga Chantal Akerman.

Trata-se de um grande filme, porém bem mais desconhecido que os três clássicos que lideraram a pesquisa em edições anteriores —"Ladrões de Bicicletas" (1948) em 1952, "Cidadão Kane" (1941) de 1962 a 2002 e "Um Corpo que Cai" (1958) em 2012.

Na atualização recém-divulgada, "Um Corpo que Cai" foi para a segunda posição, e "Cidadão Kane", para a terceira. Completam o top 10 "Era uma Vez em Tóquio", de Yasujirô Ozu, "Amor à Flor da Pele", de Wong Kar-Wai, "2001: Uma Odisséia no Espaço", de Stanley Kubrick, "Bom Trabalho", de Claire Denis, "Cidade dos Sonhos", de David Lynch, "Um Homem com uma Câmera", de Dziga Vertov, e "Cantando na Chuva", de Gene Kelly e Stanley Donen, nesta ordem.

Metade deles não constava no topo da lista de 2012, como os três lançados nos últimos 25 anos. No geral, um quarto dos cem filmes foi renovado. Simbolicamente, "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir, o único filme que se manteve no top 10 em todas as edições anteriores, ficou agora em 13º.

Em vista desse resultado, sobraram comentários sobre a lista ser modista ou política, ou que o primeiro colocado seria muito elitista, ou ainda a respeito da ausência de mestres do passado. Reclamou-se também que os editores da revista expandiram demais o universo de votantes. Foram neste ano 1.639 críticos, programadores, curadores, arquivistas e acadêmicos participantes, número recorde na história da lista, cada um enviando seus dez filmes preferidos — contribuí para as duas últimas edições.

Eleger os maiores filmes de todos os tempos será, necessariamente, um gesto incompleto. O cinema é muito rico para ser resumido em cem títulos. Desconfiar de cânones, portanto, é inevitável, embora eles sejam úteis, nem que seja para tentar derrubá-los. Cânones são conservadores. Uma pesquisa como a da Sight and Sound será sempre a afirmação de uma tradição.

Listas individuais oferecem um prazer maior da descoberta e do exercício lúdico, enquanto ao cânone cabe este papel pesado da afirmação e dos questionamentos. O seu valor institucional é colocado em questão pelas reações a favor e contra.


Listas como a da Sight and Sound têm duas grandes funções. No lado prático, oferecem um agrupamento fértil de filmes para quem deseja traçar um caminho pela história do cinema. Independente de minhas preferências pessoais, posso afirmar que um leitor da Folha que resolvesse passar os próximos dois anos assistindo a um filme da pesquisa por semana teria uma experiência rica.

Os mais cínicos diriam que é uma boa peça de promoção; como otimista, prefiro enxergá-la pelo seu valor pedagógico, mas no fundo se trata de ambas as coisas.

Por outro lado, listas são úteis para um mapeamento de tendências e olhares. A intersecção entre gosto individual e a mão do mercado é visível, mas difícil de aferir por completo. Um dos sinais mais notáveis da pesquisa da Sight and Sound é uma redução do cinema americano produzido pelos grandes estúdios.

Podemos especular que isso decorre dos efeitos dos serviços de streaming e do descaso dos estúdios americanos com a sua própria história, em favor de produções recentes. Os filmes americanos de médio ou grande orçamento parecem existir hoje menos dentro de um contínuo da história do que em outros tempos.

O cinema comercial americano dos anos 1970, por exemplo, perdeu espaço na lista —vários títulos famosos, como "O Poderoso Chefão 2" (1974), "Nashville" (1975) ou "Chinatown" (1974) foram trocados por conterrâneos de fora da indústria, como "Wanda" (1970), 48º, e "O Matador de Ovelhas" (1977), 43º. Pela primeira vez esses filmes americanos não sugerem um momento áureo a se retornar, mas uma extensão do cinema dito clássico dentro deste cânone.

É uma tendência que também aponta uma preferência por cineastas de fora da indústria e menos ligados ao cinema comercial. A ideia popularizada pela crítica francesa dos anos 1950, do cineasta que consegue impor sua visão de mundo por dentro do sistema, parece em desuso. Howard Hawks, o grande exemplo da política dos autores ao lado de Hitchcock, foi uma das ausências mais mencionadas.

No geral, a lista fez um movimento na direção de títulos mais novos. Todas as décadas até 1970 tiveram o número de títulos reduzidos, enquanto todas a partir dos anos 1980 aumentaram sua representação.

A presença excessiva de filmes muito recentes, como dois vencedores do Oscar da última década, "Parasita" (2019), em 90º, e "Moonlight" (2016), em 60º, parece-me um dos pontos fracos, uma correção exagerada em relação a 2012, cuja lista foi acusada de dar as costas ao contemporâneo.

A mão forte do mercado é notável principalmente na predominância de filmes que circularam em cópias digitais restauradas nos últimos anos ou lançados em Blu-ray. Em suma, as chances de um filme se reduzem drasticamente sem uma cópia de alta definição. Minutos após a divulgação da pesquisa, a Criterion Collection, selo de home video mais prestigioso do mundo, anunciou com pompa nas suas redes sociais que tem direitos sobre cerca de metade dos filmes, uma centralidade bastante incômoda.

Questões ideológicas impactam o resultado desde sempre. Não fossem os traumas causados pela Segunda Guerra, a lista de 1952, a primeira da revista, não teria "Ladrões de Bicicleta", com seu aparente realismo, em 1º lugar, enquanto "Cidadão Kane", com seus excessos efeitos visuais, figurava em 11º. Em 1962, a presença do recém-lançado "A Aventura" (1960) em 2º lugar indicava um gesto de afirmação aos cinemas novos.

Discussões sobre diversidade foram muito recorrentes nos meios da crítica de cinema dos últimos anos, e a lista da revista britânica reflete este desejo por buscar um cânone mais plural. O peso dos curadores de festivais, a quem com frequência é depositado o dever de conduzir este processo, é bem visível, muitas vezes maior que o da crítica tradicional.

Defensores de um cânone mais clássico por vezes ignoram as forças ideológicas que ajudaram a formar suas preferências. Os partidários de um novo cânone são bem mais conscientes de tais processos, mas nem sempre reconhecem o papel do mercado sobre ele.

Se algo me parece decepcionante na lista de 2022 é como o chamado sul global permanece ignorado. Há somente um filme da Tailândia ("Mal dos Trópicos", 95º), Índia ("A Canção da Estrada", 35º), Irã ("Close Up", 17º) e dois do Senegal ("Touki Bouki", 66º, e "A Negra de...", 95º). É muito pouco.

Um cânone que se deseja plural não pode excluir por completo o cinema latino-americano ou dar tão pouco espaço ao sul da Ásia ou ao cinema africano. A falta de interesse em promover um cinema fora dos grandes eixos de produção resulta em uma falta de curiosidade por ele.

A presença de "Jeanne Dielman" em primeiro lugar é, com certeza, a maior novidade da lista. Assim como "Kane" ou "Um Corpo que Cai", o filme de Akerman está entre os maiores já feitos, e trata-se de uma escolha crível entre muitos candidatos justos, ainda mais em uma pesquisa que reforçou a presença de um cinema mais experimental.

"Ladrões de Bicicleta" apontava para o triunfo de um cinema nobre e humanista, enquanto "Cidadão Kane" e "Um Corpo que Cai" representavam a vitória da personalidade do artista dentro da indústria, sem deixar de afirmar as possibilidades do sistema industrial. Já "Jeanne Dielman" é um filme estrutural, dirigido por uma mulher e que estabelece outra relação com o espectador.

Acompanha-se três dias na vida de uma dona de casa que se prostitui de noite. O filme narra eventos rotineiros, mas é tão deliberadamente construído quanto "Cidadão Kane". "Jeanne Dielman" tem uma reputação realista, mas se trata de um realismo artificial, com a mão da cineasta sempre muito visível.

A dona de casa é interpretada por Delphine Seyrig, estrela do cinema francês do período, e os sentidos do filme surgem de sua presença em cena. Não se propõe desaparecer o artifício do cinema em uma ilusão de realismo, mas se posicionar diante dele. É o oposto de "Ladrões de Bicicleta".

Trata-se de um filme criado partir das ações em cena. Não há psicologia, e tudo existe na superfície de gestos por vezes contraditórios. O final impactante menos oferece uma catarse do que a oportunidade de repensar esses atos.

Críticos são atraídos por filmes sobre o olhar e o cinema. "Jeanne Dielman", assim como "Um Corpo que Cai", reflete a respeito de olhar para uma mulher e as relações de poder inerentes a isso. Ambos colocam em primeiro plano um espelho sobre a própria atividade cinematográfica. O ato de filmar e o de ver.

O clássico de Hitchcock é um filme sobre as prerrogativas perversas do olhar do cineasta para a mulher observada e desejada. Já o de Akerman coloca a ênfase na interrogação da relação que o espectador desenvolve com as imagens daquela mulher em ação.

Além da lista da crítica, a Sight and Sound conduz, desde 1992, uma votação apenas com cineastas, da qual participaram 480 artistas. Nesta pesquisa paralela, o filme de Akerman terminou em 4º lugar, reforçando sua posição sedimentada no cânone, com influência cada vez mais crescente. O campeão foi "2001".

É possível observar nos resultados da pesquisa britânica uma afirmação da cultura cinematográfica desenvolvida na internet, com um pé no formalismo e o outro na sociologia. Traz com ela vantagens como ecletismo e curiosidade, mas também limitações, como uma atenção curta e ausência de interrogações maiores.

A despeito das discussões sobre grandes mudanças e o caráter revisionista da lista, ela ainda é uma afirmação de um cânone reconhecível. Alfred Hitchcock, o cinema clássico de Hollywood, e Jean-Luc Godard, o modernismo dos anos 1960, seguem os nomes mais lembrados com quatro filmes cada, embora em média com posições mais baixas do que em pesquisas anteriores.

Apontam-se mudanças de paradigma geracionais e de formas de assistir e de se posicionar diante do cinema, mas apenas até certo ponto. Trata-se menos de uma revolução do que de uma correção do cânone. Como quase toda modernização conservadora, muda-se para preservar a si mesmo.

Os maiores filmes do cinema segundo a revista Sight and Sound

Lista de 1952

1º "Ladrões de Bicicleta" (1948)

Direção: Vittorio De Sica

Itália

25 votos

2º "Luzes da Cidade" (1931)

Direção: Charles Chaplin

EUA

19 votos

2º "Em Busca do Ouro" (1925)

Direção: Charles Chaplin

EUA

19 votos

4º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

16 votos

5º "Intolerância" (1916)

Direção: D.W. Griffith

EUA

12 votos

5º "Louisiana Story" (1948)

Direção: Robert Flaherty

EUA

12 votos

7º "Ouro e Maldição" (1925)

Direção: Erich von Stroheim

EUA

11 votos

7º "Trágico Amanhecer" (1939)

Direção: Marcel Carné

França

11 votos

9º "A Paixão de Joana d'Arc" (1927)

Direção: Carl Dreyer

França

11 votos

10º "Desencanto" (1945)

Direção: David Lean

Reino Unido

10 votos

10º "O Milhão" (1931)

Direção: René Clair

França

10 votos

10º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

10 votos


Lista de 1962

1º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

22 votos

2º "A Aventura" (1960)

Direção: Michelangelo Antonioni

Itália

20 votos

3º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

19 votos

4º "Ouro e Maldição" (1925)

Direção: Erich von Stroheim

EUA

17 votos

4º "Contos da Lua Vaga" (1953)

Direção: Kenji Mizoguchi

Japão

17 votos

6º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

16 votos

6º "Ladrões de Bicicleta" (1948)

Direção: Vittorio De Sica

Itália

16 votos

6º "Ivan, o Terrível" (1945)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

16 votos

9º "A Terra Treme" (1948)

Direção: Luchino Visconti

Itália

14 votos

10º "O Atalante" (1934)

Direção: Jean Vigo

França

13 votos

Lista de 1972

1º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

32 votos

2º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

28 votos

3º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

16 votos

4º "8 e Meio" (1963)

Direção: Federico Fellini

Itália

15 votos

5º "A Aventura" (1960)

Direção: Michelangelo Antonioni

Itália

12 votos

5º "Quando Duas Mulheres Pecam" (1966)

Direção: Ingmar Bergman

Suécia

12 votos

7º " A Paixão de Joana d'Arc" (1927)

Direção: Carl Dreyer

França

11 votos

8º "A General" (1926)

Direção: Buster Keaton e Clyde Bruckman

EUA

10 votos

8º "Soberba" (1942)

Direção: Orson Welles

EUA

10 votos

10º "Contos da Lua Vaga" (1953)

Direção: Kenji Mizoguchi

Japão

9 votos

10º Morangos Silvestres (1957)

Direção: Ingmar Bergman

Suécia

9 votos


Lista de 1982

1º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

45 votos

2º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

31

3º "Os Sete Samurais" (1954)

Direção: Akira Kurosawa

Japão

15 votos

3º ‘Cantando na Chuva’ (1952)

Direção: Gene Kelly e Stanley Donen

EUA

15 votos

5º "8 e Meio" (1963)

Direção: Federico Fellini

Itália

14 votos

6º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

13 votos

7º "A Aventura" (1960)

Direção: Michelangelo Antonioni

Itália

12 votos

7º "Soberba" (1942)

Direção: Orson Welles

EUA

12 votos

7º ‘Um Corpo que Cai’ (1958)

Direção: Alfred Hitchcock

EUA

12 votos

10º "A General" (1926)

Direção: Buster Keaton e Clyde Bruckman

EUA

11 votos

10º "Rastros de Ódio" (1956)

Direção: John Ford

EUA

11 votos


Lista de 1992

1º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

43 votos

2º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

32 votos

3º ‘Era uma Vez em Tóquio’

Direção: Yasujirô Ozu

Japão

22 votos

4º "Um Corpo que Cai" (1958)

Direção: Alfred Hitchcock

EUA

18 votos

5º "Rastros de Ódio" (1956)

Direção: John Ford

EUA

17 votos

6º "O Atalante" (1934)

Direção: Jean Vigo

França

15 votos

6º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

15 votos

6º "A Paixão de Joana d'Arc" (1927)

Direção: Carl Dreyer

França

15 votos

6º "A Canção da Estrada" (1955)

Direção: Satyajit Ray

Índia

15 votos

10º "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968)

Direção: Stanley Kubrick

EUA

14 votos


Lista de 2002

1º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

46 votos

2º "Um Corpo que Cai" (1958)

Direção: Alfred Hitchcock

EUA

41 votos

3º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

30 votos

4º "O Poderoso Chefão 1 e 2" (1972 e 1974)

Direção: Francis Ford Coppola

EUA

23 votos

5º ‘Era uma Vez em Tóquio’

Direção: Yasujirô Ozu

Japão

22 votos

6º "2001: Uma Odisseia no Espaço(1968)

Direção: Stanley Kubrick

EUA

21 votos

7º "O Encouraçado Potemkin" (1925)

Direção: Sergei Eisenstein

Rússia

19 votos

7º "Aurora" (1927)

Direção: F.W. Murnau

EUA

19 votos

9º "8 e Meio" (1963)

Direção: Federico Fellini

Itália

18 votos

10º ‘Cantando na Chuva’ (1952)

Direção: Gene Kelly e Stanley Donen

EUA

17 votos


Lista de 2012

1º "Um Corpo que Cai" (1958)

Direção: Alfred Hitchcock

EUA

191 votos

2º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

157 votos

3º ‘Era uma Vez em Tóquio’

Direção: Yasujirô Ozu

Japão

107 votos

4º "A Regra do Jogo" (1939)

Direção: Jean Renoir

França

100 votos

5º "Aurora" (1927)

Direção: F.W. Murnau

EUA

93 votos

6º "2001: Uma Odisseia no Espaço(1968)

Direção: Stanley Kubrick

EUA

90 votos

7º "Rastros de Ódio" (1956)

Direção: John Ford

EUA

78 votos

8º "Um Homem com uma Câmera" (1929)

Direção: Dziga Vertov

Rússia

68 votos

9º "A Paixão de Joana d'Arc" (1927)

Direção: Carl Dreyer

França

65 votos

10º "8 e Meio" (1963)

Direção: Federico Fellini

Itália

64 votos


Lista de 2022*

1º "Jeanne Dielman" (1975)

Direção: Chantal Akerman

Bélgica/França

215 votos

2º "Um Corpo que Cai" (1958)

Direção: Alfred Hitchcock

EUA

208 votos

3º "Cidadão Kane" (1941)

Direção: Orson Welles

EUA

163 votos

4º "Era uma Vez em Tóquio"

Direção: Yasujirô Ozu

Japão

5º "Amor à Flor"

da Pele’ (2000)

Direção: Wong Kar Wai

Hong Kong/França

6º "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968)

Direção: Stanley Kubrick

EUA

7º "Bom Trabalho" (1998)

Direção: Claire Denis

França

8º "Cidade dos Sonhos" (2001)

Direção: David Lynch

EUA

9º "Um Homem com uma Câmera" (1929)

Direção: Dziga Vertov

Rússia

10º "Cantando na Chuva" (1952)

Direção: Gene Kelly e Stanley Donen

EUA

*os votos de cada filme ainda não foram completamente divulgados

domingo, 18 de dezembro de 2022

FIES e o ensino superior privado

A dupla Haddad-Mercadante e o Fies

O crédito para estudantes fez fortunas e calotes 

Elio Gaspari, FSP, 17/12/2022

A década de governos petistas produziu políticas públicas exemplares e desastres. Na educação, conseguiu as duas coisas. No primeiro mandato de Lula, o ministro Tarso Genro, com a colaboração de Fernando Haddad, fez o ProUni.

Parecia mágica. As faculdades privadas recebiam isenções tributárias e argumentavam que ofereciam bolsas de estudo em contrapartida. Era meia verdade, pois essas bolsas (quando existiam) eram distribuídas para amigos ou amigos dos amigos. O ProUni vinculou as bolsas à renda familiar do estudante e ao seu desempenho no Enem. Sem qualquer despesa, abriram-se as portas do ensino superior privado para jovens do andar de baixo.

Ia tudo bem, quando o ministro da Educação Fernando Haddad (2005-2012) resolveu ressuscitar um programa de crédito público para estudantes de faculdades privadas, o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, Fies.

Aos poucos as regras do crédito foram mudadas. Não havia exigência de desempenho e afrouxaram-se as regras da fiança. O resultado foi uma explosão de bolsistas do Fies. Em 2012, Haddad, futuro ministro da Fazenda, foi substituído no MEC por Aloizio Mercadante, futuro presidente do BNDES. Em dois anos os bolsistas passaram de 224,8 mil para 1,14 milhão em 2014, uma expansão de mais de 400%.

Conglomerados privados do setor educacional prosperaram. A Kroton, com 130 unidades em 19 estados e mais de 1 milhão de alunos, lucrou R$ 517 milhões em 2013, 155% a mais que no ano anterior. Seu valor na Bolsa chegou a R$ 25 bilhões, tornando-a a maior do mundo no setor.

Em dezembro de 2014, Haddad, então na Prefeitura de São Paulo, dizia: "O Brasil é reconhecido por ter os maiores grupos econômicos na educação e não adianta falar que é mérito do empresário, porque sem o pano de fundo institucional não tem quem prospere. O maior grupo econômico de educação do mundo é brasileiro." Pudera, naquele ano, o Fies rendera-lhe R$ 2 bilhões, cifra inédita até para a empreiteira Odebrecht.

Três meses antes o banco Morgan Stanley havia avisado que a inadimplência poderia levar a uma implosão do Fies

Não deu outra. De um lado, o governo viu-se obrigado a fechar a porta do cofre e, de outro, as astúcias do sucesso foram expostas. Em fevereiro de 2015, os repórteres José Roberto de Toledo, Paulo Saldaña e Rodrigo Burgarelli mastigaram o Fies.

Entre 2010 e 2014 o custo do programa passou de R$ 1,1 bilhão para R$ 13,4 bilhões em valores corrigidos. As faculdades privadas estimulavam os alunos a solicitar o financiamento, transferindo para a Viúva suas carteiras de inadimplência. Mais: se um estudante comprava a matrícula no balcão, às vezes tinha desconto. Para o plantel da Viúva, tarifa cheia. Pior: entre 2012 e 2013 a taxa de evasão das faculdades privadas era de 28% e entre os bolsistas chegava a 88%.

Em 2015, a presidente Dilma Rousseff admitiu que o governo errou ao passar para as faculdades privadas o controle do acesso ao Fies. O novo ministro da Educação, Cid Gomes, pôs alguma ordem na maluquice e passou a exigir uma nota mínima de 450 pontos no Enem. Também não podia receber financiamento quem tirasse zero na redação. O mundo veio abaixo. Exigir desempenho seria "limpeza étnica" e outro magano da guilda das faculdades prenunciou uma "catástrofe" pois o ministro não era "do ramo" e levara o governo a fazer "uma cagada".

Antes dos anos de Haddad e Mercadante no MEC, o financiamento público dos estudantes ia mal das pernas. Depois, ficou sem elas. O mercado acomodou-se, criando sistemas próprios, sempre com fiador.

O financiamento público tenta se reerguer. Em janeiro passado, o governo de Bolsonaro, acompanhando uma promessa de Lula, concedeu uma anistia de até 92% do valor devido por estudantes financiados até o final de 2017. Cerca de 1 milhão de jovens tinham atrasos superiores a 90 dias no Fies. O espeto pode chegar a R$ 6,6 bilhões.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Sight & Sound divulga lista dos melhores filmes da história

Com “Jeanne Dielman” (1975) no topo, o ranking elege os 100 melhores longas de todos os tempos

por Vitória Roque, 2 de dezembro de 2022

O veículo britânico Sight & Sound publicou, recentemente, uma atualização da lista de melhores filmes de todos os tempos. A revista tem distribuição feita pela BFI (British Film Institute), e o ranking é definido por um grupo internacional de profissionais do cinema.

Na mais recente atualização, o primeiro lugar da lista ficou com “Jeanne Dielman”, filme franco-belga de 1975, dirigido por Chantal Akerman. Essa é a primeira produção de direção feminina a figurar no topo do tradicional ranking.


Rolling Stone lista os 100 melhores álbuns de 2022; confira 

Entre as entradas mais recentes da lista, estão “Parasita” e “Retratos de Uma Jovem Em Chamas”, de 2019. “Corra!”, de 2017 e “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, de 2016 também são alguns dos títulos mais atuais.

Confira a lista completa abaixo.

1.    “Jeanne Dielman” (1975)
2.    “Um Corpo que Cai” (1958)
3.    “Cidadão Kane” (1941)
4.    “Era Uma Vez em Tóquio” (1953)
5.    “Amor à Flor da Pele” (2000)
6.    “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968)
7.    “Bom Trabalho” (1998)
8.    “Cidade dos Sonhos” (2001)
9.    “Um Homem com uma Câmera” (1929)
10.    “Cantando na Chuva” (1951)
11.    “Sunrise: A Song of Two Humans” (1927)
12.    “O Poderoso Chefão” (1972)
13.    “A Regra do Jogo” (1939)
14.    “Cléo das 5 às 7” (1962)
15.    “Rastros de Ódio” (1956)
16.    “Tramas do Entardecer” (1943)
17.    “Close-up” (1989)
18.    “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966)
19.    “Apocalypse Now” (1970)
20.    “Os Sete Samurais” (1954)
21.    “A Paixão de Joana d’Arc” (1928)
22.    “Pai e Filha” (1949)
23.    “Playtime – Tempo de Diversão” (1967)
24.    “Faça a Coisa Certa” (1989)
25.    “A Grande Testemunha” (1966)
26.    “The Night of the Hunter” (1955)
27.    “Shoah” (1985)
28.    “As Pequenas Margaridas” (1966)
29.    “Taxi Driver – Motorista de Táxi” (1976)
30.    “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019)
31.    “O Espelho” (1975)
32.    “Oito e meio” (1963)
33.    “Psicose” (1960)
34.    “O Atalante” (1934)
35.    “Pather Panchali” (1955)
36.    “Luzes da Cidade” (1931)
37.    “M, O Vampiro de Dusseldorf” (1931)
38.    “Acossado” (1960)
39.    “Quanto Mais Quente Melhor” (1959)
40.    “Janela Indiscreta” (1954)
41.    “Ladrões de Bicicleta” (1948)
42.    “Rashomon” (1950)
43.    “Stalker” (1979)
44.    “O Matador de Ovelhas” (1977)
45.    “Intriga Internacional” (1959)
46.    “A Batalha de Argel” (1966)
47.    “Barry Lyndon” (1975)
48.    “Wanda” (1970)
49.    “A Palavra” (1955)
50.    “Os Incompreendidos” (1959)
51.    “O Piano” (1922)
52.    “Notícias de Casa” (1976)
53.    “O Medo Consome a Alma” (1974)
54.    “Se Meu Apartamento Falasse” (1960)
55.    “O Encouraçado Potemkin” (1925)
56.    “Sherlock Jr.” (1924)
57.    “O Desprezo” (1963)
58.    “Blade Runner – O Caçador de Androides” (1982)
59.    “Sem Sol” (1982)
60.    “Filhas do Pó” (1991)
61.    “A Doce Vida” (1960)
62.    “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (1960)
63.    “Casablanca” (1942)
64.    “Os Bons Companheiros” (1990)
65.    “O Terceiro Homem” (1949)
66.    “A Viagem da Hiena” (1973)
67.    “Os catadores e eu” (2000)
68.    “Metrópolis” (1927)
69.    “Andrei Rublev” (1966)
70.    “Os Sapatinhos Vermelhos” (1948)
71.    “La Jetée” (1962)
72.    “Meu Amigo Totoro” (1988)
73.    “Romance na Itália” (1954)
74.    “A Aventura” (1960)
75.    “Imitação da Vida” (1959)
76.    “Intendente Sansho” (1954)
77.    “A Viagem de Chihiro” (2001)
78.    “Um Dia Quente de Verão” (1991)
79.    “Satantango” (1994)
80.    “Céline e Julie Vão de Barco” (1974)
81.    “Tempos Modernos” (1936)
82.    “Crepúsculo dos Deuses” (1950)
83.    “Neste Mundo e no Outro” (1946)
84.    “Veludo Azul” (1986)
85.    “O Demônio das Onze Horas” (1965)
86.    “História(s) do Cinema” (1988)
87.    “O Espírito da Colmeia” (1973)
88.    “O Iluminado” (1980)
89.    “Amores Expressos” (1994)
90.    “Desejos proibidos” (1953)
91.    “The Leopard” (1962)
92.    “Contos da Lua Vaga” (1953)
93.    “Parasita” (2019)
94.    “Yi Yi” (1999)
95.    “Um Condenado à Morte Escapou” (1956)
96.    “A General” (1926)
97.    “Era uma Vez no Oeste” (1968)
98.    “Corra!” (2017)
99.    “Garota Negra” (1966)
100.    “Mal dos Trópicos” (2004)

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Mostra explora todo o mal-estar indizível e a melancolia de Chantal Akerman

Diretora do clássico 'Jeanne Dielman', artista belga que se matou em 2015 ganha exposição no Rio

Silas Martí, FSP, 3.dez.2018

Anoitece na metrópole. A pele de vidro das torres à beira da baía de Xangai brilha com anúncios luminosos enormes, suas cores tingindo o horizonte. Não há ninguém em cena, mas o murmúrio anônimo das ruas se mistura à música pop esgoelada pelo rádio para forjar a trilha sonora desse instante banal.Outra projeção mostra uma mulher sozinha num apartamento. Ela dorme, come uma maçã. De dentro de sua jaula, parece observar o espectador. 

Os dois filmes que abrem a retrospectiva de Chantal Akerman agora no Oi Futuro, no Rio de Janeiro, são mostrados lado a lado na mesma sala escura na entrada do centro cultural no Flamengo. A vista impessoal da metrópole chinesa contrasta com a ronda intimista da câmera que flutua por seu quarto nova-iorquino. 

Mas não são retratos de solidões distintas. Tanto no horizonte esgarçado de Xangai quanto no calor sujo, condensado entre as quatro paredes de seu apartamento, Akerman mostra nada mais que a passagem do tempo —seus enquadramentos são janelas abertas à violência viva das horas.

Violência e memória, tornadas mais agudas pelo contraste entre plácidas cenas de interior e a vida selvagem que se passa lá fora nas grandes cidades, são os alicerces da obra dessa cineasta belga, uma das artistas mais influentes do fim do século 20.

Filha de uma sobrevivente de Auschwitz, Akerman começou a filmar há exatas cinco décadas. Em 1968, ela mesma estrelava “Saute Ma Ville”, ou exploda minha cidade. No curta, que mal mostra a sua Bruxelas natal, ela se tranca na cozinha, joga potes e panelas no chão, tenta fazer uma faxina e acaba por ligar o gás e acender o fogo. Não vemos a casa ir pelos ares, mas um estrondo encerra o trabalho, que corta para uma tela preta.

Esses cortes abruptos são raros na obra de Akerman, famosa por sequências longas e letárgicas como aquelas de seu filme mais celebrado, “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”. 

Mas, talvez cansada da agonia de quando tudo já não parecia fazer mais sentido, a artista, que sofria de transtorno bipolar, recorreu a um mesmo corte seco ao dar fim à própria vida — ela se matou em outubro de 2015, um ano depois de perder a mãe, alvo e inspiração de muitos de seus filmes.

Na mostra, aliás, está o registro de uma performance em que Akerman aparece lendo trechos sobre a mãe que escreveu em sua autobiografia. Em contraste com o silêncio que domina quase toda a sua extensa obra cinematográfica, ali as palavras acabam sendo o centro das atenções.

Quem não conhece a artista encontra nesse ponto algumas pistas para entender o claustrofóbico universo de Akerman — claustrofóbico no sentido de espaço e de tempo, já que, mesmo que registre metrópoles às vezes em plano aberto, as paisagens urbanas de seus filmes espelham uma angústia íntima, que muitos dizem feminina.

Akerman, de fato, pôs a mulher, várias vezes em atrito violento com cenários domésticos, no centro de seus filmes.  “Jeanne Dielman” é o exemplo incontornável disso, com mais de três horas de arrastadas sequências em que a atriz Delphine Seyrig, na pele de uma viúva que se prostitui em casa para sustentar o filho adolescente, aparece fazendo comida, lavando a louça suja.

Na metade da década de 1990, Akerman passou a traduzir algumas dessas sequências e ideias para instalações em museus, entrando numa fase mais híbrida de sua obra e se tornando um caso raro de cineasta a ser também abraçada pelo mundo das artes visuais —ela chegou a participar das mostras de arte mais importantes do planeta, entre elas a Documenta, em Kassel, na Alemanha, a Bienal de São Paulo e a Bienal de Veneza.

Sua exposição no Rio se encerra com uma dessas transposições do cinema para a arte. Akerman mostra ali só uma cena de um filme da década de 1970 em que uma jovem só de calcinha se olha no espelho e enumera as imperfeições de seu corpo — os seios pequenos demais, o rosto também, marcas de celulite.

“Isso tem a ver com retratar o jeito como cada um enfrenta o mundo e a história, mas também o futuro”, diz Claire Atherton, que montava os filmes de Akerman e passou a trabalhar nas instalações. “É como se os sentimentos se tornassem matéria. São pequenos detalhes do cotidiano.”

Os detalhes, no caso, traduzem o mal-estar indizível que atravessa a obra de Akerman. É o que aparece com toda a força na maior sala da exposição carioca, com projeções de dois de seus últimos filmes.

“Maniac Summer” e “Maniac Shadows”, rodados no verão parisiense há quase dez anos depois de uma das crises nervosas da artista, mostram Akerman sozinha em casa, sempre no escuro, em contraste com tudo o que ela via pela janela, o rastro dos faróis dos carros no trânsito, as crianças brincando no parque num dia ensolarado.

Essas cenas, no entanto, vão se multiplicando, numa sucessão de projeções em que as mesmas imagens aparecem vistas mais de perto e com contraste cada vez maior, até se tornarem quase abstratas, nuvens de pontos luminosos. “É um ponto de vista adensado”, diz Evangelina Seiler, que organiza a mostra no Rio. “São os buracos da memória que ela comenta. Ela queria sentir a passagem do tempo.”

Na linguagem do cinema, Akerman encontrou no contraste estourado dessas séries uma tradução visual da melancolia pegajosa que a assombrava, como se o tempo expandido de que ela falava fosse sua tentativa de tornar mais elástico, talvez infinito, o agora, longe das sombras do passado e a salvo das ameaças de um futuro incerto.

Desde que começou a filmar, aliás, ela já se mostrava obcecada pela ideia de não desgrudar os olhos do desenrolar dos fatos em tempo real, o que explica a sua predileção pelo traveling, quando a câmera desliza sobre trilhos para retratar uma ação em movimento.

“Nos meus filmes, você sente a passagem de cada segundo com o seu corpo, acaba enfrentando você mesmo”, disse Akerman, numa entrevista. “Tudo que temos é o tempo.”

A morte de Shatzi

Americana que lutou contra tabu da morte chama reportagem para acompanhar seus últimos dias. Shatzi Weisberger fez parte de movimento que tenta desfazer o silêncio e o medo sobre o tema 

John Leland, FSP, 15/12/2022

Muitas pessoas têm a esperança de ter uma morte boa, até a planejam, mas poucas pessoas se preparam para a morte tão completamente e com tanta alegria quanto Shatzi Weisberger. Ela tinha um certificado da Arte de Morrer que recebeu do Open Center, em Nova York, e ajudava a organizar um grupo de discussão sobre o tema que se reunia mensalmente no Brooklyn, além de outro grupo cujos encontros aconteciam em seu próprio pequeno apartamento em Manhattan.

Em junho de 2018 Shatzi promoveu um "FUN-eral" [funeral divertido] para si mesma, em que seus amigos enfeitaram um féretro de papelão em tamanho natural, inscrevendo sobre ele mensagens como "vá em frente, Shatzi! (mas não literalmente)". Ela vestiu uma blusa de estampa floral colorida para a ocasião.

Na ocasião do "FUN-eral", ela disse: "Quero vivenciar realmente minha morte. Não quero morrer num acidente de carro nem ficar inconsciente. Quero estar em casa, na minha cama e quero compartilhar a experiência com qualquer pessoa que esteja interessada."

Em outubro, aos 92 anos, Shatzi recebeu um diagnóstico de câncer pancreático intratável. Em novembro ela ligou do hospital para convidar o jornal New York Times a acompanhá-la na derradeira fase da vida. "Meu desejo se realizou", ela disse naquele primeiro telefonema, em 18 de novembro. "Eu não queria morrer de repente. Queria vivenciar o processo de morte. E o estou vivenciando. Já tive algumas experiências espantosas, absolutamente incríveis."

Shatzi fez parte de um movimento descrito como de "morte positiva", que agrupa Death Cafes [encontros periódicos regulares, geralmente acompanhados de chá, café e bolinhos, em que os participantes trocam ideias sobre a morte], programas acadêmicos, livros, vídeos no YouTube e palestras. O movimento emergiu nas duas últimas décadas e visa desfazer o silêncio e o medo em torno da morte.

Ela passou anos estudando a morte como abstração e exortando outras pessoas a abordar a morte com alegria e curiosidade. Agora se via diante de um câncer que é implacavelmente concreto e um sistema de saúde fraturado e que desde a Covid sofre os efeitos de uma escassez grave de profissionais. Shatzi disse que o oncologista lhe dera um mês de vida, possivelmente dois ou três. No final, ela teria menos de duas semanas.

A americana já tinha um lote onde seria sepultada, uma agente funerária escolhida, uma mortalha e instruções sobre como queria que seu corpo fosse manuseado após sua morte. Uma amiga da turma da Arte de Morrer prometeu ficar com ela quando chegasse perto do fim.

Shatzi Weisberger (de camisa com estampa floral) em seu "Fun-eral" em Nova York - Devin Yalkin - 11.jul.18/The New York Times

"Shatzi escolheu certas pessoas com antecedência para desempenharem determinados papéis", disse o amigo David Belmont. Ela tinha uma lista (modificada constantemente) de pessoas a quem deixaria suas posses. Colou etiquetas sobre tudo, mostrando quem deveria ficar com o quê.

Shatzi havia sido enfermeira por 47 anos, tendo inclusive cuidado de pacientes com Aids, de modo que não desconhecia o fim da vida. Estava tão preparada quanto podia estar. No hospital, em 18 de novembro, ela falou da vida após o diagnóstico terminal. Agora que sua morte já deixara de ser algo hipotético, no futuro distante, será que estava correspondendo às suas expectativas?

Ela disse que estava sofrendo dor muito forte e que estava enfraquecida por ter passado uma noite sem dormir. Mas estava sorridente, mais à vontade do que eu jamais a vira antes, mais até que em seu "FUN-eral". Todos os anos de trabalho estavam dando frutos. "Estou vivendo o melhor momento da minha vida".

Shatzi compartilhou algo que descreveu como "uma experiência transcendental". Uma amiga da organização Jewish Voice for Peace, que tinha sido importantíssima em sua vida, viera ao hospital recentemente e massageara seus pés e suas costas. Citando traumas de infância, ela contou que durante toda a vida havia evitado a intimidade física. Mas quando foi massageada por sua amiga, baixou sua guarda. "Pela primeira vez, me abri para a intimidade. E acho que foi a experiência mais maravilhosa que já tive."

Shatzi entrou em contato com seu filho, de quem estivera distanciada havia 50 anos. Como ela própria nunca recebera amor e carinho de seus pais, não soube como dar isso a seus filhos. "Ele e sua irmã mereciam muito mais", disse Shatzi. Ela não pediu que seu filho a perdoasse. "Espero que ele consiga esquecer qualquer ressentimento e compreenda, como eu compreendo agora, que eu fiz o melhor que pude." Sua filha rejeitou sua tentativa de entrar em contato.

Amigos decoram caixão biodegradável no “FUN-eral” de Shatzi Weisberger, em 2018 - Devin Yalkin - 11.jul.18/The New York Times

Mas, tirando esses momentos breves, o fato de estar com uma doença terminal não a levou a reavaliar sua vida. Em vez disso, Shatzi falava do que estava por vir, contou Gina Colombatto, que ficou com ela no final. "Em vez de olhar para trás, ela estava curiosa em saber: o que é a morte?", disse Colombatto, que se descreve como educadora sobre a morte. "O conflito era: ainda tenho coisas a fazer e não sei como será a morte. Não sei se quero realmente ir para lá, mas também estou empolgada porque vou."

Shatzi estava determinada a enfrentar a morte sem analgésicos. Pensava que os cuidados paliativos frequentemente envolviam um estado de torpor induzido por medicamentos, deixando o paciente demasiado entorpecido para apreciar a experiência da morte. Ela queria vivenciar a experiência completa. Aquela foi a primeira ilusão da qual ela teve que abrir mão. Houve outras.

Caixão de Shatzi Weisberger em cemitério de Nova York, nos EUA - Meredith Heuer - 2.dez.22/The New York Times

Após duas semanas no hospital, Shatzi quis voltar para casa e receber cuidados paliativos ali. Achou que era um pedido simples. Mas Belmont ouviu do hospital que, em função da escassez de profissionais, as organizações que prestavam assistência paliativa tinham uma lista de espera de duas semanas.

Amigos de Shatzi lançaram uma campanha de financiamento coletivo para pagar por atendimento particular para ela – outra coisa que Shatzi não poderia ter feito para si mesma.

Em casa, seu corpo estava deteriorando mais rapidamente do que ela previra. Ela não conseguia mover as pernas para passar da cama para uma cadeira. Não conseguia passar muito tempo na cama ou na cadeira sem sentir dor extrema. Comia pouco mais do que pudim de chocolate, iogurte e creme de maçã. "Estou decepcionada com a rapidez com que meu corpo está deteriorando, mas fico lembrando que não tenho controle sobre isso. Então, aconteça o que acontecer, eu vou enfrentar", disse Shatzi.

Shatzi tinha um elixir de morfina para o caso de a dor ficar excessiva, mas ainda não o tomara. Ela estava de bom humor. "Não estou sentindo medo", disse.

Falei a Shatzi que eu ia sair da cidade depois do Dia de Ação de Graças e que contava com ela resistir até minha volta. A última palavra que ela me disse foi: "Curta".

No dia seguinte ao Dia de Ação de Graças, Shatzi sofreu o que descreveu como "uma emergência de dor" e pediu ao médico de cuidados paliativos que aumentasse sua dose de remédios. Pela primeira vez, ela soou confusa ao telefone. Mesmo assim, amigos disseram que ela teve bons momentos. Amy Cunningham, sua agente funerária, a visitou dois dias mais tarde e a encontrou "bela, com aparência corada". "Saí pensando que a morte aconteceria em janeiro", disse.

Três dias mais tarde, Shatzi disse a Colombatto que não queria receber visitas. Ela aumentou sua dose de analgésicos. Pediu para apagarem as luzes. A energia que a conduzira até agora dera lugar à dor extrema. "Ela estava começando a se voltar para dentro e sofrendo muito mais com o corpo", falou Colombatto. "Ela disse ‘já cansei disso, só quero que acabe’. E eu dizia: ‘Não dá para acabar enquanto não chegar a hora de acabar’. Falei em tom leve e divertido, mas acho que isso a chocou."

Ela acrescentou: "Houve um momento em que o câncer pancreático começou a ganhar. O câncer pancreático vence. Foi a morte mais árdua que já vi. Shatzi estava lutando para sair de seu corpo."

Às 0h40 do dia 1º de dezembro, sua luta chegou ao fim.

Não foi a morte que Shatzi quis –sem medicamentos, dando seu último suspiro pacificamente, com seus amigos à sua volta, compartilhando seus últimos pensamentos. Naquelas horas derradeiras, a revelação derradeira foi como sua morte foi dolorosa, quão essenciais foram as drogas.

A revelação que Shatzi teve nas semanas antes foi mais significativa, disse Emily Eliot Miller, que discutia frequentemente com Shatzi sobre sua fixação abstrata sobre uma "boa morte". "Acho que Shatzi sabia que o que ela mais precisava era de amor e testemunho", disse.

Nesse sentido, Shatzi foi bem-sucedida. "Ela teve a morte que desejou: cheia de amor".

Quando seu corpo deixou o apartamento, às 5h do dia 1º de dezembro, Colombatto escolheu a música que acompanhou o momento: "My Way", de Frank Sinatra, tocada em alto volume.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Filmes parte 27

Inimigos à Força, Showdown, 1973, George Seaton

Argentina, 1985, 2022, Santiago Mitre

Nada de Novo no Front, Im Westen nichts Neues, 2022, Edward Berger

Sem Novidade no Front, All Quiet on the Western Front, 1930, Lewis Milestone

Última Hora, The Front Page, 1931, Lewis Milestone

Sete Dias de Maio, Seven Days in May, 1964, John Frankenheimer

Penoza: The Final Chapter, 2019, Diederik Van Rooijen

Os Donos da Noite, We Own the Night, 2007, James Gray

Rua Augusta, Série de TV, 2018– , Fábio Mendonça e Pedro Morelli 

Transamazônica - Uma Estrada para o Passado, Minissérie de televisão, 2021, Fabiano Maciel, Jorge Bodanzky

Aconteceu num Apartamento, The Notorious Landlady, 1962, Richard Quine

Não Se Preocupe, Querida, Don't Worry Darling, 2022, Olivia Wilde

O Milagre, The Wonder, 2022, Sebastián Lelio

A Mulher Rei, The Woman King, 2022, Gina Prince-Bythewood

Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, Bury My Heart at Wounded Knee, HBO, 2007, Yves Simoneau

Wandinha, Wednesday, 2022–, Tim Burton, James Marshall e Gandja Monteiro 

Rabo de Foguete, Visit to a Small Planet, 1960, Norman Taurog

Tuareg: O Guerreiro do Deserto, Il guerriero del deserto, 1984, Enzo G. Castellari

Carvão, 2022, Carolina Markowicz

Pinóquio, Pinocchio, 2022, Guillermo del Toro e Mark Gustafson

O Amante de Lady Chatterley, Lady Chatterley's Lover, 2022, Laure de Clermont-Tonnerre

A Mãe, 2022, Cristiano Burlan

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro, Guillermo del Toro's Cabinet of Curiosities, Série de TV, 2022

The Mustang. 2019, Laure de Clermont-Tonnerre

28/10/22

Inimigos à Força, Showdown, 1973, George Seaton

No iutubi

Dois amigos de infância se reencontram, após anos sem se ver, em lados opostos da lei. Billy Massey (Dean Martin) é um rancheiro em falência que, por ser um grande atirador, acaba se aliando a três bandidos e participa de um roubo ousado em um trem da linha Denver-Rio. Chuck Jarvis (Rock Hudson) é o novo xerife da cidade que deve capturar o fora-da-lei. E no meio dos dois, existe Kate (Susan Clark), esposa de Billy, que também foi uma grande paixão de Chuck no passado. Filmow https://filmow.com/inimigos-a-forca-t58723/

30/11/22

Argentina, 1985, 2022, Santiago Mitre

"Argentina, 1985"

Assista ao filme e sinta inveja ao ver que, lá, os generais foram em cana 

Roberto Muylaert, FSP, 30/10/2022

Para mim, cinema argentino é Ricardo Darín. Claro que não é só isso, mas um bom ator como ele convence sempre, qualquer que seja o tipo de filme, amparado por uma equipe de roteiristas, fotógrafos, produtores e diretores que fazem a diferença graças aos cursos técnicos de bom nível que sempre existiram naquele país.

Bom a gente assistir a "Argentina, 1985" em época de eleições, porque não é possível votar em Jair Bolsonaro (PL) na sua qualidade de declarado admirador do celerado delinquente, membro das nossas Forças Armadas, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra —ex-chefe do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante a ditadura militar no Brasil.

A Argentina torturou e matou muito mais gente que o Brasil; em por isso os crimes do gênero perpetrados por aqui são menos indecentes.

Na Argentina, os militares envolvidos foram em cana, sendo alguns ex-presidentes punidos com prisão perpétua.

Aqui não: muito torturador circula por aí, assustando os antigos "clientes" com quem podem cruzar na rua por acaso. Brasil tem o tal do jeitinho, que acho até uma qualidade do nosso espírito, em oposição ao estilo germânico, onde a espinha dorsal quebra, mas não verga. Somos mais flexíveis.

Mas, no campo dos direitos humanos, não há como "dar um jeitinho" ao anistiar conhecidos criminosos que trataram com desdém garantias da Declaração dos Direitos Humanos Universais. O fato é que eles foram perdoados "ad limine" por uma anistia em que se comparam oficiais do Exército e seus homens instalados em próprios das Forças Armadas, aos guerrilheiros aniquilados.

Nosso jeitinho foi além, revelando em testemunhos os abusos cometidos por agentes da ditadura —Comissão da Verdade—-, mas sem finalidade punitiva, pois a anistia geral, ampla e irrestrita seguiu valendo, mesmo tendo sido estabelecida ainda na ditadura militar.

Assista ao filme e sinta inveja ao notar que os generais de lá, após esgotarem suas pesadas ameaças, foram em cana —sem antes se debaterem como peixe apanhado na rede de seus próprios malfeitos. Por aqui, faltou a figura valente do promotor Julio Cesar Strassera, vivido por Darín.

Em tempo

Assisti hoje 'Argentina 1985'. Recomendadíssimo. A arte a serviço da história. "O sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas umapeversão moral. Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer a paz baseada não no esquecimento, mas na memória, não na violência, mas na justiça. Esta é nossa oportunidade, talvez a última. Senhores juízes: quero renunciar expressamente a qualquer pretensão de originalidade para encerrar esta requisitória. Quero usar uma frase que não me pertence, porque pertence já a todo o povo argentino. Senhores juízes: nunca más!" (discurso final do promotor Júlio Cesar Strassera interpretado por Ricardo Darin)

Argentina, 1985 • Trailer Legendado

02/11/22

Nada de Novo no Front, Im Westen nichts Neues, 2022, Edward Berger

CRÍTICA | NADA DE NOVO NO FRONT (2022)

Remarque atemporal e, infelizmente, verdadeiro. 

por RITTER FAN,  2 de novembro de 2022 

Há uma discussão potencialmente interessante – que não pretendo chegar nem próximo de esgotar – sobre filmes antibelicistas que fazem uso de belíssimas composições de quadros e de deslumbrante fotografia mesmo em seus momentos mais terríveis, artifícios que podem ser interpretados como formas de se suavizar o horror e de sobrepor a forma sobre a substância. Obviamente que qualquer conclusão sobre o assunto dependerá do caso concreto, mas minha tendência natural é considerar a beleza estética de uma obra desta natureza como uma maneira de amplificar seu choque, sua força, sua tragédia ao criar fortes antíteses visuais  e creio que seja exatamente isso que a magnífica cinematografia de James Friend consegue evocar em Nada de Novo no Front, terceira adaptação audiovisual do clássico romance de Erich Maria Remarque, publicado pela primeira vez em 1928.

O poder da imagem, no longa dirigido pelo alemão Edward Berger, é particularmente importante, pois ela é imediatamente capaz de criar sentimentos opostos no espectador de atração e repulsão, algo que é mantido constantemente no subtexto narrativo que acompanha a jornada do jovem alemão Paul Bäumer (Felix Kammerer) de patriota inocente e seguidor de seus amigos que alegremente se alista para lutar na Primeira Guerra Mundial contra o desejo de seus pais e é arremessado nas batalhas de trincheiras da frente ocidental e que, aos poucos, na medida em que testemunha os horrores, perde seus amigos e é obrigado a cometer atos chocantes, vai perdendo a vitalidade e a vontade de viver. Diferente da abordagem rasa que a (também belíssima) imagem proporciona no recente 1917, por exemplo, aqui ela é parte integral da transformação de Paul, seja pela forma como ele muda fisicamente em um trabalho impressionante de maquiagem, seja pelo uso delicado, mas angustiante da cor vermelha pontuando seu caminho cercado de mortes, seja, finalmente, pela dessaturação geral que destaca a tragédia não como espetáculo, mas como a personificação do que eu pessimistamente chamo apenas de natureza humana, sempre tendente à destruição.

Somando-se ao visual capaz de fazer de crateras de sangue obras de arte dignas de serem enquadradas e penduradas na parede, há a assombrosa trilha sonora disruptiva e propositalmente incômoda composta por Volker Bertelmann, que por diversas vezes me lembrou do trabalho vanguardista e ousado de Mica Levi, em Jackie. Como no filme de Pablo Larraín, a sincronização musical nada na direção contrária de trilhas sonoras mais tradicionais que tendem a “desaparecer” no contexto da obra, despertando bruscamente o espectador como o aviso de um bombardeio ou ataque próximo, algo que apenas de longe lembra o estilo mais histriônico e desarmônico que Hans Zimmer fez ficar em voga.

Não é sem querer que foquei meus comentários iniciais nos elementos visuais e sonoros, pois o lado dramático do elenco é, nesta versão do livro de Remarque, algo de importância relativa menor. E não afirmo isso como algo negativo, pois não é definitivamente o caso. Sim, os soldados e talvez principalmente os oficiais são mais arquétipos do que personagens desenvolvidos, mas todos eles, inclusive o belicoso (em seu conforto) e perigosamente caricatural (com direito a um enorme cachorro preto) General Friedrichs (Devid Striesow) que não vê razão para um soldado existir sem a guerra, funcionam muito bem em suas funções. Claro que o destaque fica com Paul, já que é quase exclusivamente sob seu ponto de vista que acompanhamos a história, havendo espaço para a magnífica sequência em que ele mata com as próprias mãos pela primeira vez, algo que Berger captura com maestria usando de planos-detalhe até planos abertos e um semi-plongée de tirar o fôlego e em que Kammerer investe toda sua latitude dramática com grande efeito.

Com o benefício histórico que, por razões óbvias, nem o livro original, nem o clássico longa de 1930 dirigido por Lewis Milestone, tiveram, o roteiro que Berger co-escreveu com Lesley Paterson e Ian Stokell não só reitera a mensagem de que não há vencedores em uma guerra, como trabalha uma ponte entre as duas Guerras Mundiais ao inserir sequências encabeçadas principalmente por Daniel Brühl como Matthias Erzberger, o homem que assinou o armistício com todas as exigências feita pelo comando aliado do General Ferdinand Foch (Thibault de Montalembert). Essas sequências também usam o contraste para chocar, opondo o luxo dos oficiais do alto escalão de ambos os lados com a vida espartana dos soldados nas trincheiras, mas pecam ao quebrar o ponto de vista único de Paul Bäumer. Esse é um pecado que me deixa dividido, vale dizer, pois ele de um lado tem lógica histórica, mas, de outro, retira o foco do soldado enlameado que precisa correr de peito aberto e rifle com baioneta contra os tanques Saint-Chamond, que é minha preferência particular, confesso.

O poder imagético de Nada de Novo no Front é hipnotizante, mas ao mesmo tempo desconcertante, isso quando não é agoniante em sua capacidade de amplificar a sensação de horror claustrofóbico e de perda da inocência e da mais pura insensatez – e, infelizmente, inevitabilidade – da guerra. James Friend pode não chegar no mesmo nível de qualidade da adaptação de 1930, mas ele faz todo o esforço possível para chegar muito próximo de sua própria maneira e, no processo, transformar sua obra em mais um imponente e relevante lembrete de que, realmente, por mais que teimemos em nos iludir, o mundo e a humanidade não mudaram tanto assim. Não há mesmo nenhuma novidade no front…

P.S.: Chega a ser um acinte que esse filme não tenha sido distribuído nos cinemas por aqui nem que fosse em circuito limitado…

All Quiet on the Western Front (Nada de Novo no Front, 2022) - Crítica do filme da Netflix 

"Nada de Novo no Front", na Netflix, é implacável, e esse é o ponto 

Primeira Guerra Mundial 

Segunda Guerra Mundial 

05/11/22

Sem Novidade no Front, All Quiet on the Western Front, 1930, Lewis Milestone

Sobre  Erich Maria Remarque (1898–1970) 

Sobre Milestone (1895–1980) 

Crítica: Sem Novidade no Front (1930) 

"A guerra sem volta"

Por Wendell Marcel

A questão que leva um homem ir para a guerra defender o seu país, deixando para trás a sua família e amores, o berço social onde nasceu e viveu até a mais jovial idade, é de extrema e sociológica complexidade. A análise pode seguir o composto construção social, de pertencimento que esse indivíduo tem com sua nação, o desenvolvimento de costumes e o caráter formado através das influências dos seus pais e a mais importante intervenção da escola (instituições sociais), onde lá pratica com seus iguais relações interpessoais, psicológicas e ambientais. O fato dele morar e assim se apaixonar por sua terra, provoca nesse sujeito a importância de que aquele espaço é sua pátria e que é dever dele protegê-la e resguardá-la. Essa premissa funde com a complicação de quando sua nação é quem quer destronar outro território, assim a história desvela mais e mais questões sobre a rixa entre os governantes, reis e czars. Outros rabiscos são postos na chapa da dúvida humana: no período de guerra, o homem é um ser coletivo, e o uni não existe? Como se comportar em uma guerra pensando o coletivo, sendo que cada pessoa possui sua própria particularidade? Matar o outro para fazer viver os seus é compreensível n'um momento tão insustentável como é o campo de batalha? E as marcas deixadas pela guerra, eu defendo o meu país e não sinto mais as mesmas sensações por ele depois de ouvir as balas percorrerem meus ouvidos, e ver o meu parceiro ser destruído, fisicamente e psicologicamente pelos canhões do adversário, e ao término do dia deitar minha cabeça no travesseiro enquanto corpos apodrecem nos arredores dos ringues de batalha. Notoriamente, meu discurso se transforma, talvez, na mesma sensação de impotência que Paul, protagonista do filme, começa a sentir no final do segundo ato do longa colossal de Lewis Milestone.

Pouco lembrado pelos amantes do cinema, até menos que Vier von der Infanterie, de Pabst, Sem Novidade no Front é uma vitória na transição da equipagem do áudio mudo para o sonoro desta arte que agora falará, com voz, para o espectador. No comecinho da década de 30, a importada anos seguintes por títulos célebres (Tempos Modernos, Aconteceu Naquela Noite, E O Vento Levou), o mais impressionante filme de guerra americano desta década entra para a história, e não só por ter ganho a edição do Oscar pelo qual concorreu. O longa de Milestone acontece quinze anos depois do espetáculo que deixou críticos e amantes da sétima arte estupefatos, O Nascimento de Uma Nação, e abusa de esquemas de enquadramento e movimentação de câmera que fazem rememorar uma série de produções do gênero que visivelmente beberam da fonte deste belíssimo quadro. O campo de batalha é tomado por um passeio sob um travelling cheio de pedras, a fotografia medíocre suja de Arthur Edeson e Karl Freund, deixa tudo ainda mais verossímil; os soldados estão sempre cansados, pedindo o fim daquele absurdo chamado campo de batalha. Eles, homens de pátria e de honra, mais parecem porcos. Eles não almejam vitória, o que querem é qualquer espécie de comida que forram seus estômagos. Não aguentam mais serragem; ficam mais doentes pela falta de acolhimento do Estado do que pelos furos de bala que decepam seus corpos. Eles têm medo de entrar em confronto com o Outro; são jovens que só querem saber de garotas e diversão. No campo de batalha são eles sempre mais jovens, na falta dos que já morreram, um sem números, jogados no terreno minado, como objetos de rastreamento das balas e dos inimigos. Usando de motivos tão inocentes, mas concretos, Milestone declara em seu monumento fílmico que a guerra é um evento em que as pessoas se juntam para confrontar as vicissitudes mais ignorantes da vida e do seu confronto entre iguais: a competição por algo (sim, existe um motivo) que muitos daqueles que lutam, não vão poder saborear. E que sabor é esse de sangue, de ferrugem, de dores de mães, de nações destruídas? É só sangue, dor e destruição que vemos nas imagens de Sem Novidade no Front; é um filme absurdamente beligerante, sim, mas instruído em apresentar o antibelicionismo, a falácia tão difamada pelos insurgentes do cretinismo político territorializador e controlador, o pacifismo. Eu sou agora Paul, o rapaz que caçava borboletas no campo de sua cidade, e que precisa agora destruir um outro rapaz, até mais jovem do que ele.

Meus textos são sempre escritos para aqueles que já viram o filme, por isso a falta de linearidade na cotação da história, contudo uma retrospectiva é pertinente. Sete jovens alemães, ainda estudantes, são iludidos pelo professor a se alistarem no exército, e lutar em favor da nação na primeira guerra mundial. Os rapazes descobrem no primeiro encontro com o campo de batalha o quanto é retratável o conceito ensinado de respeito, solidariedade, instrução e educação na sociedade. Na guerra todo o aprendizado moral é jogado para o alto; e o único respeito que se pode ter naquele momento, é pela vontade de proteger sua nação. Contudo, os corpos se transformam, e voltar para casa depois de uma lesão, e sentir a necessidade de retornar para o campo de batalha, torna-se a essência do soldado. Tudo que ele viveu e aprendeu foi baleado e decepado no campo de batalha. Os sonhos juvenis morreram. Os belos rostos envelheceram dez anos. Como em um jogo de atirar no objeto e derrubá-lo para ganhar um doce, cada um dos sete amigos vão sendo destruídos pela guerra. Nem os melhores e nem os piores sujeitos sobrevivem, porque a guerra faz desaparecer a natureza do homem, sendo ela boa ou má em sua condição pragmática de moral. 

Sem Novidade no Front é baseado no romance best-seller de Erich Maria Remarque, quando o período marcado pela sua escrita era espelhado pelo sentimento da canção "I Didn't Raise My Son To Be a Soldier" (Eu não criei meu filho para ser soldado). Não é reconhecido, mas o filme de Milestone fez Hollywood produzir outros títulos que refizessem a Alemanha do pós-guerra, sendo o mais reconhecido The Road Back, de 1937. Neste mesmo ano, Jean Renoir filma A Grande Ilusão, talvez o retrato mais conhecido sobre a primeira guerra mundial. Os diretores Stanley Kubrick, Abel Gance e William Wyler falaram em seus filmes sobre o ocorrido das trincheiras, e neste terceiro nome, o retorno dos combatentes para suas famílias também é destacado. Nada de Novo no Front, um dos títulos conhecidos pelos leitores de cinema, teve uma refilmagem em 1979 feita para a tevê, e o filme foi restaurado apenas em 1998 para a apreciação mais proveitosa das imagens realistas do confronto armado no campo de batalha. 

Mais como é mágica a câmera de Milestone, mesmo mostrando os horrores da guerra, a cena final, pungente, cruel, que dilacera a alma deste espectador a quem vos escreve, mesmo assim, toma a morte como um voo mais alto. A única cor daquele acinzentado é a borboleta que descreve o toque, que reconstrói/rememora a história de Paul, fazendo referência ao conceito de natureza e religião de Michelangelo em seu afresco "A Criação do Homem". Assim, condicionados a retornar para o ambiente febril de incertezas da guerra, não sabendo o quanto ainda vão viver (contam piadas sobre a morte e dos caixões em que ainda serão enterrados), a lição prática ensinada da primeira grande guerra para o homem é dentre tantas, uma em particular: por que lavar pratos é mais vergonhoso do que matar uma pessoa sem razões tangíveis, ainda que não existam para este leigo que escreve. A primeira guerra é, provavelmente, a mais criticada dentro do cinema, por ser assim, tão inútil e tão horrorosamente desprezível. 

Sem Novidade no Front (1930) - Análise do Filme 

SEM NOVIDADES NO FRONT (1930) - SESSÃO #124 - MEU TIO OSCAR 

......

Diálogo do filme

Não te lembras de nenhum feito heroico, de nenhum toque de nobreza? Fala disso. Não vos posso dizer nada que não saibam. Lá, vivemos nas trincheiras. Combatemos. Tentamos não ser mortos, mas, às vezes, somos. Eu estive lá! Sei como é. Não é disso que se trata. Eu ouvi-o aqui a recitar as mesmas coisas, a criar mais homens de ferro, mais jovens heróis. Ainda pensa que é lindo e dócil morrer pelo país, não pensa?

Nós pensávamos que o senhor sabia. O primeiro bombardeamento abriu-nos os olhos. É obsceno e doloroso morrer pelo país. No que se refere a morrer pelo país, é melhor não morrer de todo!

Há lá milhões a morrerem pelos seus países, e o que se ganha com isso? Pediu-me para lhes dizer o quanto eles são precisos lá. Ele diz-vos: "Vão e morram." Mas, se me desculpar, é mais fácil dizer "vão e morram" do que fazer. Tanto tempo que pensei que talvez o mundo inteiro já tivesse aprendido. Mas, agora, enviam bebés e eles não duram uma semana.

Foram três anos a suportarmos isso... Quatro anos. E cada dia parecia um ano e cada noite um século. Os nossos corpos são terra, os nossos pensamentos são barro e dormimos e comemos com a morte.

Estamos liquidados, porque não podemos viver assim e manter algo dentro de nós!

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06/11/2022

Última Hora, The Front Page, 1931, Lewis Milestone

No iutubi

Sinopse

O repórter Hildy Johnson vai abandonar a carreira para casar, mas, a pedido do editor Walter Burns, concorda com uma última reportagem: cobrir a execução do anarquista Earl Williams. Williams consegue fugir e Hildy esconde-o na sala de imprensa, para onde vai Burns, que sente cheiro de escândalo no ar. Eles querem uma entrevista exclusiva com o condenado e, com isso, Hildy não consegue ir ao encontro da noiva. Novos personagens complicam a trama, inclusive o xerife e o prefeito, que mentem e se deixam corromper, de olho nas eleições.

Produção

The Front Page, com seus diálogos rápidos e inteligente, muitas vezes cruzados, deu origem às chamadas screwball comedies (comédias malucas, no Brasil), que se tornaram muito populares na década de 1930. O filme também iniciou a moda de fazer a ação transcorrer nas redações de jornais, ainda que, no seu caso, o cenário seja principalmente a sala de imprensa de um tribunal.

Esta sátira à corrupção política e à ética jornalística é a primeira de três adaptações para o cinema da aclamada peça de Ben Hecht e Charles MacArthur, grande sucesso em 1928. Em 1939, Howard Hawks dirigiu His Girl Friday e Billy Wilder rodou sua adaptação, a mais fraca, em 1974. His Girl Friday, a versão mais famosa, tem a particularidade de ter mudado o sexo do personagem Hildy Johnson, com grande efeito. A peça também já foi levada à televisão em três oportunidades: 1945, 1948 e 1970.

O elenco é muito elogiado e foi escolhido a dedo pelo produtor Howard Hughes entre os contratados da Warner Bros.. Adolphe Menjou ficou com o papel destinado a Louis Wolheim, que faleceu antes do início das filmagens, e abocanhou uma indicação ao Oscar. A produção recebeu outras duas, inclusive a de Melhor Filme.

Segundo Ken Wlaschin, The Front Page é um dos onze melhores filmes de Menjou. Já Mary Brian teria afirmado que este é o filme favorito de Mae Clarke.

07/11/22

Sete Dias de Maio, Seven Days in May, 1964, John Frankenheimer

No iutubi

O Coronel Martin ‘Jiggs’ Casey (Kirk Douglas) suspeita que seu superior, o General James Mattoon Scott (Burt Lancaster) planeja um golpe contra o governo norte-americano porque o Presidente Jordan Lyman (Fredric March) assinou um tratado de paz com a União Soviética. Encontrar as evidências esbarram na burocracia, erros humanos e mortes acidentais, até que o Senador Raymond Clark (Edmond O’Brien), preso pelo ambicioso general em uma base militar do Texas, consegue escapar com os documentos do plano. O presidente, então, recorre ao Coronel Martin Casey para desmontar a conspiração e prender os culpados.

12/11/22

Penoza: The Final Chapter, 2019, Diederik Van Rooijen

No iutubi

Descoberta em seu esconderijo no Canadá, a antiga rainha do tráfico, Carmen, precisa voltar a Amsterdã para resolver negócios inacabados e manter sua família segura. 

14/11/22

Os Donos da Noite, We Own the Night, 2007, James Gray

Os Donos da Noite (2007), À sombra do pai

Matheus Fiore - 16 de julho de 2020

– Bobby, eu nunca quis te envolver nisso tudo, me desculpe.

– Você não precisa se desculpar, eu nunca ouvi você ou o papai.

– Quer ouvir algo engraçado? Eu sentia um pouco de inveja de você por isso. Eu não tinha muita fé em mim mesmo. Eu simplesmente fazia o que o papai queria que eu fizesse. Quero dizer… Digo… Você é livre. De qualquer jeito, olha só. Eu nunca quis te meter nisso. Eu só… Talvez eu esteja dizendo isso porque não tenho dormido bem. Tenho tido pesadelos sobre o que aconteceu comigo.

O diálogo entre Bobby (Joaquin Phoenix) e Joe (Mark Wahlberg) é uma síntese perfeita tanto para a relação dos irmãos Grusinsky, como para um elemento familiar presente em todo o cinema de Gray, que sempre teve enorme interesse nessas relações (principalmente paternas). Praticamente todo o cinema de Gray é calcado na tragédia a partir do recorte familiar. Da inevitabilidade do fracasso em Fuga Para Odessa, filme de estreia do diretor americano, até Ad Astra: Rumo às Estrelas, ficção-científica na qual um astronauta (o Roy McBride de Brad Pitt) cruza a galáxia em busca de seu pai (Clifford, vivido por Tommy Lee Jones).

Em Os Donos da Noite, o gerente de uma boate (Bobby) é convocado por seu irmão (Joe) e pai, Burt (Robert Duvall), para ajudar a prender um traficante. Só há um problema: o traficante é sobrinho do dono da casa noturna onde Bobby trabalha. A El Caribe pertence à única figura paterna pela qual Bobby possui algum apreço direto. É o lugar onde Bobby foi acolhido pelo que escolheu ser, não pelo que esperavam dele. É o lugar lúdico, livre, onde Bobby não está à sombra do legado de seu pai, um dos mais respeitados policiais da cidade, e onde pode conquistar seu próprio futuro, ser o dono de seu próprio destino.

A relação humana que Gray constrói em Os Donos da Noite, portanto, é a de um homem com seu destino interrompido, sequestrado pelos laços familiares. O sujeito, que a vida inteira lutou para sair debaixo das asas de seu pai, se vê obrigado a retornar para proteger a família do conflito entre a polícia e o tráfico. Mas Gray, acertadamente, jamais se debruça sobre a trama criminal para desenvolver sua narrativa. Como em quase todo filme do cineasta, o gênero (ou o subgênero) estão ali apenas como uma capa que permite ao diretor trabalhar suas ideias.

O que dá o tom trágico a Os Donos da Noite é perceber como, no processo de reaproximação de sua família, Bobby perde tudo pelo que prezava. É uma escolha muito ousada, mas igualmente brilhante que Amada Juarez (Eva Mendes), a namorada do protagonista, simplesmente desapareça do filme, em vez de partir diretamente após uma cena conflituosa. Amada percebe que seu companheiro está sendo sugado pelo conflito familiar, desde a primeira vez em que ele a afasta (ao decidir ir sozinho para o hospital após o irmão ser baleado), até a vez em que, definitivamente, a exclui de sua vida (quando fecha a porta do hotel na cena que antecede o juramento que faz à polícia). Não por acaso, Gray faz as duas cenas referenciando diretamente O Poderoso Chefão, nos momentos em que Michael Corleone exclui Kay da cabine telefônica e, ao fim do filme, fechando a porta enquanto faz o juramento como novo chefe da família.

O fato desse afastamento ser brusco e silencioso, de forma que o espectador menos atento sequer percebe o desaparecimento de Amada até ela de fato já ter saído do filme, evidencia como Bobby, por estar cego pelo ódio, sequer percebe o que está perdendo enquanto embarca na cruzada por vingança. É uma jornada que custa não só quem ele ama, mas quem ele é e queria ser. O personagem que sonhava em ser gerente de sua própria boate, dono de sua vida, acaba por se tornar um servo de uma instituição e de um legado.

Para fortalecer e embasar a tragédia da jornada de Bobby, o uso de Joe na narrativa é preciso. Gray constrói um irmão mais velho que, diferente do protagonista, sempre seguiu o caminho decidido por seu pai, e começa a notar as consequências disso ao longo do filme. Mas, apesar disso, Gray recusa também construir em Burt um pai vilanesco, unidimensional. Quando um de seus filhos é baleado e Burt está em uma academia de boxe, ao perceber a chegada dos policiais que trazem a notícia, ele não demonstra preocupação somente com Joe, e pergunta qual dos dois filhos sofreu um atentado. À sua maneira, Burt é um pai que ama Bobby, mesmo que seu amor não tenha como frutos uma relação saudável, mas o contrário.

A tragédia fica ainda maior por percebermos que ela acontece sem que os personagens a percebam, eles só se dão conta das condições nas quais estão quando parece já ser tarde demais. Para Joe, a violência e a experiência de quase-morte parecem tê-lo traumatizado para sempre – vide o ataque de pânico que o personagem tem durante o clímax do filme –, enquanto para Bobby, essa consciência só vem no exato último plano do filme, quando ele percebe ter aberto mão de tudo que amava para, literalmente, se transformar em uma sombra do próprio pai enquanto sua vida posterior, simbolizada pela imagem de Amada, passa a ser apenas uma ilusão, um fragmento de imagem perdido no tempo.

Ainda no começo do filme, quando Bobby e Amada vão visitar Joe e Burt em uma cerimônia do departamento de polícia, Bobby brinca que um dia poderia se tornar um policial. Naquele ponto do filme, isso seria simplesmente o pior pesadelo do personagem, que se concretiza na conclusão da obra. Ao abrir mão de tudo que amava em sua cruzada pela vingança, Bobby se tornou um mero reflexo do fantasma que o perseguiu por toda sua vida. O plano final, com os dois irmãos dizendo que se amam à frente de um fundo totalmente preto, é um dos mais potentes da carreira de Gray, e mostra como ambos foram consumidos pelo legado do pai ao ponto de não haver mais escapatória sem traumas. A tragédia de Bobby e Joe não é meramente a violência ou as perdas no caminho, mas o fato de que não puderam e provavelmente jamais conseguirão sair da sombra do próprio pai, mesmo que este já esteja morto.

15/11/2022

Rua Augusta, Série de TV, 2018– , Fábio Mendonça e Pedro Morelli 

Rua Augusta: Visitamos a série sobre "sexo, drogas e rock'n'roll" da TNT (Exclusivo)

Fiorella Mattheis estrela a primeira série de ficção da emissora.

Bruno Carmelo, 4 jun 2017

No mês de maio, o AdoroCinema foi convidado a acompanhar um dia das filmagens da primeira série de ficção da TNT: Rua Augusta, projeto em parceria com a O2 Filmes, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2018. Fiorella Mattheis interpreta Mika, uma garota de classe média-alta que foge do pai poderoso e se torna stripper na famosa rua do centro de São Paulo.

Quando visitamos as gravações, um grande apartamento da praça Roosevelt servia de casa para Mika. Na história, o local pertence ao namorado da personagem (Lourinelson Vladimir), diretor da casa noturna onde ela se apresenta. As cenas também incluíam a presença de um capanga (Zemanuel Piñero) do pai poderoso, pressionando a personagem para abandonar o trabalho na noite paulistana. 

Fiorella Mattheis e Lourinelson Vladimir

As cenas dirigidas por Fábio Mendonça surpreenderam pelo tom sombrio, além das longas tomadas que exigiam grande preparação da equipe técnica e dos atores. "Fiorella, quero ver você suando frio!", pedia o diretor entre um take e outro. A atriz, concentrada, oferecia novas versões dos diálogos, numa composição mais complexa do que seus papéis anteriores em comédia populares.

Sexo, drogas e rock'n'roll

Pedro Morelli, diretor geral de Rua Augusta, explicou o teor da série: "Rua Augusta é violento. Drogas, sexo e rock and roll mesmo. Às vezes, as coisas até ficam meio Gaspar Noé - mas não chega lá, senão teria que passar às quatro da manhã. Mesmo assim o sexo é mais cru, a iluminação é escura. A gente está pesando a mão. A série original já tinha um pouco disso e fomos mais fundo com sexo e violência. É uma história sobre incesto. No primeiro episódio, os caras dão porrada no irmão da menina e o deixam em coma. A gente manteve esse peso durante a série toda. Foi o nosso caminho".

 O diretor Pedro Morelli

A série de que Morelli fala é a israelense Allenby St., de onde veio a inspiração para a versão brasileira. Mas o cineasta se encarregou de fazer mudanças substanciais na trama: "No original, há uma questão religiosa muito forte. A Mika, personagem da Fiorella Mattheis, tem uma relação incestuosa com o irmão, um caso que ela tenta superar. Eles ficam anos sem se ver e depois se reencontram. No original, essa relação era baseada na religião. Aqui, deixamos a religião de lado. Foi mais interessante abrir outras frentes na série. Criamos personagens novos e trouxemos uma questão de sexualidade que não existia em Allenby St.. É claro que ela está presente lá, mas o que temos no nosso caso é o retrato da homossexualidade e da transexualidade". 

No mês de maio, o AdoroCinema foi convidado a acompanhar um dia das filmagens da primeira série de ficção da TNT: Rua Augusta, projeto em parceria com a O2 Filmes, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2018. Fiorella Mattheis interpreta Mika, uma garota de classe média-alta que foge do pai poderoso e se torna stripper na famosa rua do centro de São Paulo.

Quando visitamos as gravações, um grande apartamento da praça Roosevelt servia de casa para Mika. Na história, o local pertence ao namorado da personagem (Lourinelson Vladimir), diretor da casa noturna onde ela se apresenta. As cenas também incluíam a presença de um capanga (Zemanuel Piñero) do pai poderoso, pressionando a personagem para abandonar o trabalho na noite paulistana. 

Fiorella Mattheis e Lourinelson Vladimir

As cenas dirigidas por Fábio Mendonça surpreenderam pelo tom sombrio, além das longas tomadas que exigiam grande preparação da equipe técnica e dos atores. "Fiorella, quero ver você suando frio!", pedia o diretor entre um take e outro. A atriz, concentrada, oferecia novas versões dos diálogos, numa composição mais complexa do que seus papéis anteriores em comédia populares.

Sexo, drogas e rock'n'roll

Pedro Morelli, diretor geral de Rua Augusta, explicou o teor da série: "Rua Augusta é violento. Drogas, sexo e rock and roll mesmo. Às vezes, as coisas até ficam meio Gaspar Noé - mas não chega lá, senão teria que passar às quatro da manhã. Mesmo assim o sexo é mais cru, a iluminação é escura. A gente está pesando a mão. A série original já tinha um pouco disso e fomos mais fundo com sexo e violência. É uma história sobre incesto. No primeiro episódio, os caras dão porrada no irmão da menina e o deixam em coma. A gente manteve esse peso durante a série toda. Foi o nosso caminho".

O diretor Pedro Morelli

A série de que Morelli fala é a israelense Allenby St., de onde veio a inspiração para a versão brasileira. Mas o cineasta se encarregou de fazer mudanças substanciais na trama: "No original, há uma questão religiosa muito forte. A Mika, personagem da Fiorella Mattheis, tem uma relação incestuosa com o irmão, um caso que ela tenta superar. Eles ficam anos sem se ver e depois se reencontram. No original, essa relação era baseada na religião. Aqui, deixamos a religião de lado. Foi mais interessante abrir outras frentes na série. Criamos personagens novos e trouxemos uma questão de sexualidade que não existia em Allenby St.. É claro que ela está presente lá, mas o que temos no nosso caso é o retrato da homossexualidade e da transexualidade". 

Versão brasileira

Como é a protagonista adaptada aos valores brasileiros? "Mika tenta superar o incesto se envolvendo com o dono da balada. Há esse grande arco de romance e amor entre os personagens que nunca se completa. Não temos um happy end", garante. "Mika é gerente da balada, trabalha, dá bronca nas pessoas. Mas a Fiorella é muito divertida, então existe um alívio cômico aí. É uma trama que também tem suas reviravoltas, e vai ficando tensa. No nosso núcleo principal, além do incesto, temos pancadaria, arma na cara, cocaína e adrenalina. Tem muito disso, o tempo inteiro. Rua Augusta é uma série de ritmo". 

Zemanuel Piñero e Fiorella Mattheis

Lourinelson Vladimir também apresenta o seu personagem: "O Alex é dono de uma boate na Rua Augusta. É pai de uma menina de seis anos e é separado. Certamente, ele não tem uma visão convencional da vida. O Alex transita entre lugares bem underground e esse ambiente familiar. É muito presente na vida dessa menina mas, ao mesmo tempo, cheira cocaína. É como se ele tivesse um pé no lado selvagem, para usar uma referência do Lou Reed. Tem essa referência do rock, da noite".

São Paulo de todas as tribos

Morelli explica o aspecto de São Paulo que pretende abordar na série: "Nós filmamos tudo aqui na região do Baixo Augusta, a região próxima da Praça Roosevelt, esses últimos quarteirões onde a cultura local está mais preservada, as baladas são menos popularizadas. Nós gostamos disso. Há também a presença do Parque Augusta. Você vê todo tipo de gente nessa megalópole tão cosmopolita. A Rua Augusta, principalmente a região mais próxima do Centro, dos metrôs, é mais se vê o cruzamento de tribos. Que eu saiba, isso não existe, pelo menos da mesma forma, em outras cidades brasileiras".

Lourinelson Vladimir

"A série é muito realista em relação às figuras que fazem parte das locações", concorda Lourinelson Vladimir. "Isso é realmente uma coisa que impressiona. Falo isso como público de audiovisual. O cuidado que se teve na escalação do elenco, na produção, na direção de arte, como as pessoas transitam entre as locações... É impressionante. A primeira vez que entrei, como o personagem Alex, na balada Hell, me pareceu ser uma puta balada boa. Eu iria lá, sabe? É um cenário viável. Há muita gente interessante e diferente na boate. A Rua Augusta oferece uma mistura de possibilidades às pessoas que se aventuram por ela, que andam nela".

Liberdade x retrocesso

O ator sublinha a importância da série nos dias atuais: "Estamos vivendo um momento de retrocesso filosófico-político. A própria Rua Augusta é um sintoma do campo oposto: o campo da maior expressão das pessoas em relação aos seus desejos e escolhas, sejam elas culturais, estéticas, ou sexuais. É pertinente que a série mostre esse lugar conturbado, ambíguo e cheio de perigos, mas também cheio de afetos. O retrato das prostitutas, o modo como são ativas, protagonistas de suas vidas, é extremamente relevante. Há 15 anos, não sei se a gente conseguiria ter clareza para lidar com isso de modo não-vitimizado. Clareza tanto de quem faz como de quem vê".

Fiorella Mattheis e Zemanuel Piñero

"A ambiguidade que a Rua Augusta tem, as contradições e a beleza da multiplicidade, é a parte que a série aproveita para o bem de todos nós, para o bem da cultura. Nesse aspecto, a série oferece um retrato da cultura de São Paulo e da nossa época, mostrando a diversidade. Ela cumpre um papel bacana nesse momento de conflitos filosóficos entre um conservadorismo aflorado e uma tentativa de manter o campo das liberdades em vigor".

16/11/22

Transamazônica - Uma Estrada para o Passado, Minissérie de televisão, 2021, Fabiano Maciel, Jorge Bodanzky

A impressão que a gente tem percorrendo a estrada, hoje, é de uma grande facada, é um corte que se faz no Brasil, quase um assassinato, e uma ferida que está aberta e nunca cicatriza (Jorge Bodanzky no final do último episódio, E06)

Transamazônica 2: Uma Estrada para o Passado 

Cinema e guerrilha 

Iracema, uma transa amazonica 

Era uma vez Iracema - Dir.: Jorge Bodanzky (2005) 

18/11/22

Aconteceu num Apartamento, The Notorious Landlady, 1962, Richard Quine

No iutubi

William Gridley (Jack Lemmon) é um diplomata americano sediado em Londres, que subloca parte da casa de Carlyle Hardwicke (Kim Novak), uma linda e sensual jovem. Entretanto Carlyle é suspeita de ter assassinado o marido e só não foi presa porque a polícia não achou o corpo, assim pedem a Gridley que os ajude encontrar alguma pista. Só que ele a considera inocente. Adorocinema

19/11/22

Não Se Preocupe, Querida, Don't Worry Darling, 2022, Olivia Wilde

Não se Preocupe, Querida oscila entre constrangedor e deliciosamente ridículo

Por melhor que sejam as performances de Florence Pugh e Chris Pine, longa não consegue disfarçar sua falta do que dizer

MARIANA CANHISARES, 21.09.2022

Harry Styles tinha razão quando disse que Não se Preocupe, Querida parece um filme. Infelizmente, não um de verdade, seja enquanto experiência pipoca, seja enquanto obra bem resolvida em si mesma. Ele está mais para aquelas produções fictícias que os personagens assistem nas séries de TV. É paródico sem a intenção de fazer rir, é crítico sem ter o que dizer de fato. Ironicamente, é um tropeço adolescente e inconsistente de uma diretora que, com base no seu lançamento anterior, tinha bem mais a oferecer.

Não dá para negar que Olivia Wilde tinha grandes ambições com o projeto — e, em outros casos, a vontade de criar algo novo bastaria para validar sua investida. Para contar a história de uma dona de casa descobrindo o que está por trás da sua vida perfeita, a cineasta deixa para trás a atmosfera leve e hilariamente feminista do ótimo Fora de Série para se arriscar no suspense e discutir papéis sociais de gênero e o saudosismo de dias ditos melhores. Quer dizer, apenas pela mudança drástica de tom é evidente a robustez da narrativa que Wilde pretendia. Aliado ao amadurecimento da sua premissa, ela orquestra o esmero notável no design de produção e na caracterização dos personagens, e reune um elenco forte, encabeçado por Florence Pugh — fatores nada banais, capazes de alçar Não se Preocupe, Querida ao posto de um dos títulos mais aguardados do ano antes mesmo de qualquer suposta polêmica dos bastidores.

É uma pena, portanto, que o longa seja mais amador que seu antecessor. Enquanto a direção de fotografia e a maioria das performances sejam, sim, dignos de nota, Não se Preocupe, Querida é incapaz de disfarçar que apresenta um ponto de vista nada particular. Na realidade, não poderia ser mais lugar-comum. Com inspirações tão óbvias que soam cópias, que partem de Stepford Wives e incluem de Alice no País das Maravilhas a Suspiria, e um texto desesperadamente raso, o segundo longa de Wilde é, no melhor, mediano — até que se torna irrecuperável.

Não se Preocupe, Querida tem um argumento que por si só reviravoltas, mistérios aparentemente inexplicáveis e uma relação de insegurança sobre no que acreditar: se no que está diante dos olhos da heroína Alice (Pugh) ou no que apontam seus “lapsos” de consciência. Era de se esperar, portanto, que a roteirista Katie Silberman fosse aplicar a mesma perspicácia que demonstrou em Fora de Série para desenvolver uma construção gradual, que fizesse de cada rachadura nessa doce e bela mentira um degrau na escalada (literal) da protagonista à realidade. No entanto, nem ela, nem Wilde demonstram destreza para traduzir essa jornada de descobertas — evidente, inclusive, na sobreposição indesejada que a trilha sonora pesada do John Powell tem sobre a história. (...)

20/11/22

O Milagre, The Wonder, 2022, Sebastián Lelio

O Milagre, The Wonder

Crítica

Os temas dos filmes do diretor chileno Sebastián Lelio se entrelaçam, mas não se repetem. Seu longa Gloria (2013) trata de uma personagem que, por ter 58 anos, é limada pela sociedade do direito a um novo amor. Similar restrição enfrenta a protagonista de Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, 2017), mas o motivo é sua transgeneridade. Essa questão de gênero assume a forma do lesbianismo em Desobediência (Disobedience, 2017), agravada pelo rigor das regras religiosas. Agora, em seu mais recente filme, O Milagre (The Wonder), que estreia hoje na Netflix, o fanatismo religioso se encontra no centro da trama.

Lelio assume uma posição ousada logo na abertura de O Milagre. Enquanto ouvimos a narração que declara a veracidade dos fatos que o filme relatará, vemos a câmera realizar uma panorâmica dentro de um estúdio, revelando o set de filmagem até entrar no cenário do filme, e dali iniciar o enredo. Essa metalinguagem mais que explícita poderia ser um exercício de maneirismo gratuito, que ainda se repete na conclusão, e também no meio do filme, quando descobrimos quem é a narradora quando a personagem olha direto para a câmera. Mas o recurso não impede que entremos na história, que facilmente nos absorve. E, mais importante, ele se justifica quando refletimos sobre o filme após assistí-lo. Afinal, essa quebra da fantasia do cinema nada mais é do que uma metáfora da desmistificação do milagre que se encontra no cerne da trama.

Comer para viver

O milagre, na história, é o fato de uma menina se manter viva mesmo sem comer nada há quatro meses. O fato acontece na Irlanda, em 1862, e a enfermeira Lib Wright (Florence Pugh) aceita a função de vigiá-la. A família extremamente religiosa da menina, Anna (Kíla Lord Cassidy), defende que o fenômeno se trata da vontade divina. Como Lib divide o turno da vigia com uma freira, e o médico local procura alguma explicação pseudocientífica, cabe à enfermeira descobrir a verdade por trás dessa situação.

Ao longo do filme, temos indícios de que Lib possui uma motivação pessoal para se envolver tanto nessa missão. Por algum motivo, todas as noites, ela bebe um tipo de xarope, fura seu dedo e desmaia após ingerir a gota de seu sangue. Seu segredo se revela na parte final, e legitima o quanto ela valoriza a vida – no caso atual, de Anna, que poderá morrer. Essa valorização fica evidente, também, nas recorrentes cenas em que vemos Lib comendo, em contraste com a menina que jejua e está definhando.

A fotografia e a conclusão

Antes de comentarmos sobre a nossa crítica à conclusão de O Milagre, precisamos enaltecer o trabalho da fotografia. O fato de ser um filme de época, que se passa no campo, em um ambiente onde a religiosidade é forte, remete a A Bruxa (The Witch, 2015), no qual o diretor de fotografia Jarin Blaschke tentou criar imagens que se assemelhavam a pinturas religiosas. Da mesma forma, a diretora de fotografia de O Milagre, Ari Wegner, consegue o mesmo efeito, em especial nas cenas dentro do escuro quarto de Anna.

Por fim, talvez a parte final enfraqueça O Milagre, ao revelar o destino dos principais personagens. Seria dramaticamente mais contundente deixar em aberto se a menina teria sobrevivido a essa experiência. Porém, Sebastián Lelio prefere se manter fiel à sua proposta, pois o final aberto daria margens ao misticismo que ele quer combater.

22/11/22

A Mulher Rei, The Woman King, 2022, Gina Prince-Bythewood

'A mulher rei': filme de Viola Davis conta história real

Exército só de mulheres inspirou as Dora Milaje, tropa de elite de Wakanda em 'Pantera negra', e fez parte da história da atual República do Benim

 Izabella Caixeta, 15/09/2022

O filme “Pantera negra” conquistou o mundo mostrando a força e a beleza que o povo negro pode ter e provou que obras estreladas por atores negros podem ser sucesso de bilheteria. Agora “A mulher rei”, estrelado por Viola Davis e com elenco formado majoritariamente por mulheres negras, vem para mostrar a história real que inspirou o exército wakandano Dora Milaje. 

"Para mim, 'Pantera Negra' foi toda essa exploração de 'você pode imaginar uma nação africana com agência para se tornar estupenda?'", disse Schulman. "E eu pensei: 'Mas, espere, há uma nação africana que teve sua própria agência que se tornou estupenda. Não temos que fazer de conta'", disse a produtora Cathy Schulman ao jornal The Day.

“A mulher rei” acumulou críticas positivas após sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Toronto. No Brasil, o longa tem estreia marcada para dia 22 de setembro.

A história das mulheres guerreiras

Em “A mulher rei” acompanhamos Nanisca, vivida por Viola Davis, comandante das Agojie, exército composto apensa por mulheres do Reino de Daomé, atual Benin, que nos anos 1800 era a força militar mais poderosa da África. Na obra Nanisca treina a próxima geração de recrutas para se defender de um reino africano maior e rival e de traficantes de escravos europeus.

"Estamos no centro da narrativa. Mulheres negras, mulheres negras de pele escura, cabelos crespos, mulheres negras. Não há salvador branco. Não somos os melhores amigos de ninguém. Temos nossa autonomia, nossa agência nisso. E é uma história incrível que não é apenas um filme de ação. É um drama histórico e nos permite humanizar mulheres que normalmente não foram humanizadas”, disse Viola ao Africa News. “É o filme que definiu minha carreira", completou.

O filme foi gravado na África do Sul e os atores passaram por intensos treinos de musculação, corrida e luta. "Eu queria criar um mundo 360. Como esta é uma peça de época, eu queria que os atores olhassem ao redor e vissem este mundo, não telas verdes em todos os lugares ou carros e aviões. Eu queria que eles pudessem ter suas mãos e pés no solo e eles queriam isso também", explicou a diretora do filme, Gina Prince-Bythewood.

Luta nos bastidores

Viola Davis, que já conquistou as principais premiações mundiais de atuação como Oscar, Globo de Ouro, Emmy e Tony, recorrentemente utiliza suas redes sociais para falar sobre a dificuldade que atores e atrizes negros enfrentam no mundo artístico. Na divulgação de “A mulher rei”, a atriz volta a utilizar sua voz para dar visibilidade à questão.

"Não temos horas suficientes, dias suficientes para descrever como é difícil fazer filmes em Hollywood com pessoas negras, mas especialmente mulheres negras. Não há palavras para quantificá-lo. E eu gostaria que houvesse microfones na sala. Eu gostaria que houvesse câmeras na sala para que você pudesse ver como é a luta do dia-a-dia e você entenderia que isso é algo a ser comemorado", disse ao Africa News.

Viola também disse à AFP que sente uma enorme pressão para que esse filme seja um sucesso, pois será julgado como filmes com elenco e diretores brancos não são.  “Se não gerar dinheiro, então isso significa sobretudo que mulheres negras, mulheres negras de pele escura, não podem protagonizar um sucesso mundial de bilheteria?”, questiona. “Porque simplesmente não é verdade. Não fazemos isso com filmes brancos. Se um filme fracassa, você faz outro filme, e faz outro filme do mesmo jeito”, afirmou.

História, representatividade e visibilidade

A diretora Gina Prince-Bythewood disse ao The Day que está orgulhosa da capacidade do filme de mostrar narrativas históricas e oferecer uma perspectiva de pessoas negras, particularmente mulheres negras, que está enraizada na resiliência, força e poder. "Quanto de nossa história foi escondido de nós, ignorado, escondido?".

Além disso, afimrou que crianças brancas estão acostumadas a se verem representadas em heróis e para as crianças negras, poder fazer isso agora é um divisor de águas, mas que levará algum tempo para reparar todo o dano que foi feito.

"Acho mais trágico para nós que crescemos nos Estados Unidos, onde nossa história começa com a escravidão. Crescemos neste país onde a maioria de nossas imagens, especialmente no passado, é de vítimas. Nós nunca aprendemos como revidamos. Ter uma história como essa para mostrar, que literalmente viemos de guerreiros... eu gostaria de ter tido isso quando era uma garotinha”, declara.

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24/11/22

Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, Bury My Heart at Wounded Knee, HBO, 2007, Yves Simoneau

ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO

por Fábio Jordan, 04 de Janeiro de 2015

Tristeza indígena sem fim

Eu sempre fui fascinado pela cultura indígena. Talvez porque eu sou um pouco índio ou quem sabe porque esses povos antigos eram muito manjadores. Fala sério, os caras sempre mandaram muito bem em vários aspectos.

Eles tinham um estilo de arte único, com pinturas nos rostos uns balaios cheio de padrões, músicas que mais pareciam os sons da floresta orquestrados, danças que eram capazes de fazer chover, isso sem contar as técnicas de pesca, navegação, caça e por aí vai.

Justamente por curtir a cultura dos índios, é que eu geralmente me interessei por filmes relacionados às histórias desses povos. Aí, um belo dia eu vi uma propaganda na HBO — isso lá em meados de 2007 — e me interessei por um filme chamado “Enterrem meu Coração na Curva do Rio”, que por sinal é baseado em um livro homônimo.

Na época, pude conferir o filme na televisão e achei demais o que ali foi mostrado, mas eu não levei o diálogo adiante além de papos com amigos durante os cafezinhos no escritório ou com meu pai que também tem muito interesse no tema — com quem, por sinal, tive o prazer de ver a minissérie Into the West, que trata de temática semelhante.

Bom, há algum tempo, por um acaso do destino, encontrei o DVD original (que é uma verdadeira raridade) e finalmente pude rever essa obra. É claro que essa segunda visita ao tema despertou várias emoções e assuntos que poderiam gerar inúmeros textos e até debates, mas hoje só quero comentar um pouco sobre a ideia do filme e traçar um paralelo rápido sobre a realidade atual desse povo.

Uma guerra injusta e sem sentido

A história nos ensinou até agora que o homem branco é um canalha. Falo aqui dos colonizadores, principalmente dos que detinham o poder, que ao longo dos séculos escravizou, massacrou, ludibriou e cometeu todo o tipo de atrocidade com diversos povos.

Quando tratamos em especial dos indígenas, podemos ver que os europeus que aqui chegaram (independente da região da América) passaram a perna em todos os nativos. Todos os locais que eram habitados pelos índios, foram tomados para a construção de cidades, ferrovias, estradas e, claro, para a exploração dos recursos naturais.

No filme, vemos essa “guerra” (em que um lado tinha todo o poder e outro estava ali apenas para morrer) já em situação avançada. O ano é 1876 e acompanhamos várias tribos e grandes líderes indígenas ainda resistindo e tentando ter seu espaço na vastidão da nação norte-americana.

Um dos protagonistas aqui é Nuvem Vermelha, líder de uma pequena tribo que acabou se rendendo às ordens do governo. Eles foram levados para a reserva Sioux, no estado da Dakota, onde ficaram sob “os cuidados” do homem branco, que julgava necessário educar ou, melhor dizendo, civilizar os nativos.

Acontece que nem todos os índios se rendiam. Touro Sentado e Cavalo Louco, por exemplo, seguiram suas tradições e não se entregaram facilmente. A resistência deles é lendária. E os nomes são ainda mais maneiros!

O filme faz questão de retratar a ganância do homem branco, principalmente por ouro, algo que era abundante nas terras Sioux, local chamado de Black Hills. Para evitar a guerra, os ingleses faziam acordos do tipo “ou vocês assinam o tratado — cedendo os direitos de uso e exploração das terras e do povo — ou morrem (de fome e na guerra)”.

É válido colocar aqui, no entanto, que o enredo não foca apenas nas desgraças. Em paralelo, acompanhamos a história de Charles Eastman, um índio que cresceu no meio dos brancos e que foi responsável por garantir direitos a seu povo e evitar futuros confrontos — como o de Little BigHorn que é retratado no longa-metragem.

Execução de qualidade

Uma das coisas que deixa Enterrem Meu Coração na Curva do Rio ainda mais interessante é a forma como ele é construído e o capricho nos detalhes. Assim como outras tantas produções da HBO, este filme também não deixa a desejar no aspecto visual, histórico, sonoro e dramático.

A obra dirigida por Yves Simoneau (um cara que se dedica especialmente a longas e minisséries televisivas) mostra toda a questão da importância que os nativos norte-americanos dão a suas tradições. Eles são muito apegados às penas, aos cabelos compridos, às roupas e outros tantos costumes que se desenvolveram ao longo dos séculos.

Felizmente, o filme retrata tudo isso de uma forma convincente, já que o elenco é quase que totalmente composto por nativos que conheceram a verdadeira história através de seus antepassados. É comum ver cenas com cinquenta ou mais índios em campo de batalha. Algumas filmagens aéreas das batalhas deixam o resultado ainda mais impressionante.

A direção de fotografia sob responsabilidade de David Franco é impagável. Os cenários mostram como os índios perderam muito nesse período e como os europeus destruíram terras que eram belíssimas. A obra fica completa com a trilha de George S. Clinton, que caprichou para dar o tom de drama aproveitando um pouco da musicalidade indígena.

Quem está à procura de um programa diferente, vale ficar de olho na programação dos canais HBO (dá pra ver no HBO GO) ou tentar achar o DVD, pois é um título ímpar e muito bonito. Ouso dizer que Enterrem Meu Coração na Curva do Rio é um longa no mesmo nível de Dança com Lobos ou de O Último dos Moicanos (exceto por conta de algumas limitações), mas com uma puxada de orelha histórica e um enredo ainda mais centrado nos nativos.

29/11/22

Wandinha, Wednesday, 2022–, Tim Burton, James Marshall e Gandja Monteiro 


Wandinha

Wandinha veio com tudo e ninguém pode negar o sucesso da série na Netflix.  Isso se deve ao fato de que a série conseguiu ser divertida e sombria na medida certa. Além disso, trouxe um novo olhar para a primogênita da querida e nada convencional Família Addams.

Wandinha é só desgosto…

Isso é o que a Mortícia diz ao explicar o porquê escolheu esse nome para sua filha. Mas, o desgosto fica só por parte do poema mesmo, pois a série agradou, e muito, os assinantes da Netflix.

Além disso, a série trouxe um novo ar com o foco na adolescente e também acrescentou alguns clichês dessa fase tão esquisita que se você ainda não passou por ela, com certeza irá me entender quando passar…

Família Addams

Antes de tudo, vamos falar sobre esta icônica família?! A Família Addams foi criada pelo cartunista norte-americano Charles Addams nos anos 30, sendo uma família fictícia de senso de humor irônico e mórbido, uma inversão satírica da família americana ideal.

Nossa querida família aparecereu originalmente num grupo de 150 painéis de cartoons, cerca de metade dos quais foi publicada na revista de elite The New Yorker entre a estreia em 1937 até à morte de Addams em 1988. Além disso, também, houve adaptações para televisão, cinema, e teatro.

Enredo e Direção de Wandinha

A direção de Tim Burton deixou a série simplesmente maravilhosa. E, de fato, o seu estilo único é bem representado nos personagens e consegue ficar bem harmonizado com o cenário.

Porém, o enredo ficou com algumas pontas soltas, assuntos mal resolvidos e algumas coisas que poderiam simplesmente não terem sido adicionadas.  Além disso, apesar de não ter nenhuma confirmação oficial, com certeza alguns detalhes da trama precisam de explicação e se faz necessário uma segunda temporada.

Elenco e Personagens

É importante frisar que Wandinha não é um remake de nenhum filme sobre a Família Addams, mas sim uma versão única que tem como foco a primogênita de Gomez e Mortícia Addams.

Acredito que a escolha dos atores para cada um dos personagens foi primorosa, e cada um conseguiu desempenhar seu papel com maestria, de tal forma que você consegue se identificar com alguns deles durante a temporada.

Por mais que eu adore as Wandinhas do passado, Jenna Ortega empenhou-se para trazer uma representação perfeita, e sem dúvidas, conseguiu. Uma Wandinha moderna sem abandonar a morbidez e sarcasmo característico da personagem.

Além da nossa protagonista, Gwendoline Christie está magnifica como Larissa Weems, a diretora de Nevermore Academy. O quadrado amoroso da série se forma com Hunter Doohan como Tyler Galpin, Percy Hynes White como Xavier Thorpe e Joy Sunday como Bianca Barclay.

Ademais, o elenco conta ainda com nomes de renome como Christina Ricci, Catherine Zeta-Jones, Luis Guzmán, Issac Ordonez, e Victor Dorobantu.

Wandinha: é bom ou é bomba?

Sem dúvidas a séria Wandinha da Netflix merece sua atenção. Ainda mais se você gosta de uma série em que os episódios fluem sem muita enrolação, fazendo com que você assista os 8 episódios sem dificuldades, pois eles são bem integrados e conseguem te prender facilmente.

Em conclusão, você precisa assistir à Wandinha!

"Wandinha", na Netflix, é uma boa surpresa 

A dança da Wandinha https://youtu.be/-249jG--DIc

Edith Piaf - Non, Je ne regrette rien (Não, não me arrependo de nada)

The Cramps- Goo goo muck 

Dublagem

Tudo sobre a minha DUBLAGEM de WANDINHA 

Conheça os dubladores de "Wandinha" (Série Netflix) As vozes dos personagens 

01/12/22

Rabo de Foguete, Visit to a Small Planet, 1960, Norman Taurog


No iutubi

01/12/22

Tuareg: O Guerreiro do Deserto, Il guerriero del deserto, 1984, Enzo G. Castellari

No iutubi

Em algum lugar do Deserto do Saara existe uma tribo de destemidos guerreiros conhecidos como Tuaregs. Entre eles, o mais poderoso e temido guerreiro é Gacel. Quando dois prisioneiros de guerra escapam e vão de encontro aos Tuaregs, a trribo passa a ser caçada por uma unidade militar, que destrói sem piedade. Agora, extremamente furioso, Gacel torna-se Tuareg, O Guerreiro do Deserto,e caçará seus inimigos até o inferno para vingar-se e salvar os últimos sobreviventes da tribo..

02/12/22

Carvão, 2022, Carolina Markowicz

Marcelo Müller, Papo de cinema

O cinema frequentemente alimenta uma dicotomia reducionista entre as vivências urbana e rural. Muitas vezes as metrópoles são observadas como áreas de perdição onde os vícios tendem a superar as virtudes. E essa abordagem comumente tem como contraponto o campo idílico. Pensando na cinematografia brasileira, artistas como Humberto Mauro e Amácio Mazzaropi reiteraram em vários de seus filmes a ideia de um interior paradisíaco em que a vida transcorre de modo simples e menos asfixiante. Em Carvão, a cineasta Carolina Markowicz rompe com esse imaginário provinciano marcado por bondade e candura. Todavia, é preciso enfatizar já nos argumentos iniciais deste texto: ela não utiliza uma corrente de mal absoluto para eletrificar as tensões no local superficialmente terno e convidativo. Neste filme, a busca não é por expor de modo simplista que o mal habita até nos rincões menos prováveis. A contradição do lugar-comum “no campo tudo é mais sossegado” está a serviço de algo mais profundo. Há a revelação de que o romantismo atrelado a esse ambiente é apenas um estereótipo encarregado de camuflar inquietações semelhantes às identificadas no âmbito cosmopolita, ainda que ambos os ecossistemas tenham características próprias. Um dos méritos desse longa-metragem é evitar que as relações de causa e consequência, de ação e reação, monopolizem o seu discurso.

Irene (Maeve Jinkings), Jairo (Rômulo Braga) e Jean (Jean de Almeida Costa) formam uma família sustentada a duras penas pelo trabalho na pequena carvoaria instalada no quintal. Há um quarto elemento, o corpo idoso em colapso do pai da matriarca, que definha por conta de um problema de saúde crônico. Os adultos pressionados pelas dificuldades financeiras aceitam uma proposta indecorosa da recém-chegada funcionária do posto de saúde local. O ato espúrio que Irene se submete a cometer, inicialmente em prol do equilíbrio financeiro, serve como deflagrador das ondas de sordidez que chicoteiam o cotidiano dessa família dali em diante. Contudo, Carolina Markowicz evita que a atitude da protagonista seja compreendida apenas como fruto do desespero e da necessidade. Ela distribui ao longo da trama indícios de que há muito mais coisas entre o céu e o inferno do que supõe a nossa inocente e vã filosofia. A chegada de outro corpo, agora um estranho (e o idioma estrangeiro serve para acentuar esse estranhamento), enfatiza que existe ali uma natureza revolta por uma série de questões anteriores ao crime cometido supostamente por urgências econômicas. Para isso é imprescindível a direção de atores e, claro, o desempenho notável dos mesmos. Ninguém é estritamente algo e pronto. E a captura da complexidade se mostra fundamental para não restringir o filme à radiografia o mal.

Considerar Carvão unicamente como a exploração de um mal natural dos homens, resgatado das profundezas pela necessidade, seria simplifica-lo. Carolina Markowicz até vai envergando as nossas concepções rumo à leitura de que o traficante escondido na casa dessa “família de bem” talvez esteja mais vulnerável do que Irene, Jairo e Jean. Aliás, Miguel (César Bordón) muda sutil e gradativamente de estatuto, se encaminhando para ser uma vítima, não de gente maldosa que expõem verdades, mas das pressões exercidas em todos os que ali moram desde cedo. Nesse sentido, o traficante que fala espanhol serve como o personagem de Terence Stamp em Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini. Sim, pois a novidade de sua presença revela algo fundamental às angústias dos que moram nesse campo superficialmente idílico. No entanto, não se trata de afirmar a maldade natural de Irene, Jairo e Jean, mas de trazer à tona as lógicas que os levam a agir de determinadas maneiras. Irene é cativa de uma repressão sexual que se manifesta na maneira afoita com ela se arrumando para tentar seduzir o forasteiro; Jairo se torna mais imprudente no exercício do caso homossexual mantido às escondidas com o vizinho por quem é apaixonado; e o pequeno Jean também corre riscos para agradar a figura que representa o ideal paterno do qual sente falta. E os problemas de uns estão interligados aos dos demais.

Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Carolina Markowicz é perspicaz ao mostrar essas sutis revoluções silenciosas que chacoalham as pessoas antes condenadas ao sofrimento em meio à pasmaceira. Sem desabonar as responsabilidades individuais, ela observa com especial atenção o meio ambiente que leva essa gente com suscetibilidades distintas a agirem de modo tantas vezes hediondo. A religiosidade, a pobreza, os preconceitos que orientam o dia a dia dessa comunidade provinciana e pouco afeita a mudanças entrecortam fundamentalmente a narrativa. Nela, o idílico da vivência campesina repetitiva é encarado como fina membrana que recobre verdades inconvenientes enfrentadas por poucos. Voltando ao ótimo trabalho do elenco, destaque ao trabalho de Maeve Jinkings. No começo, a atriz brasiliense que ficou marcada no cinema por conta de suas personagens nordestinas viscerais soa um pouco dura no papel da mineira retesada. Porém, aos poucos, sua concepção ganha substância e quando nos damos por conta ela já se afirmou como um catalisador fundamental (por sua ferocidade reativa) da abordagem diagnóstica desse drama. Rômulo Braga exibe sua competência habitual para viver homens que parecem represar um mundo de angústias dentro de si. E o pequeno Jean de Almeida Costa é uma jovem revelação com sua naturalidade e carisma. E tudo isso ganha enorme evidência por meio da direção segura de uma cineasta atenta às profundezas humanas e sociais.

‘CARVÃO’ É UM VERDADEIRO FILME-DENÚNCIA

Wilson Spiler, 3 de novembro de 2022, Ultraverso

Primeiro longa da premiada diretora de curtas Carolina Markowicz, o filme Carvão estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 03 de novembro de 2022. A produção, que foi exibida no Festival do Rio 2022, traz no elenco principal Maeve Jinkings, Romulo Braga, Camila Márdila e o argentino César Bordón.

Sinopse

Na trama, Irene (Maeve) e seu marido Jairo (Braga) têm uma pequena carvoaria no quintal de casa, numa cidade do interior. O casal tem um filho pequeno, Jean (Jean Costa), e o pai dela não sai mais da cama, não fala, não ouve. Mas tudo muda quando eles decidem hospedar em sua casa, em troca de uma boa quantidade em dinheiro, um estrangeiro misterioso, interpretado por Bordón (Relatos Selvagens).

A chegada do homem, um sujeito pouco simpático que não fala português, transforma, não necessariamente para melhor, a dinâmica da vida da família de Irene, além de os colocar risco, a ponto de ela pensar se aquilo tudo vale a pena. Assim, nenhum dos familiares – e muito menos o próprio hóspede -, vê suas expectativas cumpridas.

Normalização do absurdo

Mesmo sem abordar política diretamente, Carvão toca em uma questão crucial – e atual – no Brasil: a normalização do absurdo. Diante do momento em que estamos vivendo, com a não aceitação da vitória de Lula na eleição presidencial, com bolsonaristas bloqueando estradas e um presidente – ainda em seu mandato – acovardado e recluso, o filme de Carolina Markowicz chega em boa hora.

A própria diretora confirmou o conceito da obra em entrevista recente à “Variety” e tenta entender como chegamos a esse ponto no Brasil. “Ouvimos nosso presidente dizer que preferiria ter um filho morto a um filho gay. Ouvimos o executivo da maior seguradora de saúde dizer que foram orientados por seus CEOs a deixar as pessoas morrerem durante a pandemia porque ‘morte é alta hospitalar’”, afirmou a cineasta à publicação norte-americana.

Retrato de um Brasil pouco conhecido e investigado

Rodado em Joanópolis, no interior de São Paulo, Carvão relata bem o que acontece frequentemente em ambientes rurais e conversados pelo Brasil. O filme joga luz a questões muito relevantes que ocorrem nos mais diversos cantos do país. Se você tem dúvidas quanto a isso, recentemente o “Profissão Repórter” flagrou uma tentativa de assédio eleitoral antes do segundo turno das eleições de 2022 em Sapucaia, em Mato Grosso do Sul, município que fronteira com o Paraguai.

Com uma direção centrada em focar no absurdo e atuações magníficas – destaque para a sempre brilhante Maeve Jinkings e para o jovem Jean Costa – Carvão é um retrato de um Brasil pouco conhecido – e pouco investigado. Um verdadeiro filme-denúncia que merece atenção do grande público.

Carvão (2022): elenco do filme

Maeve Jinkings, César Bordón, Jean Costa, Camila Márdila, Romulo Braga, Pedro Wagner, Aline Marta

Ficha Técnica do filme Carvão (2022)

Direção: Carolina Markowicz

Roteiro: Carolina Markowicz

03/12/22

Pinóquio, Pinocchio, 2022, Guillermo del Toro e Mark Gustafson

O "Pinóquio por Guillermo del Toro", na Netflix, é a perfeição do stop-motion 

PINÓQUIO de Guillermo del Toro - INCRÍVEL! | Crítica do filme 

Guillermo del Toro: A Beleza do Horror 

06/12/22

O Amante de Lady Chatterley, Lady Chatterley's Lover, 2022, Laure de Clermont-Tonnerre


"O Amante de Lady Chatterley", na Netflix, é tudo de lindo 

10/12/22

A Mãe, 2022, Cristiano Burlan

Trailer Oficial A MÃE, de Cristiano Burlan 

Contido, 'A Mãe' explica importância da figura materna nas periferias

Filme dirigido por Cristiano Burlan tem atuação precisa de Marcélia Cartaxo e apaga clichês sem apelar ao dramalhão 

Inácio Araujo, FSP, 22/11/2022

Durante uma projeção de "A Mãe", a produtora-executiva do filme descreveu uma cena sintomática. Em plena filmagem, Marcélia Cartaxo, a atriz do filme, pediu a Cristiano Burlan, diretor do filme, para expor toda a intensidade dos sentimentos que carregava sua personagem, cujo filho está desaparecido.

O diretor consentiu. Então Cartaxo chora, grita, berra, quebra coisas. Ao final, Burlan comenta "está ótimo". "Isso é tudo que eu não quero ver no filme."

Bela providência, que resume bem o espírito do longa, pois, em casos como esse, o caminho do excesso não leva à sabedoria, ao contrário do que pretendia William Blake. Leva apenas ao dramalhão inconsequente.

A discrição, ao contrário, pode muito bem dar conta da experiência de uma mãe cujo filho desaparece sem razão. Talvez esteja em alguma farra, ou embarcado em uma viagem com amigos. Talvez esteja morto.

O caminho da contenção, trilhado por Burlan, supõe exatidão. E, nesse caso, a familiaridade do cineasta com o meio representado —ele é criado na periferia paulistana— conta muito. Afinal, é mais "um filme de periferia", com os infalíveis clichês do gênero, a começar pela violência policial. Como fugir à banalidade?

Tais clichês não existem à toa. A questão é representar determinadas situações dando peso de originalidade a elas. Nesse quesito, Burlan consegue criar a atmosfera da existência "nas quebradas" de modo a equilibrar a normalidade —ou seja, pessoas que trabalham, ganham a vida, se divertem — com a anormalidade —o sumiço do rapaz e o decorrente sofrimento da mãe.

Ao mesmo tempo se trata de suprimir certos clichês infalíveis, tipo tráfico de drogas seduzindo adolescentes, como consumidores ou portadores, criminosos, vítimas e crentes por toda parte. Mas violência policial não falta.

Assim, durante uma abordagem noturna contra dois jovens numa rua, procedimento tristemente trivial, podemos ver que um dos garotos, de gênio mais forte, responde de modo altivo a um policial. Nada de mais, apenas o necessário para despertar o instinto sádico de um policial, que reage com a conhecida violência.

Não é em torno disso, e sim do desaparecimento de um adolescente que o filme se move. Mais especificamente, em torno da figura materna e sua busca. Busca que envolve, primeiro de tudo, a delegacia local. Mas também as relações com a vizinhança, que são de proximidade e cooperação, mas se tornam de um momento para outro de retraimento e desconfiança.

Não sabemos de imediato por que isso acontece, mas esse é um dos pontos fortes do filme —manter a curiosidade do espectador atenta menos ao fato em si (o desaparecimento do filho) do que a essas sutilezas da vida nos bairros de periferia paulistana (as chamadas comunidades).

Outro mérito indiscutível do filme é evitar que o desaparecimento do rapaz se torne um conflito entre bem e mal, com o bem sendo representado pelos habitantes do bairro distante.

Ao tomar a mãe como centro, o filme enuncia, primeiro, uma das questões centrais da vida familiar das famílias pobres, isto é, as mães exercem a função materna e os pais se ausentam, seja por qual motivo for.

Isto é, à mãe cabe responder pelo sustento e educação do filho, ao mesmo tempo em que cabe a ela se afligir quando ele desaparece do colégio ou, como no caso aqui, desaparece. E, se um infortúnio desse tipo acontece, resta a ela, e a mais ninguém, descobrir o que se passa com o jovem.

Esse foco tem o mérito de apagar a maior parte dos clichês sobre a vida na periferia —situações reiteradamente desenvolvidas por filmes ou outros meios; não necessariamente falsas, mas desgastadas pelo uso— e, de algum modo, buscar esses temas em sua origem, explicar tudo isso.

Se o resultado final é animador, isso se deve seja à secura do desenvolvimento, de que Burlan suprime todo excesso melodramático, seja à atuação precisa de Marcélia Cartaxo, que, se pensou em fazer de sua personagem um ser desesperado, soube se conter com igual desenvoltura.

10/12/22

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro, Guillermo del Toro's Cabinet of Curiosities, Série de TV, 2022

Crítica O Gabinete de Curiosidades | Del Toro constrói boa antologia de terror

Por Diandra Guedes | Editado por Jones Oliveira | 31 de Outubro de 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro é uma das séries mais aguardadas da Netflix em outubro. A produção traz oito episódios com histórias distintas e independentes, baseadas em contos de autores do gênero como o próprio del Toro, H.P Lovecraft e Aaron Stewart-Ahn. E não podemos negar que a produção é um acerto do cineasta mexicano.

O primeiro ponto positivo que merece destaque é que, ao reunir histórias de diferentes escritores, del Toro consegue construir uma antologia bem escrita e estruturada. Além disso, ao entregar a direção dos episódios a diferentes dramaturgos, entre eles Keith Thomas, Guillermo Navarro, Jennifer Kent, faz com que a série tenha um bom desenvolvimento e que os capitulos se diferenciem entre si, sem apresentarem histórias repetitivas e cansativas.

Aliás, falando em histórias, outro acerto é que a antologia mexe com os diferentes tipos de medo do espectador. Tem desde espíritos e assombrações, até monstros exagerados. Também há cenas gore (de multilação) e animais asquerosos, como por exemplo (vários!) ratos. Inclusive, se você tem fobia desse animal, melhor passar longe de alguns episódios, especialmente do segundo.

Vale falar também que a produção acerta ao conseguir mesclar histórias bem realistas, com pitadas de sobrenatural, como no primeiro episódio. Já outras são bastante fantasiosas, no melhor estilo fábula, como no sexto “Sonhos na Casa da Bruxa” estrelado por Rupert Grint, que viveu o carismático Ron Weasley em Harry Potter e que aqui dá vida à Walter Gilman, um jovem que tenta se comunicar com sua irmã gêmea que faleceu quando eles eram crianças.


Com uma boa fotografia, e direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo), a história tem claras inspirações na obra mais famosa de J.K Rowling, mas consegue ser original e inovadora ao mesmo tempo. Rupert também se distancia do seu Ron e constrói um personagem mais maduro e adulto. 

Boas atuações

Por falar em boas atuações, não é só o ex-astro de Harry Potter que entrega um bom personagem: outros atores também contribuíram para o sucesso da série. O destaque vai para Tim Blake Nelson como Nick Appleton no primeiro episódio (Lote 36), que dá vida a um supremacista branco avarento que acaba despertando um demônio secular.

Além dele, F. Murray Abraham brilha como Amadeus em Autópsia (terceiro episódio) e Ben Barners como William Thurber em O Modelo de Pickman (quinto episódio).

Desfechos se repetem

Como nem tudo é perfeito, O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro também tem seus problemas, e o principal deles é que alguns episódios, embora tenham histórias totalmente diferentes, terminam da mesma maneira: com um monstro surrealista atormentando e matando o protagonista. Isso faz com que o desfecho perca força e se torne "mais do mesmo".

lém disso, alguns episódios são mais lentos e arrastados, como o último, O Murmúrio. Isso não é necessariamente um problema, porém quando a história se torna confusa, a trama fica comprometida. É o que acontece em O Modelo de Pickman e A Inspeção, que, embora tenham boas atuações, apresentam uma história um tanto quanto embaralhada e desinteressante.

Excluindo esses fatos, a série, no geral, apresenta boas histórias com enredos atrativos que com certeza valem o play. O destaque fica para o episódio “Por Fora”, dirigido por Ana Lily Amirpour e estrelado por Kate Micucci, que tem um “quê” de Black Mirror.

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro | Trailer oficial | Netflix https://www.youtube.com/watch?v=8scIyGWkd84

Guillermo del Toro apresenta o seu Gabinete de Curiosidades. Trazendo oito histórias distintas, Gabinete de Curiosidades é a promissora série antológica de terror curada pelo cineasta Guillermo del Toro

https://www.terra.com.br/diversao/guillermo-del-toro-apresenta-o-seu-gabinete-de-curiosidades,3bca63c6e625093470bd93def9c4568esdt1t2ma.html

13/12/22

The Mustang. 2019, Laure de Clermont-Tonnerre

MAIS DE 100.000 CAVALOS SELVAGENS, UM ÍCONE DO OESTE AMERICANO, AINDA VAGUEIAM PELOS ESTADOS UNIDOS. O EXCESSO DE POPULAÇÃO, RECURSOS LIMITADOS E A PRIVATIZAÇÃO DAS TERRAS PÚBLICAS AMEAÇAM A SUA EXISTÊNCIA. PARA DAR RESPOSTA, O GOVERNO FEDERAL CAPTURA MILHARES TODOS OS ANOS PARA AJUDAR NO CONTROLO DA POPULAÇÃO.

GRANDE PARTE DELES VIVE O RESTO DOS SEUS DIAS NUM CENTRO DE RECOLHA E OUTROS SÃO EUTANASIADOS ALGUMAS CENTENAS DELES SÃO ENVIADOS PARA A PRISÃO PARA SEREM TREINADOS POR RECLUSOS E SEREM VENDIDOS NUM LEILÃO PÚBLICO.