quarta-feira, 29 de setembro de 2021

PEC 32 por Roberto Leher

Relatório da PEC 32 aprovado na Comissão Especial harmoniza o 7/9, o neofascismo e os interesses do capital

Por Roberto Leher  28/09/2021 

Créditos da foto: (Richard Silva/PCdoB na Câmara)

Em 23/09/21, a Comissão Especial da Reforma Administrativa aprovou, por 28 votos contra 18, o substitutivo do relator, deputado Arthur Maia (DEM-Ba), à PEC 32/20 [1]. Para isso, o presidente da Câmara substituiu oito deputados do Centrão e o relator, que havia apresentado uma versão anterior retirando alguns aspectos gritantemente privatizantes. Em sua 7a versão retomou, fundamentalmente, o texto original do governo Federal, ainda mais neoliberal e coerente com a guerra cultural. Votaram a favor: Cidadania, DEM, MDB, NOVO, PL, PP, PROS, PSC, PSD, PSDB, PSL, PTB, REP. Votaram contra: AVANTE, Patriota, PC do B, PDT, PSB, PSOL, PT, PV, REDE e SDD [2]. O artigo sustenta que a divisão partidária é muito relevante para compreender como o bloco no poder atua no contexto atual.

O presente texto não objetiva realizar uma análise exaustiva e sistemática, artigo-a-artigo, do substitutivo aprovado [3], mas indicar algumas nervuras centrais que podem contribuir para explicar as motivações de sua acelerada tramitação, de sua radicalidade neoliberal e da explicitação do teor de guerra cultural. Inicialmente faz considerações sobre o contexto e, a seguir, discute as citadas nervuras que estruturam a 7ª. versão aprovada na referida Comissão e pontua breve conclusão.

1. Contexto da retomada da PEC 32

Em 24 de julho de 2021, o editorial de O Globo pareceu, à primeira vista, destoar da sequência de editoriais e de colunas que expressam o ponto de vista do jornal pessimista e, de certo modo, crítico em relação aos rumos do governo Bolsonaro. O título e o excerto em destaque são autoexplicativos: “Reforma administrativa deveria ser a prioridade do governo no Congresso”, “Aprofundamento da aliança com o Centrão dá ao Planalto plena condição de aprovar projeto este ano”. O teor do editorial confirma as chamadas: pressupõe que, afinal, com a aliança formal com o Centrão, o governo poderia corrigir seu rumo, merecendo um novo crédito de confiança. A mesma mensagem pode ser encontrada, três meses antes (25 de fevereiro de 2021), no Manifesto “O Brasil precisa de mudanças. As mudanças precisam de reforma” [4] no qual, igualmente, parte relevante das entidades empresariais sinaliza que, se efetivar as reformas, Bolsonaro pode contar com apoio de segmentos relevantes do bloco [5]. Os partidos que aprovaram a PEC na Comissão Especial possuem inequívoca conexão com os grandes meios e com as entidades empresariais.

As conexões entre grandes burgueses e o fascismo estão presentes na história. Como é amplamente conhecido, embora inexista uma correspondência linear em termos de métodos e agendas entre as diversas frações burguesas e os governos fascistas na Itália e na Alemanha, ao fim e ao cabo, ambos regimes contaram com inequívoco e ativo apoio de importantes frações burguesas; mesmo as frações recalcitrantes se somaram aos fascistas que, afinal, estavam imbuídos de suprimir as então intensas lutas de classes (soldando a fogo e sangue a junção dos ‘feixes’ constituídos pelos trabalhadores, patrões e Estado na forma do Estado orgânico) em prol dos interesses do capital: os assassinatos e as prisões seletivas da esquerda na Itália e na Alemanha corroboram sobejamente isso. Desse modo, é possível concluir que as conexões entre a grande burguesia e as experiências autocráticas, inclusive de cariz fascista, não são uma impossibilidade histórica, longe disso como assinalou Florestan Fernandes ao estabelecer nexos entre o capitalismo dependente e a autocracia burguesa.

Seria um grave problema de método estabelecer uma analogia entre o fascismo dos anos 1920 e 1930 na Itália e na Alemanha com o Brasil de hoje [6]. O que está em curso no país tem de ser examinado em suas particularidades. Não resta dúvidas de que o bloco no poder vive uma crise de hegemonia, embora não como uma tectônica crise orgânica do capital. Até o momento inexiste um forte e massivo movimento da classe trabalhadora com organização e motivação para enfrentar a ordem do capital e, por isso, as contendas intraburgueses estão se dando no âmbito das táticas e das disputas econômicas. A inclusão social dos bilionários na seleta lista da Forbes segue auspiciosa e os fundamentos do poder burguês seguem sólidos: forças armadas, aparato policial, robustos aparelhos privados de hegemonia e controle completo dos grandes meios de comunicação. 

Por tudo isso, persiste a força hegemônica burguesa e, no plano internacional, o núcleo hegemônico do capital não dá margem a rupturas, nem, tampouco, a concessões em desacordo com a ordem burguesa capitalista dependente. Não menos importante, embora com capilaridade de massa, inexiste um conjunto de ideologias que torne o bolsonarismo um movimento com um corpus doutrinário orgânico, estruturado como partido. Em suma, qualquer tentativa de transposição mecânica entre o fascismo clássico e o contexto atual será artificial e idealista. Mas isso não significa, de modo algum, que as características profundas do fascismo não estejam sendo aninhadas pelo governo Bolsonaro, como o Estado orgânico, o darwinismo social, a destruição da liberdade de cátedra e de pensamento, o cerceamento da livre organização dos trabalhadores, a criação de forças milicianas para silenciar oponentes entre tantas outras características, destacando-se os nexos de seu governo com o grande capital.

O objetivo do presente texto não é discutir o 7/9, seu fracasso ou seu êxito, mas focalizar o objetivo óbvio da “marcha” fascistizante: avançar na viabilização de um governo radicalmente autocrático, no qual o judiciário e o legislativo estivessem subjugados, liberando o governo para fazer “o que tem que ser feito”. Não se trata aqui, como é evidente, apenas da agenda econômica. A razão de ser do governo e do amplo movimento que o apoia é avançar na pauta da guerra cultural, o que não necessariamente está em harmonia com a agenda econômica. O que o capital espera que seja feito é o aprofundamento do golpe de 2016, no rastro da EC 95 e da contrarreforma trabalhista, objetivando destroçar toda a dimensão social da Constituição de 1988, o que envolve reconfigurar de modo profundo e radical o Estado. A despeito dos conflitos entre o bloco no poder e o governo, do genocídio em curso, da imensa crise econômica, do negacionismo reinante, em suma, da guerra cultural, o bloco no poder logrou muitos êxitos no atual governo: a contrarreforma da previdência; a flexibilização da legislação ambiental; a EC 109; as privatizações, a exemplo da venda dos Correios, da venda fatiada da Petrobras, o avanço na privatização da Eletrobrás e o edital para leilão do 5G.

De certo modo, as práticas escatológicas do governo, orientadas pela guerra cultural, são funcionais, pois, com isso, os grandes meios de comunicação e aparelhos privados de hegemonia podem bater forte no governo, enfraquecendo-o, exigindo, como no teor do editorial do Globo que abre este texto, pautas “racionais”, “construtivas”, “civilizadas” a exemplo do avanço nas contrarreformas demandadas pelo andar de cima, ressignificadas como uma agenda “em prol do Brasil” capaz de propiciar crescimento, empregos e assim por diante. Anunciam ainda a disposição de manter apoio “vigilante” ao governo, resguardando um certo distanciamento com o processo em curso de fascistização.

É justamente nesse contexto de imensa tensão, conflitos e revezes em relação ao alcance do 7/9 que lideranças e intelectuais orgânicos do andar de cima estão sinalizando um maior afastamento em relação ao governo, mas não uma ruptura explícita e politicamente assumida. Este modo viperino de atuação é do feitio dos bancos que, em geral, atuam discretamente. Relevantes frações burguesas criticam a prevalência da agenda da guerra cultural, em detrimento da agenda neoliberal extrema que, afinal, motivou o golpe que o Centrão e o lavajatismo, em sintonia com o capital monopolista sob dominância financeira, efetivaram em 2016. De fato, existe uma acentuada redução no ritmo e no profissionalismo das medidas para suprimir os direitos sociais da Carta de 1988, em favor da agenda da guerra cultural, gerando insatisfação no bloco no poder.

Buscando reaglutinar as possíveis dissidências no andar de cima, Bolsonaro e o Centrão reafirmam a disposição de intensificar a desconstituição da Constituição, avançando, de modo ousado, por meio da PEC 32. Com isso, Bolsonaro pretende sincronizar a fascistização em curso com o apoio do andar de cima, almejando estancar dissensões e agregar apoios entre os setores dominantes: a radicalidade da 7a versão do relator corrobora a proposição.

Com efeito, com a volta da candidatura de Lula da Silva, o risco eleitoral aumenta exponencialmente. Desse modo, é possível que, doravante, esta sincronia, expressa simbolicamente pela entrada em cena do personagem que, afinal, foi a face pública e institucional do golpe de 2016, Michel Temer, seja um movimento que pode levar determinadas frações burguesas dominantes a uma habituação com a escatologia governamental, seja apoiando a reeleição do atual mandatário, seja um nome alternativo que represente o mesmo projeto autocrático.

O artigo sustenta, por conseguinte, que a votação da PEC 32 atende, simultaneamente, aos agentes da guerra cultural, ao grande capital ávido por ampliar o acesso privado-mercantil ao fundo público, aos organizadores políticos das Forças Armadas, notadamente seus generais, ao alto judiciário, servindo, por conseguinte, para coesionar a base de apoio ao governo Bolsonaro ou de uma alternativa que represente o núcleo duro do golpe de 2016. É certo que o bloco no poder não tira do foco o fato de que o governo Bolsonaro possui objetivos que nem sempre serão os do Estado Maior do Capital. Por isso, para os dominantes, os meses que restam ao governo Bolsonaro serão de recomposição e de avanço do capital sobre os direitos da classe trabalhadora, especialmente desfazendo as bases da dimensão social do Estado. O artigo propugna que, na perspectiva da classe trabalhadora, o desfecho do projeto neofascista dependerá, em última instância, do desdobramento da agência dos que vivem do próprio trabalho e são explorados. E, por isso, o foco na luta contra a PEC 32 é tão axial para alterar a correlação de forças em defesa do serviço público capaz de assegurar os direitos sociais e humanos de toda gente.

2. PEC 32 é consoante aos objetivos da guerra cultural e do neoliberalismo extremo

a) Um Estado orgânico

A primeira nervura analisada focaliza a guerra cultural. No art. 37, caput, foram introduzidos, entre outros, três novos princípios que tornam o Estado desprovido de democracia: ‘imparcialidade’, ‘unidade’ e ‘coordenação’. As finalidades são apresentadas na Exposição de Motivos (E.M.):

O princípio da imparcialidade difere do princípio da impessoalidade (...). Trata-se de exigir que todo agente público, no exercício do seu mister funcional, se conduza de modo absolutamente imparcial, ainda que possua valorações internas pré-concebidas a respeito do tema sob exame. (destaques RL)

O texto é claro: o agente público (a grande maioria não será mais constituída por servidores, mas por empregados públicos) não pode realizar escolhas éticas. Como pode ser visto a partir dos dois outros princípios, o agente público obedece, cumpre determinações e não pode recontextualizar as prescrições estatais. Neste prisma, o fim da estabilidade da imensa maioria da força de trabalho no âmbito da Administração Pública é um ato ao mesmo tempo econômico e político. Caso o agente público não se coadune com as prescrições, sua avaliação será negativa, motivo suficiente para a demissão do trabalhador, conforme estabelecido na PEC 32.

O princípio da “unidade” é explicado na E.M.:

Pelo princípio da unidade entende-se que quando um agente público esta%u001 atuando, qualquer que seja a matéria, o momento ou o lugar, sua atuação somente será%u001 legítima se estiver dirigida a alcançar as finalidades da Administração. (...) A divisão da Administração em seus mais diversos níveis, estruturas e funções se produz apenas para lograr uma divisão racional do trabalho, a%u000 luz da repartição de competências, mas todos esses níveis, estruturas e funções devem atuar guiados pelos mesmos fundamentos, com as mesmas finalidades e pelos mesmos princípios (...), formando um todo harmônico e coerente. (destaques RL)

O terceiro princípio incluído no caput do art. 37, consolida a concepção de Estado pretendida:

O princípio da coordenação visa a entrosar as atividades da Administração, de modo a evitar (...) a divergência de soluções e outros males característicos de uma burocracia fragmentada. Coordenar e%u001, portanto, harmonizar todas as atividades da Administração, submetendo-se ao que foi planejado (...). De aplicação permanente, a coordenação impõe-se a todos os níveis e poderes da Administração (em sentido amplo), obrigando-a a se articular de modo mais orgânico, inclusive entre os órgãos dos diversos níveis da federação. (destaque RL)

A concepção de fundo aqui é o Estado orgânico do fascismo [7]. As ações do Estado são unas, nenhum desvio pode ser tolerado. O cérebro do líder e as orientações do partido da ordem governam todo o Estado.

A perspectiva de um Estado orgânico é perseverada na versão aprovada hipertrofiando as prerrogativas presidenciais. Coerente com a concepção, a PEC 32 atribui ao presidente o poder de, por meio de decretos, moldar o Estado aos princípios orgânicos do Estado. Com a PEC 32, o artigo 84, VI, da Constituição é substantivamente alterado.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

Embora explícito no texto, é pedagógico ressaltar que a PEC permite que o Presidente, por meio de decreto, portanto, por ato monocrático, possa criar, fundir e extinguir entidades da administração pública autárquica e fundacional. É o que Bolsonaro está fazendo ao desmembrar Institutos Federais de Educação Tecnológica para ampliar sua bancada de reitores. Pela PEC, um Presidente pode extinguir universidades, fundir instituições, alterar cargos públicos efetivos e até mesmo suas atribuições. Todas as instituições críticas em relação ao governo poderão ser remodeladas em função da concepção de planejamento e de Estado do Presidente que passa a gozar de um poder hipertrofiado para moldar o “seu” Estado orgânico. Mussolini, Hitler, Salazar, Franco assim conceberam o Estado e o poder do líder supremo. Todas essas prerrogativas concedidas ao Presidente resultam da agenda da guerra cultural: o Estado torna-se um aparato de casamatas para avançar na reforma moral, cultural, religiosa e educacional em favor dos “verdadeiros” “valores” do povo.

b) Estado subsidiário: Um Estado que somente atue nas esferas em que o setor privado não tem interesse.

O objetivo de instituir o Estado subsidiário é o aceno ao bloco de poder de que, com a mudança constitucional, poderá atuar no fornecimento da educação, saúde, previdência, assistência social e mesmo de atividades como fiscalização, normatização e regulação. Todas as atividades tidas como não exclusivas poderão ser transferidas e executadas pelo setor privado-mercantil, escancarando a transferência do fundo público para os agentes do capital.

O tema é tão central que o governo e o Centrão introduziram um novo artigo na Constituição: 37-A.

“Art. 37-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão, na forma da lei, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira.

§ 1o Lei federal disporá%u001 sobre as normas gerais para a regulamentação dos instrumentos de cooperação a que se refere o caput.

§ 4o A utilização de recursos humanos de que trata o caput não abrange as atividades privativas de cargos típicos de Estado.” (NR) (Destaques RL)

A E. M. complementa:

[Com as parcerias] garantindo assim que um Estado moderno, que cumpre sua função estabelecida pela Constituição, esteja apto a firmar os mais diversos tipos de parceria com a segurança jurídica necessária a garantir a prestação de serviços essenciais a%u000 população. A utilização de recursos humanos proposta não abrangera%u001 as atividades privativas de cargos típicos de Estado. (destaque RL)

O texto é inequívoco: todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, inclusive as essenciais à população, podem ser objeto de execução pelo setor privado, excetuando aquelas concebidas como privativas do Estado. Desse modo, por meio de lei ordinária, toda área social, meio ambiente, pesquisa científica e tecnológica, universidades poderão ser geridas e executadas por entes privados. O Estado será uma grande Ebserh, piorada, pois todas as suas atividades na esfera social serão exploradas pelos grupos econômicos privados-mercantis. Aqui não são as organizações sociais, mas as corporações que irão explorar os ditos serviços essenciais. Isso explica o empenho dos editoriais dos grandes meios de comunicação e os manifestos empresariais em prol da PEC 32. Neste sentido, o texto da PEC 32 tem o mérito de explicitar os seus objetivos.

A grande força da PEC 32 decorre do fato de que é uma nova mudança constitucional já lastreada por mudanças anteriores, especificamente: a EC 95 que, ao discriminar, congelar e reduzir os gastos primários, criou as condições para que os neoliberais e os agentes da guerra cultural pudessem atacar os gastos não discricionários, especialmente pessoal, tema crucial não abordado no presente texto, mas que serve de amálgama para todas as medidas aqui discutidas; a EC 109, que estabeleceu que sempre que as despesas primárias obrigatórias alcançarem 95%, uma trava é acionada, exigindo cortes nos gastos obrigatórios; a PEC 32 coroa o processo, pois permite: fortes cortes nos gastos com pessoal, pois os contratos serão flexíveis, vulneráveis e, para a grande maioria, sem estabilidade (excetuando as atividades exclusivas de Estado); fusões e extinções de órgãos públicos a bel prazer presidencial e, finalmente, a contratação de entes privados para fornecerem o que era atividade do serviço público.

Frente de esquerda

A análise, ainda que parcial e preliminar, permite concluir que a construção da frente de esquerda e democrática, imperiosa e estratégica para a harmonização da democracia política com a democracia econômica, terá que incluir com centralidade e resolutividade o enfrentamento, entre outros, da tríade: EC 95, EC 109 e PEC 32.

Caso a PEC 32 seja aprovada e entre em vigor estará sacramentado o fim dos principais dispositivos constitucionais relativos aos direitos sociais, aos direitos humanos e a pluralidade de concepções que deve caracterizar o serviço público. Permitir que a extrema direita consolide o Estado orgânico é um risco alto demais para a democracia no Brasil. A conclusão, por conseguinte, é: toda prioridade para barrar a aprovação dessa mudança constitucional comprometida com o fascismo e com o fim da dimensão social do Estado.

Rio de Janeiro, 26/9/21

Roberto Leher

Universidade Federal do Rio de Janeiro

******

[1] Comissão especial conclui votação da reforma administrativa. Agência Câmara de Notícias, 24/09/21, https://www.camara.leg.br/noticias/809694-comissao-conclui-votacao-da-reforma-administrativa

[2] Como cada deputado ou deputada votou

[3] . Os estudos do DIEESE contribuem de modo relevante para uma análise sistemática da PEC 32. Ver Dieese 

[4] Entidades empresariais lançam manifesto favorável à PEC Emergencial. Redação DC, 25 de fevereiro de 2021, https://dcomercio.com.br/categoria/brasil/entidades-empresariais-lancam-manifesto-favoravel-a-pec-emergencial

[5] . Leher, R. Um jantar à luz da autocracia burguesa, Carta Maior, 13/4/21, 

[6] MATTOS, M.B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. SP: Usina Editorial, 2020.

[7] Pinto, António Costa. O corporativismo nas ditaduras da época do Fascismo. Varia Historia [online]. 2014, v. 30, n. 52 [Acessado 26 Setembro 2021] , pp. 17-49. Disponível em: . Epub 22 Maio 2014. ISSN 1982-4343. https://doi.org/10.1590/S0104-87752014000100002.


Carlos Lamarca

Como eu tirei as fotos de Lamarca ensinando mulheres a atirar e perdi o crédito por elas.

Publicado por Bia Parreiras - 28 de setembro de 2021

Eu comecei a fotografar durante a efervescência do Movimento Estudantil em 1968 e logo fui convidada a estagiar no jornal Última Hora, na sucursal de São Paulo. Eu estava com 20 anos e cursava a faculdade de Sociologia. 

A cobertura da matéria pautada era ir até Osasco, em Quitaúna, fotografar o treinamento de tiro ao alvo das caixas do Bradesco para defenderem as agências bancárias de assaltos. 

Eu cheguei ao quartel e percorri com os olhos todas as cenas. Havia um grupo de executivos vestindo terno e gravata, mais vários militares fardados ostentando muitas estrelas. O grupo de garotas com outros fardados sem estrelas. As garotas empunhavam armas mirando num alvo com dois ou três treinadores. 

Comecei a fotografar sem entender o porquê daquele monte de gente. Lá pelas tantas me deu vontade de atirar e pedi para o capitão e ele me passou a arma, que era de calibre baixo. 

Eu reconheci porque morei muitos anos em fazenda e junto com o meu irmão praticávamos tiro ao alvo com espingarda de chumbo. Assim, eu segurei firme a arma, mirei concentrada e acertei o alvo. 

Depois voltei a fotografar e fui para o grupo de homens olhar quem teria de importante. Lamarca logo apareceu por lá e e se reuniu com o grupo. 

Lamarca em 1968 (FOTOS DE BIA PARREIRAS)

Ele era de um um dos melhores atiradores e campeão brasileiro nessa modalidade, o que logo soube pelos comentários do grupo. Era uma pessoa respeitada por todos os seus superiores, por isso foi convidado para dar esse treinamento. 

O evento continuou e em seguida aconteceria um plantio de árvores pelos convidados. Foi então que o Lamarca se aproximou de mim e pediu que eu plantasse uma árvore, em nome da imprensa, para o Exército Brasileiro. Eu recusei imediatamente, agradeci e me afastei, mas ele voltou a me procurar e insistiu. A essas alturas eu já estava com medo de ser presa se recusasse e plantei a árvore.

Quando eu cheguei de volta em casa contei a história para um grupinho de amigos que sempre se reunia para discutir as estratégias do Movimento Estudantil em torno de uma mesa de mármore. Era na casa da minha tia, onde eu morava. 

Todos me deram a maior bronca por eu ter plantado a tal árvore. Isso foi em dezembro de 1968 e o AI5 foi decretado dias após o treinamento. 

Um mês depois o capitão Carlos Lamarca https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Lamarca desertou do exército e fugiu com um caminhão lotado de fuzis para iniciar a guerrilha contra a ditadura. Ele tinha 32 anos anos quando fez isso. 

Claro que a minha turma de revolucionários estudantis me pediu para repetir cada palavra que o nosso herói falou comigo. E o Exército Brasileiro a que ele se referiu era o da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR.

Lamarca ensina caixas de banco a atirar (FOTOS DE BIA PARREIRAS)

Desde 1969 as as fotografias que eu fiz naquele dia vêm sendo publicadas na imprensa, livros, enciclopédia etc sem o meu crédito, que se perdeu lá atrás quando a Última Hora foi vendida. Tudo isso foi contado só para amigos e amigas e eu nunca assumi publicamente, mesmo com o ressentimento de ter uma fotografia histórica não reconhecida.

Lamarca em 1968 (FOTOS DE BIA PARREIRAS)

Agora, foi o grupo Fotógrafos pela Democracia que me motivou e cobrou essa declaração pública. Eu demorei para juntar as peças dessa História. Primeiro fui ao arquivo oficial do Estado de São Paulo, onde encontrei algumas ampliações e publicações do Última Hora. 

Depois fui no arquivo da Folha, onde estão algumas poucas tiras dos dois filmes TRI X e o restante foi levado para outros jornais, porque ainda não havia controle e organização. Eu fui pesquisar isso só depois que me aposentei da Editora Abril, porque era um trabalho demorado e antes eu não tinha tempo. 

Lamarca (FOTOS DE BIA PARREIRAS) 

Tem mais outro detalhe: naquela época as fotografias publicadas não levavam crédito, por isso eu estou assumindo publicamente que a autoria dessas fotografias do capitão Carlos Lamarca, um grande herói brasileiro, que lutou contra a ditadura militar assassina, são que minha autoria: Bia Zaccarelli Parreiras.

Naquela época, eu era Beatriz Zaccarelli

Bia Parreiras e suas fotos de Carlos Lamarca


Bia Parreiras

Fotógrafa desde 1968, Bia passou pelas redações de Última Hora, Veja (em duas fases), Exame, Vip, Playboy, Quatro Rodas, Viagem e Turismo e Guias Quatro Rodas.

Óbito também é alta

"Óbito também é alta, reduz oxigênio": advogada revela Auschwitz brasileira

Ricardo Kotscho, UOL, 28/09/2021

"Se a economia afundar, acaba o governo, tem disputa de poder nisso" (Presidente Jair Bolsonaro, ainda no começo da pandemia)

Ao final do dilacerante depoimento à CPI da Pandemia dado nesta terça-feira pela advogada Bruna Morato, que representa médicos demitidos da Prevent Senior, por se recusarem a ministrar o "kit Covid", eu me lembrei das histórias que ouvia dos meus pais na infância, sobre os horrores dos campos de concentração dos nazistas na Segunda Guerra.

Em Auschwitz, território que hoje pertence à Polônia, mas era então ocupado pela Alemanha, o carrasco Mengele reduzia os judeus presos a cobaias humanas e se comprazia com isso, como se viu nos filmes, antes de mandá-los para os fornos nas câmaras de gás. "Eu vi minha mãe saindo pela chaminé no dia 6 de outubro de 1944. É uma porcaria ter que lembrar isso, mas eu lembro de tudo...", me contou Andor Stein, que passou 13 meses no inferno de Auschwitz, sobreviveu ao Holocausto e tinha 91 anos em 10 de novembro de 2019, quando o entrevistei para a Folha. A reportagem pode ser encontrada no arquivo eletrônico do jornal ou no Google.

De passos firmes, baixinho e franzino, um pouco curvado pela idade, veio ele mesmo abrir o portão da sua casa no Brooklin, na zona sul de São Paulo, e desandou a falar daqueles horrores da guerra, eu nem precisava fazer perguntas. De vez em quando, me filava um cigarro, escondido da mulher. Na época, ele ainda dirigia o próprio carro e, dono de uma memória fantástica, fazia questão de me contar a tragédia vivida nos mínimos detalhes, como se tudo aquilo tivesse acontecido ontem, com outra pessoa, não com ele. 

E por que me lembrei dessa história?

Porque muitos pacientes da Prevent Senior e de outros hospitais brasileiros, que adotaram o "kit Covid" de remédios ineficazes e perigosos para a saúde, receitados pelo "gabinete paralelo" do governo Bolsonaro, não tiveram o mesmo destino milagroso de Andor Stern, uma figuraça. 
Morreram sem precisar, com requintes de crueldade.

A passagem mais escabrosa do longo relato de Bruna Morato foi quando ela contou o que ouviu de um médico da rede. Era indicada a redução do fornecimento de oxigênio por respiradores a pacientes internados em determinadas UTIs por mais de 10 dias. "Esses pacientes evoluíam a óbito dentro da própria UTI e se tinha uma liberação de leitos". Foi a forma encontrada para economizar custos.
"Óbito também é alta", ouviam os médicos muitas vezes, segundo Morato. Nada aconteceu por acaso. Como os clientes da Prevent Senior eram idosos com média de idade de 68 anos, as principais vitimas no início da pandemia, em março do ano passado, era preciso evitar as internações e liberar leitos de UTI à medida em que a doença avançava.

Ao mesmo tempo, no Palácio do Planalto, para a economia não afundar e o governo não acabar, o presidente montou um grupo de cientistas malucos dispostos a qualquer coisa para defender a imunidade de rebanho e combater as medidas de isolamento social.

A ordem era para ninguém ficar em casa e todo mundo sair à rua para trabalhar. Vendo sua margem de lucro diminuir e sem leitos suficientes para atender à demanda crescente, os donos da Prevent Senior mandavam motoboys entregar cloroquina e outras fórmulas milagrosas na casa dos clientes, sem antes fazer qualquer teste ou exame nos pacientes.

Segundo Morato, criou-se um "pacto" entre a operadora e os sábios conselheiros do presidente, à revelia no então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido, trocado mais à frente pelo general Eduardo Pazuello, aquele mesmo do "um manda e outro obedece", após breve passagem do médico Nelson Teich.

O objetivo era usar o chamado tratamento precoce com o "kit Covid" para dar uma esperança de cura à população e evitar o fechamento da economia. Mas, o que mais espantou os senadores, foi outra revelação feita pela advogada, quando ela disse que o tal "gabinete paralelo" atuava em parceria com o Ministério da Economia, que só queria ver o povo trabalhando, sem essa história de lockdown dos governadores, que na verdade nunca aconteceu.

"Este foi o mais impactante depoimento que já vimos até agora nesta CPI. Mostra uma cena macabra", disse o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues, ao encerrar a sessão. De fato, a valente advogada Bruna Morato _ sempre elas! _ , que já teve seu escritório invadido e está sofrendo ameaças, ligou as pontas soltas das relações promíscuas deste plano de saúde com a política negacionista do governo, a omissão os conselhos de medicina e dos órgãos oficiais de fiscalização e controle.

Só assim conseguimos chegar à marca de quase 600 mil mortos e mais de 21 milhões de contaminados, com a economia em frangalhos, e um povo que perdeu a esperança de que algo possa mudar, enquanto tivermos esse governo e a medicina privada dos planos de saúde fora de qualquer controle. 
Por isso, vieram-me à memória as piores lembranças. Nós não estávamos em guerra, não tivemos câmaras de gás, mas demoramos a descobrir as grandes maracutaias público-privadas reveladas pela CPI na maior tragédia da nossa história recente.

Ninguém é inocente nessa história escabrosa, mas os principais responsáveis pelo nosso Holocausto precisam ser exemplarmente processados e punidos para que o país possa voltar a acreditar em si mesmo. 

Não, a CPI não acabou em pizza. E os seus efeitos estão só começando.

Sem a gente perceber, Auschwitz ressurgiu aqui, com o corte de oxigênio dos respiradores, sob o lema de que "óbito também é alta", e distribuindo toneladas de cloroquina, que não cura, mas pode matar. . Quem diz e faz uma coisa dessas, não pode mais viver entre nós. 

Vida que segue.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O que determina a qualidade da educação é a pedagogia, não a tecnologia

Conectividade, formação de professores e proteção de dados estão entre os desafios da relação entre tecnologia e educação

Entrevista com Paulo Blikstein

Alex Gomes e Ocimara Balmant, especial para o Estadão, 24 de setembro de 2021

É fato: quando, há 18 meses, todas as escolas do País fecharam as portas, o ensino remoto e mediado pela tecnologia foi o único caminho possível para que o aprendizado não fosse paralisado. O uso das ferramentas tecnológicas, que ainda engatinhava no sistema educacional brasileiro, foi disseminado. Mas do jeito que deu. "A pandemia foi um regime de emergência e todos fizeram o possível para reduzir danos, mas, quando vamos perenizar, precisamos saber o que foi emergencial e o que queremos que seja efetivo nas nossas escolas", afirma Paulo Blikstein, professor da Escola de Educação da Universidade de Columbia (EUA).

"Muita gente diz que o futuro é a educação híbrida. Mas de qual ensino híbrido estamos falando? É fazer aula pela internet ou trabalhar com a pedagogia de projetos, empoderar o aluno? Você quer uma criança três horas por dia no Zoom e que vai para a escola uma vez na semana?", questiona Blikstein, que também é diretor do Transformative Learning Technologies Lab (TLTL) e presidente-fundador da comunidade Ciências da Aprendizagem Brasil.


O especialista enumera quatro desafios, que vieram à tona durante a pandemia, para a implementação da tecnologia nos processos educacionais. "O primeiro deles é que precisamos distinguir emergência de reinvenção", observa. Além disso, ele cita a questão da carência de infraestrutura e conectividade; a urgência em criar um ecossistema de formação de professores e gestores escolares que englobe universidades, terceiro setor e governo; e, um ponto importante e pouco abordado, a necessidade de legislação e suporte técnico para garantir a proteção de dados dos estudantes. 

Para o especialista, a mediação humana é especialmente importante para as crianças, que ainda estão ‘aprendendo a aprender’  Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Leia, a seguir, a entrevista completa.

Você e outros especialistas são categóricos ao afirmar que, por mais sedutora e avançada que pareça, nenhuma solução tecnológica é capaz de substituir a mediação humana na educação. Acreditou-se que isso seria possível?

Havia uma distopia, principalmente no mundo das empresas de tecnologia, de que, quando o aluno pudesse estudar no seu tempo e no lugar que escolhesse, isso o liberaria das amarras da educação tradicional, iria personalizar a educação. Isso foi um grande fracasso porque o que determina a qualidade da educação é a pedagogia, não a tecnologia. Além disso, a escola tem o papel de organizar o tempo e o espaço do aluno. São as habilidades metacognitivas. Pesquisas mostram que, para as crianças, a mediação humana é muito importante. Nessa fase, não se aprendem somente conteúdos, mas também práticas de aprendizagem. Ainda se está aprendendo a aprender, ou seja, como monitorar o próprio aprendizado, quais fontes de conhecimento são mais adequadas para diferentes situações.

Quando você é adulto e faz um mestrado a distância, tais habilidades já estão estabelecidas, por isso um modelo de aprendizagem autônomo funciona.
Os mediadores também são fundamentais para estudantes com dificuldades de aprendizado, sejam de qual fase forem. O que vemos nas pesquisas é que, para alunos com melhor desempenho, a questão entre usar ou não o ensino digital representa pouca diferença. Já para os estudantes com mais dificuldade a transição do modo presencial para o remoto ou híbrido é mais difícil; eles precisam mais da mediação humana.

Isso mostra que ideias de substituir a educação presencial por um modelo remoto sem o devido preparo podem resultar em um ambiente de desigualdade muito grande. Não podemos tratar todos os alunos da mesma forma. Se a gente está pensando em soluções híbridas, precisa desenhar mecanismos de compensação, como tutoriais e diagnósticos mais rápidos.

Paulo Blikstein é professor na Escola de Educação e no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Columbia (EUA) Foto: ARQUIVO PESSOAL

É preciso integrar a tecnologia com a interação, e ter uma mediação feita por professores com acesso a formação e condições de trabalho, não é mesmo?

É imprescindível que o professor tenha condições de conhecer e dar suporte ao aluno. Uma coisa é falar de uma educação híbrida na qual o professor tem um número adequado de alunos, cuidando deles presencialmente e a distância. Outra é um modelo no qual o docente tem de dar conta do triplo de alunos do que seria apropriado. Nessa situação, não há como saber o que está acontecendo com eles, diagnosticar dificuldades. Ele não vai conhecê-los e mal vai encontrá-los.

O professor deve estar no centro do processo que mescla interação e aprendizado mediado pela tecnologia. Ele é o maestro que combina diferentes mídias e formas de aprendizagem. Por isso, me preocupo bastante com redes e sistemas que pensam em fórmulas únicas de ensino híbrido. O que funciona em uma escola pode não funcionar em outra. Quem tem de decidir a forma de combinar as modalidades de ensino e dar diagnósticos sobre o que funciona é o educador.

Quais ações práticas as redes de ensino devem adotar para manter professores em sintonia com o universo digital?

É preciso criar um ecossistema com universidade, terceiro setor, governo… Tudo para gerar pesquisa e programas para formação de professores e gestores. Há 15 anos, dar formação em tecnologia educacional era fácil. Você ensinava o professor a usar duas tecnologias e pronto. Hoje tem realidade virtual, laboratório maker, videoaulas, softwares e aplicativos específicos para aulas que exigem um treinamento avançado.

Mas é preciso ter em mente que tais recursos tecnológicos não estão inventando novas pedagogias. As teorias educacionais continuam com seu papel essencial, podendo agora se valer do universo digital para complementar o que já sabemos sobre aprendizagem humana e expandir nossas possibilidades. Por isso, volto a frisar: o professor tem de ser o arquiteto das experiências de aprendizagem, tem de conhecer as ferramentas tecnológicas para aplicar um sólido desenho pedagógico. Se uma aula digital é pertinente para a pedagogia, pode ser aplicada. Não se deve, nunca, colocar a tecnologia em uma posição anterior à pedagogia.

Como podemos agir rápido, principalmente nas escolas de periferia, onde o domínio das ferramentas tecnológicas é ainda mais incipiente? Como usar a tecnologia para buscar a equidade? 

Temos de considerar que as escolas da periferia ou em regiões de baixa renda são as que vão precisar de maior suporte, mais ajuda para fazer o ensino digital acontecer. Uma estratégia é recomendar que as secretarias de educação contratem um professor extra de tecnologia, que não vai só dar aula nos laboratórios, mas também ajudar os outros professores a redesenhar sequências didáticas usando tecnologia. As tecnologias são muito diversas e é difícil para professores não iniciados se aprofundarem.

Como o ensino digital colabora ou dificulta os processos de monitoramento e avaliação escolar?

Algo terrível que vimos na pandemia é a forma de avaliação na qual o aluno faz a prova em casa e um software usa a câmera e outras fontes de dados para ver se ele está colando. Isso é terrível e opressor. Temos casos de crianças que estavam tensas com um exame e o sistema de monitoramento erroneamente interpretou como tentativa de fraude e a prova foi cancelada. Se uma escola precisa se valer desses recursos, significa que é o modelo de prova e não o estudante que está errado. Os alunos podem ser avaliados por meio de projetos, portfólios e outros tipos de trabalhos, em vez da fórmula de perguntas e respostas.

E temos ainda a questão da conectividade, porque muitos alunos não têm nem a ferramenta apropriada.

Vemos escolas que oferecem tablets, com suas telas pequenas e pouco poder de processamento, achando que estão atendendo às necessidades dos alunos. Isso não é suficiente. Também não podemos achar que basta a criança estar com um celular já conectado e está tudo resolvido. Os smartphones podem ser usados para muitas coisas, como ler, ver um vídeo, conversar com amigos, tirar fotos, mas não para escrever textos de cinco ou dez páginas. Para tarefas que precisam que se escreva bastante, ou outras que envolvem simulações científicas e criação de diagramas, por exemplo, é necessário um computador de mesa, com teclado e monitor.

No Brasil, o fornecimento de tecnologias e equipamentos adequados aos estudantes deveria ser um dever do Estado. Somos um país desigual; não podemos esperar que famílias de baixa renda consigam comprar um computador ou tablet para as crianças e arcar com planos de internet com acesso em banda larga. Computador tem de ser como livro didático, uniforme.

A proteção de informações pessoais, estabelecida na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), traz novos desafios às escolas. Como as instituições devem se preparar para lidar com essas questões?

A questão da proteção de dados é fundamental porque saímos de um cenário em que havia poucos dados das crianças nas redes para um universo no qual enormes quantidades de informações sobre elas circulam sem controle. Temos diferentes empresas armazenando esses dados, algumas sem contratos claros de como eles serão tratados. E empresas de tecnologia são compradas e vendidas o tempo todo, com os dados possuídos sendo comercializados junto. Não temos legislação específica para dados educacionais e há vários problemas que precisamos equacionar. 

Não queremos, por exemplo, que empresas utilizem dados de crianças de escolas públicas para monetizar, para aproveitá-los no desenvolvimento de inteligência artificial que será vendida no mercado ou gerar outros tipos de receita.
Quanto às câmeras nos ambientes da escola, temos de legislar seu uso. Não queremos chegar ao ponto do que ocorre em alguns países, nos quais câmeras detectam se a criança está distraída, um uso muito questionável das tecnologias.

Precisamos ter assessoria técnica para as secretarias de educação lidarem com todas as questões envolvendo o uso de dados, com apoio de órgãos como o Ministério Público, governos e uma legislação específica para os dados na educação. A proteção de dados na escola é fundamental.

Charles Mingus, a música depois da morte

O contrabaixo de Charles Mingus continua vivo e respirando, usado em sua orquestra póstuma

Ruy Castro, 26/09/2021, Folha de São Paulo

Charles Mingus (1922-1979), talvez o maior contrabaixista da história do jazz, já nos deixou há muito. Mas seu contrabaixo, ou o seu favorito, que ele usava nos discos e concertos, continua ativo. Um amigo me escreveu contando que acabara de assistir em Nova York a uma apresentação da Mingus Big Band, formidável organização mantida pela viúva Sue Mingus, e teve um arrepio quando se anunciou que o instrumento da orquestra naquela noite seria o três-quartos original de Mingus, amorosamente preservado.

Não é um instrumento comum, informaram. Foi fabricado em 1927 por um luthier alemão, Ernst Roth, e comprado por Mingus nos anos 50 a um colega na pior —sabe-se lá a quem pertencera antes. Os sulcos no espelho, sobre o qual ficam as cordas, são as marcas de suas unhas. As cordas, de aço, são as mesmas Thomastik-Spirocore 3885.0 com que Mingus substituiu as de tripa. E a figura esculpida na voluta é uma cabeça de leão. Nenhum fã de Mingus pode ficar indiferente ao ouvir ao vivo o bichão com que ele gravou "Moanin'", "Eclipse" ou "Fables of Faubus".

Ao saber que o contrabaixo de Mingus está vivo e respirando, perguntei-me para onde terão ido certos instrumentos depois da morte de seus donos —como os violões de Garoto, as gaitas de Edu, o violino de Fafá Lemos. Estarão silenciosos num armário? Perderam-se para sempre?

Do destino dos trombones de Raul de Souza fiquei sabendo. Já doente, ele os vendeu a um comerciante francês pouco antes de sua morte, há algumas semanas, num hospital em Paris. Mas essa terá sido só a morte física de Raul. A principal aconteceu quando, ciente do fim, ele se despediu de seus instrumentos.

Tive a felicidade de, um dia, ver e ouvir aquele contrabaixo abraçado pelo próprio Mingus. Foi em maio de 1977, no Teatro João Caetano, no Rio. O difícil era saber se era Mingus quem o tocava ou se suas mãos eram a extensão de um instrumento com vontade própria.

Moanin - The Mingus Big Band


Charles Mingus Sextet, at the University Aula, Oslo, Norway, april 12th, 1964


Charles Mingus featuring Eric Dolphy, "Fables of Faubus", live in Paris 1964


domingo, 26 de setembro de 2021

Mad Max - Estrada da Fúria

 

'Mad Max', de George Miller, brilha no Festival de Cannes

Filme traz no elenco Charlize Theron e Tom Hardy; desconfie de quem diz que é insosso

Luiz Carlos Merten, O Estado de S.Paul, 15 de maio de 2015, O Estadão

CANNES - Pela manhã de quinta, 14, o repórter foi ver Mad Max - Estrada da Fúria só para conferir como a ópera apocalíptica de George Miller ficaria na tela gigantesca do Palais. Afinal, o filme de George Miller já fora visto em esplêndidas condições de imagem e som durante a junket em Los Angeles. A ideia era ver um pedaço de Estrada da Fúria - para conferir - e correr para a sessão de imprensa do novo Philippe Garrel, que abriu a Quinzena dos Realizadores. Foi preciso recuperar o Garrel, L'Ombre des Femmes/A Sombra das Mulheres, depois. Não houve jeito de desgrudar o olho da tela que exibia Mad Max. O filme foi aplaudido em cena aberta. Desconfie de quem diz que é insosso.

Charlize Theron e Sean Penna no tapete vermelho de Cannes Foto: AP

Em entrevista por telefone para o repórter, Miller contou que sempre teve esse filme na cabeça, mas só nos últimos 12 anos resolveu levar as ideias para o papel - e, claro, a tela. Havia uma guerreira em Mad Max 2, mas não se assemelhava em nada a Imperator Furiosa. Estrada da Fúria faz jus ao título, mas poderia se chamar A Ascensão de Furiosa. É a personagem de Charlize Theron. Andrógina, ela adota uma atitude masculina para fugir à sorte das mulheres no futuro apocalíptico que Miller retrata. As mulheres são propriedade do Immortant Joe, que, por possuir a água, reina no devastado reino do futuro. As mulheres são procriadoras. Fornecem leite para os guerreiros e filhos para o chefe.

Charlize se insurge e foge com cinco das mulheres do Immortant. Depois de medir forças com Max, ela faz dele seu aliado - e coadjuvante na missão de levar as mulheres à proteção das Terras Verdes. É uma utopia, e na ficção de Estrada da Fúria a guerreira vai voltar à cidadela do Immortant. Furiosa e Max quase não falam, não compartilham interesse romântico. Em Cannes, Charlize repetiu o que havia dito em Los Angeles: "Era o que havia de mais interessante no roteiro. Esse homem (referindo-se a George Miller) é uma lenda. Fez Mad Max e Happy Feet. Mais de 30 anos depois, voltou ao universo apocalíptico de Max, mas não para se repetir. Criou essa guerreira que é uma das personagens mais fortes e difíceis que já fiz. Furiosa, quase não fala. Age. É muito difícil revelar o interior só por olhares e gestos."

No filme, ela bate e arrebenta como macho. Em Cannes, voltou a ser uma das mais belas - e desejadas - mulheres do mundo. Contratualmente, deve ser obrigada a usar o perfume do qual é garota-propaganda. J'Adore. A fragrância delicada a acompanha. Charlize, mais macho que Tom Hardy, que faz Mad Max? "Creio que George (Miller) ama as mulheres. Sempre foi sua ideia fazer delas o motor de Estrada da Fúria. De certa forma, somos a esperança nesse futuro que não existe. O advogado inglês Christopher Vicenzi, um grande humanista, diz que ainda existe pobreza no mundo porque nós (mulheres) não estamos no poder. George compartilha de sua visão. É o lado mais político de Estrada da Fúria."

Como foi filmar na Namíbia? "Os próprios nativos reconhecem que se trata de um dos lugares mais infernais do mundo. Ouvi de um deles que é o único lugar de onde Deus se ausentou. Ficamos meses naquele deserto, com ocasionais viagens à civilização. E George ama o realismo. Filmamos em carros de verdade, que capotavam. Saltávamos amarrados por fios, que depois foram apagados na pós-produção." Furiosa, tão selvagem, tem alguma coisa a ver com suas personagens anteriores? "Tudo. Só me transformei uma vez, e ganhei o Oscar pelo papel em Monster - Desejo Assassino. Mas, em vários outros filmes, interpreto mulheres sombrias, disfuncionais. Acostumei-me a ser sobrevivente no mundo masculino. Ou vocês pensam que é fácil ver os outros duvidarem de seu talento só porque é bonita? É a maldição que atinge muitas mulheres. Se somos belas, não podemos ser competentes."

Mad Max: Estrada da Fúria, carros

Por mais que tenha gostado de fazer Imperator Furiosa, é reticente a aparecer numa eventual sequência. "George sabia disso quando me procurou, e contratou. Ele próprio demorou muito tempo para viabilizar o projeto. Estrada da Fúria virou uma coisa visceral para ele. Como criador, o respeito e admiro. Ele criou um personagem que está no imaginário de todo o mundo. Estrada da Fúria retrata uma visão que ele teve. Se formos continuar fazendo Furiosa 2, 3... Duvido que reencontremos a mesma intensidade. Serão operações caça-níqueis. Estou fora." Assim como Furiosa, Nicholas Hoult é a alma de Estrada da Fúria. Tem a única cena de ternura do filme como o Warboy, o terrorista que desiste do Valhalla por amor. Banal? "Acho lindo, e Nicholas é muito talentoso."

...................................

Em entrevista, George Miller comenta a ida de ‘Estrada da Fúria’ ao Festival de Cannes

Filme faz parte da seleção oficial do evento e estreia no Brasil na próxima quinta-feira, 14

Entrevista com George Miller

Luiz Carlos Merten, O Estado de S. Paulo, 11 de maio de 2015

George Miller está feliz da vida de voltar a Cannes. Ele já foi jurado em 1988 e 1999 e volta ao maior festival de cinema do mundo integrando a seleção oficial da edição que começa na quarta-feira, 13, com Mad Max – Fury Road/Estrada da Fúria. O filme estreia quinta, 14, no Brasil. Não concorre à Palma de Ouro, mas terá direito a sessão de gala e tapete vermelho. Dá para imaginar Tom Hardy e Charlize Theron na montée des marches. Ela, com certeza, voltará a ser uma das mulheres mais belas do mundo, despindo o braço artificial e as roupas que celebram a androginia da personagem Imperatrix Furiosa.

Em Los Angeles, há duas semanas, houve a junket de Fury Road. Basicamente, duas coletivas – uma com o diretor e o elenco principal, a outra com as ‘wives’, as mulheres que, na ficção do novo Mad Max, o vilão Immortant Joe utiliza somente como procriadoras. Mad Max viveu três vezes na interpretação de Mel Gibson, em 1979, 1981 e 1985. Há 12 anos, Miller experimentou o imperioso desejo de retomar sua criação mais famosa. Fez o seu filme mais caro, US$ 150 milhões, e o mais grandioso. Não é um remake, nem uma continuação, mas um recomeço. E, como diz o próprio diretor – numa entrevista por telefone, depois de Los Angeles –, “considerando as dificuldades, o filme saiu muito melhor do que havia sonhado".

Tom Hardy. Ator pediu a bênção para Mel Gibson antes de assumir o papel Foto: DIVULGAÇÃO

O que representa para você mostrar o filme em Cannes?

É mais que um sonho. Já fui jurado no festival, mas independente disso, como cinéfilo, sei da sua importância. Sei também como foi difícil para todos nós concretizarmos o projeto, que foi caro, mais do que qualquer dos filmes anteriores – na verdade, mais que os três primeiros juntos –, e numa filmagem que nos consumiu, num dos lugares mais infernais da Terra, o deserto da Namíbia. Sinto, antes de mais nada, que se trata de um reconhecimento. Japão e França foram os primeiros países a abraçar Mad Max, antes mesmo que a série se tornasse cult. Falei em abraço e é assim que sinto. Voltar a Cannes com Mad Max é como receber um abraço do tipo ‘Valeu a pena tanto esforço’.

Com suas cenas eletrizantes de ação, o filme justifica o título Fury Road, Estrada da Fúria. Mas eu tenho a impressão que poderia se chamar A Ascensão de Furiosa, a personagem de Charlize Theron. Concorda?

Mad Max criou uma mitologia a partir de outras mitologias. O sujeito solitário que se torna herói, mesmo não querendo, num mundo apocalítico, tem raízes na tragédia grega, é Orestes. Mas em toda parte ele foi incorporado pelas culturas locais. Nas França, Mad Max foi chamado de western sobre rodas. No Japão, foi comparado a um ronin. Na Escandinávia, a um viking. Os três primeiros filmes construíram sua dramaturgia a partir de um tema clássico do western, a vingança. Mas você deve se lembrar do último, Além da Cúpula do Trovão. Tina Turner cantava We Don’t Need Another Hero. Estamos vivendo uma época em que até os super-heróis andam quebrados. Fragilizaram-se, tornaram-se humanos, como os semideus da mitologia grega. E, assim, na minha cabeça, quanto mais eu pensava em retomar a saga, pensava que Max não poderia mais ser o mesmo homem. Foi a primeira coisa que disse para Tom Hardy, que faz o papel. Ele queria a bênção de Mel Gibson. OK, disse-lhe, encontre-se com ele, mas depois o esqueça. Porque nós vamos reinventar o personagem e a saga. No segundo filme, tínhamos uma guerreira. Agora, na minha concepção, Max deveria encontrar uma igual. Furiosa/Charlize, num universo em que as mulheres fornecem o leite e o ventre para os guerreiros, se insurge contra seu destino. Ela anula o próprio sexo, e ousa fugir com as quatro mulheres de Immortant Joe, o que desencadeia a perseguição no deserto. Furiosa esculpiu seu corpo à imagem masculina. O filme não tem romance, mas eu não queria que esse mundo futuro fosse destituído de ternura...

E por isso você criou a cena de Nicholas Houit e Riley Keough no carro. Ele é um guerreiro de Immortant Joe. Sonha dar a vida para ter direito a um lugar num hipotético paraíso post-mortem...

Sim, e é uma das minhas cenas preferidas. Sob certos aspectos, ele é um mutante e, quando essa mulher o toca, ele descobre em si mesmo um sentimento que nunca experimentou antes. Desde o início, desde o roteiro, sabia que essa cena seria uma quebra no relato. Ação, ação, ação, quase nenhum diálogo e, aí, de repente, esse encontro fortuito entre dois personagens secundários, como nós não vamos encontrar entre os protagonistas. Max e Furiosa se estranham, brigam e eventualmente se aliam, mas cada um tem sua trajetória. Sim, é a ascensão (the rise) of Furiosa. Em Fury Road, liberei meu lado feminista (risos). Mas o mérito da personagem é de Charlize. Ela criou Furiosa com a dureza que imaginava e lhe emprestou sua doçura. Atores e atrizes formam uma raça à parte. Com Mel (Gibson), era a mesma coisa. Ele deu ao personagem muito mais que havia imaginado.

Você não tem muitos efeitos. Todos aqueles carros se rebentando, a adrenalina, o calor do deserto. Tudo é real, não?

De cara, imaginava que o filme teria de ser verdadeiro e, por isso, até a participação de Mel (Gibson) foi cancelada. Não faria sentido ele voltar. Os efeitos que tenho são as ferramentas de computação para eliminar os fios quando os atores e atrizes voam daqueles carros. Tom (Hardy) e Charlize fizeram a maioria de seus dublês. Ela é muito brava.

Mitologia. Para Miller, o sujeito solitário que se torna herói tem raízes na tragédia grega  Foto: DIVULGAÇÃO

Não posso deixar de falar da trilha. Você tem uns solos agudos, dilacerantes de cello. Como trabalhou a trilha?

Tive um compositor genial, que entendeu meu conceito – queria que o filme se situasse entre um concerto selvagem de rock e uma ópera. Como não tenho muitos diálogos, o que os personagens diriam, para se expressar foi para a música. Foi a mixagem de som mais difícil da minha carreira. Atingir o tom exato das cordas. Fazê-las lancinantes. Se você sentiu, é porque deu certo.

Mad Max - Estrada da Fúria | Trailer Oficial 3Legendado


Mad Max: Estrada da Fúria, carros

Carros de 'Mad Max: Estrada da Fúria' são leiloados na Austrália

Treze veículos serão vendidos juntos em esforço para preservar a história do cinema

AFP, Agências, 25 de setembro de 2021

Elvis e Razor Cola, dois dos carros usados nas gravações de 'Mad Max' em 2015 que vão a leilão em 2021 Foto: Saeed Khan/AFP

Um leilão que termina neste domingo, 26, na Austrália, colocou à venda 13 veículos extravagantes do sucesso de bilheterias Mad Max: Estrada da Fúria, um filme de 2015 ambientado em um deserto pós-apocalíptico.

"A primeira vez que eu os vi, tenho quase certeza de que escutei um dos carros dizer: 'Preciso ser conduzido com raiva'", contou à AFP Geoff McKew, especialista de automóveis da casa de leilões Lloyds Auctions.

O gigantesco War Rig, um enorme caminhão-tanque pilotado pela personagem de Charlize Theron, ou o Razor Cola, o Ford Falcon XB coupé GT reinventado que enfrentou Max Rockatansky, estão entre os objetos que foram colocados à venda do quarto filme da saga do diretor australiano George Miller.

"Eles (os carros) não deveriam estar descansando em um armazém", sem "receber o respeito que merecem", explicou McKew.

O leilão tem causado furor em todo o mundo, incluindo os cassinos em Las Vegas e o festival Burning Man nos Estados Unidos.

Gigahorse, um dos carros usados nas filmagens de 'Mad Max' em 2015 Foto: Saeed Khan/AFP

A casa de leilões não tem a intenção de deixar que os veículos sejam arrematados "por um preço baixo", mas McKew prefere não arriscar uma estimativa para as vendas.

Além disso, os proprietários somente venderão os 13 veículos juntos, em um esforço para preservar parte da história do cinema.

Apesar de nenhum desses carros poder circular pelas ruas, seria improvável que a polícia conseguisse parar uma "besta" como o "Gigahorse" de dois Cadillac Coupe DeVille de 1959, detalhou McKew.

Gigahorse, um dos carros usados nas gravações de 'Mad Max' em 2015 Foto: Saeed Khan/AFP

"Quando o vi pela primeira vez, me preguntei se estava tendo um ataque do coração", contou McKew.

O sucesso do quarto filme deu um novo gás para o culto à saga de ação distópica australiana, cujo protagonista foi interpretado pela primeira vez por Mel Gibson em 1979.

 

Marechal Cândido Rondon

Minissérie 'O hóspede americano', com Chico Diaz e Aidan Quinn, detalha a expedição Rondon-Roosevelt

Produção estreia na HBO Max; para diretor, Bruno Barreto, os dois personagens históricos era 'eram odiados pela esquerda e pela direita'

Talita Duvanel, 26/09/2021, O Globo

O ator americano Aidan Quinn ouviu pela primeira vez o nome do Marechal Cândido Rondon quando morou por seis meses em Belém, em 1989. Na ocasião, gravava o longa “Brincando nos Campos do Senhor”, de Hector Babenco. Soube, por alto, que era um “explorador” importante do Brasil, mas pesquisou pouco. Estava diante de uma floresta pela primeira e tinha um longa complicado para filmar (“Era pra durar três meses, levou seis”, relembra ele).

Teddy Roosevelt, interpretado por Aidan Quinn; Marechal Cândido Rondon, vivido po Chico Diaz Foto: Helena Barreto / Divulgação

Quase 30 anos depois, reencontrou Rondon, agora de forma mais profunda. E não só ele. Também a floresta, não do Pará, mas a do Mato Grosso, onde rodou a minissérie baseada em fatos reais “O hóspede americano”, dirigida por Bruno Barreto, que estreia hoje às 23h na HBO e na  HBO Max. Nos quatro episódios, Aidan Quinn vive o ex-presidente americano Theodore Roosevelt, que esteve no Brasil entre novembro de 1913 e maio de 1914 na Expedição Científica Rondon-Roosevelt. Ele e o coronel Cândido Rondon, vivido pelo ator Chico Diaz, embrenharam-se na região amazônica a fim de mapear o curso do Rio da Dúvida, batizado ao fim da viagem de Rio Roosevelt.

A série é centrada no americano, que esteve no poder entre 1901 e 1909 e foi responsável por leis antitruste e políticas ambientais de conservação, embora tenha retirado terras de povos originários. Mas traz também um capítulo importante da biografia de um emblemático brasileiro na construção do Brasil do início do século XX. Nascido em Mimoso, no Mato Grosso, descendente de europeus e índios, Cândido Mariano da Silva (o sobrenome Rondon veio depois)  formou-se engenheiro militar no Rio e participou ativamente da proclamação da República. No governo militar, integrou a equipe de construção das linhas telegráficas no interior do país e, com o tempo, galgou posições importantes no corpo de engenheiros militares. Sua política de integração não-violenta dos índios tinha o lema de “morrer se preciso for, matar nunca”.

— É muito oportuno falar de Rondon e de Roosevelt agora. Vivemos uma crise mundial de polarização, de falta de complexidade. Quis contar essa história porque os personagens não são binários. Ambos eram odiados (inclusive) pela esquerda e pela direita — diz Bruno Barreto. — Essa história é sobre poder, mortalidade e a mãe natureza. Os dois caras eram muito poderosos. Um deles foi um dos presidentes mais célebres dos Estados Unidos. E Rondon também era muito poderoso. Ele tinha (naquela época) consciência da importância da mídia, tanto que filmava tudo. Aquilo era o equivalente ao Instagram hoje.

Coronel Rondon e a equipe da expedição Foto: Helena Barreto / Divulgação

As imagens capturadas nas expedições militares (conhecidas como “Comissão Rondon”), que duraram do início do século XX até a década de 1930, ajudaram Chico Diaz na pesquisa sobre o personagem. Até onde se sabe, esse material está guardado na Cinemateca e não estava no galpão da Vila Mariana, que pegou fogo no fim de julho.

—Rondon mostrava tudo no cinema. Era um homem da mídia — diz Chico, que também leu o livro “Rondon conta sua vida”, de Ester de Viveiros, já fora de catálogo, durante a preparação.

Tanto Bruno quanto Chico têm vontade de ver a história do brasileiro não como cicerone, mas como estrela principal de sua própria viagem, numa produção com tempo e espaço para que se explore mais camadas do militar. Rondon, além de patrono das armas da Comunicação das Forças Armadas, por todo o  trabalho na integração telegráfica, é quem implementou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, uma espécie de embrião da Funai.

— Merece um filme ou uma série só para ele. Claro que não será vivido por mim, porque o tempo está passando (risos) — diz Chico, que nasceu na Cidade do México, filho de uma brasileira e de um paraguaio. — Há essa latino-americanidade em mim muito forte, da qual eu me orgulho muito. O Rondon é um pouco isso. Ele mostra e prova a fibra e a inteligência do povo latino-americano.

A historiadora Laura Maciel Antunes, autora de “A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da Comissão Rondon”, acha, no entanto, que as homenagens tecidas ao Marechal em ruas, praças, museus e ações culturais, muitas vezes “silenciam alguns aspectos violentos e questionáveis” da atuação dele. Várias pesquisas revisionistas já falam sobre castigos físicos e violência para manter a disciplina da tropa (como é mostrado na série), o trabalho forçado de indígenas, civis e praças nas expedições da chamda “Comissão Rondon”, e as doenças que dizimaram aldeias e acampamentos.

—Tanto Rondon quanto a maioria dos funcionários do SPI eram militares de formação e carreira que julgavam legítimo e desejável estabelecer um controle ou tutela do Estado sobre as populações indígenas. Orientação semelhante guiou Rondon durante as expedições militares - diz Laura.

Ocupar, administrar e controlar territórios e populações, fossem elas indígenas, trabalhadores rurais, posseiros ou ribeirinhos, eram lemas que orientaram essas duas frentes de atuação, sob o comando militar de Rondon.

Teddy

Enquanto Rondon não rouba a cena, ficamos com os detalhes de Theodore Roosevelt, que assumiu a presidência dos EUA em 1901 após a morte de William McKinley. Ele ficou oito anos no poder e enfrentou alguns dos homens mais ricos do país, como JP Morgan, com leis antitruste e desapropriação de terras para transformá-las em parques nacionais. Ao mesmo tempo em que se tornou o primeiro presidente a receber um homem negro na Casa Branca (o intelectual Booker T. Washington), tinha posições racistas contra a população negra do Sul e os indígenas.

Em junho, o Museu de História Natural de Nova York, que patrocinou a viagem de Roosevelt ao Brasil em troca de espécies de nossa fauna e flora, concordou em retirar uma estátua do político que ficava na entrada do prédio. Nela, Teddy está num cavalo e, atrás dele, de um lado um homem negro e, do outro, um indígena. A imagem era tida como um símbolo de colonialismo e racismo.

— Nos EUA, o americano sabe muito sobre o Franklin Delano Roosevelt (parente distante de Theodore e presidente de 1933 a 1945), mas do Theodore não se sabe. Ele foi meio “cancelado”, porque era republicano, gostava de caçar e de arma. Era um cara muito complexo, agressivo realmente. Sofria de uma certa incontinência verbal — diz Bruno, cuja série “O hóspede americano” estreia na HBO dos Estados Unidos amanhã.

O Hóspede Americano | Trailer Oficial | HBO Max

Estreia: série sobre Rondon e Roosevelt éoportuna para resgatar o orgulho perdido




sábado, 25 de setembro de 2021

Reforma Administrativa - PEC 32

É hora de desarmar o desastre. A PEC 32 é uma bomba-relógio 

Reforma aprovada em comissão da Câmara muda vida de novos servidores. Veja principais pontos

Texto da reforma administrativa foi aprovado em Comissão Especial. Proposta ainda passará pela análise do plenário da Câmara e Senado

Fernanda Trisotto, 24/09/2021, O Globo

A comissão especial da Câmara dos Deputados concluiu, já na madrugada desta sexta-feira, 24/09/2021, a votação da reforma administrativa. A proposta de emenda à Constituição (PEC) 32 altera regras para os futuros servidores públicos.

Transformação de Guarda Municipal em polícia, presente na reforma administrativa, preocupa parlamentares 

Apresentada como uma alternativa para a modernização do estado, a PEC acabou desidratando durante a análise em comissão especial e, além de promover algumas mudanças no RH do estado, acabou incorporando alguns benefícios a categorias específicas, como as forças de segurança pública.

O texto ainda será analisado no plenário da Câmara, onde precisa de 308 votos para avançar. Caso isso se concretize, a proposta segue para o Senado. 

Veja os principais pontos que afetam a vida dos futuros servidores

Quem é afetado

A PEC propõe mudanças somente para futuros servidores do Executivo, do Legislativo e para pessoas com mandatos públicos. Não atinge os membros de Judiciário, como juízes e promotores.

Contrato e estabilidade

Como é:

Todos os servidores têm estabilidade.

Como fica:

Todos os servidores concursados manterão a estabilidade, mas há previsão para desligamento por desempenho insuficiente.

Estágio probatório

Como é:

Aprovados em concurso entram no estágio probatório, que dura três anos. Podem ser dispensados nesse período por mau desempenho, mas só acontece com 0,2%.

Como fica:

Em vez de avaliação no fim do período de teste, futuros servidores terão seis avaliações, uma a cada semestre, nos três anos. Caso obtenha um resultado insatisfatório em dois ciclos de avaliação, o servidor pode ser exonerado.

Artigo critica versão da reforma:  A PEC do retrocesso administrativo 

Demissão

Como é:

O servidor só pode ser demitido em caso de sentença judicial definitiva ou infração disciplinar. A demissão por mau desempenho, prevista na Constituição, nunca foi regulamentada.

Como fica:

PEC mantém a possibilidade de demissão após sentença judicial e em função de resultado insatisfatório na avaliação de desempenho. Nesse caso, o servidor com desempenho insatisfatório em duas avaliações consecutivas ou três intercaladas terá um processo administrativo aberto para análise do desligamento por um colegiado. Foi acrescentada a possibilidade de demissão caso o cargo seja extinto ou considerado desnecessário ou obsoleto.

Redução de jornada

Como é:

Não há previsão de redução para todos os servidores. Há possibilidade de corte de 20% para cargos de confiança.

Como fica:

PEC prevê possibilidade de redução de salário e jornada dos servidores em até 25% em caso de crise econômica. As normas gerais para essa redução serão definidas em lei federal a ser editada.

Vedação de benefícios

Como é:

Existe um conjunto de benefícios que são recebidos pela maioria dos servidores, como progressão e promoção por tempo de serviço, licença prêmio e adicional por tempo de serviço. Um grupo mais restrito tem acesso a outros benefícios, como férias acima de 30 dias e aposentadoria compulsória como forma de punição. Especialistas avaliam que são privilégios.

Como fica:

Futuros servidores não terão acesso a alguns benefícios. Estão na lista dos benefícios extintos a licença prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, férias acima de 30 dias pelo período aquisitivo de um ano, adicional por tempo de serviço (como anuênio), aposentadoria compulsória como modalidade de punição, adicional ou indenização por substituição (exceto a substituição interina de cargo em comissão e função de confiança), progressões ou promoções apenas por tempo de serviço, parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e critérios de cálculo definidos em lei.

Essas vedações afetam os seguintes grupos de servidores: ocupantes de cargos eletivos (que enquadra os políticos com mandatos), membros dos Tribunais e Conselhos de Contas, ocupantes de cargos e titulares de empregos ou de funções públicas da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Paralisia:  Governo não tem força para levar adiante reformas e privatizações, dizem economistas 


A PEC do retrocesso administrativo: reforma blinda ainda mais a ineficiência

Nova versão do relatório cede a pressões da elite do funcionalismo público sem corrigir erros do projeto do governo. Distorce procedimentos de avaliação e, mais grave, reforça o caminho na direção de um Estado policial

Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld, 19/09/2021

A nova versão do relatório do deputado Artur Maia, apresentada na última quarta-feira à Comissão Especial da Reforma Administrativa, consegue ser pior do que a primeira, já objeto de manifestação nossa (“A Contrarreforma Administrativa”, artigo publicado em 04/09/2021).

O relator cedeu ainda mais às pressões puramente corporativas de associações de servidores públicos. Deixou de corrigir os erros do projeto do governo e contribuiu com novos desvios de sua autoria, constitucionalizando o que deveria eliminar.

E pior: o relatório previu vantagens e proteções cujo único sentido é, distorcendo a Constituição democrática de 1988, reforçar a caminhada em direção a um Estado policial no Brasil. Nosso país precisa reagir enquanto é tempo.

O serviço público brasileiro tem grandes problemas. Há excesso de carreiras, com reservas de mercado injustificáveis. A elite desfruta de privilégios injustos enquanto o restante dos servidores não é devidamente valorizado ou atua em condições inadequadas.

Faltam avaliações de desempenho. A produtividade geral é baixa, assim como a qualidade dos serviços. São raras as demissões de maus servidores. Falta mínima flexibilidade, algo indispensável à gestão de pessoas.

Qual a responsabilidade das atuais normas constitucionais? Em vários casos, nenhuma. Por exemplo: a Constituição, em seu artigo 41, já prevê ser necessário avaliar os servidores. Por que não acontece? As leis de regulamentação até agora não foram feitas. E os governos não mostram interesse em avaliar serviços e servidores.

Nenhuma mudança na Constituição vai resolver essa lacuna. Mas sempre é possível incluir novas exigências para dificultar ou inviabilizar avaliações.

A proposta do relator fez exatamente isso. Equiparou procedimentos de avaliação a processos punitivos, uma completa distorção. E reservou à própria corporação o controle das decisões de dispensa de servidores ineficientes. Ou seja, blindou ainda mais a ineficiência.

Outro instrumento de gestão de pessoas é a contratação temporária, importante em todas as áreas e largamente usada nas administrações modernas. O relatório procura inviabilizá-la. A principal estratégia é reservar a servidores permanentes a execução de extensa lista de “atividades finalísticas”.

Ali é possível identificar um a um os lobbies das elites do serviço público, que circulam com desenvoltura no Congresso Nacional. Mas não é só. O relatório quer impedir contratações temporárias para a “gestão governamental” – na prática, o mesmo que as proibir para qualquer atividade.

O mais grave é a tentativa de mudar a Constituição para fazer do Brasil uma república de policiais. O relatório se esmera em conceder privilégios a grupos ligados à segurança pública.

Cria monopólio de acesso ao cargo de delegado-geral da Polícia Federal, imuniza com foro privilegiado os delegados-gerais das polícias civis dos estados, dá aposentadorias e pensões especiais a policiais e outros agentes de segurança, e assim por diante.

Nada a ver com reforma administrativa. É pura captura do Estado por grupos de servidores armados.

A atual proposta, que se originou no Executivo e já chegou torta, a cada passo mais se afasta do objetivo de melhorar a gestão de pessoas. Se aprovada, fará a própria Constituição se tornar um empecilho às reformas necessárias. O episódio mostra que lobbies corporativos conseguem se sobrepor a todo bom senso e às intenções de avanço.

Os interesses da coletividade se perdem na falta de liderança, de clareza e de compromisso com a agenda de país. A cada PEC que se aprova, a ordem constitucional vai sendo desviada para servir às elites do serviço público.

Precisamos sim avançar o quanto antes na reorganização do Estado. O caminho correto e viável passa por regulamentar por lei o que a Constituição já comanda e caminhar na direção da desconstitucionalização das normas do RH público.

É hora de desarmar o desastre. A PEC 32 é uma bomba-relógio. Não estamos mais discutindo reforma do Estado ou melhoria do RH público. Sua tramitação tem de ser encerrada.


Ana Carla Abrão é economista e sócia da consultoria Oliver Wyman; Arminio Fraga é ex-presidente do Banco Central; e Carlos Ari Sundfeld é professor titular da FGV Direito SP.