sexta-feira, 2 de março de 2018

Carta para F.


Ana Paula Lisboa, O Globo, 28/02/2018

Carta para F. — número 1*

Obrigada pela paciência com os meus silêncios e com o fato de eu não ter respostas rápidas para tudo

Sonhei que você havia me ligado para dizer que me perdoou. Você falou outras coisas também e fiquei feliz, mas esta carta não é para falar sobre você.
Esses dias eu assisti à quarta temporada de “Black mirror”, aquele episódio que você comentou no meu Stories que era o seu preferido e muito melhor do que o que eu havia escolhido como o meu preferido.
Odeio quando você tenta me ensinar o mundo. Odeio também você se meter nas minhas coisas que não têm mais a ver com você.
Pois bem, eu lembrei da gente porque tem uma metáfora bonita sobre os encontros e sobre como os homens furam os acordos e sabotam as relações. Eu sei que eu também sou praticamente um homem.
Porque ele não falou pra ela que estava ansioso e que era impossível segurar a vontade de saber quanto tempo duraria? Que homem fraco e babaca, você não acha?
Obrigada pelos nossos cinco anos, as coisas não são para sempre, eu sei, mas realmente achei que a gente envelheceria juntos, velhinhos assistindo o pôr do sol todos os dias em que ele estivesse lá. Achei que compraríamos nossa casa, teríamos espaço para cinco cachorros e em algum momento dos próximos dois anos eu engravidaria.
Não sei se te disse, mas adorava o fato de você sempre me levar a sério e a sua eterna disponibilidade para beber e comer um pouco mais. Adorava também sua alegria em fevereiro, nas fotos que vi desse carnaval você não parecia tão alegre. Eu parei de te seguir em todas as redes.
Ainda não recebi nenhuma mensagem sua de feliz aniversário. Tentei fingir que talvez você tivesse quebrado o braço ou sido atropelado e isso impossibilitou usar os dedos para me enviar um áudio, mas eu sei que esse é só você me ignorando e achando que eu me importo.
Saiba que mesmo escrevendo tudo isso aqui, eu não não me importo.
Hoje eu estava quase chegando em casa quando me deu uma vontade terrível de me acabar em água, chorar com a boca quadrada e tudo, bem alto. Pensei “segura um pouco porque você ainda tem que comprar pães”. Entrei na padaria sem enxergar nada. As lágrimas pulavam dos meus olhos como se elas tivessem vida própria. Você bem sabe como eu odeio chorar em público. Quando chegou a minha vez de ser atendida eu mal conseguia falar. Fiz que nem criança e mostrei a quantidade de pães que eu queria com as mãos. Escrevendo isso agora tudo me pareceu bastante ridículo e um pouco engraçado, mas em se tratando da minha vida não poderia ser diferente. Espero que você esteja bem. Eu não estou.
Uma vez sentados na Praça XV, com carinho você me escreveu um breve poema, e os versos finais são “que seja eterna nossa amizade, desinteressada e extensa”. Que seja eterna, também é o meu desejo.
Dali pra frente foram alguns anos (teve o banho de chuva na Lagoa da Conceição!). Lemos livros juntos, cozinhamos juntos, pegamos praia. E eu guardo na memória as melhores lembranças e os olhares mais cúmplices. Obrigada.
Num momento de solidão, saudade e choro, muito choro, me veio aquele poema inteiro que te escrevi, do fundo da minha alma e da cor do meu coração. Parece que foi o fim de um ciclo.
Nos encontramos mais maduros e eu, cuidadosa que sou, cautelosa, lenta e devagar, quis e quero muito que nossa amizade permaneça. Apesar de tudo.
Nos despedimos (com noites lindas) e você foi pra Califórnia. Fiquei feliz com suas novas conquistas e te desejo o mundo. Desejo o mundo pra mim também.
Desculpas se te magoei, ainda não sei onde a gente se perdeu. Mas depois da Bahia foi ficando esquisito.
Eu tentei ser a mulher da tua vida. E eu sei que sou uma delas. Foi bom.
Obrigada pelos carinhos, pela lista dos antropólogos brasileiros que eu não sei. Viva Viveiros de Castro! Obrigada por me apresentar Montezuma II, que foi uma pessoa, e também é um município em Minas Gerais. E desculpas, antecipadas, se um dia eu esquecer dele. De você eu não esqueço ainda.
Sinto-me como uma criança numa viagem longa que pergunta para os pais a todo instante “falta muito pra chegar?”. Então eu me pergunto quando acordo: “falta muito pra esquecer?”. Dói menos agora, admito.
Obrigada também por todas as canções ouvidas, cantadas e tocadas. Adoro essa parte, das músicas. Obrigada pela paciência com os meus silêncios e com o fato de eu não ter respostas rápidas para tudo.
Estou com dificuldades para entender o que passou. Também não entendo sobre as mágoas e a duração delas, deve ser porque eu fico brava no início e no decorrer dos dias vou amolecendo.
Pelo menos eu fiquei com as lembranças engraçadas. Você não.
______
(*) Fragmentos de cartas que escrevi e não enviei, das que li, recebi, copiei e colei. Posts que escrevi e apaguei.
Agradecimento a Andressa Berta, Cassia Sobral, Rita Alves e Thalitta Daniel pelo uso de trechos de suas cartas nessa coluna

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