'Eu era o único símbolo sexual que não transava', diz Ítala Nandi
Ao comemorar 60 anos de carreira com livro, série de TV e filme, estrela lembra de quando protagonizou o primeiro nu frontal feminino do teatro brasileiro, em 1969: ‘Meu pai me mandou tirar o sobrenome da família’
Itala Nandi Foto Ana Branco Agência O Globo
Nascida em Caxias do Sul numa família sem relação alguma com a arte, Ítala Nandi tem uma teoria: foi entregue a Dionísio, Deus do vinho e do teatro, quando veio ao mundo. É que depois de horas de um trabalho de parto que não evoluía, sua mãe deu à luz assim que virou uma taça da bebida. Neste momento, Ítala teria se tornado "uma bacante".
Nem o pai, um vitivinicultor italiano que comandou o exército de Mussolini, foi capaz de frear a filha, transgressora por natureza. Aos 27 anos, protagonizou a primeira cena de nu frontal feminino do teatro brasileiro (em 1969, na peça "Na selva das cidades", do Teatro Oficina), razão pela qual ele exigiu que a atriz tirasse o sobrenome da família. Ela ainda faria pior aos olhos do pai "completamente fascista", encarando treinamento militar e de espionagem em Cuba ("seria uma Mata Hari").
Criadora de grandes protagonistas femininas do Oficina, Ítala travou, na vida real, uma luta pela libertação sexual da mulher, ao lado da amiga Leila Diniz. Falava tanto o que dava na telha que uma entrevista sua, publicada na revista "Realidade" e intitulada "esta mulher é livre", foi censurada pela ditadura.
- Nela, eu perguntava por que o homem que transava com muitas mulheres era garanhão, e a mulher que fazia o mesmo, piranha - lembra Ítala que, depois disso, foi proibida de dar entrevistas por um ano.
Mas, na intimidade, ninguém imaginava que ela pouco ligava para sexo.
- Renato Borghi (ator), meu grande amigo, dizia que eu era o único símbolo sexual que não transava - diverte-se. - Só tive orgasmo quando passei a fumar maconha.
Aos 60 anos de carreira e inacreditáveis 78 da idade, a atriz continua a mesma mulher livre de sempre - ao ser perguntada se abaixaria as alças do vestido para deixar os ombros nus na foto, tira toda a roupa e posa com os seios de fora - e repleta de projetos.
No fim do mês, estreia como uma governadora linha dura na série “Baile de máscaras”, da TV Cultura. Em outubro, entra em cartaz com “Domingo”, pelo qual ganhou prêmio de melhor atriz no Festival do Rio 2018. Enquanto isso, dia 31, lança “Milagres”, livro com histórias fictícias dos bastidores de trabalhos (como a novela "Que rei sou eu?" e o filme "Amor e traição"), e comanda uma escola de formação de atores ao lado do único filho, o ator e diretor Juliano Nandi, pai de sua neta, Sofia, de 8 anos. Ano que vem, encena a peça "A caçada", de Evaldo Mocarzel.
"Milagres" é seu quarto livro. Sempre teve vontade de escrever?
Sempre quis ser escritora. Era muito solitária, minhas irmãs mais novas se davam bem entre elas, mas nunca tivemos uma aproximação. Lembro de um aniversário em que o Frei Beto me deu um jogo de tarô. Estava começando a escrever, e a taróloga disse: "Deixa sua mão te levar que a coisa vai". É exatamente assim.
Você se tornou atriz por acaso. Como isso aconteceu?
Tinha 15 anos, fui buscar minha melhor amiga no teatro da Aliança Francesa, e o diretor me convidou para fazer a empregada da peça "A cantora careca", do Ionesco. Aos 16 anos, casei (com o gaúcho Fernando Peixoto, crítico de teatro), me mudei para Porto Alegre, depois, para São Paulo. Quando estava trabalhando na administração do Oficina, a Rosamaria Murtinho ficou doente, e eu a substituí no espetáculo "Quatro num quarto". Aí, foi...
Criou muitas protagonistas femininas no Oficina, inclusive a Heloísa de Lesbos, de "O rei da vela", que te projetou. Como era a condição de mulher livre e atriz naquela época?
Muito forte. O Oficina era muito liberador, fui para o lugar certo. Mas eu não tinha ideia que podia ser assim. Quem tirou esse vigor, essa coisa forte de dentro de mim foi o Zé Celso (José Celso Martinez Corrêa, diretor do Oficina), é um super diretor de atores. Sem dúvida com Heloísa de Lesbos, dei um salto.
Tinha consciência do feito ao protagonizar a primeira cena de nu frontal feminino do teatro brasileiro?
Não tinha a menor ideia, achava que alguém já tinha feito. Eu usava um manto japonês roxo, sem sutiã, só com calcinha, nos ensaios dessa cena. Estávamos prestes a estrear, e a censura foi assistir. Eram cinco censores, entre eles o famoso doutor Coelho, que todo mundo se cagava de medo. Pouco antes de começar, o Zé passou por mim e eu perguntei se deveria tirar a calcinha. Jà tínhamos conversado sobre tirar. Ele disse: "Faz o que tu sentir na hora". Antes de entrar em cena, eu tirei, e fiz a cena. A peça durava oito horas e, quando acabou, eles estavam tontos. Doutor Coelho disse que a cena era muito angelical, que não tinha problema. Por causa disso, as outras peça que estavam proibidas foram liberadas.
Como foi a repercussão?
Foi um escândalo absoluto. Meu pai ficou enlouquecido, mandou trocar meu nome. Dizia que não podia estragar o nome Nandi. Aí, falei para o advogado dele: "Diga a ele para trocar de nome, porque hoje eu sou mais famosa que ele" (risos). Depois, ele veio assistir à peça e viu que não tinha nenhum problema. Só no Rio, no João Caetano, quando a mulher de um coronel mandou tirar a luz geral. Botaram luz de contracena e aí, sim, virou cena pornô.
Junto com Leila Diniz, você lutou pela liberdade sexual feminina. Como se conheceram? O que vocês gostavam de fazer? Debatiam assuntos?
Eu estava fazendo o filme (" Os deuses e os mortos") do Ruy Guerra (então casado com Leila) e ele a trouxe. Nos conectamos muito bem. Falávamos o que pensávamos. Ela estava casada com o Ruy, eu, com o André (o cineasta André Faria). Eles adoravam as nossas maluquices, então, a gente botava para quebrar. Compramos dois jipes militares e dirigíamos por Ipanema. Meu filho nasceu prematuro por causa dela. Quando eu soube da morte, fiquei tão abalada que levei um tombo. Juliano nasceu aos oito meses.
Vocês debatiam assuntos, refletiam?
Que nada! A gente nem pensava, éramos gozadoras, achávamos tudo engraçado, ridículo, nos considerávamos donas do mundo. Diante dos olhos dos outros, éramos prepotentes. Mas a gente não estava nem aí para o que diziam. Não íamos à boate, éramos do trabalho e da praia, do biquíni. Ninguém imaginava que uma mulher pudesse sair daquele jeito (refere-se a Leila, grávida, de biquíni ).
E teve a história da minissaia...
Era 1969, eu estudava na França, onde estavam lançando a minissaia da (estilista) Mary Quant. A "Manchete" (revista) fez uma matéria comigo em diversos lugares do Rio para testar a reação das pessoas. O engraçado é que em Copacabana foi o mais terrível, as pessoas paravam, ficavam olhando, achavam esquisito.
Você namorou muito? Foi uma grande pegadora?
Não. O Zé Celso dizia que eu gostava dos homens, mas não de transar. É verdade. Ficava anos sem transar. O Renato Borghi, grande amigo, falava: "Mulher, quando é que tu vai dar pra alguém?". Eu gostava de trabalhar. Tinha a chave do teatro, era a primeira a chegar e a última a sair. Era muito do trabalho, administrava o Oficina. Os diretores de banco me adoravam, todos queriam transar comigo. Eu ia de minissaia no Banco Econômico da Bahia, que nos deu uma grana poderosa para fazer o "Prata Palomares" (filme de André Faria, de 1972). O diretor do banco achava que eu ia dar pra ele. Só que não.
Você passou a gostar de sexo?
Eu tinha um problema sério: não tinha orgasmo. Meu primeiro orgasmo foi com André, pai do meu filho. Com o Fernando (com quem foi casada por quatro anos), eu nunca tinha tido nada. A gente nem transava, na verdade, éramos muito amigos. Depois, tive orgasmo com o André. Na verdade, só passei a ter orgasmo quando comecei a fumar maconha. O André descobriu que eu era muito tensa. Aí, a maconha me relaxava e eu tinha orgasmo.
Havia uma censura também em relação ao prazer feminino, não?
Acho que tinha. Porque eu não sabia me masturbar. Quem me ensinou foi a ( atriz ) Etty Fraser. Contei que não tinha orgasmos, e ela disse que eu tinha que me masturbar. Não que fizéssemos juntas, mas me explicou. Comecei a fazer, mas também não achava grandes coisas. O Borghi falava: "É a única mulher que é símbolo sexual e não trepa". Era verdade. Eu não transava. Fui transar aos 30 anos, com o homem que casei e tive filho.
Você namorou o Chico Buarque?
Namorei, antes da Marieta. Namoramos muito em praça pública, a gente se beijava, se agarrava, mas não transava. Uma vez, na Praça Roosevelt, chegou um camburão da polícia para nos prender. Pessoas do prédio em frente tinham dito que havia uma sacanagem... Por sorte, um dos policiais reconheceu o Chico, que estava no sucesso do "Pedro Pedreira". Aí, nos liberou. Na Passeata dos 100 mil a gente ainda estava namorando.
Você está namorando?
Não. Não que eu tenha desistido. Às vezes, eu transo com alguém, pintou um cara interessante em Veneza (no festival, onde ela foi apresentar "Domingo" ). Mas não mantenho um relacionamento. Não gosto de nada chiclete, essa colação. Sou muito sou muito independente.
Além da maconha, como era a sua relação com as drogas. Usou muito? É a favor da legalização?
Percebi que não era a minha jogada. Tanto que hoje eu fumo raramente. Começou uma liberação com o LSD, que eu nunca provei. As pessoas tomavam e iam fazer sexo grupal, nunca gostei disso. Saí do Oficina por causa disso, não quis participar. O Zé ficou puto comigo e a gente ficou mal. Nunca tive esse lance de vício. Todos tomavam LSD e achavam estranhíssimo eu não provar. Eu não tinha vontade, a minha loucura é normal. Sou totalmente a favor da legalização.
E da legalização do aborto? Já fez?
Totalmente a favor. Eu fiz um, mas porque perdi e tive que tirar.
Você fez treinamento militar em Cuba. Como foi isso?
Acho que foi por causa do teatro e do Fernando, que tinha muita ideologia e me influenciou muito. Não quer dizer que eu tivesse esse tendências. Fui para França com uma bolsa de estudos, era 1968, ano das passetas, Che Guevara era o herói da humanidade. A polícia entrou na Sorbonne, e eu pulei do segundo andar para fugir. Conheci o Thiago de Melo ( poeta e, na época, diplomat a), nos apaixonamos e eu falei: "Quero ir para Cuba". Ele conseguiu visto e eu fui com passaporte falso, com o nome de Rosa Hernandes. Me ensinaram espionagem, a revelar foto dentro do armário. Eu ia ser uma Mata Hari. Pedi para ir para Sierra Maestra, onde só tinha homem. Aprendi a montar metralhadora e a dar tiro.
Você está completando 60 anos de carreira. Olha para trás e gosta do que vê?
Gosto muito. Não sei como fiz coisas tão arriscadas e deram certo. Não tenho traumas. Tanto que quando voltei ao Brasil de Cuba não aconteceu nada, porque não fiz nada errado. Não exerci as coisas para as quais fui treinada. Fiquei logo grávida, veio a Leila, era como se aquele treinamento transformasse numa reivindicação feminina. No Brasil estava tudo cerceado, então, vamos liberar a mulher! O tempo em que fiquei em Paris, Maio de 68, a ideia da libertação popular, das mulheres, dos estudantes, foi muito forte para mim.
Como alguém que sempre valorizou a liberdade enxerga o conservadorismo atual?
O mundo está uma droga, sem personalidade. Hoje é tanta liberdade sexual que ninguém mais transa, fica todo mundo no celular. Estamos vivendo um período apocalíptico, sem humanidade nenhuma. Todo mundo com medo da uma terceira guerra mundial, apavorado com o Trump. Todo mundo encurralado, cabisbaixo. Por isso elegeram ele ( Bolsonaro ). Não que eu seja Lulista, absolutamente. Acho que teve tanta merda igual, mas havia uma liberdade. Estou falando com você e tendo receio de falar certas coisas.
Maria Fortuna, O Globo
08/07/2019
https://oglobo.globo.com/cultura/eu-era-unico-simbolo-sexual-que-nao-transava-diz-itala-nandi-23783541 09/07/2019
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