Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 9 de abril de 2020
Lilia Schwarcz
Extra Classe – Em seu novo trabalho, você é categórica: a imagem do brasileiro como um povo tolerante, aberto, pacífico e acolhedor é um mito. Como chegou a essa conclusão?
Lilia Moritz Schwarcz – Eu mostro que, enfim, os brasileiros desde sempre tentam passar essa imagem de um povo muito pacífico, avesso à violência, e o que a gente vê é que isso não é uma realidade. Basta que pensemos que o Brasil foi uma colônia durante tantos anos, depois passou a ser um Império e, de alguma maneira, assentou o poder muito vinculado às grandes elites agrárias. Grandes elites essas que controlavam todo o processo político de uma maneira muito violenta na maioria dos casos. Basta lembrar, também, que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão mercantil. Eu não falo de outros tipos de escravidão que continuam a existir – nós sabemos – mas eu me refiro à escravidão mercantil, à escravidão de africanos, sobretudo. O Brasil só aboliu o tráfico em maio de 1888, depois de Estados Unidos, Porto Rico e Cuba.
EC – Qual a relação entre essa perspectiva histórica e a desconstrução do mito da cordialidade do brasileiro?
Lilia – Hoje nós sabemos que dos 12 milhões de africanos e africanas que foram obrigados a deixar o seu continente, 10 milhões pararam nas Américas, de uma forma geral, e 4,8 milhões no Brasil. Isso quer dizer que o Brasil recebeu metade dessa população. Não é possível falar em um país calmo, pacífico, com esse tipo de sistema que supõe a posse, a propriedade de uma pessoa sobre outra. Essa posse só pode ser garantida de forma violenta e, também, só deixa àqueles que são tomados como propriedade um caminho: se revoltar, organizar insurreições, todo o tipo de resistência. Hoje nós sabemos como o sistema do Brasil não foi só muito duro na manutenção da escravidão, mas, também, que os escravizados se revoltaram a todo momento e de inúmeras maneiras.
EC – Entramos na questão da intolerância.
Lilia – Então, não se pode ser um país tolerante porque nós herdamos e aprimoramos um racismo estrutural, um racismo institucional e o que impressiona muito no Brasil é como existia essa insistência na ideia de um povo cordial e como cada vez mais, nos dias de hoje, ocorre o contrário. Muitos brasileiros estão se manifestando e aparecendo, usando a representação de pessoas muito intolerantes. Intolerantes aos feminismos, aos novos movimentos negros, aos movimentos indígenas, aos movimentos de ecologia e de meio ambiente. O que impressionou muito quando eu escrevi esse livro é que durante muito tempo houve uma negação desse lado violento e nada cordial dos brasileiros, como também o que ocorre nessa nossa contemporaneidade é uma mudança pública na representação, com muitos brasileiros se definindo como absolutamente intolerantes
EC – Não lhe parece que até há pouco tempo o brasileiro conseguia enganar bem, passando a imagem de povo simpático, receptivo?
Lilia – Eu acho que sim. Não só enganamos aos outros, como enganamos a nós mesmos. Isso me impressiona. Não se trata apenas de um plano feito explicitamente para enganar os estrangeiros. Durante muito tempo os brasileiros também estavam enganados, tanto que Sérgio Buarque de Hollanda, que publicou Raízes do Brasil na década de 1930, já dizia que a cordialidade era uma espécie de superficialidade, um ponto alto de um iceberg, cuja base não tinha nada de cordialidade. Dizia que cordialidade veio de cor e que os brasileiros, de fato, sempre quiseram se definir como cordiais. Mas isso que ele falava nos anos de 1930, na verdade o que encobre? Encobre como os brasileiros misturam esferas públicas com esferas absolutamente privadas. Se nós quisermos trabalhar com um exemplo contemporâneo, nosso atual presidente usa sua rede social de forma pública e quando é criticado por conta das mensagens que envia, ele diz: ‘não, isto aqui é meu e é privado’. Esse uso pouco discriminado do público e do privado sempre foi uma realidade no Brasil; patrimonialismo sempre foi um conceito que se aplica ao Brasil. E, nesse nosso momento da força das redes virtuais, estamos falando de novos patrimonialismos. Como essas fronteiras se borram e produzem mais ‘mito’, mais violência e mais dicotomia. No nosso caso presente, mais intolerância.
EC – O antropólogo Artur Ramos (1903-1949) chegou a cunhar o termo “Democracia Racial” para ajudar a definir um pouco o Brasil de então. Uma falácia?
Lilia – O termo Democracia Racial foi cunhado por Artur Ramos, mas foi muito divulgado e difundido por Gilberto Freyre. Eu acho que falar em falácia do mito da Democracia Racial não corresponde à força que ele tem. Eu penso o conceito de mito não como mentira. Essa é uma falsa concepção do mito. O mito é um tipo de discurso que ganha força, continuidade, perenidade muitas vezes, por causa não do que ele esconde, mas, no caso da Democracia Racial, ele se comporta dessa maneira. Ele trata de contradições fundamentais da nossa sociedade. A escravidão foi e é uma mácula, uma marca, um problema na nossa sociabilidade contemporânea. Então, o mito da Democracia Racial tenta transformar uma situação de muita discriminação e muito racismo numa situação paradisíaca que não é. Qual é a questão e qual é a perversão do racismo que nós praticamos no Brasil? Ele combina inclusão social com imensa exclusão social, econômica, cultural, o que for. Muitas vezes as pessoas se valem desses exemplos ‘Ah, temos cantores famosos, temos jogadores de futebol famosos’, como se isso fosse um antídoto para não lidar com a realidade que é a discriminação em nível escolar – e as pesquisas vêm demonstrando; a discriminação nos índices de vida e de morte; a discriminação nos empregos; a discriminação nas instituições onde nós vemos que as posições mais altas nas hierarquias são todas ocupadas por brancos e não por negros. Então, o mito da Democracia, diferente do que você diz, não é uma falácia, é uma realidade. Ou seja, é a maneira como nós brasileiros tentamos transformar essa questão numa invisibilidade. Uma invisibilidade social. No Brasil existe uma grande ideologia do branqueamento e essa ideologia se pauta numa grande contradição – por isso a força do mito – que é não destacar que essa é uma sociedade de privilégios muito estabelecidos. E são privilégios brancos.
EC – O fato de uma das mais conceituadas editoras acadêmicas do mundo, a Princeton University Press, resolver editar o Sobre o Autoritarismo Brasileiro sete meses após o seu lançamento no Brasil indica que essa imagem do brasileiro lá fora pode ser revertida?
Lilia – Essa sua pergunta é muito interessante. Se isso é um dado importante, acho que é. Também a editora portuguesa Objectiva resolveu editar o livro, que sai agora em abril. Isso mostra como a imagem dos brasileiros no exterior vai sendo trincada. Um bom exemplo é o que aconteceu com o caso do assassinato de Marielle. A notícia ressoou muito no exterior. Ficou muito evidente como há questões ainda muito mal explicadas. Agora são quase dois anos da morte de Marielle e ainda estamos querendo saber quem matou. Esse tema impactou grandemente no exterior, como tem impactado grandemente uma série de medidas do nosso chefe do Planalto que tem censurado, tem intimidado, tem acusado moralmente, tem atuado contra o jornalismo, contra a academia, contra os novos agentes sociais inscritos nos discursos das minorias. Alguém que simplesmente demitiu um cientista ilibado que apenas falou a verdade, que a nossa Amazônia está ardendo e nunca existiram tantas queimadas como agora. Então, eu acho que a imagem do brasileiro, a imagem do Brasil, tem se alterado largamente nesses últimos anos. (Nota do Editor: as referências são à vereadora Marielle Franco (PSol/RJ) assassinada por milicianos em 14 de março de 2018 no Rio junto com seu motorista, Anderson Gomes; e ao presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, exonerado em agosto de 2019 por Bolsonaro por divulgar dados sobre o desmatamento da Amazônia).
EC – Você tem uma grande experiência acadêmica no exterior. Realmente é perceptível essa mudança de imagem?
Lilia – Eu dou aula em Princeton há mais de dez anos e, se antes os alunos vinham em busca de um Brasil exótico – da capoeira, do Candomblé, dos costumes cruzados, dos costumes mestiços – agora, cada vez mais, os próprios alunos vêm atrás do Brasil pra entender o que está acontecendo, o que se passa agora na nossa agenda. Vou lhe dar mais um exemplo: neste semestre, eu estou dando uma aula sobre a Amazônia na história; de que maneira a Amazônia e as suas populações apareceram desde o século 16, 17, 18, chegando até a contemporaneidade. É um curso que para os moldes de Princeton é muito grande e as pessoas, os alunos, estão muito bem informados sobre o problema da Amazônia. Eles não vão ao encontro de um curso que vai falar da Amazônia como um paraíso perdido no Brasil, portanto, como o Brasil da grande natureza. Eles estão muito preocupados com a situação atual e com a falta de medidas por parte do nosso governo. Sobretudo, estão muito preocupados com a atuação de um Ricardo Salles, que é um ministro que deveria proteger o meio ambiente, mas que claramente tem no exterior uma imagem contrária. Portanto, sim, voltando à sua pergunta anterior, a imagem do Brasil está sendo, de fato, revertida.
EC – Essa imagem do brasileiro cordato, aberto, começou a reverter para a intolerância com a ascensão da nova direita?
Lilia – Eu considero, sim, que a ascensão do governo Bolsonaro, que é essa ‘nova direita’, muito vinculada a uma postura do Trump foi decisiva, sim. E ela é vista aqui no exterior com muita preocupação e com muito espanto também. Por que, de fato, se trata de uma reversão de expectativas
EC – Tens recebido muitas perguntas sobre a atual conjuntura do Brasil?
Lilia – Sim. Há muitas questões sobre o problema do environment (meio ambiente), muitas questões sobre o racismo pautadas por Marielle Franco e outras questões atuais. Muita preocupação com relação à censura: o documento que circulou no contexto da indicação do Oscar para o filme da Petra (Democracia em Vertigem) teve grande ressonância aqui nos Estados Unidos. A questão não era tanto se era preciso ser a favor ou não do filme. O fato de o presidente declarar publicamente que não havia assistido, mas que o considerava um filme de ficção. Então, esse tipo de atitude do governo Bolsonaro, aquele vídeo feito pelo secretário Nacional da Cultura, o Alvin, no qual ele de alguma forma aludia o nazismo foi visto com imensa preocupação.
EC – Já cansou de tentar explicar (risos)?
Lilia – Eu (risos) não me cansei de explicar. Você ri e eu também. Vejo que é o meu papel explicar, assim como eu tenho me colocado publicamente no Instagram. Cada dia eu posto uma nova notícia, informo, mas também dou a minha interpretação. Eu, como intelectual que sou, tenho visto com grande preocupação a atual conjuntura brasileira e sou partidária da ideia de que essa série de ataques à nossa democracia e à nossa República precisa ser repudiada tanto no Brasil como no exterior. Então, eu não tenho aberto mão dessa postura. Ao contrário. Eu tenho me manifestado com muita frequência tanto no Brasil como no exterior contra as atitudes desse governo, sobretudo no que se refere à censura e a tentativa regressista.
EC – Falando em regressista, como você vê o ataque aos direitos conquistados pela sociedade?
Lilia – Direitos nós precisamos conquistar sempre, não é? Não existe direito definitivamente conquistado, mas o que nós temos assistido no Brasil é, de fato, um projeto de Estado que pretende reverter ganhos arduamente conquistados nesses 30 anos, se não de democracia absolutamente realizada, mas de democracia plena. Esse é um governo que tem tentado reverter várias conquistas do feminismo, adotando uma postura muito conservadora, muito retrógrada, em relação a esses temas, em relação aos movimentos quilombolas, aos movimentos indígenas, enfim, um governo que tem uma postura que eu diferencio de uma postura conservadora.
EC – Por exemplo?
Lilia – Acho que para uma democracia funcionar bem, bons conservadores são muito importante. A democracia funciona melhor nas diferenças, no embate. O conservador é aquele que pretende conservar o status quo, mas não abre mão do diálogo. Nós estamos falando de um governo que não dialoga, de um governo que fala e depois volta atrás e se desdiz. Esse é antes um governo retrógrado, o que é muito preocupante. Eles querem fazer uma espécie de backlash no sentido de anular conquistas que foram sendo realizadas durante esse período tão largo dessa nossa história brasileira.
EC – Na introdução do seu livro você diz que história ajuda a produzir uma discussão mais crítica sobre o passado, presente e sonho de futuro. Qual o sonho de futuro da cidadã Lilia Schwarcz?
Lilia – Bom… Qual é o meu sonho de futuro. Eu penso que nós precisamos de um Brasil não tão distópico, como é esse Brasil que nós estamos conhecendo. Um Brasil não tão odioso, como é esse Brasil que vai aparecendo nas falas dos ministros da Educação, das Relações Exteriores, da nossa ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Um Brasil mais amplo, um Brasil mais plural, um Brasil mais variado. Um Brasil mais utópico! Nós precisamos de mais sonhos e de menos pesadelos.
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