Chorava de quase morrer, ria de se matar
Livro mais autobiográfico de Duras, 'O Amante' concilia força e delicadeza
A escritora e cineasta Marguerite Duras no set de "Jaune Le Soleil", em 1971,
em Neauphle-le-Château, na França - Divulgação
Marguerite Duras, cultuada escritora, dramaturga e roteirista de cinema (é seu o roteiro de “Hiroshima, Meu Amor”, dirigido por Alan Resnais), só caiu nas graças do grande público quando, aos 70 anos, lançou “O Amante”, best-seller mundial e ganhador do prêmio Goncourt em 1984. Li suas poucas páginas em uma tarde e não pude dormir à noite, tentando assimilar tamanha porrada e, na mesma medida, delicadeza.
Com o fim da saudosa Cosac Naify, o livro ficou alguns anos fora de catálogo, mas retorna agora reeditado pelo selo Tusquets. Conta a história do relacionamento entre uma adolescente branca que vive com a família na Indochina colonizada pela França (Vietnã nos dias atuais) e um jovem chinês rico, filhinho de papai (sempre em uma limusine que mais parece um carro funerário). Ele se apaixona perdidamente ao vê-la num traje que combina um vestido velho da mãe, um cinto do irmão, sapatos de salto alto e lamê dourado e um chapéu masculino com a aba reta e lisa. Ela diz que já o conheceu com dinheiro e, portanto, não sabe definir se gosta dele independentemente de sua situação financeira.
Duras começa o livro afirmando que a história da sua vida não existe, mas depois, em entrevistas, declara ser esta a sua obra mais autobiográfica. Narra a criança inocente, pobre e, de repente, lhe dá contornos de mulher perigosa e com certo porte. Chorava de quase morrer, ria de se matar. Chama sua mãe de “porcaria” e “meu amor” na mesma frase. Sua relação familiar é tão intensa quanto destituída de afeto. Cuida da colega de internato como filha, mas a deseja sexualmente. Sente-se como filha do seu amante, mas pensa também usá-lo se colocando em uma posição superior.
Vai ao passado e volta, ora narrando em primeira pessoa, como a velha senhora que tenta entender aquela garotinha com 15 anos e meio; ora tornando a garotinha uma personagem em terceira pessoa, para que essa, talvez, traga alguma verdade só possível quando tomamos distância.
Escrito exatamente como são nossas memórias e sonhos, com tempos, idades e casas misturadas (e imagens e pensamentos encobertos), o leitor tem ao menos algumas certezas postas da forma mais honesta e clara possível: uma filha que venera até o limite da razão uma mãe louca; uma irmã que ama para além da morte um “irmão mais novo” e frágil; e uma garotinha que, ao pretender se prostituir por perversão e ganância, se dá conta, talvez só no fim da vida, que viveu um grande amor.
Marguerite reconhece certa liberdade literária após a morte da mãe (e do irmão mais velho): “É por isso que escrevo sobre ela, agora, de modo tão fácil, tão longo, tão estirado, ela se tornou escrita corrente”. E ainda, nas palavras da crítica Leyla Perrone-Moisés, no excelente posfácio do livro: “o recalcado encontrou uma forma, uma sublimação. Isso só se consegue por um trabalho, aqui o trabalho da escrita”. Não à toa o psicanalista Jacques Lacan foi assumidamente “arrebatado” por sua narrativa.
Fico feliz ao saber que Duras não gostou do filme homônimo dirigido por Jean-Jacques Annaud.
Interpretar com ares de totalidade essa obra ou, ainda, dar-lhe qualquer imagem absoluta, certamente incomodaria uma autora capaz de produzir frases como “muito cedo foi tarde demais em minha vida” ou “olhar é ter um movimento contra alguma coisa, é decair” e ainda “em minha infância, a infelicidade de minha mãe ocupou o lugar do sonho”. Como filmar uma adolescente que se prostitui para “aprofundar o conhecimento de Deus”?
O Amante, Ed. Tusquets, 2020, R$ 29,18, e-book R$ 26,91 (128 págs.)
Tati Bernardi
Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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