segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ELEANOR MARX: QUESTÃO FEMININA E LUTA DE CLASSES

 Luiz Bernardo Pericás, Professor do Departamento de História - USP

Os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta


Pioneira do feminismo socialista, Eleanor Marx, segundo sua biógrafa Rachel Holmes, “mudou o mundo”. Nascida em 1855, em um pequeno e apertado apartamento de dois quartos no Soho, Londres, Tussy (como ficou conhecida), a filha favorita do autor de O Capital, desempenhou um papel político de suma importância ao longo de seus 43 anos. 

A vida dessa escritora revolucionária foi, nas palavras de Holmes, nada menos que “um dos mais significativos e interessantes eventos na evolução da social-democracia na Grã-Bretanha vitoriana”. Afinal, entre suas múltiplas atividades, traduziu Madame Bovary, de Flaubert e trabalhos de Plekhanov, Liebknecht e Lissagaray (com quem teve um caso amoroso); foi uma das primeiras e mais enérgicas militantes sindicalistas da época; uma das introdutoras do ibsenismo na ilha (verteu para o inglês algumas peças do dramaturgo norueguês); lutou pela igualdade de gênero; começou a escrever a primeira biografia de seu pai (nunca completada); foi amiga de George Bernard Shaw, Sylvia Pankhurst e William Morris; deplorava o anarquismo; e foi uma divulgadora incansável da obra de Marx e Engels, tendo editado Revolução e Contrarrevolução na Alemanha (1896), The Eastern Question: A Reprint of Letters written 1853-56 dealing with the events of the Crimean War (1897), Value, Price and Profit, addressed to Working Men (1898), Secret Diplomatic History of the Eighteenth Century (1899) e The Story of the Life of Lord Palmerston (1899), os dois últimos volumes, lançados no ano seguinte ao suicídio dela.

Seu “feminismo” era bastante distinto daquele defendido pelo pensamento mainstream da segunda metade do século XIX. Ainda que muitas de suas amigas fossem sufragistas, a campanha pelo voto, na visão de Eleanor, mesmo que importante, seria um objetivo limitado. A reforma eleitoral para as senhoras de classe média dentro da sociedade capitalista não dava conta de resolver o debate social mais amplo, já que, segundo ela, “a dita questão do ‘direito das mulheres’... é uma ideia burguesa. Eu propus lidar com a Questão Sexual do ponto de vista da classe trabalhadora e do conflito de classe”. Ou seja, os direitos das mulheres e do proletariado eram parte da mesma luta.

Holmes afirma que Tussy teria sido a responsável por criar a filosofia política do “feminismo socialista”, explicitado em seu tratado “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista”, escrito em coautoria com seu parceiro Edward Aveling e publicado no Westminster Review em 1886 (um texto que deveria figurar em importância ao lado de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels e de Um teto todo seu, de Virginia Woolf). Nesse sentido, foi a caçula da família Marx, junto com Clara Zetkin, quem teria levado o feminismo ao topo da agenda política no primeiro congresso da Segunda Internacional.

A biógrafa narra com detalhes os anos de formação de Eleanor e a dinâmica estimulante de seu ambiente familiar: os muitos e variados livros que lia; suas discussões e jogos de xadrez com o Mouro (de quem quase sempre ganhava as partidas); sua relação íntima com Engels (considerado como um segundo pai por ela); o interesse pela Guerra Civil americana, Abraham Lincoln e Garibaldi; sua admiração e conhecimento profundo da obra de Shakespeare; os cigarros e bebidas alcoólicas que apreciava desde o começo da adolescência; seu apoio entusiástico aos fenianos irlandeses; sua paixão pelo teatro; o início de suas atividades políticas. Era uma das poucas pessoas que conseguiam entender a difícil letra de Marx e transcrever seus textos. Na verdade, ela se tornou uma espécie de “secretária” e assistente de pesquisa de seu progenitor (realizando levantamento de fontes especialmente no British Museum).

A última década da autora de Campaign Against Child Labor foi intensa. Continuou a contribuir para órgãos de imprensa como Time: A Monthly Miscellany, Justice e Neue Zeit, a traduzir artigos diversos e a editar os trabalhos do filósofo renano, além de manter suas múltiplas atividades como militante política. Convidada por Plekhanov e Zasulich, tornou-se correspondente britânica do periódico russo Russkoye Bogatstvo. Eleanor Marx se matou em 1898, abalando boa parte do movimento operário e dos socialistas britânicos de então, surpreendidos com a trágica notícia. Sua vida e seu legado, contudo, continuam a ser lembrados até hoje, em parte pelo fascinante livro de Rachel Holmes, Eleanor Marx: A Life (Bloomsbury Press, 2014), obra que certamente deveria ser traduzida e publicada por aqui em algum momento. 

Rachel Holmes on Eleanor Marx: A Life 



sábado, 21 de novembro de 2020

Negro drama

Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas
Invejas, luxo, fama

Negro drama
Cabelo crespo
E a pele escura
A ferida, a chaga
A procura da cura

Negro drama
Tenta ver
E não vê nada
A não ser uma estrela
Longe meio ofuscada

Sente o drama
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança

Negro drama
Eu sei quem trama
E quem 'tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela
Túmulo, sangue
Sirene, choros e vela

Passageiro do Brasil
São Paulo
Agonia que sobrevivem
Em meia as zorras e covardias
Periferias, vielas, cortiços

Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso
Desde o início
Por ouro e prata

Olha quem morre
Então veja você quem mata
Recebe o mérito, a farda
Que pratica o mal

Ver o pobre, preso ou morto
Já é cultural

Histórias, registros
Escritos
Não é conto
Nem fábula
Lenda ou mito

Não foi sempre dito
Que preto não tem vez
Então olha o castelo e não
Foi você quem fez cuzão

Eu sou irmão
Dos meus trutas de batalha
Eu era a carne
Agora sou a própria navalha

Tim tim
Um brinde pra mim
Sou exemplo, de vitórias
Trajetos e glórias

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar
De dentro dele
A favela

São poucos
Que entram em campo pra vencer
A alma guarda
O que a mente tenta esquecer

Olho pra trás
Vejo a estrada que eu trilhei
Mó' cota
Quem teve lado a lado
E quem só fico na bota
Entre as frases
Fases e várias etapas

Do quem é quem
Dos mano e das mina fraca
Hum

Negro drama de estilo
Pra ser
E se for
Tem que ser
Se temer é milho

Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde

Que Deus me guarde
Pois eu sei
Que ele não é neutro
Vigia os rico
Mas ama os que vem do gueto

Eu visto preto
Por dentro e por fora
Guerreiro
Poeta entre o tempo e a memória

Hora
Nessa história
Vejo o dólar
E vários quilates

Falo pro mano
Pra que não morra, e também não mate

O tic tac
Não espera veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa
E cheia de morteiro

Pesadelo
Hum

É um elogio
Pra quem vive na guerra
A paz nunca existiu
Num clima quente
A minha gente sua frio
Vi um pretinho
Seu caderno era um fuzil

Negro drama, Negro drama, Negro drama
Ó só quanto negro drama reunido na Zona Leste nessa tarde de noite de domingo, ó só
Essa é pra você por que, essa é pra você, han
Essa é pra você por que, essa é pra você, essa é pra você
Descendente de escravo que não teve direito a idenização

Olha só, daria um filme, huh
Uma negra
E uma criança nos braços
Solitária na floresta
De concreto e aço

Veja
Olha outra vez
O rosto na multidão
A multidão é um monstro

Sem rosto e coração

Hey
São Paulo
Terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne
É a torre de babel

Famíla brasileira
Dois contra o mundo
Mãe solteira
De um promissor
Vagabundo

Luz, câmera e ação

Gravando a cena vai
Um bastardo
Mais um filho pardo
Sem pai

Hei

Senhor de engenho
Eu sei
Bem quem você é
Sozinho, 'cê num guenta
Sozinho

'Cê num entra a pé
'Cê disse que era bom
E a favela ouviu, lá também tem
Whiskey, red bull
Tênis Nike e fuzil

Admito
Seus carro é bonito, sim
Eu não sei fazê
Internet, video-cassete
Os carro loco

Atrasado
Eu 'tô um pouco sim
'Tô
Eu acho

Só que tem que

Seu jogo é sujo
E eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
De carnaval a carnaval
Eu vim da selva
Sou leão
Sou demais pro seu quintal

Problema com escola
Eu tenho mil
Mil fita
É, inacreditável, mas seu filho nos imita
No meio de vocês
Ele é o mais esperto
Ginga e fala gíria
Gíria não, dialeto

Esse não é mais seu

Subiu
Entrei pelo seu rádio
Tomei
'Cê nem viu
Nóis é isso ou aquilo

Que você não dizia
Seu filho quer ser preto
Rhá
Que irônia

Cola o pôster do 2Pac ai
Que tal
Que 'cê diz
Sente o negro drama
Vai
Tenta ser feliz

Ei bacana
Quem te fez tão bom assim
O que 'cê deu
O que 'cê faz
O que 'cê fez por mim

Eu recebi seu tic
Quer dizer kit
De esgoto a céu aberto
E parede madeirite

De vergonha eu não morri
Eu 'tô firmão
Eis me aqui
Voce não

'Cê não passa
Quando o mar vermelho abrir

Eu sou o mano
Homem duro
Do gueto, brow

obá

Aquele louco
Que não pode errar
Aquele que você odeia
Amar nesse instante
Pele parda
Ouço funk

E de onde vem
Os diamantes
Da lama

Valeu mãe

Negro drama
Drama, drama

Racionais MC's
Album: Nada como um Dia após o Outro Dia
Lançamento: 2002


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Carlos na pandemia

Welcome to the Jungle

Prólogo

Carlos, um veterano, resolveu sair dos jardins da razão e reentrar nos delírios da selva.

E quando? Na selva de uma pandemia. No dia, o Brasil do Covid-19 tinha 167.590 mortes confirmadas e 5.952.185 casos confirmados. No Espírito Santo 4.037 mortes e 172 mil casos.

Para entender a selva. Vem da música do Guns N' Roses, Welcome to the Jungle 

Bem vindo à selva/Nós temos diversões e jogos/Nós temos tudo o que você quiser/Querida, nós sabemos os nomes/Somos as pessoas que podem encontrar/Tudo que você precisar/Se você tem dinheiro, querida/Curamos a sua doença.

E a selva do Carlos? Bem, visitem, neste Blog, Loser , C'est la vie  e  Puta que pariu, eu amo essa mulher, que vocês entenderão a selva do Carlos.

Saindo do Prólogo

Na pandemia, depois de 8 meses de severa quarentena, Carlos resolveu sair. A convite de amigos foi a um restaurante, tomou uma garrafa de vinho tinto e não satisfeito, uma dose de uísque.

Como nos velhos tempos, do restaurante perambulou pelas ruas de Vitória. Desembarcou no Rei Momo, um boteco que existe há 30 anos, e abre na madrugada. Tomou duas cervejas e pensou: agora o que faço antes de ir para casa?

Não quis deslembrar e continuou na selva. E a perambulare... 

Mirage, foi o destino depois de muito vaguear. Mirage é uma casa de strip-tease em Vitória que existe há mais de 30 anos. Algumas pessoas fora e várias dentro da casa. Ninguém com máscara. Inclusive Carlos. Sentou numa poltrona, pediu um uísque e ficou observando o show. Uma menina sentou ao lado e pediu um uísque. Carlos consentiu. Depois de 5 minutos ele foi ao banheiro. Voltou e disse para a garota: desculpe, mas já vou, estou preocupado neste ambiente. O corona vírus deve estar passeando por aqui.

Carlos saiu da casa. Deve ter ficado por lá durante uns 20 minutos.

Epílogo

Carlos acordou na manhã seguinte numa puta culpa pelo delírio da madrugada na selva. Mas gostou do passeio. Como nos tempos idos.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Engels

Friedrich Engels: 200 anos

BY MARXISMO21 ON 18 DE NOVEMBRO DE 2020

Desenho de David Maciel. Arte final de Alexandre Pimenta (editores de marxismo21)

Há 200 anos, em 28 de novembro de 1820, nascia Friedrich Engels, em Barmen, na então Prússia Renana. Filho de um industrial do ramo têxtil, cedo desvinculou-se política e filosoficamente de sua origem e condição de classe participando do movimento intelectual de crítica à realidade alemã promovido pelos jovens hegelianos e se aproximando dos operários fabris e de sua luta na cidade de Manchester (Inglaterra), para onde foi enviado pelo pai para administrar os negócios da família. Esta posição permitiu-lhe passar da crítica da religião e da filosofia para a crítica da economia politica e para a centralidade da “questão social”, antes mesmo de seu encontro com Marx. 

Com Marx elaborou os fundamentos teóricos e políticos do materialismo histórico, para o qual contribuiu não só como pensador original, trazendo contribuições em diversos temas, mas também como militante revolucionário, organicamente ligado ao movimento operário. Junto com Marx militou na Liga dos Comunistas e participou ativamente da Revolução de 1848-49 na Alemanha, chegando a “pegar em armas” contra as forças da ordem. Graças à sua condição social burguesa, como sócio de uma empresa industrial, Engels contribuiu financeiramente durante décadas para a sobrevivência de dezenas de militantes revolucionários, não apenas para Marx como também para organizações de trabalhadores, que tinham nele um apoio material permanente.

Como pesquisador original, Engels estudou e produziu obras importantes sobre um notável leque de temas e disciplinas, que foram da filosofia, da economia politica, da antropologia e da história à biologia, à química e à física, além da arte militar e do que hoje chamaríamos “tecnologia”. Foi, assim, um típico intelectual do século XIX, quando a especialização acadêmica ainda não pesava como uma mortalha sobre o cérebro dos vivos. Após se libertar do “cativeiro egípcio”, apodo com o qual ele designava jocosamente o trabalho na administração dos negócios da família, passou a se dedicar de modo integral à elaboração intelectual e à militância política, produzindo algumas das obras fundamentais do aparato marx-engelsiano, tornando-se um dos principais dirigentes da Associação Internacional dos Trabalhadores e contribuindo para a criação e formação teórico-política dos primeiros partidos operários.

Após a morte de Marx tornou-se o legatário da obra do camarada d´armas e amigo, responsabilizando-se por sua divulgação e pela publicação de diversos trabalhos ainda inéditos, entre os quais os livros II e III d’O Capital (dos quais é um verdadeiro co-autor tamanho o volume de suas intervenções para sistematizar e mesmo complementar os manuscritos deixados por Marx). Em seus últimos anos, Engels tornou-se uma espécie “farol” do movimento socialista internacional, esclarecendo problemas conceituais e políticos suscitados pela ascensão do marxismo à condição de principal referância teórico-política do movimento operário e aconselhando dirigentes partidários e sindicais em sua luta cotidiana (apesar de nem sempre os dirigentes social-democratas seguirem seus conselhos!). Faleceu em Londres, em 5 de agosto de 1895, com 75 anos incompletos.

Durante muito tempo seus esforços para abordar temas das ciências físicas e naturais à luz do materialismo histórico e para sistematizar os resultados teóricos a que chegaram Marx e ele em suas pesquisas foram vistas como uma tentativa de transformar o materialismo histórico numa doutrina filosófico-científica global, capaz de tratar de qualquer assunto a partir determinados postulados apriorísticos, suscitando críticas de diversos autores, particularmente ligados à tradição do chamado marxismo ocidental, que viam neste esforço uma negação do método marxiano das “aproximações sucessivas”. Esses questionaram o senso comum no movimento socialista em torno da identidade entre os dois fundadores do materialismo histórico presente na entidade “Marx-Engels” como um mito fabricado com finalidades políticas pela social democracia e mais tarde pelo stalinismo (que incorporou Lênin e Stálin ao duo), insistindo nas diferenças entre os dois, e acusaram Engels de abrir as portas para a contaminação positivista do marxismo. Neste âmbito sua obra. passou a ser negligenciada, tida como irrelevante ou desviante da real perspectiva analítica de Marx. De “segundo violino”, como ele mesmo definiu seu papel na criação do materialismo histórico, Engels caiu para a condição de primeiro “marxista positivista”, o que contribuiu para o esquecimento de sua contribuição fundamental para áreas tão variadas como a historiografia, a antropologia, a sociologia do trabalho, a ciência política e a própria crítica da economia política.

No entanto, as pesquisas suscitadas pela edição das obras completas de Marx e Engels a partir dos anos 70 e a incorporação de suas contribuições como uma referencia fundamental para pesquisas em áreas diversas das ciências sociais tem suscitado a retomada dos estudos em torno de sua obra e uma compreensão mais equilibrada e realista de sua contribuição para o marxismo, para as ciências sociais e para a luta revolucionária. O dossiê que ora publicamos se orienta nesta direção.


Editoria, 16 de novembro de 2020

I. Obras de Engels:

1839, Sermão de F. W. Krummacher sobre o livro de Josué

1840, Dois Sermões de F. W. Krummacher

1843, Progresso do Comunismo na Alemanha – Perseguição de Comunistas na Suíça

1844, Esboço de uma crítica da economia política

A Imprensa e os Déspotas Alemães

Movimentos Continentais

Notícias da Alemanha

Destino de um Traidor

Notícias de São Petersburgo

Revolta da Cerveja na Bavária

Notícias da França

Notícias da Prússia

Socialismo Continental

1845, A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra


1847, Princípios Básicos do Comunismo

O Programa Agrário dos Cartistas

O Aniversário da Revolução Polonesa de 1830

Agitação Cartista

1848, A Coercion Bill para a Irlanda e para os Cartistas

1852, A real causa pela qual os proletários franceses mantiveram-se Inativos no último dezembro

Revolução e Contra-Revolução na Alemanha

O Recente Julgamento em Colónia

1857, A Pérsia e a China

1857, Guerra nas Montanhas no Passado e no Presente

1859, Karl Marx, “Para a Crítica da Economia Política”

1868, O Capital de Karl Marx

Recensão do Primeiro Volume de «O Capital» para o Demokratisches Wochenblatt

1870, Nota Prévia a «A Guerra dos Camponeses Alemães»

1871, Discurso Sobre a Acção Política da Classe Operária. [Pronunciado na Conferência de Londres]

1872, Carta a Theodor Cuno

1873, Sobre a Autoridade

Carta a August Bebel

Os Bakuninistas em Ação

Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna

Para a questão da habitação

1874, Carta a Friedrich Adolph Sorge

1875, Do Social na Rússia

Carta a Pietr Lavrovitch Lavrov

Carta a August Bebel

1876, Carta a Marx

Carta a Marx

Carta a Marx

Carta a Marx

O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem

Introdução à “Dialéctica da Natureza”

1877, Karl Marx

Anti-Dühring

1878, Antigo Prefácio ao “[Anti-]Dühring” Sobre a Dialéctica

1880, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico

1881, Sindicatos – Parte II

Um Salário Justo Para Uma Jornada de Trabalho Justa

1882, Bruno Bauer e o Início do Cristianismo

Carta a Karl Kautsky

Carta a August Bebel

A Dialética da Natureza

A Marca

1883, Discurso Diante do Tumulo de Karl Marx

O Capital. Crítica da Economia Política – Karl Marx – Prefácio à terceira edição

1884, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado

Marx e a Neue Rheinische Zeitung

Prefácio à primeira edição alemã do livro Miséria da Filosofia

1885, Prefácio ao volume 2 de O Capital de Marx

Para a História da Liga dos Comunistas

1886, Prefácio à edição inglesa. O Capital. Crítica da Economia Política, Karl Marx

Carta a Florence Kelley-Wischnewetzky

Carta a Friedrich Adolph Sorge

Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã

O socialismo jurídico

1888, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica [Nota Prévia à Edição de 1888]

O Papel da Violência na História

1890, Prefácio à quarta edição. “O Capital . Crítica da Economia Política” de Karl Marx

Carta a Conrad Schmidt

Carta a Otto von Boenigk

Carta para Joseph Bloch

1891, Prefácio a Crítica do Programa de Gotha

Carta a Karl Kautsky

Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de A Guerra Civil em França

Saudações aos Trabalhadores Franceses no 20º Aniversário da Comuna de Paris

Para a Crítica do Projecto de Programa Social-Democrata de 1891

1892, Carta a Conrad Schimdt

Prefácios de Engels à Miséria da Filosofia

Saudações aos Trabalhadores Franceses na Ocasião do 21º Aniversário da Comuna de Paris

1893, Carta a Franz Mehring

Carta a Nikolai Frantsevitch Danielson

1894, Carta a W. Borgius

A Futura Revolução Italiana e o Partido Socialista

Ao Conselho Nacional do Partido dos Trabalhadores Franceses na Ocasião do 23º Aniversário da Comuna de Paris

A Questão Camponesa em França e na Alemanha

Los bakuninistas em acción

1895, Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo

Carta a Werner Sombart

Sem data
As Táticas de Infantaria Derivadas a Partir de Suas Causas Materiais 1700-1870

Temas militares

II. Obras de Engels e Marx:


1840, Escritos sobre literatura

1844, La sagrada família

1846, Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista. (Capitulo Primeiro de A Ideologia Alemã)

1848, Manifesto do Partido Comunista

Demandas do Partido Comunista na Alemanha

1850, Revolução do século XVII na Inglaterra. “Por que a Revolução na Inglaterra teve sucesso?”: uma crítica do panfleto de Guizot

Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas

Espiões Prussianos em Londres

Dos Refugiados Prussianos para o Editor do The Sun

Declaração ao Editor do Neue Deutsche Zeitung

1852, Declaração Pública aos Editores da Imprensa Inglesa

1854, Escritos sobre España

1858, Escritos vários sobre la dialectica

1871, Sobre a Comuna

1872, As Pretensas Cisões na Internacional. Circular Privada do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores

Das Resoluções do Congresso Geral Realizado na Haia

1879, Carta Circular a A. Bebel, W. Liebknecht, W. Bracke e Outros

sem data.
Obras Escolhidas (em Três Tomos). Karl Marx e Friedrich Engels

Coletânea Textos Sobre Educação e Ensino

Cartas
Marx e Engels

1881, Escritos sobre Russia
              
III. Textos sobre Engels (e Marx):

“Sobre a questão da Moradia”: permanências sob a visão marxista. – Bianca Davi Pereira de Almeida e Bernardo Marques Azevedo de Souza Pinto

Dossiê ENGELS – Revista ANTÍTESE
A CONTRIBUIÇÃO DOS TEXTOS JUVENIS DE ENGELS À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA, Rodrigo Castelo Branco (PDF)

FRIEDRICH ENGELS E A SITUAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA ONTEM E HOJE
José de Lima Soares (PDF)

A DIALÉTICA DA NATUREZA E A ANTIDIALÉTICA DOS QUE COMBATEM ENGELS
Gilson Dantas (PDF)

ENGELS, CIÊNCIA E SOCIALISMO*, Pablo Rieznik (PDF)

ENGELS E A ORIGEM DO MARXISMO, Marcos Del Roio (PDF

ENGELS E O PROBLEMA DA REVOLUÇÃO BURGUESA NA ALEMANHA, David Maciel (PDF)

Marx, Engels e a concepção de modo(s) de produção: uma resposta ao paradoxo no centro da teoria marxista, Paulo Fernando Rocha Antunes

Engels, Marx e o pragmatismo: a odisseia de William English Walling, Paulo Fernando Rocha Antunes

Democracia e revolução no pensamento de Marx e Engels (1847-1850) – Álvaro Bianchi

Educação, escola e humanização em Marx, Engels e Lukács – Liliam Faria Porto Borges

A “questão social” nas obras de Marx e Engels – Rodrigo Castelo Branco

Marx e Engels: política internacional e luta de classes – Caio Bugiato

Morgan e Engels: considerações sobre a coincidência entre as noções de evolução e de progresso. Gilson Goulart Carrijo

O “segundo violino”: Contribuições de Engels às questões sociais.- Tainã Alcantara de Carvalho

Trabalho em Marx /Engels e a apropriação desse conceito por Vygotski – Adriane Cenci

Marx & Engels.Tomo I – Auguste Cornu (PDF)

O JOVEM ENGELS E O ESBOÇO DA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA, DE 1844 –  Fellipe Cotrim e Luiz Eduardo Simões de Souza

ENGELS: o interlocutor fundamental de Marx – Jéferson Dantas

Engels e a teoria do bonapartismo – Felipe Demier

O retorno de Engels – JOHN BELLAMY FOSTER

O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO OCIDENTAL EM “A IDEOLOGIA ALEMÔ, DE MARX E ENGELS –  Giovanni Barillari de FREITAS

Alguns aspectos filosóficos e políticos da teoria de Estado em Marx e Engels – Rémy Herrera

CONTRIBUIÇÕES DE MARX E ENGELS PARA O ENSINO E EDUCAÇÃO, Flávio Pereira de Jesus

O problema Marx-Engels: por que Engels não falseou O capital marxiano – Michael Krätke

Friedrich Engels – V. I. Lénine

A Correspondência entre Marx e Engels – VLADIMIR LÊNIN

Karl Marx e Friedrich Engels na mira da razão negra: eurocentrismo marxista em desencanto por meio da afrocentricidade – Marcelo de Jesus Lima

Trabalho e educação infantil em Marx e Engels – José Claudinei Lombardi

Marx e Engels como sociólogos da religião – Michael Löwy

SOBRE A POLÍTICA NA IDEOLOGIA ALEMÃ DE MARX E ENGELS – Vilson Aparecido da Mata

Friedrich Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado – Luciana Marcassa

PROLETARIADO E LUTA DE CLASSES EM MARX E ENGELS – ELIEL MACHADO

FRIEDRICH ENGELS, HISTORIADOR DA REVOLUÇÃO ALEMÃ DE 1848-1849 – David MACIEL

O lugar de Marx e Engels na modernidade: raça, colonialismo e eurocentrismo – Jones Manoel

História crítica das Obras completas de Marx e Engels (MEGA) –  THOMAS MARXHAUSEN

Friedrich Engels: una biografía – Gustav Mayer

Friedrich Engels e a questão habitacional: o pauperismo socialmente produzido no sistema capitalista e as condições de moradia – Wanderson Fabio de Melo

A INFLUÊNCIA DA TEORIA ÉTICA DE ADAM SMITH NO JOVEM ENGELS – Franco Maximiliano Rodríguez Migliarini

Marx, Engels e a 1ª Internacional – Alex Minoru

MARX E ENGELS: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DOS CLÁSSICOS NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR – Dalva Helena de Medeiros e Osmar Martins de Souza

A NATUREZA EM MARX E ENGELS: Contribuição ao debate da questão ambiental na atualidade – Eduardo Corrêa Morrone e Carlos Roberto da Silva Machado

Notas sobre Anti-Dühring, de Engels – Ricardo Musse

Marx &Engels- David Riazanov, (PDF)

Dossiê Friedrich Engels – Revista Novos Rumos

Democracia e ditadura na teoria política de Marx e Engels – Theófilo Codeço Machado Rodrigues

As grandes cidades e suas contradições: a sociologia urbana de Friedrich Engels – Wallace Cabral Ribeiro

Friedrich Engels: As Influências do “General” na Parceria com o “Mouro” e no Socialismo Internacional – Wallace Cabral Ribeiro

‘A pausa de Engels’ e a condição da classe trabalhadora na Inglaterra – Michael Roberts

Democracia e ditadura na teoria política de Marx e Engels – Theófilo Codeço Machado Rodrigues

KARL MARX, FRIEDRICH ENGELS E O FENÔMENO RELIGIOSO – RENATO TORRES ANACLETO ROSA

A publicação dos livros II e III d’O capital por Engels – Regina Roth

Friedrich Engels e a moral frente ao fenecimento do Estado –  Vitor Bartoletri Sartori

FRIEDRICH ENGELS E O DUPLO ASPECTO DA IGUALDADE –  Vitor Bartoletti Sartori

Engels, de burguês a revolucionário – HAROLDO CERAVOLO SEREZA e FERNANDO CARVALL

Marx e Engels: fundamentos do poder político, José Otacílio da Silva

Notas introdutórias ao texto de F. Engels sobre a marca – Lígia Osório Silva

Friedrich Engels – biografia e obras de Engels – Vinicius Siqueira

MARX E ENGELS Luta de classes, Socialismo Científico e Organização Política – Sandra M.M. Siqueira e Francisco Pereira

“Aqui é da terra que se sobe ao céu”: Marx, Engels e a religião – Rui Bragado Sousa

O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo , Caio Navarro de Toledo
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NA OBRA “A IDEOLOGIA ALEMÔ DE MARX E ENGELS – Fabiano Veliq


A VISÃO ESCATOLÓGICA DE MARX E ENGELS SOBRE O CAMPESINATO E A VIDA LOCAL RURAL – Cristiano Wellington; Nobcrto Ramalho; Raimundo Nonato Pereira Moreira

A CRÍTICA DE MARX E ENGELS AO DOMÍNIO DAS IDÉIAS: A IDEOLOGIA – José Luiz Zanella

IV. Teses e Dissertações:

FRIEDRICH ENGELS: GUERRA E POLÍTICA Uma investigação sobre a análise marxista da guerra e das organizações militares – DOUGLAS ROGÉRIO ANFRA

Marx, Engels e os limites do sindicalismo – Giovanni Alves

Marx e o ultimo Engels : o modo de produção asiático – Jair Antunes

Flechas e martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis Morgan – Lucas Parreira Álvares

A proposta marxiana/engelsiana de vinculação e trabalho e ensino no embate com o utopismo e reformismo burguês (análise teórico-histórica) Sharly Albuquerque

A questão educacional nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels – Netto, Mario Borges

Estudos do lazer no Brasil : apropriação da obra de Marx e Engels – Elza Peixoto

Dialética às pressas: interação entre jornalismo e pesquisa na obra de Marx e Engels – Danilo Chaves Nakamura

As relações entre a concepção de natureza de F. Engels e a hipótese A. I. Oparin sobre o problema da origem da vida na terra – Carlos Negretti

Lentes coloridas: direito e religião, as concepções de mundo e a questão da igualdade em F. Engels, Gabriel Perdigão

Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels, José Damião Trindade

A união do ensino com o trabalho produtivo: a educação em Marx e Engels – Douglas Ferreira de Paula

V. Vídeos sobre Engels (e Marx):

Friedrich Engels

ENGELS E OS ESTUDOS FEMINISTAS | Maria Lygia Quartim de Moraes

Friedrich Engels: a revolução e a questão militar – Jones Manoel

Cedo Demais / Tarde Demais

O Jovem Karl Marx

Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels | Por Michael Heinrich

I Curso Livre Marx-Engels: “Manifesto Comunista”, por Chico de Oliveira

José Paulo Netto | A atualidade do Manifesto Comunista | IV Curso Livre Marx-Engels

Alysson Mascaro | Marx, Engels e a crítica do Estado e do direito | IV Curso Livre Marx-Engels

Antonio Rago | A crítica do idealismo em Marx e Engels | IV Curso Livre Marx-Engels

O Manifesto Comunista de Karl Marx e Engels versão cartoon

terça-feira, 10 de novembro de 2020

PAI CONTRA MÃE

Machado de Assis

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. 

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. 

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.  

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.  

Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.  Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.  

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.  

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi--para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
--Não, defunto não; mas é que...  

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.  

Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. 

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.  

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.  
--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
--Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como?
--Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
--A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
--Bem sei, mas somos três.
--Seremos quatro.
--Não é a mesma cousa.
-- Que quer então que eu faça, além do que faço?
-- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.
-- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. 

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também.
Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio:
--Titia não fala por mal, Candinho.
--Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem,seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. --Quem é? perguntou o marido. --Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
--Não é preciso...
--Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.


Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
--Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
--Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
--Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
-- Siga! repetiu Cândido Neves.
--Me solte!
--Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
-- É ela mesma.
--Meu senhor!
--Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. 

--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

 

Machados de Assis, Obra Completa, Volume II, p. 659, Editora José Aguillar Ltda, 1962

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O inferno das mulheres

Uma brasileira vai às ruas na Polônia pelo direito ao aborto num dos países mais católicos do mundo

LOUISE YELYNN, 05/11/2020, piaui

No dia 22 de outubro, o Tribunal Constitucional da Polônia acatou um pedido do Parlamento e decidiu que o aborto motivado por má-formação fetal agride a Constituição. Estima-se que nove entre dez interrupções legais de gravidez no país têm essa justificativa. A resolução da corte vem levando centenas de milhares de poloneses a protestar nas ruas. Os manifestantes não apenas pedem a revogação da decisão como criticam o Lei e Justiça, partido ultranacionalista que controla o Parlamento desde 2015 e pressiona o tribunal a endurecer a legislação antiaborto. A brasileira Louise Yelynn, moradora da Polônia há dois anos, narra como têm sido os protestos de que participa.

INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTOS DE LOUISE YELYNN E JESSICA LOURENÇO

Em depoimento a Luigi Mazza

Recebi a péssima notícia na quinta-feira, 22 de outubro. Desde o começo do ano, dizia-se que o Tribunal Constitucional da Polônia iria endurecer ainda mais as leis contra o aborto, mas a decisão foi sendo adiada por causa da pandemia. Em abril, quando haveria a votação na corte, algumas pessoas foram às ruas fazer o que se chama aqui de ciche protesty – protestos silenciosos ou individuais. Eram poucos manifestantes, em silêncio, segurando cartazes nas praças. Isso chamou a minha atenção, e resolvi acompanhar mais atentamente o noticiário sobre o tema. O tribunal adiou a votação para junho, mas quando junho chegou o assunto foi postergado de novo. E aí veio essa bomba em outubro. No dia 22, o tribunal acatou um pedido do Parlamento e decidiu proibir o aborto em caso de má-formação grave do feto, alegando que o procedimento fere a Constituição. Essa é a causa mais comum de aborto legal na Polônia. A lei só permite abortar em outras três situações: quando há risco de morte para a mãe, ou quando a gravidez é fruto de estupro ou incesto.

Eu fiquei preocupada. Mesmo sendo estrangeira e não podendo votar, moro na Polônia, então a lei vale para mim também. Tenho 27 anos e nasci em Jaguariaíva, no interior do Paraná. Desde novembro de 2018, vivo com meu marido, Rafael, em Breslávia – ou Wrocław, em polonês –, uma cidade grande, com mais de 600 mil habitantes. A gente se mudou para cá, na companhia de três cães vira-latas, porque meu marido é analista de sistemas e conseguiu um emprego numa empresa francesa de TI (Tecnologia da Informação). Hoje ele não trabalha mais lá. Transferiu-se para um banco suíço.
Sou cabeleireira. 

Durante a pandemia, parei de atender os clientes e resolvi me dedicar a estudar polonês, que eu apenas arranhava. Meus antepassados mais próximos vieram de Portugal e da Itália, mas tenho tataravós alemães. Descobri há pouco tempo que eles nasceram justamente em Breslávia, quando a cidade pertencia à Alemanha e se chamava Breslau. Acompanho as notícias daqui principalmente pelos jornais Gazeta Wrocławska, todo escrito no idioma local, e Wrocław Uncut, que é em inglês. De uns tempos para cá, também comecei a me informar por meio de páginas feministas nas redes sociais, como a Strajk Kobiet (greve das mulheres). Foi sobretudo graças a elas que fiquei sabendo dos protestos.

Naquela quinta-feira de outubro, assim que o tribunal tomou a decisão, alguns grupos mais engajados protestaram diante do Parlamento, em Varsóvia. Teve muito confronto. A polícia foi chamada para proteger a Casa e atirou bombas de gás lacrimogêneo nos manifestantes. Os protestos se espalharam por outras sessenta cidades no dia seguinte. Eu estava bem receosa de ir e enrolei para sair de casa na sexta-feira. Tinha medo da polícia. Além do mais, sou imigrante e ainda não consegui minha permissão de residência temporária, então não convém vacilar. Mas, quando uma amiga brasileira me mandou mensagem dizendo que se encontrava no ato de Breslávia, resolvi arriscar. Pensei: “Vou, nem que seja só para fazer número.”

Não há uma estimativa de quantas pessoas compareceram ao protesto na cidade. Só sei que as ruas do Centro lotaram. Eu chutaria que eram pelo menos mil ativistas, muito mais gente do que me lembro de ter visto durante a Parada Gay, no verão passado. O movimento feminista que organizou o ato criou um evento no Facebook, mas, por segurança, só divulgou o local do protesto meia hora antes do início. Quem não pudesse ir – pediram as organizadoras – deveria botar para tocar bem alto, dentro de casa, a Marcha Imperial, do filme Star Wars: O Império Contra-Ataca, que virou uma espécie de hino das manifestações. Uma das frases que mais têm sido gritadas nas ruas é “to jest wojna” (isto é guerra). Também se ouve muito “piekło kobiet” (inferno das mulheres). Como o governo tornou a vida das mulheres um inferno, a ideia é que elas agora infernizem o governo.

Em Breslávia, por sorte, o prefeito, Jacek Sutryk, faz oposição ao PiS, o partido ultranacionalista Lei e Justiça, que comanda a Polônia desde 2015 e apoia o veto ao aborto. Não à toa, as manifestações foram pacíficas por aqui. Inclusive, quando o protesto estava acabando, um dos policiais pediu licença para usar um megafone e agradeceu aos manifestantes por terem feito uma caminhada ordeira. As pessoas aplaudiram. Como brasileiros, não estamos acostumados a ver esse tipo de coisa. Em Varsóvia, por outro lado, houve confrontos.

Nos dias 24 e 25, sábado e domingo, ocorreram alguns pequenos protestos isolados. Na segunda-feira, dia 26, as manifestações voltaram a crescer e se disseminaram por 150 cidades. Surgiram, então, os blokadas – bloqueios organizados pelos ativistas para fechar a região central dos municípios. O número de manifestantes triplicou. Uma amiga polonesa se encontrava no mesmo protesto que eu, mas não consegui achá-la, de tão cheia que estava a rua. Não pensei que haveria tanta gente, porque no sábado a Polônia havia baixado restrições mais rigorosas para combater o coronavírus. Eu mesma considerei não ir. Calculo que, naquela segunda-feira, andamos por cerca de 5 km. Foi tudo bem organizadinho: havia crianças e até alguns idosos em cadeira de rodas. Não vi ninguém sem máscara. Em quase todos os prédios pelos quais passávamos, as janelas estavam decoradas com guarda-chuvas pretos ou raios vermelhos. Os guarda-chuvas são um símbolo da luta pelo direito ao aborto desde 2016. 

Naquele ano, o governo do PiS tentou aprovar um projeto que proibia completamente a interrupção da gravidez, mesmo em casos de estupro ou de risco para a mãe. Milhares de mulheres saíram às ruas em protesto, todas vestidas de preto. Como isso aconteceu numa semana muito chuvosa, as fotos mostravam um mar de guarda-chuvas. Já o raio vermelho é o emblema do movimento feminista daqui. O prefeito de Breslávia também foi à manifestação para apoiar a campanha. Nesse dia, apareceram pela primeira vez algumas pessoas que se opunham ao ato, mas eram pouquíssimas – no máximo, trinta. Elas se concentraram em frente às igrejas da cidade e foram protegidas por policiais. Como o protesto se espalhava por várias ruas do Centro, aos poucos me juntei a um grupo que caminhava numa direção próxima à da minha casa. Paramos diante da Catedral de Breslávia. A previsão era de que o protesto durasse das 18 às 19 horas. Mas já passava das 21 horas e eu ainda estava na rua. 

Esse momento em frente à catedral foi bem emocionante. O pessoal subiu em monumentos e, lá do alto, ergueu cartazes gigantes. Alguns ativistas dispararam sinalizadores, que soltavam fumaça colorida. Parte dos manifestantes berrava palavras de ordem em inglês, como “revolution is female” (a revolução é feminina), já que há muitos estrangeiros na cidade. Eu não entendo tudo o que dizem em polonês, mas quando chego em casa procuro saber para usar as frases no próximo ato.

Na quarta-feira, dia 28, eclodiu a greve geral das mulheres. A iniciativa recebeu o título de Nie Idziemy do Pracy (não vamos trabalhar). Foi a maior ação até agora. O protesto levou uns 430 mil manifestantes às ruas de 410 cidades e vilarejos. Em Breslávia, primeiro houve um ato estudantil. Depois, às 18 horas, teve início a manifestação geral. Muitos conhecidos me contaram que seus chefes não foram trabalhar em apoio à greve. A verdade é que nós, estrangeiros, não esperávamos isso dos poloneses. Desde que cheguei aqui, tenho a sensação de que esse é um país católico e muito conservador. Mas, de repente, você vai para a rua e encontra tanta gente… Tem sido legal presenciar essa mobilização. Tenho visto mais homens do que via em protestos feministas no Brasil.

Embora numerosas, as pessoas mantiveram um bom distanciamento entre si. Não tinha gente se apertando. Alguns diziam “foda-se o PiS” e “a guerra foi declarada”. Os poloneses também usam muito a figura do pato amarelo para gozar de Jarosław Kaczyński, o presidente do partido. Isso porque as primeiras letras de Kaczyński remetem à palavra pato em polonês: kaczka. Além dos guarda-chuvas e raios vermelhos, inúmeros manifestantes levaram cabides de arame para o protesto. Era uma referência ao fato de que várias mulheres morreram ao tentar fazer abortos caseiros com arame.
Não vi brigas. Mas, assim que cheguei em casa, por volta das 21h30, li uma reportagem do Gazeta Wyborcza dizendo que ativistas avistaram dezenas de homens mascarados. Os caras portavam facas e atacavam manifestantes. Fiquei bem assustada. Num protesto, é impossível saber se alguém está vindo na nossa direção com uma arma.

O movimento feminista criou uma comissão para debater diretamente com o Parlamento questões relativas tanto às mulheres quanto aos imigrantes e à comunidade LGBTQ+ (aqui muita gente acredita que a homossexualidade é uma ideologia). Essa comissão exigiu que os parlamentares revogassem a proibição do aborto até o último dia 28. Nada aconteceu. Na sexta-feira, dia 30, cerca de 100 mil manifestantes protestaram em Varsóvia. Pessoas de diversas cidades seguiram juntas para a capital do país. Os ativistas continuam impondo prazos ao governo. Se o PiS não os acatar, eles persistirão em sair às ruas.

Kaczyński fez um pronunciamento dizendo que os ativistas querem destruir a Polônia. Mas os jornais já afirmam que ele vem perdendo apoio dentro da própria legenda. Alguns correligionários defendem que o político deixe a presidência do PiS. Na minha opinião, estão tentando tirar  Kaczyński para amenizar a situação. Querem tapar o sol com a peneira, afastar o homem e manter o veto ao aborto, entende? Na semana passada, o ministro da Educação avisou que as universidades que suspenderam aulas no dia 28, em apoio à greve das mulheres, poderão ser punidas com corte de verbas.

Receio que a coisa evolua para atos mais violentos, como aconteceu com o Black Lives Matter nos Estados Unidos. As limitações trazidas pela pandemia têm pesado bastante, mas pretendo continuar indo aos protestos. Anteontem, dia 3, os jornais noticiaram que o governo resolveu adiar a publicação da nova lei antiaborto. Numa situação normal, o Parlamento deveria tê-la oficializado na segunda-feira. O governo está ganhando tempo para discutir o assunto, depois de tantos protestos. Não sei no que vai dar. Mas existe uma fagulha de esperança no ar.


LOUISE YELYNN
Formada em estética e cosmética pelo Centro Universitário UniOpet, é cabeleireira. Vive na Polônia desde 2018