terça-feira, 16 de setembro de 2014

Clash by night


Só a mulher peca é a tradução imbecil do título para o belo filme chamado Clash by night de Fritz Lang realizado em 1952.

Conta a estória de Mae Doyle (Barbara Stanwyck) que retorna para viver com o irmão, Joe (Keith Andes), na casa da família numa pequena aldeia de pescadores. Amargurada e cínica com dor de romances falidos, Mae lentamente se recupera e começa a namorar Jerry (Paul Douglas), um pescador sincero. Logo, Mae e Jerry se envolvem, e então aparece Earl Pfeiffer (Robert Ryan), que a ama apesar de ser casado. Mae o rejeita e casa-se com Jerry. Nasce uma filha de Mae e Jerry. Mae não está apaixonada por Jerry, e logo procura os braços de Earl. Jerry descobre a traição. Jerry briga com Earl, e quase o estrangula, até a chegada de Mae. Jerry parte, mas quando Mae vai pegar sua filha, descobre que Jerry levou a criança. Desesperada, ela e Earl tentam achar uma solução para o problema. E qual a solução?

Contradizendo a tradução idiota, pecado não condiz com nada no contexto da estória baseada numa peça de Clifford Odets. Em vários filmes de Lang as personagens são pessoas normais do mundo freudiano: contraditórias, neuróticas, cínicas, angustiadas, insatisfeitas, indecisas e às vezes violentas.

Antes do casamento Mae confessa: A história da minha vida? Eu conto em quatro palavras. Grandes ideias e pequenos resultados. De Mae para Jerry: Eu sei você faria tudo que fosse possível, mas não daria certo. Encontre alguém que goste de empurrar carrinho de bebê, fazer compras no mercado, trocar cortinas de banheiro e das janelas. Eu seria péssima pra você. Acredite, eu o magoaria. De Mae para Earl: Você me dá impressão de ser um homem que precisa de um terno novo ou de uma nova paixão, mas não sabe qual é o mais importante.

Depois de um tempo Mae casa com Jerry. Mas os conflitos continuam.

Depois de um ano de casamento e o nascimento da filha, Mae, apaixonada por Earl, diz a Jerry: Sou eu! Sou eu, é comigo! Um ano é muito tempo. Não adianta, nada muda. Os dias passam. Do mercadinho da esquina pra casa, lavando roupa, tirando e botando pratos no armário ou indo pra cama, acordando, esperando, esperando! Calando a boca, fechando os olhos. E cada dia mais velha, mais burra, mais estúpida! Amor? Uma superstição, uma esperança perdida. Esqueci de sorrir, de chorar. Todo mundo sobrevive. Por que comigo seria diferente? Sem nenhum tipo de amor, sem nada. Lágrimas. De que adiantam as lágrimas?

Dura pouco o caso com Earl. O motivo? A filha Glória.

Uma criança não pode ser educada sem uma família, não é assim? A Glória tem direito a uma infância feliz, não tem? Diz Mae a Earl. Ao que ele responde: o que é isso? Está se sentindo culpada? É assim que eles querem que você se sinta. O mundo quer assim. Todas as pessoas que não tiveram coragem de fazer o que queriam. Mae: Eu passei a minha vida inteira abandonando as coisas. Earl: E o que está impedindo você? Responsabilidade? Eu vou soletrar M-E-D-O.
E o filme termina assim: vá pegar a Glória. Ela está lá dentro. Um barco não é lugar para uma criança. Vá, e leva-a pra casa, diz Jerry para Mae. Ela volta para marido por causa da filha. A razão venceu o delírio.

Tem gente que diz que esta estória de paixão, casamento feliz, filhos e família unida até a morte foi disseminada por Roliude. É verdade que nas décadas de 1930 e 40 tem filmes USA que retratam estes conceitos, o ianque way of life. O irônico no filme é que Earl trabalha na sala de projeção de filmes num cinema da cidade.

Nós aqui no Brasil reproduzimos até hoje estas ideias. Vem do cinema e das novelas da Globo? Sim, mas não da literatura que às vezes trata das relações conflituosas e trágicas homem/mulher. Vide os clássicos Os sofrimentos de Werther de Goethe, Adolpho de Benjamin Constant, Amor de perdição de Camilo Castelo Branco e a obra prima Dom Casmurro de Machado de Assis.



NB: Fritz Lang (1890 – 1976) tem uma cinematografia respeitável. Ver em http://www.imdb.com/name/nm0000485/.  
Cito alguns filmes: Metrópolis (1927), M, o vampiro de Dusseldorf (1931), Fúria (Fury, 1936), O retrato de uma mulher (The Woman in the Window, 1944) O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952), Os corruptos (The Big Heat, 1953), Desejo humano (Human Desire, 1954).
Sobre Clash by night, Lang disse numa entrevista a Peter Bogdanovich (Afinal, quem faz os filmes, Companhia da Letra, 2000): “Pesquisei bastante – o quanto pude – sobre a fidelidade das esposas. E descobri, numa das principais revistas masculinas, que 75% das mulheres traem os maridos em relações extraconjugais. Este foi o tema que, no filme, se transformou no problema.”