Para o intolerante ou para quem se coloca acima da antítese tolerância-intolerância, julgando-a historicamente e não de modo prático-político, o tolerante seria freqüentemente tolerante não por boas razões, mas por más razões. Não seria tolerante porque estivesse seriamente empenhado em defender o direito de cada um a professar a própria verdade, no caso em que tenha uma, mas porque não dá a menor importância à verdade. Mas, ao lado das más razões, existem também boas razões. Expondo-as, gostaria de evitar a tentação de inverter a acusação e afirmar que não se pode ser intolerante sem ser fanático. (Norberto Bobio, A era dos direitos, p.87)
A modesta pretensão aqui é analisar a intolerância através de três filmes: Intolerância (1916), Pagador de promessa (1962) e Deus é Mulher e Seu Nome é Petrunia (2019).
Aos filmes
Intolerância (Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages), 1916, D.W. Griffith
... Intolerância é um triunfo narrativo, uma produção espetacular que consegue eclipsar até mesmo obras monumentais que viriam décadas depois como Cleópatra e Ben-Hur em termos de escala, suntuosidade e até mesmo técnica. No entanto, o espectador moderno, mesmo o mais ávido e eclético apreciador de filmes, precisa ter paciência e tranquilidade para assistir as quase três horas de projeção (há outras versões, algumas até 20 minutos mais longas, mas em razão da velocidade do frame rate da fita em si, não pela adição de conteúdo – a versão objeto da presente crítica é a “Killiam Shows”, de 176 minutos), além de uma mente programada para ver muito mais um momento marcante e fundamental da História do Cinema do que um “filme comum”.
– Ano 539 a.C. – Na Babilônia, um conflito religioso leva à guerra entre o Rei Nabonido (Carl Stockdale) e seu filho, o Príncipe Belsazar (Alfred Paget) e Ciro, o Grande, da Pérsia (George Siegmann), o que resulta na Queda da Babilônia e o fim de sua independência. A história, baseada em fatos reais, é vista sob o ponto de vista da Moça das Montanhas (Constance Talmadge), levada por seu irmão para o “mercado de noivas” na cidade e que acaba se apaixonando pelo príncipe e lutando em seu exército.
– Ano 27 a.C. – A história de Jesus Cristo, o Nazareno (Howard Gaye) – do primeiro milagre até sua crucificação – que ganha enfoque reduzido.
– Ano 1572 d.C. – Massacre da Noite de São Bartolomeu, na França, em que Caterina de Médici (Josephine Crowell) fomenta os católicos a assassinar os protestantes huguenotes.
– Ano 1914 d.C. – O foco principal do filme e única história fictícia, ainda que baseada em questões sócio-políticas até hoje relevantes. Nela, a Doce Menina e o Rapaz enfrentam o preconceito e a hipocrisia puritana para sobreviver e criar seu filho, depois que uma greve e suas consequências obrigam suas respectivas famílias a se mudarem de cidade... (Ritter Fan)
Não existe outra conexão entre esses segmentos senão o fato de abordarem a intolerância (religiosa, política e social) ao longo da História.
Projetado na URSS em 1920, Intolerância exerceu ali grande influência sobre os jovens cineastas soviéticos Eisenstein, Pudoviskin, Kulechow, mas sobretudo por suas primeiras sequencias, que mostram uma greve e sua selvagem repressão. (George Sadoul)
Filme no youtube
Comentários de André Sturm
O Pagador de Promessas (1962), Anselmo Duarte
Ele, realmente, voltou a Cannes em 1962 e ganhou a Palma de Ouro com O Pagador de Promessas. Não era bem a história de Cristo, mas era a história da crucificação de um brasileiro comum pela intolerância, e não apenas religiosa... Trabalhou durante seis meses e aí começou a desanimar. A coisa não andava. Seu Cristo estava emperrado. E então um jovem diretor de teatro, de muito prestígio na época, Flávio Rangel, convidou-o para ver sua nova montagem.
Era de uma peça de Dias Gomes. Anselmo foi, e no palco, em Zé do Burro, encontrou o seu Cristo. Indescritível a sua emoção. Juntando o que não tinha, comprou os direitos, embora não tenha sido fácil convencer o autor. Dias Gomes era um homem engajado, de esquerda. Desconfiava daquele galã. Ao comprar os direitos, Anselmo armou-se de uma cláusula, que lhe assegurava o direito de fazer mudanças no original. Dias Gomes assegurou-se de outra cláusula. Flávio Rangel teria de ser diretor assistente...
Na história, o nordestino Zé faz uma promessa para salvar seu burro, que está morrendo. Promete carregar uma cruz até a igreja, em Salvador. Mas ele fez sua promessa num terreiro de candomblé, e ao chegar o padre o impede de entrar na igreja. Cria-se um caso. A imprensa explora o episódio. A mulher de Zé, Rosa, é atraída pelo gigolô Bonitão e isso provoca a ira da prostituta Marly, que acusa a 'santinha' de estar querendo roubar seu homem. Engalfinham-se numa briga de arranhões e puxões de cabelo. Cria-se um 'carnival' semelhante ao que Billy Wilder armou em A Montanha dos Sete Abutres, mais de dez anos antes. Zé do Burro, amarrado à própria cruz, só entra morto na igreja, nos braços do povo...
Chegou o grande dia em Cannes. A seleção daquele ano era pródiga em grandes nomes. Michelangelo Antonioni (O Eclipse), Luís Buñuel (O Anjo Exterminador), Robert Bresson (O Processo de Joana D'Arc), Pietro Germi (Divórcio à Italiana), Sidney Lumet (Longa Jornada Noite Adentro), Otto Preminger (Tempestade sobre Washington), Agnès Varda (Cléo das 5 às 7), etc. Um filme da Grécia, Electra, a Vingadora, de Michael Cacoyannis, foi aplaudido sem parar, durante dez minutos, algo nunca visto na história do festival.
Mas veio O Pagador, e algo se passou. (Luiz Carlos Merten)
Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia (Gospod postoi, imeto i' e Petrunija), 2019, Teona Strugar Mitevska
"Deus É Mulher e seu Nome É Petúnia" O caça à bruxa
“Mãe, olha para mim. Eu saí da sua vagina. Sou tão feia assim?”. Petrunya fica revoltada quando a mãe demonstra desprezo pelo corpo nu da filha. Aos 32 anos de idade, esta historiadora representa um símbolo de fracasso social aos olhos de todos: não se casou, está desempregada, é considerada feia (“um monstro", ainda de acordo com a mãe), não manifesta apreço pela religião e defende as revoluções comunistas do último século. Ela se sente tão excluída que, um dia, joga-se no rio no momento exato em que ocorre um ritual religioso exclusivo para homens. Diante da tarefa de pegar uma cruz lançada por um pároco, quem alcança o objeto sagrado é Petrunya.
A diretora Teona Strugar Mitevska tem plena consciência de estar trabalhando com pequenos símbolos, dentro de uma fábula exemplar. A cerimônia religiosa, no fundo, importa muito pouco, porém serve a representar o dia em que uma mulher completamente marginalizada decide se confrontar ao patriarcado. Em questão de poucas horas, uma mulher solitária é confrontada à brutalidade física e psicológica de instituições poderosas e machistas como a polícia, a Igreja ortodoxa e a população de jovens homens que se acreditavam merecedores da cruz. A narrativa acompanha o calvário legal e moral da protagonista diante da ordem vigente.
Por um lado, é delicioso ver a desbocada Petrunya (Zorica Nusheva) confrontar padres e policiais à sua própria falta de lógica no pretenso respeito à laicidade. As farpas do diálogo lançam um retrato da Macedônia que não deve ser tão diferente de qualquer outro país cujo poder é majoritariamente reservado aos homens – inclusive o Brasil. Por outro lado, quanto mais a história se desenvolve, mais ela coloca na boca de Petrunya tudo o que pretendia dizer sobre a importância da emancipação feminina, a igualdade de gêneros e a separação entre Igreja e Estado.
Em outras palavras, esta mensagem é dita pelos personagens, e não representada em imagens. Esta constitui uma saída fácil para canalizar seu discurso, enquanto as imagens supostamente amadoras do operador de câmera local respondem por uma quantidade excessiva de cenas. Enquanto discute política, Teona Strugar Mitevska não constrói uma forma politizada em si, apenas uma sucessão de close-ups claustrofóbicos em Petrunya, um tanto mal iluminados, em movimentos de câmera mal ajustados. É compreensível que a atenção se volte a ela, mas por que espremê-la nos enquadramentos, mesmo quando está sozinha dentro de uma sala da delegacia?... (Bruno Carmelo)
Epílogo
Intolerância está vinculada agressão, coação, discriminação, fanatismo, opressão, perseguição, preconceito, repressão e violência.
Convivemos hoje (e no passado também) num mundo de afetos e solidariedade, mas infelizmente juntos com a intolerância. Sentimos a intolerância de perto no Brasil de 2020.
Os três filmes acima resenhados trazem em comum a intolerância ao longo dos tempos. No épico de Griffith, de 1916, já estão os elementos de não tolerância ao longo de 2500 anos de história.
Em O pagador de promessas a intransigência religiosa. E no filme (explicitamente feminista) Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia retira das cinzas o medieval caça às bruxas.
Conviver com as diferenças: você com certeza sabe que essa não é uma tarefa fácil. Somos quase 8 bilhões de indivíduos com opiniões, crenças, valores e contextos diferentes. E é com frequência que escutamos ou lemos sobre relatos de desrespeito e intolerância em razão de opiniões políticas, orientação sexual, religião, nacionalidade, raça, entre outros. Muitas vezes, as manifestações de intolerância resultam em violências. Como exemplo podemos citar uma das maiores tragédias da humanidade: o Holocausto – durante o Nazismo na Alemanha. Naquela ocasião, cerca de 6 milhões de judeus foram mortos. Motivada pela prevenção de atrocidades como as que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, em 1948, as Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direito Humanos (DUDH). Esse documento define os direitos fundamentais dos seres humanos, sem distinção de cor, sexo, língua, raça, opinião, nacionalidade ou classe social. (Talita de Carvalho )
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