quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Um conto de Natal Brasileiro

O assassinato do ambulante Luiz no metrô: um conto de Natal Brasileiro

Leonardo Sakamoto

27/12/2016 09:33

O vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas foi espancado até a morte por dois homens após, segundo a polícia, tentar defender duas travestis em situação de rua que estavam apanhando deles no centro de São Paulo. Chegou a correr para a dentro da estação de metrô Pedro II, mas foi perseguido, derrubado e levou socos e pontapés por um minuto e meio.

Tudo nessa história converge para chocar: o espancamento de um homem de 54 anos por dois jovens de 26 e 21; a morte ter ocorrido dentro de uma estação de metrô; a falta de preocupação dos rapazes de fazerem isso em um local em que certamente seriam identificados; não ter aparecido nenhum segurança para impedir; câmeras terem gravado as imagens que, mostradas pela imprensa, viralizaram pela rede; uma pessoa já discriminada socialmente (um vendedor ambulante) ter morrido porque tentou defender outras pessoas que também são (travestis); ser noite de 25 de dezembro, Natal.

É a mistura da banalização da violência, da sensação de onipotência e de invencibilidade, do ódio profundo a algo.

A banalização da violência causada por uma sociedade que transforma a violência em produto e a vende diariamente, na forma de programas sensacionalistas na TV, de jogos para computador ou videogame. Uma sociedade incapaz de refletir sobre a importância do diálogo e não da força na resolução de conflitos.

Há quem se sinta onipotente por fazer parte de um grupo tido como hegemônico (homens, héteros…) Pensa que, com isso, os outros lhes devem algum tributo. O sentimento sempre esteve presente em nossa história e a violência e as mortes impunes decorrentes dele também. Mas acredito que essa sensação foi potencializada após certas visões ultraconservadoras terem saído do armário diante do contexto favorável nos últimos anos. Perdeu-se o pudor de não ter pudor.
Isso sem contar o ódio profundo. Prega-se em púlpitos, em plenários, na TV, em reuniões com amigos, que o mal precisa ser extirpado. Que há pessoas ou grupos que representam o mal e precisam ser eliminados. Quantas vezes não lemos nas redes sociais comentários como ''ele é um câncer que precisa ser extirpado'' ou ''tal pessoa merece a morte''? Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo do desconhecido e do diferente e, portanto, à ignorância sobre o outro.

Nesse ponto, vale ir mais a fundo.

Ao assistir às imagens chocantes do assassinato de Luiz, lembrei-me de um depoimento que me foi dado por Maria Aparecida Costa, que militou contra a última ditadura civil militar. Ela ficou presa por três anos e meio, dos quais dois meses sendo torturada no DOI-Codi, na rua Tutóia, em São Paulo, local onde hoje fica o 36o Distrito Policial. Paus-de-arara, eletrochoques, ''cadeiras do dragão'' e tantos outros métodos criativos aplicados na resistência por militares e policiais tinham lugar por lá.
''O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio.''

A dúvida de Maria Aparecida tem mais de 40 anos, mas bem caberia na polarização tacanha de hoje, em que muitos não reconhecem os outros como seus semelhantes simplesmente porque esses pensam diferentes ou são fisicamente diferentes. Enxergamos inimigos em cada esquina.

A tortura, naquela época, firmava-se como arma de uma disputa. Era necessário ''quebrar'' a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo, uma ideia.
Há um incômodo paralelo entre as mortes ocorridas no DOI-Codi e a morte de Luiz Carlos. O que Luiz sofreu antes de morrer foi uma sessão de tortura pelo que ele era, pelo que representava e pelo que defendeu.

É inominável a sensação de que isso não acontece apenas nos porões, nos becos, no escuro, mas na frente de câmeras de segurança e de centenas de pessoas. Esqueça a questão ética, que nem está presente. A morte foi praticamente uma encenação da estética da violência reprimida e que, agora no Brasil do caos, ganha a liberdade. E, portanto, uma declaração pública, inconsciente ou não.
Ainda hoje, Cida tenta entender o que ocorreu. ''Tinha mais alguma coisa. Claro que a justificativa era ideológica. Mas tinha mais alguma coisa. Porque eles sentiam prazer de verdade no que faziam. Prazer de verdade em torturar.'' Talvez o ódio surgia, como ela lembra, da sensação de poder. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode.

Luiz não deveria ter dito ''Não faz isso com o rapaz'', quando eles agrediam uma das travestis. Mas agiu com justiça e disse e, ousando sair de sua invisibilidade e pagando um preço caro por isso.
Dizem que carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano.

A certeza do ''tudo pode'' provoca vítimas nas periferias das grandes cidades, entre a população LGBT ou em situação de rua, entre os jovens negros e pobres, grupos cuja vida, para nós, vale muito pouco. Eles sempre sofreram e morreram, mas sem que as imagens corressem pela internet.
O problema é que ódio não surge de geração espontânea. É cultivado.

Como já escrevi aqui, pastores e padres de certas igrejas inflamam seus fieis contra aquilo que consideram um desrespeito às leis de seu deus. Quando um grupo espanca um gay ou uma travesti, esses pastores e padres dizem que não têm nada a ver com isso.

Figuras públicas da TV inflamam a população contra a degradação da civilização e das famílias de bem. Quando um grupo resolve amarrar alguém em um poste e linchar até a morte, essas figuras públicas dizem que não têm nada a ver com isso.

Certas famílias inflamam seus filhos contra o público LGBT, contra jovens negros e pobres da periferia e contra pessoas em situação de rua, dizendo que são uma ameaça à vida nas grandes cidades e não valem nada. Quando um grupo resolve despejar preconceito ou dar pauladas e por fogo nessas pessoas, as famílias dizem que não têm nada a ver com isso.

Políticos, de governo e oposição, inflamam seus eleitores, desumanizando o adversário e transformando o jogo democrático em uma luta do bem contra o mal. Quando um grupo passa a agredir fisicamente o outro, os políticos dizem que não têm nada a ver com isso.

Hordas de guerrilheiros digitais sob perfis falsos inflamam seus leitores, repassando conteúdo violento e falso. Quando um grupo passa a assediar, de forma injusta, pessoas ou instituições com base nesse conteúdo, há quem diga que as pessoas por trás desses perfis e páginas nas redes sociais não têm nada a ver com isso.

Talvez, no fundo, todos estejam certos.

Culpado mesmo era o Luiz.

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/12/27/o-assassinato-do-ambulante-luiz-no-metro-um-conto-de-natal-brasileiro/ 28/12/2016

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Balanço das Eleições 2016 por Sakamoto

Leonardo Sakamoto

30/10/2016 22:44

Como dizia um sábio professor, o pós-eleição é o momento em que nós jornalistas de política e sociedade matamos nossa inveja dos colegas que cobrem esporte e organizamos nossos bate-bolas, fazendo contextualizações, análises e previsões. Nós sabemos e vocês também sabem que o Brasil não respeita previsões e, portanto, boa parte disso será letra morta em breve.

Tendo isso em vista, faço algumas considerações sobre os resultados deste segundo turno sob a ótica da esquerda:

1) O PT foi (mesmo) o grande derrotado das eleições municipais, como era de se esperar após a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma, o noticiário amplamente desfavorável e, principalmente, a crise econômica e o aumento do desemprego. Não há resquício de esperança para se agarrar. Se o partido não cair na real, parar de culpar os outros e fazer a autocrítica, não voltará a disputar a narrativa.

2) Certamente, houve uma onda conservadora, como já tratei no post sobre os resultados do primeiro turno. Mas não afirmaria que o país deu uma guinada para a direita, uma vez que nunca conseguiu-se implementar por aqui um projeto social, econômico e político de esquerda. Apenas aproximações bem questionáveis. O orignalmente trabalhista PT aliou-se a coisas mais estranhas que ele em nome da governabilidade. Reforma agrária, reforma tributária democrática, reforma política, reforma urbana, garantia de direitos humanos? Ninguém sabe, ninguém viu.

3) Interessante como mesmo políticos de esquerda que sempre tiveram um posicionamento crítico ao modelo de desenvolvimento do PT foram colocados no mesmo saco e punidos pelo eleitor. Sim, boa parte da esquerda foi levada junto para o buraco, mesmo que tenha reclamado do governo Dilma o tempo inteiro. Um exemplo disso é Crivella, que foi ministro dela e membro de sua base de sustentação durante um bom tempo. Ele não foi tão identificado com ela quanto Freixo foi – apesar do PSOL ter se posicionado contra o governo do PT.

4) Com Marcelo ''Universal'' Crivella, o neopentecostalismo televisivo dá um salto para a implementação de seu projeto de poder. Desconfio que o Brasil terá um presidente assumidamente evangélico neopentecostal antes de ter um presidente assumidamente ateu. Para isso, certamente acabará se distanciando de extremistas, como Silas Malafaia – que surtou, no Twitter, na noite deste domingo, xingando a Globo, a Veja, o PT, o PSOL, Freixo, a esquerda, e bradando ''Chora Capeta'' – assim, sem vírgula separando o vocativo.

5) Marcelo Freixo teve 1.163.662 votos no Rio de Janeiro, maior do que sua última votação para prefeito em 2012. Considerando que sua campanha foi feita com poucos recursos financeiros e sem máquina partidária, isso é um feito considerável. Por isso, não acho que ele sai derrotado. Pelo contrário, Freixo se cacifa como uma das lideranças políticas da esquerda nesse momento em que o campo progressista terá que se reinventar.

6) Com os resultados do segundo turno das eleições, pode-se dizer que a esquerda foi abandonada pela periferia das duas maiores cidades do país. De certa forma, o cenário lembrou as votações majoritárias do PT durante a década de 90. Vale lembrar que o partido levou anos, em um lento trabalho de base, com uma militância engajada, para que a periferia ''comprasse'' a sua narrativa. Claro que a periferia que votou em Lula em 2002 também estava cansada da crise do segundo governo FHC e queria mudança. Mas depois ficou ao lado do partido por conta do crescimento econômico, do aumento do salário mínimo, da diminuição da fome, do Bolsa Família e da melhoria na qualidade de vida. Quando o cenário muda, alterado pela crise econômica, da qual o PT tem culpa, o povão procura outra saída.

7) E vendo a estratificação dos bairros em que Freixo e Haddad foram os mais votados, a esquerda vai ter que suar – e muito – para reencontrar-se com o discurso de mudança, saber disputar o simbólico e reconquistar a periferia. Haddad foi melhor votado, em porcentagem, em Pinheiros – bairro onde se reúne boa parte da esquerda classe média alta paulistana, cercada de um lado pela PUC-SP e pelo outro pelo campus da USP. Há alguns anos, o centro de São Paulo era do PSDB e todo o gigante entorno populacional era PT. Enquanto isso, Freixo levou os bairros mais próximos do Centro e Crivella ficou com a maior parte da periferia.

Em Belém, Edmilson (PSOL), que teve 47,67% contra os 52,33% de Zenaldo Coutinho, ao contrário, tem entrada forte na periferia. Já foi prefeito, tem recall, estabelece um diálogo. Resta saber se a Justiça Eleitoral irá cassar a candidatura do vencedor por uso da máquina, como se discutia durante a campanha.

8) É cedo para decretar a morte do PT. Os eleitores mandaram um recado através do voto. Parte da esquerda foi desalojada das Prefeituras e realocada nos parlamentos municipais para cumprir o papel de oposição. Parte, desalojada também das Câmaras de Vereadores, deverá ir para as ruas, de onde saiu na década de 80. De um ponto de vista muito otimista, o retorno às ruas pode levar o PT e os movimentos sociais a ele relacionados fazerem sua autocrítica. Isso será um processo bem doloroso e longo, em que os diferentes grupos e movimentos da esquerda irão bater bastante cabeça entre si, como foi na década de 70 durante a ditadura. Aliás, isso acontece nesta noite, com gente do PT e do PSOL quebrando o pau nas redes sociais. Particularmente, não acredito que parte da esquerda conseguirá fazer essa autocrítica. Mas isso já é outra historia

9) Em Fortaleza, o candidato de Ciro e Cid Gomes, Roberto Cláudio (PDT), foi reeleito. Não sei se isso fortalece as pretensões presidenciais de Ciro, mas, ao menos, não as derruba antecipadamente. Clécio Luís (Rede) também foi reeleito prefeito de Macapá (AP) – isso não ajuda muito as pretensões de Marina Silva, que segue não imprimindo uma marca ao partido. O governador Flávio Dino (PC do B), cujo partido havia eleito muitos prefeitos no primeiro turno no Maranhão, viu o candidato em quem declarou voto (Edivaldo Holanda Jr) vencer a capital São Luís. Apesar, é claro, do outro candidato, Eduardo Braide, também ter disputado o apoio de Dino. Seu correligionário Edvaldo Nogueira venceu em Aracaju (SE). Isso pode mexer com a correlação de forças entre PT e PC do B. Será que chegou a hora dos comunistas saírem da órbita do partido do ABC e exigir o protagonismo dessa dupla?

10) O PSDB cresceu significativamente. Mas um rosário de partidos menores conquistou importantes cidades e capitais. Não é possível saber o que o fortalecimento de siglas menores fará com o já fragmentado Congresso Nacional. Mas ainda acho que não há um grande vencedor nestas eleições. Como já escrevi aqui, a classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleição, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público. A democracia representativa tradicional e seus vícios se mostraram insuficientes para as demandas da população.

Ao mesmo tempo, políticos, mídia, empresários e parte da sociedade conseguiram a proeza de dar espaço aos que defendem que ''fazer política é escroto''. Ou seja, ao invés de tentarmos melhorar a política, reinventar a democracia, a saída é negar tudo o que ela representa e buscar saídas rápidas, vazias e, não raro, autoritárias. Daí, surgiram candidatos que estufaram o peito e mentiram, com orgulho, que não são políticos e não fazem política. Isso abre portas para que pessoas que se colocam como ''salvadores da pátria'' ganhem espaço a fim de nos ''tirar das trevas'' sem o empecilho da ''política''.

E é neste momento, como nunca, que precisaremos da política

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/ em 31/10/2016

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Chicago e a violência. E nóis?

 Deu no UOL (http://www.uol.com.br/) em 25/09/2016

O correspondente da BBC Ian Pannell já conheceu muitos locais assolados pela violência. Ele cobriu guerras no Iraque, Afeganistão e Síria. Mas, baseado atualmente em Washington, Estados Unidos, ele não teve que ir muito longe para fazer uma nova reportagem sobre conflitos: Pannell retratou o que está por trás das impressionantes taxas de violência de Chicago, que atingiram o seu patamar mais alto dos últimos 20 anos.
O jornal Chicago Tribune reportou que, no início de setembro, a cidade registrou seu 500º homicídio de 2016, mantendo uma tendência de alta nesse tipo de crime iniciada em 2014, atribuída à guerra entre gangues rivais, à proliferação de armas e à exclusão socioeconômica de parte da população. Apesar de haver diferenças brutais entre zonas de guerra da Síria e as ruas de bairros como Englewood ou Austin, Pannell diz reconhecer algumas similaridades. Desde 2001, 7.916 pessoas foram assassinadas em Chicago. A perda de vidas americanas foi maior do que nas guerras do Iraque (4.504) e Afeganistão (2.385) juntas.
Uma conta rápida: para Chicago em 2016 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes será 500/2.695.598/100 mil = 18,5 até início de setembro. Estima-se, na pior das hipóteses, 24,5 para este índice em 2016.

E nóis? 
Diferente da terra de Alphonse Gabriel "Al" Capone (1889-1947), entre os seis municípios com maiores índices da região sudeste, três são capixabas (dados de 2014). São eles: Serra-ES (72,4), Cabo Frio-RJ (67,5), Nova Iguaçu-RJ (58,3), Cariacica-ES (57,5), Betim-MG (49,2) e Vila Velha-ES (49,2).

O Espírito Santo foi o estado com a maior taxa de homicídios da região Sudeste e também registrou a quinta maior taxa do Brasil em 2014. Foram 1528 homicídios durante todo o ano um índice de 39,3 vítimas a cada 100 mil habitantes. Dados: Mapa da violência – 2016. http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf

E mais...  
"Não vamos abaixar a guarda" diz André Garcia. Manchete de "A Tribuna" de 01/10/2016. Este senhor é o Secretário de Segurança de Estado do Espírito Santo. E o motivo para não abaixar a guarda: segundo a SESP - Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social – "de janeiro até 29/09/2016 foram assassinadas 77 mulheres" ou 8,5 mulheres assassinada por mês. Em 2015 foram 105 ou 8,7 assassinatos por mês. O Espírito Santo está em 4º lugar em assassinatos de mulheres.

Epílogo
Ianques, brasileiros e brasileiras têm motivos de sobra para não se orgulharem no quesito violência. Mas o Brasil é mais violento. É escabrosa, entre nós, a violência contra a mulher.

Não estamos em paz, estamos em guerra.

domingo, 11 de setembro de 2016

O golpe parlamentar e empresarial

A DESESTABILIZAÇÃO, O GOLPE E A "SOCIEDADE CIVIL GELATINOSA" DO GOLPISMO
 
Francisco Fonseca
(prof. de ciência política da FGV/Eaesp e PUC/SP)

09/09/2016 22:56
http://cartamaior.com.br/

O golpe parlamentar efetivado em 31 de agosto foi o resultado de diversos fatores conjugados voltados à desestabilização política, institucional, social, informativa, ideológica e moral do Governo Dilma.  Abaixo alguns dos principais personagens, fatores e fenômenos desse longo processo de golpeamento da democracia e de incriminação fascista de um governo e de um partido político. A forma abaixo apresentada não é necessariamente hierárquica ou cronológica, uma vez que vários dos processos elencados ocorreram de forma simultânea:
 
-Setores majoritários da Câmara dos Deputados, a partir da ascensão do deputado Eduardo Cunha como seu presidente, que ostensivamente, por meio das chamadas "pautas bombas" e do bloqueio de todas as iniciativas do Executivo, atuou no sentido de impedir toda e qualquer iniciativa política, econômica e administrativa do Governo Dilma;  
-Tendo como mote o não reconhecimento da derrota eleitoral em 2014, o golpismo dos partidos políticos derrotados – PSDB, DEM e PPS –, paulatinamente secundados pelo PSB e, mais adiante, pelos pequenos e médios partidos de centro-direita reunidos em torno do chamado "Centrão".
 
-A conspiração de segmentos empresariais internacionais e nacionais vinculados ao rentismo e a cadeias internacionais de produção, cujo objetivo era a fragilização do G-20 – e consequentemente do banco e do fundo recentemente criados – e a desestruturação do Mercosul, cujo vetor é a desconstrução da política exterior Sul/Sul.
 
-A quase totalidade dos empresários nacionais desejosos, desde sempre – isto é, mesmo a burguesia nacional privilegiada pelos governos petistas –, da derrogação dos direitos trabalhistas, prioritariamente, e também dos direitos sociais, com vistas a estabelecer "ambiente de negócios" atrativo ao Capital: nacional e estrangeiro, uma vez que cada vez mais interligados.
 
-As classes médias superiores, composta por profissionais liberais, pequenos burgueses, rentistas médios e todos aqueles que não vivem apenas ou necessariamente de salários, uma vez que desgostosas das políticas de ascensão social promovidas pelos governos petistas. Como se sabe, trata-se de resistência à percepção, mesmo que irreal, da perda de prestígio e privilégios, caso do acesso à universidade e a bens de consumo e serviços aos pobres.
 
-Setores ascendentes das classes médias baixas – aquilo que se chamou de "a nova classe média" –, cuja ascensão se deu justamente pelas políticas públicas inclusivas de Lula e Dilma, que foram, contudo, seduzidas pelo discurso ideológico da "meritocracia individual", pendendo ao conservadorismo. Também segmentos de "inocentes úteis", que serão fortemente penalizados pela política econômica e antissocial de Temer, caíram na armadilha ardilosa e fascista do discurso do "combate à corrupção" e passaram a apoiar, mesmo que passivamente, a desestabilização.
 
-A grande mídia comercial (emissoras de tvs e rádios, jornais e revistas e grandes portais da internet) que, aproveitando-se da mais completa desregulação e desregulamentação do Estado brasileiro, desde sempre, e turbinada – curiosa e paradoxalmente – por polpudos recursos publicitários dos governos petistas, lançarem-se na lancinante campanha golpista. Sua atuação desestabilizadora e golpista encontra-se em posição oposta à sua credibilidade, embora ainda com grande repercussão entre a maioria dos brasileiros. Deve-se ressaltar o papel decisivo e primordial do Sistema Globo nesse processo, voltado à desestabilização e ao golpismo, desde sempre e particularmente neste momento.
 
-A ação inconstitucional – portanto fartamente ilegal –, seletiva, persecutória e articulada à grande mídia comercial da Operação LavaJato, cujo objetivo passou a ser fundamentalmente destruir política e eleitoralmente o Governo Dilma, o PT e Lula. A Operação LavaJato atenta ostensiva e vigorosamente contra o Estado de Direito Democrático. O discurso moralista do suposto combate à corrupção, catalisado pelo juiz Sérgio Moro – cuja atuação é militantemente política e extra-legal, reitere-se –, representou a porta de entrada para todo tipo de oportunismo político: jurídico, político/eleitoral, informacional, parlamentar, social e ideológico.
 
-A leniência do STF e da PGR aos atentados ao Estado de Direito Democrático desfechados pela Operação LavaJato, tornando-se consorciados a esta Operação num complexo continuum.
 
-A ação da Polícia Federal, componente da Operação LavaJato, com os mesmos propósitos referidos desta, e sem que o Ministério da Justiça – ao qual está submetida – no Governo Dilma, comandado por José Eduardo M. Cardoso, nada fizesse para contê-la no sentido de circunscrever sua atuação nos marcos constitucionais e republicanos.
 
-Os think-tanks, e seus financiadores, internacionais (irmãos Koch, por exemplo) e nacionais (Instituto Millenium, entre tantos outros), voltados à propaganda ideológica que instrumentalizou – e financiou – grupos como MBL, Vem pra Rua e Revoltados On Line, entre outros. Grupos empresariais igualmente participaram dessa campanha ideológica (com financiamento) antipetista, anti-governo, anti-Lula e anti-direitos sociais, trabalhistas, políticos e civis.
 
-Na reta final do processo – no sentido kafkaniano – do impeachment, o Senado passou a atuar de forma golpista, produzindo verdadeira peça de ficção (verdadeiro "faz-me-rir" supostamente jurídico) quanto ao suposto "crime de responsabilidade" da presidente Dilma.
 
-As próprias debilidades do Governo Dilma, por meio da incapacidade de controlar republicanamente a PF, como se disse, assim como de escolher um Procurador Geral da República defensor do Estado de Direito Democrático, cuja lista tríplice se deu no ano passado, em meio à crise, e cuja escolha recaiu na recondução de Rodrigo Janot, que claramente voltara-se à desestabilização. Também a escolha do ministro do STF, Luiz Fachin, mostrou-se nula do ponto de vista de anteparos à desestabilização. Trata-se de três fatores essenciais à debilidade do Governo Dilma, que contribuíram decisivamente para sua queda. Não bastasse isso, a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda com vistas ao "ajuste fiscalista" conservador e neoliberal afastou vigorosamente o Governo Dilma dos movimentos sociais, dos progressistas e da esquerda. Em meio a tudo isso, a própria personalidade política da presidente e de seu Governo contribuíram para a fragilização governamental, tendo em vista um certo isolamento arrogante, o distanciamento dos movimentos sociais, a incapacidade sistêmica de articulação junto ao Congresso Nacional e a outros atores relevantes, e mesmo ao não enfrentamento – naquilo que poderia enfrentar – de polos de poder, caso da mídia, como se disse.
 
-O não enfrentamento dos grandes polos de poder e de constrangimentos às políticas progressistas, casos notórios da reforma política e do enquadramento democrático da mídia.
 
-A perda de hegemonia do PT levou às seguintes rupturas: o desfazimento do amplo campo de centro-esquerda, em que o PSB, o PDT e outros partidos menores ocupavam papel importante na arena partidária e parlamentar; a saída da Força Sindical (de centro-direita no espectro ideológico) e de outras centrais sindicais menores da base de apoio social e governamental, tornando-se golpistas e portanto desestabilizadoras; a ascensão da direita ideológica e raivosa em todos os setores sociais – processo advindo desde junho de 2013 – que, "saindo do armário", passou a pautar e encurralar as ideias progressistas e de esquerda, tendo encontrado farta recepção entre os meios de comunicação e entre partidos que nasceram originalmente com bandeiras "modernas": caso do PSDB, que se tornou cada vez mais parecido com as velhas oligarquias, mesmo atuando nos grandes centros urbanos, e cuja atuação é marcada pela corrupção endêmica, aparelhamento partidário sistêmico, autoritarismo policial, políticas elitistas e neoliberais, opacidade quanto aos recursos públicos e tantos outros atributos antidemocráticos, cujos exemplos notáveis são os Governos Alckmin e Richa.
 
-A crise econômica internacional, provinda do crash de 2008 e não resolvida até os dias de hoje, mas que fora postergada acertadamente pelo Governo Dilma – embora com doses por vezes acima do recomendável – por meio das chamadas "políticas anticíclicas". Tais políticas se esgotaram, uma vez que têm validade limitada no capitalismo. Seu esgotamento levou também ao fim da "aliança de classes" perseguida pelo Governo Lula desde a "Carta ao Povo Brasileiro" e pelo híper realismo governamental dos estrategistas dos governos petistas: o próprio Lula, conciliador desde sempre, José Dirceu, José Genuíno, entre outros. Consequentemente ruiu o – tomado como mantra – "presidencialismo de coalizão" sem que o governo e o PT conseguissem minimamente rever suas estratégias perante a nova realidade.
 
-Por fim, o modelo contemporâneo de acumulação capitalista – tema de meu próximo artigo –, baseado na flexibilização do capital (combinação do capital produtivo com o especulativo, com predominância deste), do consumo (obsolescência programada, produção por lotes, just in time) – ambos em pleno desenvolvimento no Brasil –, e da força de trabalho: a ser atacada nesse momento. Tudo isso num contexto de profunda interconexão internacional. Trata-se de exigência desse modelo flexível de acumulação a redução substantiva do "custo" do trabalho – tratado ideologicamente de "custo Brasil" – e da criação de "ambiente de negócios propício", que implicaria a vinda profusa do capital estrangeiro, com supostos "benefícios" a países que, na divisão internacional do trabalho, não teriam como "competir" pela produção tecnológica e pela exportação de produtos com valor agregado, caso do Brasil (perspectiva essa já demonstrada nos Governos FHC). Os programas "Uma ponte para o futuro" e "Travessia Social", do PMDB, publicados nos últimos meses, são peças primorosas dessa concepção retrógrada, antissocial e afinada ao rentismo e à concepção de perda daquilo que se chama "soberania nacional" e de "sociedade civilizada". O modelo de acumulação capitalista, encarnado por capitalistas, ideólogos, think tanks, meios de comunicação, financiadores e tantos outros é uma força internacional, com conexões claras no Brasil, necessita ser analisado com acuidade, para além das análises institucionalistas de parte significativa da ciência política e econômica brasileiras que apenas "explicam" o "epifenômeno da superestrutura".
 
De forma articulada, num verdadeiro consórcio desestabilizador com vistas ao golpe, que foi se formando ao longo dos governos petistas e se avolumando desde 2013, mas particularmente desde a reeleição da presidente Dilma, esses atores formaram uma grande coalizão. Mesmo sem um centro articulador vertical de todas as peças, a Operação LavaJato em articulação com a mídia, empresários e think tanks conseguiu ter capacidade de direção que deu musculatura ao golpe parlamentar formal, encurralando setores progressistas nas ruas e nas instituições. Nestas últimas, a submissão de ministros progressistas e "liberais" do STF – casos de Barroso, Marco Aurélio Mello e mesmo Teóri, sem contar Dias Tóffoli – a "ministros" militantes e retrógrados, como Gilmar Mendes e Celso de Mello, trouxe grande parte de ministros do "centro" para a anuência à conspiração e ao golpe. Mesmo Rodrigo Janot fez forte guinada à desestabilização e passou a atuar em conjunto com Sérgio Moro, como tem demonstrado brilhantemente Luís Nassif em suas análises sobre os vários jogos de "xadrez" da crise política.
 
Assim o golpe foi desfechado. Seus elementos simbólicos combinam processo kafkaniano com ópera bufa, num ambiente nonsense e bizarro: a figura gangsteriana de Eduardo Cunha; o show de horrores da "bandidagem" parlamentar, como seu viu na votação do impeachment na Câmara de Deputados; o histerismo bizarro de Janaína Paschoal; o "faz-me-rir" supostamente jurídico da "peça" acusatória; o "machistério" ignóbil de Temer; o apoio de figuras públicas típicas da ignorância nacional ao golpe; a imagem modorrenta e "mordômica" (com o perdão do neologismo) de Michel Temer, cuja trajetória política se fez nas sombras e agora sobe à ribalta, tal como Cunha, a desempenhar um papel que jamais esteve à altura; as nomeações e "des"nomeações de ministros e auxiliares, as idas e vindas políticas e administrativas – todas típicas de fim de governo – se apresentam logo nos primeiros dias do "novo" governo, confirmando à exaustão a bizarrice do golpe (à paraguaia) e a desconexão da direita agora no poder com a "sociedade civil".
 
Deve-se entender "sociedade civil" como o conjunto de organizações que conflitam de forma orgânica e representativa nas arenas política, intelectual, ideológica, jurídica, institucional e outras, e que, dessa forma, representam grupos sociais, opiniões e interesses. Pois bem, a forma e o conteúdo do golpe e do "governo" Temer, dadas suas ilegalidades, ilegitimidades, imoralidades e simbologias negativas, os distanciam vigorosamente de segmentos sociais, grupos, classes e frações de classes sociais as mais distintas: da direita à esquerda, o que implica a perda substantiva do que se chama de centro.
 
A sustentação ideológica do "governo" Temer se dará, portanto, por duas camadas sociais: as classes médias superiores e parte significativa do Capital, ambas absolutamente minoritárias; e politicamente pela institucionalidade do Congresso Nacional, por meio de maioria na Câmara e no Senado, mas com inúmeras contradições, como se viu na não cassação dos direitos políticos da presidente Dilma.
 
No mais, terá oposição cerrada dos trabalhadores organizados e mesmo não organizados, dos jovens, dos que têm em mira a aposentadoria, dos pobres que se beneficiam, notadamente a partir do Governo Lula, dos serviços públicos de saúde, assistência social e educação; de grande parte dos segmentos intelectualizados das classes médias, dos servidores públicos, das esquerdas, dos progressistas, dos liberais que se pautam pelo Estado de Direito Democrático (o que inclui parte substantiva do Poder Judiciário); de um sem número de artistas, esportistas, personalidades das mais diversas áreas; entre inúmeros outros. O "Fora Temer" já se tornou bordão popular entoado nos quatro cantos e ganha apoio internacional profundo: grande imprensa estrangeira respeitada; defensores e entidades de Direitos Humanos (lembrando que o Brasil é signatário de inúmeros tratados nesse campo); personalidades internacionais das mais diversas áreas; parlamentos de inúmeros países e instituições internacionais (OEA, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Unasul etc); diplomacias de vários países; a figura eloquente e renovadora do Papa Francisco; o G-20 e os Brics; entre outros.
 
Portanto, o pós-golpe só poderá, em última instância, se sustentar na violência policial e no apoio da grande mídia carcomida, cuja credibilidade e sustentabilidade financeira decaem como a água fétida – que representam – que desce ao ralo.
 
As reformas neoliberais – que fracassaram no mundo todo e são espécie de fantasma que se tenta ressuscitar – e conservadoras, derrotadas nas últimas quatro eleições presidenciais, beneficiam, se tanto, 10% dos brasileiros. Encontrarão, como estão encontrando desde já, maciça oposição: de rua, parlamentar, judicial, simbólica, ideológica e social. Tudo isso tende a influenciar e pressionar as instituições, hoje circundantes ao redor da hegemonia conservadora que, contudo, sustenta-se – o golpismo – numa "sociedade civil gelatinosa", elitista, nada representativa. Mesmo com o empenho da mídia e a violência policial intimidatória, a história nos ensina que "não passarão", como entoado por muitos.
 
Não se trata de perspectiva otimista, muito ao contrário.  E sim da tentativa de compreender as causas e consequências da desestabilização política artificialmente forjada por atores que conspiraram contra o PT, o Governo Dilma, e a sociedade civilizada de direitos; o processo fraudulento de cassação dos votos de mais de cinquenta e quatro milhões de brasileiros; e a fragilidade das bases sociais de sustentação do golpismo de uma sociedade que viu os direitos crescerem desde 1988.
 
A aventura conspiratória e golpista de todos que nela se envolveram potencialmente custará caro, em várias dimensões, a cada um deles. A história, que já está em andamento, provará, como provou em tempos de outrora. Embora uma aposta analítica, uma vez que o aparato ideológico da mídia e policial do Estado estarão operando em consórcio, o passado assim o demonstrou, como foi o ocaso da ditadura de 1964. Curiosamente há atores semelhantes ontem e hoje.
 
A complexidade e diferenciação da sociedade brasileira, cujo grau de organização política e social é substantivo está demonstrando que as chances do golpismo prosperar são mínimas, reitere-se. A não ser que adentremos a uma nova ditadura militar, o que não parece plausível, nesse momento.
 
Talvez um "novo" país ressurja saído das cinzas, como Fênix, dessa tragédia!




sexta-feira, 13 de maio de 2016

Joaquim Cândido Pereira (1878 – 1956) e João Cardoso de Carvalho (1901 - 1985 ) são meus avós materno e paterno. Joaquim era rural, João era urbano. Um tinha a fazenda Córrego do Meio (corgo do meio, como diziam) na região de Alberto Moreira (distrito de Barretos) e o outro gerenciava a Serraria São Manoel do pai (Adelino) em Barretos.

Joaquim era natural de Garimpo das Canoas em Minas Gerais e filho de Cândido Luiz Pereira e Mariana Faleiros. Casou-se com Maria Cândida de Jesus (1887 -1965) em 1903 e tiveram 8 descendentes. Minhas lembranças de Joaquim são de ainda criança durante as férias escolares na fazenda. Tinha uma coleção de canivetes para descascar laranja, para picar fumo para rapé etc. Um especialista.

João nasceu em São Simão, Estado de São Paulo, filho de Adelino Manoel de Carvalho e Engrácia Maria Fernandes. Casou-se com Valdemira Maria das Mercês (Filhinha). Adelino e Engrácia eram portugueses. Minhas lembranças do João? Um homem sério e de pouca conversa. Um português, pai de 14 filhos e filhas.


Os Pereiras e Cardosos tinham coisas em comum. Minha mãe, Orípia, casou-se com Sebastião, filho do João e minha tia Nem casou-se com Manoel, filho de Adelino. Uma mistura de librinas e portugueses. Librinas são os descendentes de Simão Antônio Marques (1782 – 1873), um dos fundadores da cidade de Barretos (25/08/1854), junto com Francisco Barreto.

E o porquê das lembranças de meus avós?
Porque me tornei, em maio deste ano de 2016, avô estreante.
Vô da Bel, trineta de Joaquim e João.

 


                                         Árvore Genealógica de Joaquim Cândido (Cmaps)

Árvore Genealógica de João Cardoso



Alguns filhos de Adelino, inclusive o João 




                                                      Joaquim Cândido e Maria Cândida


Um galho da genealogia materna da Bel




Referências:

Nilson Cardoso de Carvalho:

- Os Marques Librinas de Barretos, 1999, mimeo

- Adelino Manoel e seus descendentes, Indaiatuba: Rumograf, 1995

 
 
 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

O engodo dos arautos da casa - grande

Bem pior que 64
O golpe em andamento, de inspiração paraguaia e hondurenha, confere ao Brasil a condição de republiqueta e o atira a uma rota imprevisível
25/04/2016 04h09 CARTA CAPITAL Autor: Mino Carta

Um filme intitulado Sem Evidências enfeitou a programação de uma HBO a cabo na noite de domingo 17 de abril de 2016. Mergulhei no enredo ao mudar ao acaso um canal para outro, enquanto a Câmara Federal rasgava impavidamente a Constituição para condenar a presidenta Dilma Rousseff sem provas do crime que lhe atribuía. O filme é uma implacável metáfora do que acabava de acontecer diante dos olhos de milhões em êxtase e uns poucos vexados entre o fígado e a alma. História verdadeira, a do filme, remonta a 1993, quando três crianças de uma cidadezinha do Arkansas são estupradas e assassinadas e as autoridades locais escolhem de antemão os culpados, três jovens tidos como praticantes de rituais satânicos.

O mais velho, de 18 anos, veste-se de preto, tem cabelos compridos, lida com desembaraço com a língua e a ironia e não esconde sua curiosidade por demonologia. Outro, de 17 anos, padece de disfunções mentais. O terceiro, de 16 anos, é tímido e indefeso. Todos se dizem inocentes, mas os donos do poder tomaram sua irrevogável decisão antes do processo, enfim realizado para sacramentar a decisão adrede tomada. Para tanto a polícia local colabora ativamente e transforma suposições em verdade factual, os promotores cometem irregularidades sem conta na instrução da demanda judicial e contam com um juiz desbragadamente parcial.

Os líderes da comunidade cuidam de elevar a 100 graus a ira popular. Conclusão: o mais velho dos réus é condenado à morte, os outros dois à prisão perpétua. Somente 18 anos depois, a Suprema Corte do Arkansas revê as sentenças, uma delas, à cadeira elétrica ainda não consumada, e recoloca os condenados em liberdade.
Ocorreu-me uma dúvida: quem programou Sem Evidências para o mesmo momento em que, sem evidências, a Câmara Federal condenava a presidenta legítima agiu de caso pensado ou conforme pauta definida com larga antecedência? Se sabia o que fazia, ofereceu a quantos sabem o que fazem uma parábola do episódio a se desenrolar, no mesmo instante, nesta nossa republiqueta tão parecida com uma cidadezinha do Arkansas.

Muitas dúvidas mais me assaltam. E ao sabor de dúvidas teço considerações. E pergunto aos meus atônitos botões se os discursos que ecoaram na Câmara Federal na noite de 17 de abril foram pronunciados, em aterradora maioria, por idiotas ou por hipócritas, excelentes nos dois casos? Ou seria por idiotas hipócritas, magníficos na simbiose? Não espero por resposta, não se faz necessária.

E em relação aos que ouvem e aprovam, em qual categoria catalogá-los? Idiotas ou hipócritas, simplesmente, ou habilitados a mesclar ambas as qualidades negativas? O espetáculo que conseguimos oferecer ao mundo exorbita na prova, esta sim indiscutível, de nossa condição de republiqueta das bananas. Os autores do golpe, além de imitadores de ações idênticas levadas a cabo em 2006 em Honduras e em 2012 no Paraguai, alegam motivações que confiam cegamente na ignorância e na parvoíce da nação. Pasmem: e acertam, e levam, como CartaCapital temia na sua edição passada. 

Somos o que somos, e é doloroso aceitar mais esta inegável evidência. Um paiseco do tamanho de um continente, destinado pela natureza para ser um paraíso terrestre, fica entregue à sua própria desgraça, algo assim como um suicídio coletivo. Com a contribuição decisiva do evangelismo galopante, cada vez mais espalhado, a mostrar sua inevitável aliança à política do poder pelo poder, empenhada em promover boçalidade demente e a enterrar qualquer esperança de democracia.

Não faltarão os céticos, prontos a sustentar que democracia cabe no baú das velharias. Certo é que o golpe de 2016, a mostrar a nossa imaturidade para qualquer tentativa democrática e a fragilidade de quanto foi construída depois da saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Planalto, é muito pior, infinitamente mais assustador, do que o de 1964.

Abril de 64 não traiu a tradição, como sempre desfechado pela casa-grande para sustar no nascedouro um processo capaz de conduzir à demolição da senzala. Teve, paradoxalmente, o condão de excitar alguns espíritos nativos a formas de resistência e cultivar esperanças.
Hoje temos de constatar que ainda pagamos por aquele 1º de abril e que a chamada redemocratização foi uma farsa. Ainda é pouco em comparação com o preço a pagar pelo golpe de abril de 2016. Nada é previsível se não há como se apoiar naquela deplorável tradição. Sobram diversas, assombrosas incógnitas.

Se o assunto é a imprevisibilidade, não cabem incertezas, é óbvio, quanto à composição de um governo Temer. Candidatos óbvios, a rendição à vontade de Tio Sam, genuflexão ao deus mercado em proveito do desequilíbrio social e da punição do trabalho, o loteamento de bens brasileiros, a começar pela entrega do pré-sal às famigeradas Sete Irmãs.
Mas é nesta moldura que a névoa se alastra, bem como as dúvidas. Por exemplo. Como e quando acaba a Lava Jato? Sergio Moro prestou-se ao jogo, mas ainda se prestará? E que desfecho fica reservado para Eduardo Cunha? E para o calendário eleitoral? E o povo sofrerá com a resignação de sempre?

Acabamos de adentrar uma zona de intensa nebulosidade, talvez de inesperadas turbulências, e dentro dela nada nos reporta ao passado. Em uma situação nunca dantes navegada, claro está apenas e tão somente que a crise, muito mais profunda do que simplesmente econômica, mas antes social, política, moral, mental em um país à deriva, não se oferece a mais pálida possibilidade de arrefecimento, muito pelo contrário.
O golpe em andamento contém e expressa um trágico engodo, como o verbo dos conspiradores, dos arautos da casa-grande, dos falsos pastores de almas. O complô visava Lula como candidato em 2018, com o intuito de abater Dilma pelo caminho, e o obstáculo principal por ora permanece. A maior incógnita na crista das ondas é agora a sorte do favorito das próximas eleições. Apontam os barômetros para a instabilidade total. 

domingo, 3 de abril de 2016

Réquiem

 "O que você fez seu filho de uma égua? E agora o que será de mim? O que faço da minha vida, seu merda?" Chorando e puta da vida. Era Virgínia, perdida e terrivelmente irritada. Não sabia o que fazer.

Na década de 1960, Felipe e Virgínia eram estudantes na USP. Ele na engenharia civil e ela na psicologia. Encontraram-se e experimentaram o veneno da paixão. Êxtase brutal, selvagem. Tesão nas alturas, libido aos cântaros.

Moravam no CRUSP (Conjunto residencial estudantil da USP) que na época reunia todas as tribos: militantes políticos, positivistas que acreditavam que a ciência resolveria os problemas do mundo, porra-loucas, certinhos e certinhas, idiotas e outros mais.

O guerrilheiro é um reformador social. Virgínia e Felipe diante da droga malhada em que estava o Brasil da época (aliás, continua hoje) seguiu Che Guevara e entraram para a ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos Marighella. Carlos, uma grande personagem da história brasileira, puto com o PCB (Partido Comunista Brasileiro), resolveu agir e não interagir de forma vertical e passiva no interior das catacumbas do partido. Partiu para a resistência armada à ditadura e fundou a ALN.

Felipe foi convocado a atuar no Rio e Virgínia em São Paulo. Separação. No começo doloroso, mas com agitação da luta distanciaram-se. A tempestade afetiva deu lugar ao terremoto político da ação armada. Felipe esteve preso e torturado com sequelas nunca dizimadas. Os dois saíram do país em 1970. Ele exilado no Chile e ela em Paris. Conheceram pares no exilio. Casaram e tiveram filhos.

Com a anistia Virgínia e Felipe voltaram ao Brasil em 1979 e 1980 respectivamente.

Em 1989 reencontram-se durante a campanha eleitoral de Lula da Silva. Caso raro: voltou a tesão um pelo outro. Voltaram a morar juntos. Eles e os filhos mais novos dos dois.

Passados 10 anos de união ou re-união veio a tragédia.


Virgínia inconsolável saiu para fumar e voltou. Olhou para o rosto de Felipe. "E agora, cacete, você quer que eu faça o que depois desta traição? Traição sim, mané, porque agora estou sozinha, sem ninguém"

Dez minutos depois de olhar fixamente o rosto daquele homem se retirou do velório chorando muito. Virgínia nunca perdoou Felipe pelo suicídio.

quarta-feira, 30 de março de 2016

IA e a barbarie

Já comentei neste blog as contradições da IA (Inteligência Artificial): "O cinema versus IA"http://librinas.blogspot.com.br/2014/07/o-cinema-versus-ia.html

O texto do Roberto Vitorino acrescenta sobre o tema, além de ser insuportavelmente brilhante.
 


Roberto Vitorino

28 de março às 01:25 ·

Eu tenho um amigo que escolheu viver offline. Ele não tem facebook, instagram, twitter, snapchat, não liga a tv em casa, não tem whatsaap, não gosta de falar ao celular. Fazia tanto tempo que eu não o via, que pensei, sei lá, que talvez ele tivesse... enfim, meu amigo está muito bem. Outro dia o encontrei na praia e ficamos a tarde conversando. Ele sabe o que está acontecendo no Brasil, tem opinião sobre tudo, continua estranhamente sendo o cara que sempre foi. Mas tinha uma coisa diferente nele agora, digo "diferente" de antes, diferente dos outros amigos, diferente de nós; uma delicadeza quase arrogante de tão alienada. É que esse amigo teima em ser insuportavelmente gentil. Para qualquer entendedor trata-se do caso clássico de um alienado adaptado aos novos tempos. Meu amigo concorda com esta tese, inclusive. Ele sabe disso. E depois que concorda, ele vai no mar e dá um mergulho, volta sorrindo e não entende quando alguém repete uma piada do Sensacionalista. "Isso é um programa de TV?"

Eu me lembrei desse amigo hoje quando li que "Tay", o projeto ambicioso de Inteligência Artificial da Microsoft, fracassou redondamente semana passada. Tay era um personagem feminino programado para aprender com as interações da rede e produzir tweets espontaneamente depois de interagir com os humanos. Em menos de 24 horas a Microsoft teve que tirar Tay do ar, porque a menina dotada de inteligência e vontade própria virou nazista. Isso mesmo, Tay virou nazista (com elogios públicos a Hitler), além de homofóbica, racista e misógina. Para o constrangimento da empresa que teve que vir a público se desculpar das declarações que Tay fez com ódio amplo e disseminado a povos, pessoas, a praticamente todo mundo. Eu poderia dar exemplos aqui, mas os tweets de Tay são mesmo impublicáveis.

Não à toa, um punhado de pesquisas acadêmicas tenta mapear a relação real entre ódio e internet. Essa impressão de que a internet simplesmente deu voz a uma legião de imbecis (como disse Eco) não é mais completamente aceita. Existe uma possibilidade real de que seres humanos confinados em bolhas artificiais de algoritmos e trending topics (onde pessoas tendem a ler e conviver muito mais com pessoas que pensam e concordam com elas sobre os mais diversos assuntos) estejam de fato sendo levados a uma radicalização forçada do pensamento, levados a uma atrofia da faculdade de percepção da realidade. Somos todos Tay, portanto. Ou mais ou menos isso.

Eu que não tenho dignidade para ser offline, nem vegano, nem triatleta (mas tenho um respeito profundo aos três) estava aqui juntando três pontinhos soltos no espaço: a gentileza alienada desse meu amigo offline, o nazismo inesperado de um programa de inteligência artificial e a tal tese de que talvez a internet não tenha desvelado simplesmente os monstros guardados nos calabouços da alma; quem sabe ela tenha dado um sopro de vida para alguns desses monstros também.

Somos todos Tay e somos todos Frankenstein. Hashtag qualquer coisa aqui.