sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Palmito guarani

 Por que os guaranis do litoral de SP plantaram a própria floresta de palmito

Palmito é o nome dado à parte comestível do caule de certas palmeiras; o de juçara é conhecido por ser o mais saboroso de todos. Foto: Xavier Bartaburu

Mongabay, 28/01/2021

Dois ou três golpes de machado e já era: em menos de cinco minutos, lá se vão dez anos de árvore. Fosse outra palmeira nativa, como pupunha ou açaí, em pouco tempo nascia outra no lugar. Mas não a juçara: como ela não gera novos brotos depois de cortada, cada caule derrubado é um a menos na mata. Sua sobrevida se limitará a um tolete de palmito de não mais que meio metro ou um pote de conserva - uma década consumida numa única refeição.

Eis a razão pela qual o palmito de juçara (Euterpe edulis) praticamente desapareceu das prateleiras de supermercado. Décadas de exploração comercial fizeram desta palmeira da Mata Atlântica uma espécie rara, hoje restrita às florestas úmidas da Serra do Mar nos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, em geral dentro de áreas de conservação. Isso obriga seus remanescentes a sobreviverem em uma paisagem fragmentada, com baixa diversidade genética e ameaçados pelas mudanças climáticas.

O resultado é que hoje os brasileiros consomem o palmito de palmeiras menos saborosas e mais fibrosas, como açaí (Euterpe oleracea) e pupunha (Bactris gasipaes), ambas nativas da Amazônia, ou palmeira-imperial, nativa do Caribe (Roystonea oleracea). São espécies de crescimento rápido, geralmente prontas para serem cortadas após no máximo quatro anos — a juçara exige entre oito e doze anos para produzir um palmito de boa qualidade. Os poucos palmitos de juçara vendidos no mercado vêm de cultivos comerciais ou são extraídos ilegalmente (seu corte na natureza está proibido no Brasil desde 1998).

No estado de São Paulo, um dos últimos refúgios da juçara nativa, estima-se que pelo menos 50 toneladas anuais de palmito sejam vendidas de maneira ilegal. Isso equivale a cerca de 75 mil árvores no chão, geralmente cortadas por palmiteiros dentro de áreas protegidas, que costumam acondicionar o palmito em potes com salmoura ali mesmo, na mata, em acampamentos clandestinos, sem obedecer a normas de higiene. O palmito em conserva ilegal é um conhecido agente de botulismo, doença potencialmente fatal que pode danificar o sistema nervoso e causar paralisia.

Mas isso é só parte do problema: a juçara é também uma espécie-chave para a manutenção do equilíbrio ecológico na Mata Atlântica. Pelo menos 58 espécies de aves e 21 de mamíferos se alimentam de seus frutos, entre elas tucanos, sabiás, jacus, antas, pacas e queixadas. Todas se servem dos altos teores de gorduras e carboidratos contidos na polpa como fonte de energia para sobreviver na mata e aumentar as taxas de reprodução. Os animais também ajudam a dispersar a palmeira: ao comer a polpa e largar a semente fora - seja regurgitando, seja pelas fezes -, o grão germina mais rápido, onde quer que caia.

A juçara pode crescer até 15 metros, mas apenas os 50 centímetros superiores do caule são aproveitados como palmito. Uma vez cortada, a árvore morre e nenhum broto volta a crescer. Foto: Xavier Bartaburu

A solução Guarani 

No litoral norte de São Paulo, os primeiros a sentir o sumiço da juçara foram os Guarani, consumidores do palmito desde muito antes das conservas. Tanto que nem gostam delas. Para os indígenas, palmito bom é palmito cru, acompanhado de mel de abelha jataí. Ou assado no moquém, sem sal, para comer com beiju. É palmeira da maior importância para eles, pois dela não só tiram o alimento como também aproveitam o caule e as folhas para a construção de casas.

Antes que o turismo chegasse às praias da região, os Guarani tinham uma floresta inteira de juçaras ao seu redor. Quando o asfalto da Rodovia Rio-Santos rasgou a área nos anos 1970, condomínios e casas de veraneio começaram a devorar a floresta com o mesmo apetite que os recém-chegados tinham pelo palmito.

"Os brancos foram induzindo os índios a cortar o palmito em troca de ferramentas. Depois veio o dinheiro, os índios começaram a vender para os brancos. Foi um desastre", diz Adolfo Timótio, cacique da Terra Indígena Ribeirão Silveira, área de 9 mil hectares encaixada entre a praia de Boraceia e a Serra do Mar, nos municípios de Bertioga e São Sebastião. No final dos anos 1980, já quase não havia mais juçara. "A gente tinha que ir cada vez mais longe na mata buscar palmito", lembra Adolfo.

Adolfo diz que a pressão sobre o território Guarani acabou levando à criação da reserva indígena em 1987, mas não resolveu o problema da escassez de juçara. Então, em uma manobra inédita, as famílias da TI Ribeirão Silveira resolveram garantir o futuro de sua palmeira favorita plantando seu próprio palmital. Deixaram de ser coletores para se tornarem produtores.

"Começamos o trabalho com a construção do viveiro", diz o vice-cacique Mauro dos Santos. Foi nele que, em 1998, os Guarani começaram a cultivar dezenas de mudas de juçara, que depois seriam plantadas em seus quintais, em meio à vegetação nativa da Mata Atlântica. É o que tecnicamente se conhece como agrossilvicultura, sistema que integra cultivos alimentares com a floresta para criar um ecossistema que sustente a biodiversidade, reduza a erosão do solo, retenha água e sequestre carbono da atmosfera.

Os Guarani do litoral paulista preferem consumir o palmito de juçara cru (com mel) ou assado no moquém. Foto: Xavier Bartaburu

Perfeito para a juçara, espécie que requer umidade para germinar e sombra para crescer. "A juçara não gosta de estar fora da floresta", diz Maurício Fonseca, sociólogo que ajudou os Guarani no desenvolvimento do projeto agroflorestal. Em outras palavras, não é preciso derrubar a floresta para cultivar o palmital. Em vez disso, o sistema permite que a Mata Atlântica nativa permaneça de pé, com toda a sua biodiversidade, incluindo as espécies animais que compartilham a área do Ribeirão Silveira com os Guarani.

No início, o plantio era feito de forma um tanto experimental, misturado à pupunha e ao açaí, espécies amazônicas que a Funai inicialmente incentivara os indígenas a cultivar como alternativa à juçara. Por serem árvores mais produtivas, acabaram dominando as terras Guarani. Isso só mudou quando o Slow Food, organização internacional dedicada à salvaguarda da diversidade alimentar, criou a Fortaleza da Juçara em 2004, o que facilitou a captação de recursos financeiros para fomentar a produção de juçara na reserva.

O Slow Food coordenou várias iniciativas no Ribeirão Silveira, mas talvez a mais importante tenha sido um inventário realizado em 2008. Na ocasião, dezenas de indígenas foram mobilizados para medir, numerar e identificar as juçaras que cresciam em seus quintais.

O que descobriram foi revelador: a incidência de palmeiras estava muito abaixo do que a legislação brasileira exige para um plano de manejo. Pela lei, deveria haver pelo menos 3 mil árvores jovens por hectare, mas na época os Guarani haviam plantado pouco mais de 400 por hectare. Era uma produção impossível de se sustentar.

O inventário foi o ponto de partida para a criação de uma cartilha de manejo sustentável em parceria com os indígenas, que no fim se tornou a melhor maneira de garantir que nunca falte palmito na mata. Com as novas diretrizes, os Guarani da aldeia de Bertioga multiplicaram as plantas-mãe - aquelas destinadas a gerar sementes - e repovoaram de juçaras a floresta em torno das aldeias. Em dois anos, chegaram a 10 mil árvores, feito celebrado em 2010 em Turim, na Itália, onde o cacique Adolfo falou para uma audiência de 10 mil pessoas durante a abertura do evento anual Terra Madre, do Slow Food. Em língua guarani.

Uma década se passou desde então, e nesse tempo a mata de juçaras Guarani aumentou dez vezes. "Agora temos mais de 110 mil pés na reserva", diz, com orgulho, o vice-cacique Mauro.

Viveiros na floresta 

O cultivo da juçara na Terra Indígena Ribeirão Silveira envolve toda a comunidade —mais de cem famílias distribuídas em cinco aldeias. Isso inclui as crianças, pequenas o suficiente para escalar as palmeiras e colher os cachos cheios de frutos que crescem perto da copa. Das sementes desses frutos é que nascerão as novas juçaras.

Isso é feito duas vezes por ano, quando os frutos estão maduros: entre abril e maio e entre novembro e dezembro. Mas também há o que eles chamam de "canteiros naturais", áreas próximas à planta-mãe onde pássaros e pequenos mamíferos geralmente deixam cair as sementes depois de comer a polpa. Quando os indígenas coletam as sementes, a natureza já deu início ao trabalho de germiná-las.

Quando cabe aos Guarani estimular a germinação, eles utilizam um processo que alterna cinco dias de secagem com uma semana de armazenamento. Isso é feito o mais próximo possível do ambiente natural do juçara, sempre uma área úmida e sombreada no meio da floresta, geralmente perto de um rio. As mudas ficarão cerca de cinco meses ali, até perderem as primeiras folhas. Depois, vão para os viveiros por mais seis meses, até que as juçaras estejam prontas para conquistar seu lugar definitivo na floresta.

Após sete anos, um pé de juçara começa a dar os primeiros frutos. Aos oito, seu palmito já pode ser extraído, mas ainda é um tolete fino com pouco valor comercial. Os melhores palmitos aparecem aos dez anos, quando atingem o máximo de textura e sabor. As famílias do Ribeirão Silveira cortam palmito toda semana, sempre às quintas e sextas-feiras, para vender no acostamento da Rio-Santos durante o final de semana. Cobram entre 10 e 30 reais o tolete, dependendo do tamanho, o que pode não parecer muito, mas constitui sua principal fonte de renda hoje.

Ainda é um negócio bastante informal, já que a comunidade indígena não possui uma empresa aberta para vender o produto. Na verdade, o acesso ao mercado formal ainda é o maior obstáculo na cadeia produtiva Guarani. E eles também precisariam de uma escala de produção muito maior para abastecer supermercados ou restaurantes. "A gente precisaria juntar várias aldeias para ter boa quantidade de palmito", diz o cacique Adolfo. Veranistas são a maior parte da clientela, e não só do palmito — os Guarani também vendem mudas de juçara, cultivas em dois viveiros com capacidade para 2 mil pés.

Eles se beneficiam de uma lei municipal que exige que, a cada corte de árvore nativa para a construção de uma nova casa na região, sejam plantadas 30 mudas de espécies nativas. Ou seja: os maiores clientes dos Guarani são justamente aqueles que põem a floresta abaixo.

Novo fruto do trabalho: polpa de juçara 

O melhor resultado do esforço dos Guarani, no entanto, pode não ser o palmito da juçara, mas seus frutos. É a resposta da Mata Atlântica ao açaí amazônico: textura e sabor muito parecidos, mas com o benefício adicional de possuir níveis ainda mais altos de antocionina, pigmento com poderoso efeito antioxidante.

Além disso, vender a polpa da juçara ao invés do palmito mantém em dia a saúde da floresta. "O interessante desse processo é que você não perde nada", diz Maurício Fonseca. A palmeira permanece em pé enquanto os frutos podem ser usados para a extração da polpa. Ou para germinar novas mudas, caso os animais comam parcialmente os frutos. "A semente volta para a terra, repovoa a espécie e ao mesmo tempo gera renda. Esse é o processo mais sustentável da juçara."

Os Guarani já têm uma máquina de extração de polpa de juçara na aldeia principal, que trouxeram do Pará há cerca de 20 anos. Mas só agora, segundo Mauro, eles se sentem preparados para dar o pontapé inicial no projeto. "Estamos pensando em processar a juçara aqui na aldeia, com rótulo Guarani", diz o vice-cacique.

nspirados em experiências anteriores de comunidades quilombolas no litoral paulista, eles receberam R$ 413 mil em ajuda do governo estadual em novembro de 2019 para criar uma cadeia produtiva sustentável de polpa de juçara. O projeto inclui uma unidade de processamento de polpa congelada, reforma de viveiros, treinamento de equipes e veículos de apoio. E, claro, uma floresta de pé cheia de juçaras.

Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Babenco

Documentário sobre Babenco é carta de amor visual ao artista que levou o cinema brasileiro ao mundo

 
Frame do documentário 'Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou’
  
Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou’, sobre cineasta argentino radicado no Brasil e dirigido por Bárbara Paz, é o primeiro documentário escolhido pela Academia Brasileira para tentar uma vaga no Oscar

O cineasta Hector Babenco sempre teve uma confiança ilimitada de ter sorte e sobreviver. Por 70 anos, ele o fez. Até que seu coração parou de bater em 14 de julho de 2016, depois de décadas lidando com problemas de saúde que começaram aos 38 anos, quando foi diagnosticado com um câncer linfático. Durante todos esses anos, mais do que a sorte, foi o cinema que o manteve vivo. “Sempre que ele estava para morrer, inventava um novo filme”, conta ao EL PAÍS a atriz e diretora Bárbara Paz, responsável pelo documentário Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, em que retrata a essência do homem que amou durante seis anos de lenta despedida. O longa metragem foi selecionado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o país na disputa por uma vaga no Oscar em 2021.


“É emocionante a Academia ter escolhido um filme sobre o Hector, um cara que levou o cinema brasileiro para o mundo”, celebra Paz. Argentino radicado no Brasil, Babenco produziu 11 longa metragens e representou o país na premiação do Oscar em 1985, indicado na categoria de melhor diretor com o filme O Beijo da mulher aranha. Outros de seus títulos são O Rei da Noite (1975), o primeiro filme que dirigiu sozinho, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), Pixote: A Lei do mais fraco (1981), Brincando nos campos do Senhor (1990), Coração iluminado (1998), Carandiru (2003) e a produção argentino-brasileira O Passado (2007).


O derradeiro — e autobiográfico — foi Meu amigo hindu (2015), que conta o processo de transplante de medula ao qual Babenco se submeteu nos Estados Unidos. No filme, Diego, um cineasta vivido por Willem Dafoe (amigo do diretor e de sua mulher) trata um câncer terminal em um hospital onde divide o quarto com um garoto hindu, com quem constrói uma amizade baseada no apego à vida.


“Não sei o que vinha primeiro, se era o filmar ou estar vivo”, diz Babenco ante as lentes de Bárbara Paz. “Eu já vivi minha morte, só falta fazer o filme da minha morte”, acrescenta em outro momento. Paz decidiu fazer o documentário quando viu o marido um dia, em um dos muitos leitos de hospital por onde passou, e teve medo de que não houvesse mais tempo para contar aquele homem cuja força a impressionava. “No fundo, queria que todo mundo escutasse o que eu estava escutando, que as pessoas conhecessem o pensador, além do cineasta, esse homem que lutava para sobreviver porque se mantinha vivo para fazer cinema”, conta ela, que registrou a vida ao lado de Babenco de 2010 a 2016.


O resultado é um retrato do homem amado, um poema visual, uma carta de amor que, mais do que uma biografia informativa — apesar de as imagens de arquivo e de obras de Babenco cumprirem primorosamente essa função —, é um convite à intimidade do artista. Estão presentes referências de sua infância em Mar del Plata e do universo imagético que influenciou sua estética audiovisual, mas não há uma linearidade cronológica de sua trajetória. O registro da morte em ação, em um processo lento e constante, com o câncer como condutor narrativo, se contrapõe ao afeto presente em toda a obra. E ainda que a relação romântica do cineasta e de Paz seja um dos protagonistas desse conto, ela mesma pouco aparece diante das câmeras, ainda que sua presença seja constante.


Em uma das primeiras cenas, em que Babenco lhe presenteia uma câmera, ele insiste em instruí-la sobre enquadramentos, mas, ao longo do filme, está claro que o olhar de Paz é soberano. É sua visão do artista que faz o homem se abrir em sua intimidade, frágil e, ao mesmo tempo, forte. “Nos últimos anos, quando o câncer voltou, ele ficou com muita urgência, ele queria ser filmado o tempo inteiro. Fiz um teaser antes de ele partir, mostrei antes de um exame, quando ele estava com muito medo do câncer ter chegado à cabeça. Ele amou. Assistiu àqueles cinco minutos e disse: ‘Até que eu sou um homem interessante”, conta a diretora.


Nenhum dos dois queria um documentário convencional, com entrevistas. “Isso seria fácil”, rejeita Paz. “Ele estava vivo e queria falar. Tinha aquela coisa de filmar para não morrer jamais”, acrescenta. Mas como filmar alguém à beira da morte? “Tínhamos horas de filmagens em hospital, eu poderia fazer um filme só sobre o fim, de fato. Mas queria mostrar quem era ele através da nossa relação. É um retrato íntimo de um casal em que ele conta sua história para mim”, diz a realizadora.


Em um dos momentos mais comoventes do longa, o espectador acompanha a gravação da última cena rodada por Babenco no cinema: Paz, aqui um híbrido de musa e mulher amada, dança sorridente sob a chuva, reinterpretando os movimentos de Gene Kelly em Cantando na chuva. Quando termina, abraça o marido, ambos emocionados. “Aquele dia foi muito forte. Estava reproduzindo uma cena que eu fiz para ele num dia em que ele estava muito doente. No final, ele falou: ‘Essa é a cena final do meu próximo filme, que eu não sei qual é. Eu quero que minha última cena seja com vida, que tenha sol’. A gente sabia, no fundo, que seria a última”, lembra Paz.


Esse é o momento final de Meu amigo hindu, mas não o de Babenco. O documentário que faz ode à sua obra e o aproxima de gerações que por ventura não conheçam seu cinema —pelo menos não além de Carandiru  — traz a essência do homem, do cineasta, do pensador. E faz pensar que é possível que ele esteja, como diz em dado momento, ainda vivo, morando em Hong Kong em um apartamento à beira-mar, lendo os obituários de sua morte com um sorriso no rosto.


Joana Oliveira

El Pais, São Paulo - 03/12/2020


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Orwell e a direita

Como a direita se apropriou da obra de George Orwell

Orwell suspeitava que seu derradeiro romance seria explorado como arma de propaganda pela direita, que o reduziria a um panfletão antissoviético, antistalinista

“Orwelliano” não chega a ser uma palavra bom-bril, mas já demonstrou ter mil e uma utilidades; desde designar qualquer criação do escritor britânico George Orwell a adjetivar uma porção de ideias, figuras e situações consagradas em sua obra (mais especificamente no romance distópico 1984), a inspirar um reality show e a desqualificar uma discussão. 

O senador Josh Hawley, republicano pelo Missouri e destacado capacho de Trump, encampou a tese de que a vitória eleitoral de Joe Biden fora fraudada, com tamanha verve e desfaçatez, que a editora com a qual transava a publicação de um livro desfez o combinado, antes mesmo do assalto ao Capitólio insuflado pela tese trumpista. Foi o que bastou para o senador proclamar-se vítima de “um assalto à Primeira Emenda da Constituição”, acusar a editora de ter sido “pressionada pelos comunistas”—com este adendo: “mais orwelliano, impossível”. 

Desde quando uma simples decisão editorial é uma atitude autoritária? Até mais orwelliana que a fraude eleitoral imputada à vitória de Biden foi a desculpa de que, ao tentar suprimir votos de negros e latinos em diversos estados, os republicanos estavam “zelando pela integridade do eleitor”. 

No dia seguinte à suspensão da conta de Trump no Twitter, Hawley soltou os cães, na mesma rede social: “A liberdade de expressão não existe mais na América. Estamos vivendo no 1984 de Orwell”. Seus próprios colegas de partido julgaram a bronca, com acusações gratuitas e embasadas em falsidades, uma reação tipicamente... orwelliana. 

É em Oceânia, o estado totalitário de 1984, não na América, que mentira é verdade, verdade é mentira, guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força, conforme impostas por seu Ministério da Verdade. Trump bem que tentou diminuir essas diferenças ao longo de quatro anos, com suas fanfarronadas narcisistas em palanques e diante das câmeras e suas torrentes diárias de fake news (ou “fatos alternativos”, para usar o orwellianíssimo eufemismo cunhado pela conselheira do ex-presidente, Kellyanne Conway). Envenenou o eleitorado, mas não o suficiente para assegurar um segundo mandato

O máximo que o mimimi de Hawley logrou foi alçar 1984 ao topo da lista dos mais vendidos da Amazon. O romance que, entre outros orwellianismos, consagrou a figura de Big Brother, o onipresente mas incorpóreo tirano de Oceânia, é visto, faz tempo, como um barômetro das aflições sociais e políticas por que passam os EUA. Suas vendas cresceram à beça em 2013, depois que Edward Snowden expôs as engrenagens da espionagem americana, e mais de 9.000% após a posse de Trump. 

Orwell suspeitava que seu derradeiro romance seria explorado como arma de propaganda pela direita, que o reduziria a um panfletão antissoviético, antistalinista. Foi. Em 1950, quando 1984 chegou às livrarias americanas, a revista Life, alinhada com o Partido Republicano, então no poder, não só o  promoveu, com inusitado entusiasmo, como vislumbrou em sua narrativa uma denúncia do “totalitarismo intrínseco” do New Deal de Roosevelt, dedução que qualquer pessoa intelectualmente honesta só não repudiaria com mais vigor que o próprio Orwell.  

A primeira tramoia da direita com um livro do autor foi a compra secreta dos direitos da novela A Revolução dos Bichos pelo agente da CIA Howard Hunt. Embora tencionasse extrair dele um ambicioso filme de animação, produziu apenas mais uma peça de propaganda anticomunista. Hunt, que na década de 1970 seria figura chave no escândalo Watergate, adulterou o final da história, acrescentando-lhe um apócrifo final feliz. A CIA, igualmente patrocinadora da primeira adaptação de 1984 ao cinema, dirigida por Michael Anderson em 1956, também alterou o desfecho da trama, razão pela qual a viúva do escritor, Sonia Orwell, tirou o filme de cartaz.

O primeiro registro da expressão “orwelliano” data de 1950 e uma assinatura ilustre: Mary McCarthy.  A grande ensaista e escritora americana não escrevia sobre política, não se referia a uma ditadura nem a nenhuma personalidade maléfica; apenas descrevia uma revista de moda inteiramente voltada para si própria, para sua autopromoção. 

A partir dali, o adjetivo passou a acompanhar os mais disparatados substantivos, até artefatos nucleares e utensílios elétricos de cozinha. Orwell, que escreveu uma reflexão seminal sobre a degradação da língua inglesa não só pela política mas sobretudo por ela, teria se espantado com essa versatilidade polissêmica. 

No mar de ensaios sobre 1984 até hoje produzidos, destaco, pelo inusitado e pela utilidade, Ministry of Truth: A Biography of George Orwell’s 1984, de Dorian Lynskey, editado pela Picador. Isto mesmo: uma biografia do romance.

Lynsley investigou a fundo as suas origens. Localizou-as, primeiramente, nos seis meses que Orwell lutou na Guerra Civil Espanhola, em 1937, integrado à milícia trotsquistas. Foi lá, na Catalunha, fonte de Lutando na Espanha, que os pilares do tenebroso mundo do Big Brother, o desprezo à verdade objetiva, a reformulação do passado, a corrupção ideológica e a rotineira supressão da discordância encaixaram-se inexoravelmente.

O estímulo determinante partiu da Conferência de Teerã, em 1943. Ao ouvir as notícias que lhe chegavam da cimeira com Roosevelt, Churchill e Stalin, Orwell deu de barato a derrota de Hitler e imaginou o planeta rateado entre aqueles três impérios - e sentiu um calafrio. 

Nunca demorou tanto tempo - cinco anos - para escrever um livro, entregue ao editor em dezembro de 1948 e publicado seis meses depois. Traumas pessoais e o avanço da tuberculose, que afinal o mataria em janeiro de 1950, por pouco não o impediram de concluir sua magnum opus, cuja perda seria uma desgraça indiscutivelmente orwelliana. 

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

23 de janeiro de 2021



Filmes parte 12

Um diário de cinemeiro

Vampyr (O Vampiro) 1932, Carl Th. Dreyer
A Fonte da Donzela 1960, Ingmar Bergman
Um homem com sua câmera 1929,  Dziga Vertov
L'âge d'or (A idade do ouro) 1930, Luis Buñuel
No Tempo das Diligências 1939, John Ford
Gaslight (A meia Luz) 1940, Thorold Dickinson
A morte espera no 32 1954,  Richard Quine
A voz suprema do blues (Ma Rainey’s botton) 2020, George C. Wolfe
Fogueira de paixão (Possessed) 1947, Curtis Bernhardt
Tight spot (Ratos humanos) 1955, Phil Karlson
Kagi (Alucinação sensual) 1959, Kon Ichikawa
Ervas flutuantes 1959, Yasujirô Ozu
The Search (Perdidos na tormenta) 1948, Fred Zinnemann
Isso é um enterro, é uma Ressurreição, This is not a burial, it’s a resurrection 2019, Lemohang Jeremiah Mosese
 

Ervas flutuantes, Ozu, 1959

Vampyr (O Vampiro) 1932, A Fonte da Donzela 1960, Um homem com sua câmera 1929, L'âge d'or (A idade do ouro) 1930, No Tempo das Diligências 1939, Gaslight (A meia Luz) 1940, A morte espera no 32 1954, A voz suprema do blues (Ma Rainey’s botton) 2020, Fogueira de paixão (Possessed) 1947, Tight spot (Ratos humanos) 1955, Kagi (Alucinação sensual) 1959, Ervas flutuantes 1959, The Search (Perdidos na tormenta) 1948, This is not a burial, it’s a resurrection 2019
 

30/11/2020

Vampyr (O Vampiro), 1932, Carl Th. Dreyer

O vampiro no iutubi 

O dinamarquês Carl Theodor Dreyer tinha alcançado bastante destaque com o seu nono filme, O Martírio de Joana D’Arc (1928) e, no ano seguinte, começou a preparar o seu próximo projeto junto ao estúdio francês ao qual estava ligado. Diante de divergências sobre o tema a ganhar as telas, Dreyer abandonou o investimento da companhia e resolveu buscar ele mesmo o financiamento, tendo já feito algumas alterações de concepção na forma do futuro filme. De repente, o diretor entendia que precisava entrar na linha dos talkies (os filmes falados), já que e o uso dessa nova tecnologia (disseminada a partir de 1927) deixava as películas mais atrativas para o público.

Durante sua viagem ao Reino Unido, a fim de estudar a tecnologia dos filmes falados, Dreyer se encontrou com o escritor dinamarquês Christen Jul, com quem se aliou para escrever um enredo de “mistério e coisas sobrenaturais“. Empolgado pelos “filmes de monstros da Universal” (principalmente O Corcunda de Notre Dame, O Fantasma da Ópera, O Homem Que Ri e Drácula), Dreyer queria dar uma visão diferente para este tipo de cenário medonho, trazendo algo mais exigente em seus conceitos e menos ligado ao puro choque visual. Daí veio a inspiração na coletânea de contos In a Glass Darkly (1872), de Sheridan Le Fanu, com destaque para os contos Carmilla (uma história de vampira com um subtexto lésbico) e The Room in the Dragon Volant.

Co-produzido pelo Barão Nicolas de Gunzburg (que adotou o nome Julian West para não ter mais problemas com a família, que não aprovava sua carreira de ator), em troca do papel principal — algo que não foi um sacrifício para Dreyer aceitar, visto que ele preferia trabalhar com não-atores — O Vampiro começou a ser filmado em 1930 e teve seus trabalhos de filmagem estendidos até o ano seguinte. Parte disso veio das dificuldades de locações e reunião dos não-atores, visto que a obra inteirinha foi registrada em locações. Uma das histórias mais interessantes sobre a produção é que o próprio castelo utilizado como “ponto de encontro” entre os personagens humanos, a vampira e as almas, serviu também de estadia para a equipe de produção do filme. Imaginem só.

Os diretores de fotografia Louis Née (ainda no começo da carreira: este foi o seu quarto trabalho) e Rudolph Maté (que tinha mais tempo em atividade, mas seus trabalhos realmente relevantes até ali haviam sido ao lado do próprio Dreyer, em Michael e O Martírio de Joana D’Arc) conseguiram um feito impressionante ao mostrar o lado espiritual e talvez moral que o roteiro de Dreyer e Jul sugeriam, colocando na tela a inspiração visual delineada pelo diretor naquele momento, a atmosfera das obras do pintor Francisco Goya.

O bom uso das locações, a ideia de utilizar câmera em movimento em um tempo em que isso não era algo comum, o bom uso de planos mais longos e um pequeno ensaio de plano-sequência (importante lembrar que a versão que conhecemos de O Vampiro não é a original, pois parte de seus negativos se perderam), o foco difuso e sobreposição para fazer com que as “almas” dos personagens andassem pelos cenários, a inserção das sombras e destaque de pontos macabros do ambiente para sugerir o medo — sem contar o grande empurrão da música de Wolfgang Zeller — fazem de O Vampiro uma criativa e impressionante realização de terror nos anos 1930, colocando-o em um patamar bem diferente do gênero naquele momento.

O trabalho imagético, no entanto, não tira dela a confusão que existe no desenvolvimento. As mudanças de ponto de vista, misturando sem mais nem menos alucinações e cenas da realidade, atrapalham a história tanto quanto a passagem pouco orgânica entre os blocos ou a apresentação de personagens como Der Schlossherr (Maurice Schutz), que aparece como uma “assombração real” no quarto de Alan Gray, ainda no início do filme. Isso não é explicado ou trabalhado de maneira coerente, embora o papel dele e do jovem sejam plenamente entendíveis no decorrer da fita.

Apesar dos problemas de montagem e roteiro, O Vampiro constrói com sucesso uma das versões que temos sobre o arquétipo dessas criaturas das trevas. A forma aqui fala mais alto que o texto, é verdade, mas talvez seja por isso que o filme recebeu um grande destaque através dos anos, porque mesmo com uma história enrolada e pouco fluída, a obra se beneficia pela boa atmosfera e por excelentes escolhas visuais, fazendo do medo algo mais sério e poderoso do que apenas o susto fácil que tomaria conta do gênero terror no futuro. Este é o que podemos chamar de “terror raiz” no sentido mais íntimo do termo.



13/12/2020

A Fonte da Donzela (Jungfrukällan ), 1960, Ingmar Bergman

iutube

Crítica | A Fonte da Donzela

Por Luiz Santiago

São raros os filmes sobre a Idade Média europeia — aqui, a Suécia do século XIII — que retratam, com tamanho cuidado e excelente resultado de pesquisa história, esta sociedade. Especialista em maquetes, o diretor de arte P.A. Lundgren (O Sétimo Selo e O Rosto) criou exatamente a estrutura de um feudo simples europeu, um grande casarão da madeira dentro de uma propriedade de terra protegida por um senhor feudal e seus servos. Ao contrário do que diz o imaginário popular, os castelos de pedra não eram “a regra” para os feudos europeus e só com as inovações que ocorreram ao longo do século XII é que eles se tornaram mais populares, seguindo os passos de outras construções de pedra que já tinham uma popularidade um pouco maior. As igrejas.

Em uma entrevista retratada no livro O Cinema Segundo Bergman, o diretor diz algo curioso sobre sua inspiração estética e até de abordagem simbólica para este filme, cujo roteiro foi escrito por Ulla Isaksson (amiga de Bergman que também escreveu No Limiar da Vida) e baseado em uma das “vinte e sete” versões da folclórica balada medieval As Meninas de Töre em Vänge. Disse o diretor:

"A Fonte da Donzela é um acidente de caminho. É um belo filme, mas de uma beleza que agrada aos turistas e é uma miserável imitação de Kurosawa. Nessa época eu só admirava o cinema japonês e era quase um pouco samurai!"

Fortemente marcado por Rashomon (1950) e com muitas cenas que visualmente nos remetem a concepções estéticas de Akira Kurosawa em Os Sete Samurais (o trabalho com as paisagens e integração da natureza ao cotidiano do homem), Trono Manchado de Sangue (a primeira sequência na floresta, antes dos pastores de cabras, especialmente na cena da cabana do “bruxo”) e A Fortaleza Escondida (com a personagem feminina em uma jornada por um território hostil, embora muitas vezes ela não queira aceitar isso), A Fonte da Donzela é uma belíssima junção de referências assumidas do Mestre sueco a um Mestre do cinema japonês, mas tudo isso dentro de uma construção própria ao seu estilo, fazendo da canção folclórica um austero estudo sobre o estupro, o mal, a morte, o arrependimento e a relação do indivíduo com Deus ou com os Deuses, já que temos aqui uma passagem clara e historicamente acurada do paganismo para o cristianismo no norte da Europa.

Ingeri (Gunnel Lindblom) é uma jovem virgem que deve levar as velas à igreja para acendê-las em honra à Virgem Maria. Em sua trajetória, ela encontra três irmãos, pastores de cabras (animal-símbolo da substância primordial não manifestada; símbolo da ama-de-leite e da iniciadora, tanto no sentido físico quando no sentido místico), dois adultos e uma criança, com quem conversa e decide repartir o alimento que sua mãe Märeta (Birgitta Valberg) lhe deu para a viagem. Os adultos acabam estuprando Karin e um deles, aquele que tem a língua cortada, mata a garota com uma paulada na cabeça. No ato seguinte, a profecia do “bruxo” dita a Ingeri (a excelente Gunnel Lindblom), de que “três homens mortos caminham para o Norte” irá se cumprir. Os irmãos chegam ao feudo de Töre (Max von Sydow, em uma brilhante interpretação). Uma discussão sobre justiça divina ou cumprimento da vontade dos Deuses é colocada no texto de maneira bastante natural, obedecendo ao sincretismo religioso presente e recebendo um ato de vingança que não poderia ser mais adequado ao período. E todo o ato também carrega um significado poético imenso, a começar pela luta de Töre com uma árvore.

Notem que a trilha sonora de A Fonte da Donzela (composta por Erik Nordgren, o mesmo de Juventude, Sorrisos de Uma Noite de Amor e Morangos Silvestres) é bastante rara e não tem um único padrão. Ela vai do uso de um pequeno instrumento pastoral até peças de baladas da Alta Idade Média e da Idade Média Central, com espaço para a música sacra no fim. Esta economia e o bom uso da música no filme destaca grandiosamente a ambientação criada por uma mixagem de som bem feita, trabalhando cada ruído no momento certo: o coaxar de um sapo, o canto dos pássaros, o riacho correndo, o vento nas folhas, o crepitar do fogo. Esse trabalho com o som e a forte presença do silêncio é que torna a luta de Töre com uma árvore ainda em sua juventude um ato simbólico extremamente doloroso, além de ser mais um indício de sincretismo, a purificação do corpo do pai que perdeu a filha, através dos galhos arrancados de uma árvore jovem, para um ato que ele ainda iria cometer. Não há oração ou pedido de perdão a Deus. O foco do pai atormentado neste momento é outro.

A direção de Bergman equilibra momentos e cenas detalhes com cenas de contexto do espaço e criação de suspense, principalmente no segundo ato. O filme carrega ingredientes de mitologia nórdica, cristianismo e violências de diversos tipos, todos fotografados com precioso uso de luz natural por Sven Nykvist, que entrou no projeto após grandes desentendimentos entre Bergman e Gunnar Fischer, seu fotógrafo por 12 anos, de Porto a O Olho do Diabo. Bergman faz questão de trabalhar a dualidade do comportamento entre as pessoas e como o Universo responde a isso. Ingeri, uma pagã bastarda, que está gerando um bastardo, tem bastante raiva e inveja de Karin por ser virgem e poder casar-se. Indicando que também foi estuprada, Ingeri representa a persona primal da mulher guiada por Odin, abrindo o filme soprando para que o fogo acenda. Então vemos uma labareda aparecer na tela, tendo uma bela nuance de luz suave de Nykvist aplicada ao momento.

Sua oposição a Karin e mesmo a Märeta se dá não apenas pela religião, mas pela posição de luz e sombra com que são mostradas ao longo do filme, assim como duplos de subversão e disciplina; inocência e cinismo; castidade e luxúria e o mais interessante, os dois símbolos naturais que acompanham as jovens: fogo (ligado a Ingeri, na abertura) e água (ligado a Karin, no encerramento). O espectador talvez não se dê conta, mas são esses elementos ajudam a criar o sentimento à flor da pele que passamos ter após a chegada dos irmãos ao feudo de Töre, um personagem majestoso que termina o longa em lancinante dor e de joelhos, prometendo uma igreja de pedra a Deus. A atrocidade crua da cena de estupro muda a visão do espaço e a função de cada personagem, para os quais diversos tipos de culpa são auto-aplicados, sentimento cuja redenção selvagem acontece na luta de Töre com os pastores.

Um ato de violência em um mudo em transformação, coberto por fé e mais violência. O roteiro adiciona uma crise existencial ao protagonista, ao que muitos poderiam chamar de “anacrônica” em relação ao momento, mas que cumpre ali uma função perfeitamente compreensível, a de um pai que lamenta a morte da filha após ser estuprada. Onde estava Deus neste momento? Seria o Odin de Ingeri, que por inveja, amaldiçoara Karin, mais forte que a divindade cristã à qual Töre e sua família aprendeu a adorar? Mas a sensação de abandono é imediatamente coberta por uma resignação do personagem de Max von Sydow, alquebrado, necessitando de algo que pudesse dar a ele a segurança de que, em algum lugar, alguém estava olhando para aquela situação.

A seu modo e em sua ira, ele já fizera a justiça contra os criminosos. Mas sua filha continuava morta. E seu estupro e subsequente morte não eram coisas que seriam simplesmente esquecidas. Todavia, diante de um ato de fé e uma promessa em meio a dor, um milagre acontece. Qualquer que fosse o objetivo dessa nova divindade em permitir uma inocente passar por tudo aquilo, a sensação de proteção e acalanto dos pais é conseguida por algo que, para sempre, lembraria a filha. As chamas, anteriormente, já haviam servido para purificar o corpo no exercício da vingança. Mas deixou profundas marcas. Já água que jorrou de onde estava a cabeça da donzela veio para limpar o espírito. Então havia mesmo um Deus. E a morte de Karin, de repente — em meio a todo o terror que a envolveu — se torna algo muito maior para aqueles carentes de consolo.

15/12/2020

Um homem com sua câmera (Chelovek s kino-apparatom), 1929, Dziga Vertov

O Homem da Câmera no iutubi 

Um Homem com Uma Câmera

Por Luiz Santiago

Teorizar sobre o gênero documentário não é algo tão simples quanto pode parecer à primeira vista. A rigor, temos na memória a imagem de que o documentário é um registro da verdade, uma fonte de informações críticas sobre alguém ou alguma coisa. Nele, temos uma versão impessoal e distanciada dos fatos, o que nos permite construir, livres de indícios alheios, a nossa própria visão e opinião a respeito do que vimos, certo? Errado.

De todos os gêneros, o documentário é certamente o mais perigoso, porque carrega a bandeira da “verdade” consigo – a não ser que seja um mockumentary, que por concepção, já é uma forma de zombar da realidade -. Esse perigo do “filme revelador” ainda ilude muito espectador ingênuo ou que desconhece certos princípios básicos do cinema, como a produção e a montagem, duas coisas que influenciam sobremaneira em qualquer obra cinematográfica.

Mesmo que a concepção de um documentário não passasse pelo crivo particular do diretor e equipe técnica – afirmação questionável já que as escolhas dos entrevistados, dos arquivos a serem utilizados e dos locais de filmagem simbolizam um filtro de informações, portanto, é uma escolha, e como tal, algo particular -, a montagem por si só corromperia a ideia de verdade pura, porque construiria uma versão do fato, com direito a simbolismos, metáforas, efeitos dramáticos, ou simplesmente, a escolha do que entraria ou não para o corte final.

Partindo desse princípio de que um documentário é uma construção/versão da verdade (podendo haver muitas outras), entenderemos melhor o exercício de Dziga Vertov em O Homem da Câmera, ou, em outro título, Um Homem Com uma Câmera. O diretor russo, teórico do cinema-verdade (kino-pravda), do cinema-olho (kino-glaz), ou do construtivismo cinematográfico, versões de uma sétima arte longe das atrações ficcionais, propôs, através de sua obra inicial, uma visão da realidade cotidiana feita sem interpretação de papeis e fora do palco simbólico, como fazia Sergei Eisenstein, segundo palavras do próprio diretor.

O que geralmente se deixa passar é que, mesmo Vertov não fazendo mudanças estruturais na realidade que filmava, ele fazia mudanças no modo como o público deveria perceber essa realidade. Mas isso é algo ruim? Não! Isso é notável, porque nos ajuda a entender que mesmo a mais bem intencionada proposta de imagem-movimento-verdade é manipulada para dar um sentido específico ao público, obedecendo aos princípios teóricos do realizador da obra.

Nesse exercício de verdade construída na montagem e convite à percepção crítica, Vertov faz um ciclo quase vicioso de imagens, compondo, desconstruindo e recompondo imagens no decorrer do filme. Elementos que vimos nos minutos iniciais voltam aos poucos a aparecer, especialmente ao final, complementando e adicionando mais ingredientes à nossa ideia do que o autor intentava nos mostrar.

Embora eu goste muito do filme, enxergo como exagero certas escolhas do diretor e vejo até uma contradição elementar em sua teoria, o que não a invalida, mas nos faz questionar, por exemplo, a recusa da atração interna do filme proposta pelo cineasta, quando a concepção externa de Um Homem com uma Câmera, por exemplo, era, dentre outras coisas, atrativa. Evidente que não é o tipo de “atração simbólica einsteiniana”, mas não deixa de ser uma atração.

Um Homem com uma Câmera é um filme pioneiro. Assim como todo documentário teórico, é uma obra para pensar a concepção da verdade e o seu entendimento através de uma produção imagética analítica, além de discutir teorias sobre manipulação do real e reinterpretar as formas conhecidas de entender o mundo através do cinema, uma proposta no mínimo curiosa e que até hoje levanta valiosas discussões.

Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov (1929)

Ally Colaço, 15 de abril de 2009

Frenético! É um filme frenético e de palavras-chave: movimento, muito movimento, ciclo da vida, o cinema, o homem, o espectador, as engrenagens, a montagem, a simultaneidade, a continuidade, o cíclico, a sincronia.
Não há uma história, mas temos personagens: o homem e sua câmera que tudo registra; e as pessoas retratadas em seu cotidiano, em seu ciclo de vida, em sua natureza.
Vertov cria um bombardeio de imagens e brinca com esse tal "cinema-verdade".
Encontro vestígios de linguagem na idéia de "enquanto isso". Enquanto a cidade desperta, a mulher desperta, um homem dorme, alguém trabalha. Alguém nasce, alguém morre. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo, talvez num mesmo dia, ou num mesmo instante.
A aparição do "homem e sua câmera" parece criar um distanciamento e aproximação ao mesmo tempo. "Olhe isso é a vida, olhe isso é cinema!". A câmera como um olho, que não é seletivo, é apenas instrumento do cérebro, da compreensão humana daquilo que presencia e visualiza. Quem dá o sentido somos nós.
As imagens são excessivas e densas, mas a vida real é densa e ágil. O tempo corre e Vertov brinca com o tempo. Ora acelera a imagem, ora retarda, e tudo em sincronia com uma melodia. Melodia fundamental, pois constrói o dinamismo das imagens, reforça o movimento, reforça a frenesia. Música frenética acompanhando um ritmo frenético de imagens.
Percebo 3 linhas de narratividade: as imagens, a presença da câmera inserida nos cenários e interferências. Essas interferências são imagens aleatórias inseridas em eventos narrados. Cartazes, engrenagens, espectador.

Apesar de não haver uma linha narrativa principal, uma história a ser contada, há um posicionamento, normal em qualquer registro, em qualquer documento. Há algo que possa ser extraído do filme, há algo que possa causar reflexão ou haver comunicação. Se fosse apenas um bombardeio insignificante, nosso repertório talvez não captasse nada, mas ele capta porque há algo a ser captado.
Vertov cria inúmeros contrastes nas imagens: o divórcio de um casal e o divórcio da imagem - imagem dividida; o nascimento e falecimento (bebê X funeral), as engrenagens mecânicas e as engrenagens naturais (máquina X queda d´gua); o lento e o acelerado (esportistas e espectadores).
As imagens possibilitam inúmeras associações. E o movimento contínuo é constante no filme, mesmo quando desacelera e recomeça.
O auge da reflexão do filme como cinema são as imagens congeladas, meras fotografias, e a personagem "montadora" ajustando-as, vemos então a imagem em movimento. Cinema em sua base é isso, "imagem em movimento". Cinema é frenético, é constante, é intenso, é o descongelar do tempo, é a continuidade da imagem, é a vida, mesmo que ainda representada. A presença do homem com sua câmera retrata isso, apenas representação. Há alguém por trás manipulando essas imagens, selecionando-as como num trabalho qualquer. Mãos que trabalham, mãos de manicures, operários, datilógrafas, telefonistas, embaladeiras, pianistas, mineiros, de montadores, de cinegrafistas. Mãos que tem vidas, que tem histórias, suas próprias histórias.
Vertov consegue criar através das sua construção de imagens toda a reflexão sobre a origem do cinema, todas suas transformações e possibilidades. Ele retrata o cotidiano dos Lumiere, a trucagem de Melies, a linguagem de Griffith, a montagem de Eisenstein, o experimental do cinema e um além que poderá chegar.
Não conheço nada parecido com Vertov. Um visionário talvez. Seu filme é único e pioneiro. É um registro da vida, um documento do cinema, do que é o cinema e de todas suas possibilidades.
O cinema é movimento. O cinema é Vertov.

Jenny Granado, 17 de abril de 2009

No final da década de 20, quando Hollywood, entusiasmada, se acostumava e se "derretia" com a transição do cinema mudo para o falado, o visionário Dziga Vertov abriu as pernas e, literalmente, "pariu" ao mundo; "o homem com a câmera". Produzido com preocupações de natureza, digamos, menos técnicas e morais, e sim, mais praticas.
Vertov revolucionou a estética, e porque nao, a estrutura do cinema, com uma nova vertente denominada por como "cinema-verdade", "cinema-olho".
nem filme, nem curta, nem documentário, quase uma poesia transfigurada em imagens em vivacidade e interpretação do drama é dada pela trilha sonora envolvente, que estreita a ponte entre o público e a obra, com seus rebuscados tons e semitons, que vão além do que é perceptível apenas aos olhos e ao entendimento. A compreensão é realizada pela junção dos 5 sentidos presentes na raça humana. Diálogos, nesse caso são inexistentes e irrelevantes, pois a música consegui traduzir mais do que qualquer palavra, a verdadeira essência da obra.
Inúmeras possibilidades estéticas são apresentadas. Como a transposição de imagens, recortes e repetições de cenas, retratando quadros do dia a dia e do cotidiano da russia comunista de Lenin, o que torna, o espetáculo, ao mesmo tempo; comum e inovador.
analogias, metáforas, metonímias, poesia, tudo muito bem empregado as cenas.
o título não é por acaso, Vertov faz questão de mostrar a "câmera-narrador", exaustivamente ao decorrer do tempo, ela é autônoma, é protagonista, um organismo a parte, independente, e o homem, seu guia. o homem é o apêndice da câmera, e não o contrário, como dizem alguns críticos.
para se apreciar e compreender a magnitude de Vertov, é preciso sentir, ouvir,  ver e degustar movimento? há muitas denominações, contudo o que se sabe é que "o homem com a câmera" não se dá ao luxo a nomenclaturas. Ele é simplesmente autossuficiente.

17/12/2020

L'âge d'or (A idade do ouro), Luis Buñuel, 1930

Roteiro: Salvador Dali e Marques de Sade (não creditado)



L'âge d'or no iutubi 

Principais sequencias: Documentário sobre os escorpiões . À beira do mar, bandidos maiorquinos totalmente exaustos. Colocação da primeira pedra de Roma, perturbada pelos abraços de dois amentes. Dois policiais arrastam para dentro da cidade o homem que se faz liberar. Grande recepção em casa de um marquês a quem diversos incidentes não perturbam. O homem convidado esbofeteia a marquesa, depois toma a sua filha. Ele leva ao suicídio um ministro que lhe telefonou. A jovem o deixa para beijar o velho maestro que dá um concerto no parque. Desespero do amente. Para concluir, o Duque de Blangis, herói criminoso de Sade, aparece com as feições de Jesus Cristo.

Uma obra prima pela violência, pureza, frenesi lírico e absoluta sinceridade. A produção, financiada por um mecenas, o Visconde de Noailles foi concebida e realizada com toda liberdade. A parte de Buñuel foi essencial num filme onde se encontram quase todos os grandes temas de sua obra, e que inicialmente devia chamar-se Les eaux glacées du calcul égoiste (as águas geladas do cálculo egoísta), expressão do Manifesto Comunista.

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“Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.”

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Referindo-se a Sade, Marx, Freud, à ideologia surrealista, ele pretendia: “Enfraquecer a capacidade de resistência de uma sociedade em putrefação, que tenta sobreviver utilizando os padres e os policiais... A passagem do pessimismo à ação é determinada pelo Amor, que exige que se sacrifique tudo: situação, família e honra” (Manifesto surrealista de l’Age d’or). Simultaneamente com a exaltação do “amor louco”, o filme contém um simbolismo freudiano (provavelmente devido sobretudo a Dali), violentos ataques metafóricos à religião e à ordem social; os nobres convidados, com os rostos cobertos de mosca, indiferentes aos criados que ateiam fogo e aos operários que atravessam o salão; o guarda florestal matando uma criança; os esqueletos dos bispos sobre os rochedos. Como também diz o manifesto dos surrealistas: “As primeiras pedras se colocam, os tiras espancam como ocorre todo dia, no seio da sociedade burguesa, acolhidos pela mais completa indiferença”. L'âge d'or, apresentado à censura com o sonho de um louco, foi liberado, mas depois das primeiras exibições no Studio 28 as organizações fascistas destruíram a sala aos gritos de “Morte aos judeus”, e o filme foi proibido pelo prefeito de policia Chiappe. O filme é o testemunho de uma época e da revolta surrealista em 1930. (George Sadoul, Dicionário de filmes, p. 17, LPM, 1993)

Sobre o surrealismo

11/01/21

No Tempo dasDiligências, (Stagecoach), 1939, John Ford

Stagecoach no iutubi 

Por Ivanildo Pereira

John Ford uma vez descreveu a si próprio com a frase “Eu faço westerns”. Se levarmos essa declaração ao pé da letra, então tudo começou com No Tempo das Diligências. Trata-se não apenas de um dos mais importantes filmes da história do cinema americano, mas também do nascimento de um artista: afinal, o John Ford que faz westerns é quem nasce com ele.

Ford já era um cineasta veterano quando o fez, tendo se aventurado em diversos tipos de filme. Porém, quando se volta um pouco na carreira dele, percebe-se que o interesse no western estava meio presente, dormente, desde cedo: na época do cinema mudo, o diretor fez alguns trabalhos dentro do gênero. No Tempo das Diligências foi o seu primeiro western falado, e embora ele tenha continuado a se aventurar longe do seu gênero por assinatura, Ford definiu o western como ninguém antes dele. Depois da sua visão, o gênero nunca mais foi o mesmo. O Monument Valley, paisagem do Estado americano do Utah que serviu de cenário para o filme, e vários outros depois dele, pertencia a Ford. O western, por um tempo, pertenceu a ele.

É o caso raro de revolução dentro de um gênero cinematográfico, mas uma revolução impulsionada pela simplicidade. A história de No Tempo das Diligências é simples e básica: é a aventura de um grupo de personagens durante uma perigosa viagem a bordo de uma diligência a caminho de Lordsburg. Os personagens também são bastante simples, arquétipos, mesmo rasos. A bordo da diligência temos o condutor caipirão com sotaque exagerado (Andy Devine), o médico beberrão (Thomas Mitchell), o jogador galanteador e misterioso (John Carradine), o banqueiro ganancioso e que se acha superior a todos (Berton Churchill), o vendedor de temperamento dócil (Donald Meek), a mulher virtuosa e grávida que quer se reunir com o marido (Loiuse Platt) e uma prostituta com coração de ouro (Claire Trevor). Tentando trazer um pouco de ordem dentro do grupo, está o xerife (George Bancroft).

Embora os personagens sejam simples, capazes de ter sua personalidade descrita em poucas linhas e facilmente identificáveis graças a seus maneirismos e figurinos, vários deles acabam passando por pequenos arcos dramáticos durante a viagem. Alguns deles, ao final da jornada, não serão mais os mesmos que eram quando a iniciaram. Tudo porque, com cerca de 20 minutos de filme, entra em cena o catalisador da mudança, o personagem mais importante do filme. E que entrada: Ford aproxima, com um movimento de dolly, sua câmera do jovem John Wayne, segurando uma sela numa mão e girando um rifle na outra. É por ele, o Ringo Kid, que a diligência para, e a atenção do público de cinema parou também, para acompanhá-lo. Ainda o acompanhamos.

Aqui cabe um parêntese: Ford já conhecia o esforçado Wayne de muito tempo, quando ele ainda era um extra ou ator de faroestes “B”. Ele o conhecia mesmo quando Wayne ainda era Marion Morrison, seu nome verdadeiro. Com No Tempo das Diligências, Ford enfim fez do seu amigo um astro — neste filme, Claire Trevor ainda ficou com o “top billing”, ou seja, o nome mais alto nos créditos. Depois dele, e dessa entrada em cena, ninguém nunca mais ficaria acima de John Wayne novamente.

O Ringo Kid vai provocar mudanças dentro da dinâmica do grupo, principalmente por ser a figura mais interessante: apesar de possuir um bom coração, ele deseja chegar a Lordsburg para matar o homem que assassinou seu pai e seu irmão. Ringo é um fugitivo da lei, mas é o único dentro da diligência que trata Dallas, a “garota de saloon” feita por Trevor, com respeito e consideração. Os “enjeitados” se unem e o relacionamento entre os dois, que evolui para uma paixão, é retratado com ternura por Ford, Wayne e Trevor. Aliás, é curioso notar como, embora Kid seja o protagonista, Dallas é na verdade o “coração” do filme, e em certa medida os demais personagens também são definidos pela forma como a encaram. Graças à personagem, Ford e o roteirista Dudley Nichols conseguem introduzir na narrativa considerações interessantes e sutis sobre o papel da mulher dentro do universo western. Há um aspecto inegável de crítica social em No Tempo das Diligências, e é curioso ver como a diligência acaba se tornando uma espécie de microcosmo dos Estados Unidos, com diferentes facetas da sociedade americana sendo expostas nela.

No entanto, apesar de tudo isso, o longa virou mesmo um clássico e divisor de águas dentro do gênero por dois motivos centrais. O primeiro é a ação: o clímax do filme é simplesmente a melhor cena de ação que o cinema já tinha visto até então, o momento no qual a diligência, cada vez mais dentro do território perigoso, é atacada pelos índios. É a deixa para Ford criar um momento capaz de empolgar mesmo os espectadores de hoje: ele filma seus atores em frente a uma back-projection — a ação projetada numa tela — enquanto as façanhas mais espetaculares ficam a cargo do lendário dublê Yakima Canutt, que pula entre os cavalos da diligência dublando o herói de Wayne, e depois arrepia a todos passando por baixo dos cavalos e da diligência ao interpretar um índio. A cena se move numa velocidade tão alta que Ford até se empolga e viola a regra dos 180 graus em alguns momentos, fazendo a diligência se mover tanto da esquerda para a direita quanto da direita para a esquerda. Mas quando vemos os cavalos passando por cima da câmera, um dos grandes contra-plongés do cinema, tudo é perdoado em nome da empolgação…

O outro motivo pelo qual No Tempo das Diligências superou todos os westerns até então é o seu aspecto mitológico. Antes de Ford e do seu filme, o Velho Oeste americano era, sim, cenário de aventuras, mas sem a conotação mitológica que acabou tendo depois de ambos. O Velho Oeste pós-John Ford era um lugar de emoções tão vastas quanto as paisagens, onde homens muito justos lutavam contra outros muito ruins. Nada exemplifica melhor isso do que o final do filme, quando o xerife libera Ringo Kid para cumprir seu objetivo porque, dentro da história, ele reconhece que outro tipo de justiça precisa ser servido, e por um momento nós acreditamos nisso.

Perceba como a “vingança” de Ringo não é realmente um ato perverso, pois o vilão usa um rifle no duelo desigual. É menos uma vingança do que uma luta entre Davi e Golias, com espingardas e pistolas. O Velho Oeste de Ford é um de lendas, irreal mesmo, mas um lugar ao qual cinéfilos e fãs do mundo todo ainda gostam de retornar. Aqui é onde o cinema superou a realidade: muita gente hoje acredita mais nos mitos e lendas do Oeste de John Ford do que nas histórias reais do período. E tudo começou com No Tempo das Diligências, o filme que marcou o instante no qual um artista pegou um gênero popularesco e o transformou em poesia, em força imagética, “no material do qual sonhos são feitos”. Ele fazia westerns mesmo.

13/01/2021

Gaslight (A meia Luz), 1940, Thorold Dickinson

A bela e ingênua Paula Alquist (Ingrid Bergman) conhece o vivido Gregory Anton (Charles Boyer) e, após um curto namoro, se casam eles e passam duas semanas de lua-de-mel na Itália, onde Paula estudou ópera. Voltando a Londres, o casal se muda para a casa de uma tia de Paula, que foi uma famosa estrela de ópera e que também foi morta misteriosamente, sendo que Paula encontrou seu corpo quando ainda era criança. Entre os criados há Elizabeth Tompkins (Barbara Everest), que cozinhou para a família durante anos, e Nancy Oliver (Angel Lansbury), uma empregada que se insinuou para Gregory no minuto em que ele entrou na residência. Gregory logo ordena que a parte de cima da mansão seja lacrada e explica a Paula, que este ato é para o próprio bem dela, pois foi lá que sua tia foi assassinada. A partir de então Paula começa a perder coisas, sendo que Gregory fala para ela que seus lapsos de memória estão começando a perturbar a vida social deles. Ele revela a outros que a mãe de Paula morreu em um manicômio. Em uma reunião social onde Gregory reprova Paula pelo comportamento irregular dela, ambos são observados por Brian Cameron (Joseph Cotten), um detetive da Scotland Yard que se interessa pelo casal e começa a fazer investigações sobre o assassinato não solucionado da tia de Paula. Miss Thwaites (May Whitty), uma fofoqueira, dá informações sobre os hábitos do casal, o que aumenta as suspeitas de Cameron em relação a Gregory. Cameron tenta ver Paula em particular, mas é impedido várias vezes por Gregory, que está sempre alerta. Quando Cameron tem finalmente êxito, ela está à beira de um colapso nervoso. Paula explica que ela nota que a luz de gás nos quartos dela fica instável e diminuta, mas ninguém mais nota isto e ela acredita que é outra alucinação. Enquanto falam a luz de gás escurece e Cameron confirma isto. Ele então acha coisas perdidas por Paula, trancadas na escrivaninha do marido dela, juntamente com uma carta que Gregory aparentemente escreveu há vinte anos atrás para a tia assassinada de Paula. 

14/01/2021

A morte espera no 322, (Pushover),1954, Richard Quine

Pushover no iutube 

                                                                     Kim Novak (1933)

A Morte Espera no 322, no original Pushover, de 1954, é muito menos conhecido, falado, lembrado do que deveria. Jamais tinha ouvido falar dele, apesar de gostar especialmente do cinema americano dos anos 30 a 60, e tenha uma predileção pelo film noir. Pushover é absolutamente noir. Foi realizado por um diretor de respeito, Richard Quine, embora talvez mais conhecido pelas comédias elegantes (Jejum de Amor, 1955, Quando Paris Alucina, 1964, Como Matar Sua Esposa, 1965) e dramas e/ou melodramas românticos (O Nono Mandamento, O Mundo de Suzie Wong, os dois de 1960).

Tem uma abertura espetacular, uma trama interessantíssima, fascinante, e ótimas interpretações. É um belo thriller. E ainda por cima é o filme que introduziu Kim Novak às platéias de cinema, o primeiro filme dessa mulher de beleza fenomenal que já começou com tudo e nos primeiros quatro, cinco anos da carreira se firmou como uma das maiores estrelas de Hollywood. O filme começa de maneira magistral. Um guarda armado está chegando a uma agência do Bank of South California, de manhãzinha. Tira do bolso a chave para abrir a porta da agência – e nesse exato momento é dominado por dois homens armados.

O assalto começa antes de se iniciarem os créditos. Os dois bandidos já estão dentro do banco quando vemos os créditos iniciais. “Introducing Kim Novak”, dizem eles. Naquela época, os créditos eram bem rápidos, e então eles terminam ainda durante o assalto. Nem uma única palavra é pronunciada ao longo dos 4 primeiros minutos do filme, o tempo que se leva para mostrar o assalto. Os dois bandidos estavam já com uma fortuna dentro de uma maleta, prontos para sair do banco. O guarda, no último momento, tenta tomar o revólver de um dos ladrões. O outro ladrão o executa com tiros certeiros.

Corta, e é como se outro filme estivesse começando.

A câmara mostra o movimento junto a uma sala de cinema que está exibindo The Nebraskan, no Brasil O Valente de Nebraska, um western lançado um ano antes do próprio Pushover, em 1953. Uma jovem e bela mulher, extremamente jovem e extremamente bela, sai do cinema. É loura, tem o cabelo bem curto. Usa um casaco de pele daqueles que berram que custam os olhos da cara. Dirige-se a seu carro, estacionado ali perto. Gira a chave, e ouvimos aquele barulho de motor que não quer pegar. Gira de novo, e é o mesmo barulho. Um homem de terno, gravata e chapéu – ou seja, vestido igual a praticamente todos os homens daquela época – se aproxima dela, diz que o carro pode estar afogado, se oferece para ajudar. Os dois já haviam se visto no cinema. Ela diz que o viu, ele diz que a viu também.

A loura desliza para o banco do carona, e o homem – interpretado por Fred MacMurray, então com 46 anos, mas com aquela aparência de mais velhos que os homens tinham nos anos 30 a 50 – se senta ao volante. A jovem loura (Kim Novak tinha ridículos 20 anos de idade durante as filmagens de Pushover) olha para ele sem temor algum, sem demonstrar que está preocupada com a possibilidade de aquele desconhecido tentar alguma coisa, dar uma cantada, o que for. O homem não consegue fazer o carro pegar, e diz que vai olhar o motor. Abre o capô, dá uma observada, diz que não está afogado, deve ser outro problema.

A loura pergunta se ele tem alguma sugestão. Ele tem, é claro: há uma oficina ali perto. Ela poderia pedir ao mecânico para dar uma olhada no carro, e esperar por uma resposta dele num bar que também ficava ali perto. A loura diz que se sentiria mais segura se o homem a acompanhasse. Nesse momento, fiquei pensando: mas diabo, como é possível que um avião desses, aquela Kim Novak toda, esteja dando tanta bola pra um sujeito feio que nem Fred MacMurray?

Mas na mesma hora me lembrei que a personagem de Barbara Stanwyck também deu bola para o dele, em Pacto de Sangue/Double Indemnity (1944). E que em Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment o personagem dele comia o da jovem e lindinha Shirley MacLaine. As personagens femininas de filmes de Fred MacMurray são muito mais surpreendentes do que poderia sonhar a nossa vã filosofia, Horácio.

O filme rapidamente revela que aquele sujeito é um policial

Daí a pouquinho, o mecânico aparece no bar em que Paul Sheridan está bebendo com a jovem e deslumbrante Lona McLane, para dizer que não tinha conseguido consertar o carro; terá que rebocá-lo para a oficina, para examinar melhor o motor. Lona pergunta se Paul pode levá-la para casa. Ele faz aquela pergunta de tantos filmes: – “Your place or mine?” A sua casa ou a minha? E ela, em 1954, na profundeza dos caretas, forçadamente pudicos anos 50, em plena vigência do Código Hays, o manual de autocensura dos grandes estúdios, e suas regras rígidas a respeito do relacionamento entre homens e mulheres, responde apenas com um “Surprise me”.

Vai demorar um bom tanto até o espectador ter a confirmação de algo que ele pode ter começado a suspeitar desde o início: sim, Paul Sheridan mexeu no motor do carro de Lona McLane para que ele não pegasse. Antes de entrar no cinema, logo depois dela, ele abriu o capô e mexeu num carburador, ou coisa parecida. O que não demora nada, o que vem logo depois desse encontro do sujeito de meia-idade com a jovem loura, é a revelação de que Paul Sheridan é policial. E a polícia sabe que Lona McLane é a amante, teúda e manteúda, do conhecido bandido Harry Wheeler (Paul Richards), o homem que, segundo as descrições das testemunhas, havia assaltado o banco, levado a grande fortuna de US$ 210 mil e ainda assassinado um guarda.

O IMDb, o site mais enciclopédico que existe sobre cinema, e cuida de todo tipo de detalhe, especificou que, em valores de 2017, aqueles US$ 210 mil que Harry Wheeler levou do Bank of South California seriam quase US$ 2 milhões. Pouco mais de one point 9 million, como se diz lá.

Um estudo sobre a tentação – o marinheiro diante da sereia, o pato diante da femme fatale

O plano do tenente de polícia Carl Eckstrom (o papel de E.G. Marshall), o encarregado do caso do roubo do banco, é simples: vai botar vários policiais de campana junto ao prédio de apartamentos em que vive Lona McLane, à espera do momento em que Harry Wheeler apareceria lá para ver sua linda amante. Algum dia ele iria inevitavelmente aparecer, raciocina o tenente.

Um policial ficará num carro estacionado nas proximidades da entrada principal do prédio, o do número 322 do título escolhido pelos exibidores brasileiros, A Morte Espera no 322. Dois outros policiais ficarão em um apartamento no mesmo prédio, em outro bloco, de onde dá para observar os movimentos dentro do apartamento que Harry Wheeler custeia para a jovem amante. Um ficará observando os movimentos da moça – a dame, a broad, como dizem os policiais –, com um binóculo, enquanto o outro cuida do gravador que registra tudo o que se fala no telefone dela. O policial Paul Sheridan vai ficar olhando, através de um binóculo, para todos os movimentos da mulher deslumbrante que deu para ele.

É uma maravilha de sacada de quem criou a história.

A tentação, essa coisa fascinante e pavorosa. A sereia. O fruto proibido – proibido mas belíssimo, apetitoso, chamativo. Pushover é um belo filme sobre a tentação. Morri de pena desse pobre Paul Sheridan, policial veterano, ficha imaculada, ali exposto à tentação, diante dos olhos do espectador. Nesse ponto, Paul Sheridan se aproxima bastante de Walter Neff, o vendedor de seguros interpretado pelo mesmo Fred MacMurray em Pacto de Sangue/Double Indemnity. Exatamente como Walter Neff, Paul Sheridan não estava procurando problema, sarna para se coçar, mulher irresistivelmente bela que representasse a Tentação em si, o suco concentrado da Tentação. De forma alguma. Recebeu ordens de se aproximar – sem, obviamente, revelar sua condição de policial – da amante do bandido procurado. Recebeu ordens, e obedeceu. Cumpriu o que lhe foi determinado. Aí pronto. Estava diante da Tentação. Eva e Adão diante da Maçã. O navegante solitário ouvindo o canto da sereia. O pato diante da femme fatale.

Os guias confirmam que o filme não teve grande reconhecimento

Leonard Maltin confirma meu pressentimento, minha sensação de que o filme não teve o reconhecimento que merecia. Tachou o filme com apenas 2.5 estrelas em 4, e sequer se deu ao trabalho de informar que aquela foi a estréia de Kim Novak: “MacMurray é tira que se apaixona pela boneca de gangster Novak; bom elenco cobre campo conhecido.” Também confirmando essa minha sensação, o monumental Guide des Films de Jean Tulard não traz o filme entre os 15 mil que comenta. E Le Petit Larousse des Films, um guia que me encanta a cada nova consulta, dedica a ele três rápidas linhas de sinopse que revelam mais do que deveriam sobre a trama.

O livro The Columbia Story tem a obrigação de falar de Kim Novak – e fala: “Em Pushover, Kim Novak, que o estúdio estava preparando para ser uma nova Marilyn Monroe (eles poderiam ter tido a original, se Harry Cohn não tivesse desistido do contrato dela), fazia um papel não muito diferente do de Barbara Stanwyck no muito superior Double Indemnity (Paramount, 1944).” Em seguida o livro conta mais da trama do que é necessário – bem mais do que relatei aí acima – e conclui dizendo que o elenco de apoio, de primeiro nível, incluía Phil Carey, Dorothy Malone e E.G. Marshall. É inevitável lembrar de Pacto de Sangue/Double Indemnity. Escrevi sobre as semelhanças com ele duas vezes antes de ler o verbete do The Columbia Story. Não acho, no entanto, que seja o caso de fazer comparação entre os dois em termos de qualidade, usar um para falar mal do outro. Claro que Pacto de Sangue é um filme superior a este aqui – é um dos maiores clássicos do filme noir de todos os tempos, um dos mais belos filmes do cinema americano em geral.

E, sobretudo, são histórias diferentes demais, personagens diferentes demais. Só o fato de o protagonista, esse pobre Paul Sheridan, ser um policial, um homem da lei, e um bom homem da lei, já torna a trama distinta, diferente da do grande filme de Billy Wilder. A situação de Paul Sheridan é ainda mais difícil que a de Walter Neff. A tentação de passar para o outro lado da lei é ainda mais aflitiva, angustiante, apavorante.

A mulher do bandido é loura, linda e sensual – mas não é fria, calculista, criminosa

Em seu interessante livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o estudioso carioca A. C. Gomes de Mattos afirma que Lona “não é uma verdadeira mulher fatal no sentido noir, de uma assassina fria e calculista”. É a mais absoluta verdade. A Lona McLane de Kim Novak é loura e bela e sensual como a Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck, e também como a Cora Smith de Lana Turner em O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice (1946). É loura e bela e sensual como as duas que vieram antes dela – e, como suas antecessoras, é a Tentação em estado puro, a Tentação concentrada.

Mas, como bem diz Gomes de Mattos, não é, de forma alguma, uma assassina fria e calculista. É apenas a mulher de um bandido. Que de bandida não tem nada – a ponto de se apaixonar verdadeiramente pelo homem mais velho que aparece em sua vida. Há um diálogo impressionante entre Paul e Lona, quando ela o confronta dizendo que já sabe que ele é um policial – e, a princípio, ele tenta negar, diz que muito ao contrário, ele é amigo de Harry Wheeler, e Harry pediu a ele para vigiar a amante.

Paul, o policial até então absolutamente honesto, pergunta: – “Se você soubesse de onde vinha o dinheiro, você teria aceito?”

E ela, a femme fatale que é fatale mas não é fria nem calculista, a ponto de se apaixonar pelo homem que ela tenta: – “O dinheiro não é sujo. Só as pessoas.”

Em seu livro, Gomes de Mattos relata todos os pontos básicos das tramas dos filmes noir que comenta. Não transcrevo aqui mais trechos do que ele diz porque seriam spoilers, mas registro o final de seu verbete: – “A direção de Quine distingue-se pelo seu rigor e unidade dramática e bons efeitos de suspense burlam a expectativa de acontecimentos, que a gente prevê, mas que se desenrolam de maneira diferente.” De novo, Gomes de Mattos acerta perfeitamente. Em especial depois da metade dos curtíssimos 88 minutos do filme, o espectador prevê o que deverá vir, e muito do que ele prevê vem, sim – mas não exatamente como a gente poderia imaginar. A rigor, de forma surpreendente.

Que ser humano não se desmancharia por aquela jovem Kim Novak?

Vejo, depois de anotar tudo o que vai aí acima, que, no cartaz americano original, há uma frase, uma tagline, que é como um subtítulo: “The story of tentation”. Corretíssimo. Pushover – a história da tentação. Vejo também que os exibidores portugueses encontraram um título perfeito para o filme: Tentação Loira. Já o escolhido pelos exibidores franceses, esse é esquisito: Du Plomb pour L’Inspecteur. Chumbo para o inspetor. Esquisito.

Não conhecia a palavra que é o título original, Pushover. Pessoa fácil de conquistar ou seduzir. Algo fácil de fazer ou vencer – barbada. O dicionário da Longman dá um exemplo: “Charles is a pushover for girls with blue eyes”. Charles se desmancha por garotas de olhos azuis. Que ser humano não se desmancharia diante daquela Lona McLane que vem na pele de Kim Novak aos 20 aninhos de idade?

Juro que há no filme alguns closes do rosto de Kim Novak em que ela parece ainda não estar tão absolutamente, absurdamente, insanamente bela quanto apareceria em alguns dos filmes que fez logo depois – Férias de Amor/Picnic (1955), Melodia Imortal/The Eddy Duchin Story (1956), Meus Dois Carinhos/Pal Joey (1957) e, é claro, é óbvio, Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958).

Fiquei com a sensação de que, depois dessa estréia dela em Pushover, a Columbia Pictures investiu em alguma coisa para melhorar o que Deus já havia feito com perfeição – um dos rostos mais lindos que já passaram diante de uma câmara de cinema, uma coisa assim que só poderia ser comparada a Ingrid Bergman, Grace Kelly, Ava Gardner. Não sei bem o que poderiam ter mexido. Algo nos dentes, talvez? Não eram comuns, naqueles meados de anos 1950, as intervenções de cirurgiões plásticos. E não é uma mudança grande que ocorreu – mas fiquei pensando que podem ter feito alguma coisinha.

O chefão da Columbia investiu tudo para transformar aquela jovem em grande estrela

Marilyn Pauline Novak (pois é, o primeiro nome dessa moça nascida em Chicago em 1933, de um casal de professores, perfeita classe média da grande metrópole, é exatamente esse aí) foi uma das últimas estrelas criadas, inventadas, fabricadas pelos grandes estúdios. Talvez a última grande.

Conta o livro Leading Ladies que a jovem Marilyn Pauline tinha 12 anos quando venceu um concurso de beleza patrocinado por uma marca de geladeiras. Atravessou então o país rumo a Hollywood, onde, anos mais tarde, um teste chamou a atenção do Harry Cohn, o chefão da Columbia. Cohn estava procurando uma beleza jovem para ir tomando o lugar da sua grande estrela Rita Hayworth e enfrentar a novata em que a 20th Century Fox vinha investindo muito, Marilyn Monroe, “Ela concordou em mudar seu primeiro nome, mas, apesar dos protestos de Cohn, de que Novak era muito étnico, ela se recusou a mudar o nome de família.”

Contrato assinado, a moça, pouco mais que uma menina, fez seis filmes no período de dois anos, de 1954 a 1956. “Por volta de 1956, tinha se transformado em uma das mais populares estrelas do cinema americano”, diz o livro Leading Ladies. “Seu papel de Madge em Picnic tem sido muitas vezes citado como um perfeito exemplo de mistério indefinível que realça as interpretações da atriz. Em um momento, ela é a segura deusa do sexo, para, no momento seguinte, parecer uma garotinha perdida da cidade pequena que protesta: ‘Estou tão cansada de me dizerem que sou bonita!’”

Em 1955, fez O Homem do Braço de Ouro, ao lado de Frank Sinatra, sob a direção firme, prussiana, de Otto Preminger – um baita drama que ousava mostrar abertamente o vício em drogas pesadas entre músicos de jazz. De novo com Frank Sinatra, e ao lado da então pós balzaquiana Rita Hayworth que ela vinha substituir, fez Meus Dois Amores/Pal Joey, uma comedinha musical gostosa e leve como a pluma. Para aí então, em 1958, fazer o papel duplo no mais extraordinário de todos os grandes filmes do mestre Alfred Hitchcock.

O talento da atriz acaba ficando em segundo plano diante da beleza da estrela

Em 2000, escrevi sobre Vertigo para uma coluna que tinha na Agência Estado, chamada “O Melhor do DVD”. Eu já havia escrito antes sobre o filme, em anotações feitas para mim mesmo, e numa delas, em 1997, tinha cometido a seguinte frase: “Como o velho Hitch conseguiu dirigir bem a Kim Novak! Ela nunca foi boa atriz, se é que não estou louco. Mas aqui no filme ela está esplêndida, sensacional; ela é duas pessoas diferentes, primeiro Madeleine e depois Judy, Madeleine uma mulher rica, cosmopolita, de gestos elegantes, Judy uma moça humilde do interior do Kansas, com um jeito quase vulgar. Ela consegue ter duas vozes diferentes, dois sotaques diferentes. É absurdamente talentoso o trabalho dela. Isso sem falar, é claro, da beleza estonteante, da sensualidade, da absurda sensualidade do andar, do olhar.”

“Ela nunca foi boa atriz”, afirmei, no texto que escrevi apenas para mim mesmo, em 1997. Em 2000, para a coluna da Agência Estado, me penitenciei por ter feito aquela afirmação absurda: “A atriz escolhida pelo mitológico diretor para os papéis-chave de Madeleine e depois Judy era Vera Miles (que havia acabado de trabalhar com ele em O Homem Errado, de 1957, e voltaria a trabalhar de novo em Psicose, em 1961). Vera Miles fez os testes com as roupas criadas pela também lendária Edith Head para a personagem de Madeleine, e chegou a ser feito um quadro de Carlotta Valdes com o rosto da atriz – o quadro é mostrado no documentário. O início das filmagens se atrasou, Vera Miles ficou grávida e Kim Novak pegou o lugar.

“Nada contra Vera Miles, que é uma atriz muito boa e é uma mulher bonita. Mas que abençoada gravidez, a dela. Porque Kim Novak era muito mais que bonita; tinha uma beleza estonteante, acachapante – e é uma das responsáveis pelo fato de o filme ser uma das maiores obras-primas do cinema.

“Kim Novak é de fato duas pessoas inteiramente diferentes, Madeleine e Judy. Madeleine é aquela mulher rica, cosmopolita, de gestos elegantes, de uma sensualidade sempre presente, mas contida. Judy é uma moça humilde do interior do Kansas – “Salinas, Kansas”, ela diz, várias vezes -, com um jeito quase vulgar, ou até escancaradamente vulgar. Kim Novak consegue ter duas vozes diferentes, dois sotaques diferentes, dois andares diferentes, dois olhares diferentes. Um espanto.”

Por todas as muitas qualidades que tem, este Pushover, Tentação Loira em Portugal, Du Plomb pour l’Inspecteur na França, A Morte Espera no 322 aqui, deveria ter sido visto com mais atenção. Como foi o filme que introduziu Kim Novak, então, é absurdo que ele não tenha tido a consideração que merece. O eventual leitor pode ver o filme a hora que quiser. Ele está disponível em um canal do YouTube chamado Cine Antiqua. Com legenda e imagem e sons muito bons.


16/01/2021

A voz suprema do blues (Ma Rainey’s botton), 2020, George C. Wolfe

A Voz Suprema do Blues: Um bom filme com grandes atuações

Por Barbara Demerov

A Voz Suprema do Blues, filme póstumo estrelado por Chadwick Boseman (Pantera Negra), é aquele tipo de produção que possui uma história com menos brilho quando comparada às atuações de seu elenco. A comovente performance de Boseman é o que traz vida à trama - que ainda conta com outra grande atriz ao seu lado: a vencedora do Oscar Viola Davis. São dois atores que tomam os holofotes individualmente, já que dividem pouco a tela.

Dirigido por George C. Wolfe, que realizou diversos trabalhos na Broadway e já venceu um Tony, A Voz Suprema do Blues entrega uma ambientação enérgica e ao mesmo tempo acolhedora. Em meio aos anos 20, regado pelo som do blues e com o racismo disfarçado de boas intenções, o longa se passa no espaço de uma tarde de calor em Chicago, durante a gravação de um álbum da cantora Ma Rainey (Davis, praticamente irreconhecível no papel). A personalidade forte da artista pode ser percebida desde os primeiros momentos do filme, quando se apresenta no palco ao lado de sua banda.

Mesmo sendo história baseada em figuras reais - especialmente Ma Rainey -, A Voz Suprema do Blues não tem caráter absolutamente biográfico. Afinal, o roteiro se aproveita de um pequeno recorte temporal e de Rainey em si para, então, chegar ao seu cerne: discutir o racismo emaranhado no meio artístico. As discussões, contudo, acontecem apenas entre os personagens negros e são todas encabeçadas pelo personagem de Boseman, Levee. Sonhador e de personalidade forte, o trompetista é apaixonado por música e mergulha fundo em seu sonho de se tornar mais reconhecido.

Este desejo profissional é justamente o que mais movimenta as discussões, sempre calorosas dentro da pequena sala de ensaios. E, pouco antes de começarem a gravação do álbum de Rainey, até mesmo o modo como Levee é respeitoso com o chefe (branco) do estúdio é motivo para a banda questionar o papel do jovem músico para a comunidade negra. São cenas como essas, muito bem dirigidas e que aproveitam bem o espaço utilizado, que enfatizam o poder do roteiro de A Voz Suprema do Blues.

Drama tem traços de teatro e possui monólogos poderosos de Chadwick Boseman

Apesar de ser um filme de época nos aspectos visuais e técnicos, a obra - baseada em uma peça - ganha traços teatrais muito fortes graças aos diálogos e à atenção dada às emoções. E quantas emoções. Boseman entrega dois monólogos tão potentes e dramáticos que seu personagem cresce a ponto de se equiparar (ou até mesmo superar) a presença de Davis no papel principal. Quando lembramos do estágio de seu câncer à epoca das filmagens deste filme, as palavras que fala com tanto vigor ganham múltiplas interpretações.

O texto de A Voz Suprema do Blues apresenta bem os dois personagens de mais destaque, Levee e Rainey. No entanto, o restante do elenco apenas orbita dentro daquele espaço de gravação em prol da ação destinada particularmente à dupla. O movimento de ação e reação após grandes momentos e discursos impacta, sobretudo no terceiro ano, mas o filme como um todo soa inconclusivo, incompleto mesmo diante de palavras tão absolutas.

Por ter como foco questões micro, detalhadas dentro de problemas enraizados na sociedade, o macro (a casca da história) acaba perdendo um pouco de sua força. Chadwick Boseman é a alma deste filme e até mesmo Viola Davis - que deve garantir uma indicação ao Oscar ao lado do ator - se torna, em partes, uma coadjuvante. Aqui são as palavras que ditam as ações, não o contrário. E é justamente por isso que A Voz Suprema do Blues ganha mais destaque por suas particularidades, mas não tanto pela trama em si.

17/01/2021

Fogueira de paixão (Possessed), 1947, Curtis Bernhardt

“’ Eu te amo’ é uma forma tão inadequada de dizer eu te amo”, murmura a apaixonada Joan Crawford a seu namorado (Van Heflin). Quando ele, que é engenheiro e também um empedernido conquistador, observa, num trecho de êxtase tecnológico, que a viga-mestra por ele projetada é mais bonita que a Srta. Crawford, ela se queixa: “Porque você não me ama assim? Eu sou muito mais bonita que uma viga-mestra”. Heflin não consegue ser da mesma opinião, e logo, em desespero, ela se casa com Raymond Massey, um figurão do petróleo, pai de uma filha esperta (Geraldine Brooks). Ver Heflin apaixonar-se pela enteada revela-se demais para Crawford, que desaba com um caso de esquizofrenia que realmente abala as paredes do sítio de Massey, e aí é rebocada pelos psiquiatras. Em termos de suspense, este filme, dirigido por Curtis Bernhardt, é muitas vezes impressionante, e ele e seu elenco dão o melhor de si. A insanidade é usada, à típica maneira da Hollywood da década de 40, como pretexto para carregar no dramalhão; não há um pingo de credibilidade – é isso em parte que torna o filme divertido.

... O roteiro de Sylvia Richards e Ranald MacDougall baseou-se em One man’s secret, de Rita Weiman. (Pauline Kael, 1001 filmes no cinema, p. 191, Companhia das Letras, 1994)

18/01/21

Tightspot (Ratos humanos), 1955, Phil Karlson

Ratos humanos no iutubi 

PHIL KARLSON DEMONSTRA VIGOR E COMPETÊNCIA NO 'B' "RATOS HUMANOS"

José Eugenio Guimarães éZootecnista, Cientista Social e Cinéfilo

O promotor Lloyd Hallett (Edward G. Robinson) tenta tirar de circulação o gângster Benjamin Costain (Greene). Seu último trunfo é o testemunho da presidiária Sherry Conley (Ginger Rogers). Em torno dela se desenrolam os acontecimentos de Ratos humanos (Tight spot, 1955). É realização de pegada noir, intensamente dialogada e praticamente ambientada nos reduzidos espaços de um quarto de hotel. O tom claustrofóbico obriga os atores a intensa interação. Este é o ponto alto deste filme de baixo orçamento que nada fica a dever em vigor e dinamismo aos congêneres desenvolvidos com aportes financeiros mais generosos. O diretor Phil Karlson sempre transitou nas produções 'B', geralmente westerns, criminais e suspense. Preferia as temáticas cruas, levadas a termo com a rapidez e fluência do melhor jornalismo policial, como Ratos humanos. Pena que filmes assim — econômicos, dinâmicos e sem firulas — não sejam mais realizados. Duro é acreditar que a personagem interpretada por Ginger Rogers seja uma jovem com a metade da idade que tinha a atriz no momento da realização. Mas Billy Wilder já a deixou em situação parecida com A incrível Suzana (The major and the minor), realizado 13 anos antes.

Ratos humanos é filme ‘B’ de padrão ‘A’ dirigido por um especialista. Alguns o consideram a melhor realização de Phil Karlson, também lembrado pela categoria que imprimiu a outros trabalhos menores como Pista cruenta (The Iroquois trail, 1950), O manto da morte (The Texas Ranger, 1951), Os quatro desconhecidos (Kansas City confidential, 1952), Traição heróica (They rode West, 1954), Cidade do vício (The Phoenix City story, 1955), Talhado para campeão (Kid Galahad, 1962), Fibra de valente (Walking tall, 1973) e Madrugada da vingança (Framed, 1975).

Karlson começou carreira cinematográfica na Universal, nos anos 30, fazendo de tudo um pouco. Envolveu-se tão seriamente com a atividade a ponto de esquecer o curso de Direito. Antes de se tornar diretor foi montador, criador de piadas para Buster Keaton, assistente de direção nas comédias de Abbott & Costello e nos westerns em série estrelados por Tom Mix em fim de carreira. A estreia na direção aconteceu em 1944, na diminuta Monogram, com a comédia A wave, a WAC and a marine. Realizou outros 13 filmes para a companhia. Daí em diante se consolidou nos B movies, de preferência em westerns, policiais e filmes de suspense. Segundo afirmou, preferia as temáticas cruas, que frequentavam as páginas de crime dos jornais. Conheceu o auge nos anos 50. Na década seguinte dirigiu Dean Martin em O agente secreto Matt Helm (The silencers, 1966) e Arma secreta contra Matt Helm (The wrecking crew, 1968), tentativas mal sucedidas de aproveitar o sucesso de James Bond.

Ginger Rogers, 44 anos, distante do período em que conheceu o sucesso nos musicais em parceira com Fred Astaire, interpreta Sherry Conley em Ratos humanos. Em torno dela se desenrolam os acontecimentos nesse filme de pegada noir, intensamente dialogado e praticamente ambientado em interiores, principalmente nos reduzidos espaços de um quarto de hotel. O tom claustrofóbico obriga os atores a uma intensa interação. Nesse jogo, Ratos humanos apresenta o que tem de melhor, mesmo sendo difícil fazer de conta que a personagem de Rogers tenha 20 anos menos que a idade declarada da atriz.

Apesar de jovem, Sherry Conley acumula experiência. Segundo conta, aprendeu cedo a conhecer a vida: aos 16 anos, como modelo. Não tardou a dar o mau passo e se perder, envolvendo-se com a gang do mafioso Benjamin Costain (Greene), alvo da investigação do promotor Lloyd Hallett (Robinson), que pretende deportá-lo. Difícil é reunir testemunhos. O último, Pete Tonelli (Alfred Linder – não creditado), sob proteção policial, foi assassinado ao entrar no tribunal. Com essa morte, precedida de rápidas explicações, o filme começa de maneira eficaz e vibrante. É exemplo do que se pode fazer com poucas tomadas à base de planos condensados encadeados com rapidez.


Sem Tonelli, Hallett apela para a presidiária Sherry Conley. Sob escolta policial, é retirada da prisão e levada a um quarto de hotel no qual terá a companhia de Willoughby (Anderson) — agente penitenciária boa praça e mãe dedicada, que goza da estima de Sherry — e Vince Striker (Keith) — detetive de traços duros, poucas palavras e dúbio segundo a boa cartilha do noir. Rolará, evidentemente, uma atração entre a irrequieta e “faminta” personagem de Rogers e Striker.

Inutilmente, Hallett tenta convencê-la a depor contra o gângster. Apelos ao civismo e à boa consciência da jovem não funcionam, nem benefícios como a redução da pena. Sherry se mantém fiel ao próprio lema: “Não seja voluntária, para nada!”. Ainda mais com o risco de ser assassinada.

Mas Costain conta com ampla rede de informações, inclusive na polícia. Sabe que seguro morreu de velho. Prefere não se arriscar com Sherry. Tenta eliminá-la quando estava a caminho do hotel. A segunda tentativa também falha, graças à intervenção de Striker. Na troca de tiros Sherry sai ferida superficialmente. Mas a generosa Willoughby é mortalmente atingida.

A morte de Willoughby abala as convicções de Sherry. Mas será um “golpe” de Hallett que a convencerá terminantemente a depor: a visita da irmã Laura (McVeagh). Procura-a por motivos inteiramente egoístas. Em nome deles, tenta convencê-la a não testemunhar. É a gota que faltava! A sequência do diálogo áspero entre as irmãs é um dos trunfos de Ratos humanos. Outro bom momento é a dança da carente Sherry com Striker. Mais adiante, a dubiedade do detetive fica clara. Está na folha de pagamento de Costain. Se não pode colaborar de pronto na eliminação da testemunha, foi por falta de condições que não o incriminassem. Nos momentos finais, aturdido pela crise de consciência, morre ao salvar Sherry de mais um atentado. Striker cumpre, dessa forma, a trajetória moral que o conduz do pecado à redenção, mesmo pagando preço alto.

Ratos humanos permite boa fruição. É bem conduzido. A direção soube aproveitar, inclusive com humor, a tensão que emana do embate de personagens confinados em espaços reduzidos. As interpretações são afinadas, mesmo com Ginger Rogers não conseguindo disfarçar que é muito mais velha que sua personagem. Mas a narrativa poderia conter menos previsibilidade. O espectador atento, habituado aos clichês, reconhece o andamento no qual uma sequência ou uma fala permitem antecipar os movimentos seguintes. Apesar disso, cabe lamentar que filmes assim — econômicos, dinâmicos e sem enfeites — não sejam mais produzidos. 

20/01/2021

Kagi (Alucinação sensual), 1959, Kon Ichikawa


Perverso, no melhor sentido da palavra. Como tratamento de oportunismo sexual, lembra um pouco Pacto de sangue, mas infinitamente mais complexo. No início, um jovem médico, sensual e bonitão, vaidoso de suas proezas sexuais, nos diz que seu paciente, um homem idoso está perdendo a virilidade. E o velho curva-se e expõe as nádegas – para tomar uma injeção. Mas não consegue se tornar potente com a injeção, e por isso induz o jovem médico, que corteja a sua filha, a fazer amor com sua esposa. Observando-os, fazendo-se artificialmente ciumento, o velho consegue levantar um pouco o espírito. O engraçado, claro, é que a esposa, soberbamente interpretada por Machiko Kyô , é a esposa japonesa tradicional, obediente – e coopera com o plano do marido. Coopera tanto que, uma vez excitada pelo jovem médico, literalmente mata o velho marido de carinho – excita-o até a morte. É ao mesmo tempo um suicídio e um assassinato perfeito. O título – A chave – se encaixa no romance de Tanizake em que o filme se baseia, mas melhor seria se o filme se chamasse o buraco da fechadura. Todo mundo espiona todo mundo, e embora cada um esconda seus motivos e ações, ninguém se engana. A tela é o nosso buraco da fechadura, e nós somos os voyeurs que vemos todos se espionarem uns aos outros. Quando o velho faz fotos obscenas da esposa, entrega-as ao jovem para revelar. O jovem mostra-as à sua noiva, a filha, cuja reação é afirmar que pode fazer tudo que a mãe faz e um outro nível de ironia é o fato de que isto não é verdade – o filme é também uma devastadora sátira à jovem japonesa moderna ocidentalizada. Como a mãe, Machiko Kyô, com seus ombros macios e caídos e seu ritmado andar acolchoado, parece uma antiga fantasia erótica. Dirigido por Kon Ichikawa, este filme sobre pornografia seria quase perfeito se não lhe tivessem tascado um estúpido final (que não está no romance). (Pauline Kael, 1001 filmes no cinema, p. 256, Companhia das Letras, 1994)

Ervas flutuantes, (Ukikusa) 1959, Yasujirô Ozu



Machiko Kyô (1924–2019) e  Ganjirô Nakamura (1902–1983) protagonizam também o filme anterior, Kagi.  Haruko Sugimura (1909 - 1997) é uma atriz muito frequente nos filmes de Ozu, por exemplo Era uma Vez em Tóquio (1953)

Por Luiz Santiago 

Ervas Flutuantes (1959) é uma refilmagem de Yasujiro Ozu feita de um outro filme seu, Uma História de Ervas Flutuantes (1934), cujo roteiro escreveu com Kôgo Noda. Com outro elenco, nomes de personagens mudados e agora em cores, o filme tem exatamente a mesma premissa que a versão dos anos 30, elencando uma companhia de teatro itinerante que retorna a uma província (aqui) depois 12 anos para uma longa temporada. O chefe da trupe é Komajuro Arashi (Ganjirô Nakamura) e seu retorno a este lugar tem menos a ver com teatro do que com o passado vivido ao lado da proprietária de um bar local, aqui, vivida por Haruko Sugimura, atriz que já trabalhara antes com Ozu mas não na primeira versão de Ervas…

Nesta filmagem de 1959, Ozu certamente está mais maduro como diretor e consegue transmitir uma sensação de identidade ainda maior para esses atores e seu cotidiano no decorrer de uma temporada de apresentações. O ritmo tem uma maior alternância entre eventos mais intensos e mais calmos, com uma unidade bastante coesa na obra, pelo menos até a sequência final, que para mim foi um problema na versão de 1934 e continuou sendo um problema nesta versão, com seu tom excessivamente melodramático após uma longa narrativa de caráter mais simples e mais realista.

Isto aqui também é curioso porque se encontra na fase final da carreira do diretor ou, numa análise mais ampla, na Era dos filmes mais crus de Ozu no pós-guerra. Claro que o fato de ser um remake de outro momento de sua carreira tem um peso nisso, mas fica difícil ignorar o tom diferente do roteiro para aquilo que cineasta produzia no momento. Quando falo nisso, trago à tona a visão de “colapso de núcleos humanos” que vemos no longa, entre profissionais e familiares, mas o grande momento de diferença continua sendo o encerramento, inclusive com a manutenção da violência cometida por Komajuro e a relação complicada que ele tem com Sumiko (Machiko Kyô), submetida a uma verdadeira montanha-russa de emoções.

O grande fotógrafo Kazuo Miyagawa, frequente colaborador de Kenji Mizoguchi, foi o escolhido para iluminar a obra, o que resultou em um filme de fortes contrastes e bem mais escuro, tanto para internas quanto para externas, mergulhando os personagens em uma permanente melancolia, mesmo nas cenas mais ternas da película. Ervas Flutuantes é um exercício de convivência e mudanças. Nem sempre as reações das pessoas são aquilo que esperamos delas e nesta refilmagem, tal sensação fica ainda mais evidente. Emoções, compromissos e condições sociais são apenas alguns dos itens que formam a vida desses personagens, que os afetam e que são passageiros, como as ervas flutuantes do título. Como a vida de cada um de nós.




22/01/2021

The Search (Perdidos na tormenta), 1948, Fred Zinnemann

Tanto Marlon Brando quanto Montgomery Clift fizeram suas estreias na tela com o diretor Fred Zinnemann – Brando em Espíritos indômitos (1950) e Clift neste filme, de estilo quase documentário (usando os atores como se fossem temas de documentário e misturando-os com não-profissionais) num estúdio de Zurique e nos acampamentos da Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA em inglês), na zona da Alemanha ocupada pelos americanos. É sobre os terrores das crianças refugiadas da Segunda Guerra Mundial. Um grupo delas entra em pânico quando são postas numa ambulância da Cruz Vermelha, pois acham que estão sendo ludibriadas e entrando numa câmara de gás motorizada; um menino apavorado e sem poder falar (feito por Ivan’Jandl, de nove anos, natural de Praga) foge. No papel do soldado americano que encontra o menino, coloca numa ambulância, conquista sua confiança e faz com que ele volte a falar, Clift dá ao filme uma lufada de emoção. Sua gesticulação e ritmos vocais são diferentes da atuação a que os cinéfilos se acostumaram; ele é sensível e absorvente de uma maneira nova, estilizada, mas realista. O filme faz um corte transversal entre o que ocorre com o menino e as cenas de sua desesperada e persistente mão checa (feita pela cantora Jarmila Novtna) que se arrasta de acampamento em acampamento à procura do filho. A emoção se apodera de muitos espectadores, mesmo que o suspense manipulado e a apelação sentimental impeçam o filme de fazer qualquer justiça ao tema.

... Zinnemann trabalhava nos EUA desde 1930, mas muitas pessoas que viram o filme acharam que ele era um novo e brilhante diretor europeu, e a reputação dele estava feita. (Pauline Kael, 1001 filmes no cinema, p. 381, Companhia das Letras, 1994)

 

23/01/2021

This is not a burial, it’s a resurrection, 2019, Lemohang Jeremiah Mosese

Synopsis

In a small village nestled amongst the mountains of land-locked Lesotho, an 80 year old widow awaits the return of her only surviving family member: her son, a migrant worker labouring in a South African coal mine. It is Christmas and he is due home. Sombre messengers deliver the news: her son has died in a mining accident. Distraught by the sudden news of his untimely death, Mantoa struggles to find meaning in her existence.
An invisible wall of bewilderment arises and stands between Mantoa and the outside world. God, the village, and reality too, appear further and further away. Consumed by grief, her yearning for death and reuniting with her family steadily grows. She yearns to be laid to rest in the local cemetery with her loved ones.
Mantoa winds up her affairs early and makes arrangements for her own burial. Her plans are punctuated when she learns that the village is to be forcibly resettled due to the construction of a dam reservoir. The land will be flooded and the cemetery desecrated. Mantoa’s resolve is unwavering; igniting a collective spirit of defiance within the community. In the final dramatic moments of her life, Mantoa’s legend is forged and made eternal.

DIRECTOR’S STATEMENT

I still know every texture of my grandmother’s house; its walls, its thatched roof, the smell of oak trees after rain. Soon it will be no more. Soon it will be razed and flooded and water will be channeled into the heart of South Africa. Communities are being erased en masse in the name of progress. Forgotten in a soulless march towards futurity. I am not for or against progress. I am more interested in questioning the psychological, spiritual and social elements that come with it. New and old. Birth and death. An ecclesiastical reverence to the earth. Through Mantoa’s eyes, we see that there is a lot of darkness to face, but ultimately this is a story about the resilience of the human spirit.

PRODUCERS/DISTRIBUTORS

PRODUCTION 1: Cait Pansegrouw, Elias Ribeiro – Urucu Media
5 Howe Street
7925 – Cape Town, South Africa
Tel. 27833950088
cp@urucumedia.com
http://www.urucumedia.com

24/01/2021

Winaypacha, 2017, Óscar Catacora


Wiñaypacha: o comovente longa protagonizado por uma senhora que nunca tinha visto um filme

Lucía Blasco - BBC Mundo

Willka e Phaxsi são dois idosos aimarás que vivem em uma parte remota dos Andes. O jovem diretor Óscar Catacora conta a história deles em 'Wiñaypacha', filme que representará o Peru nos prêmios Oscar e Goya.

No meio dos Andes peruanos, Willka e Phaxsi são a vida que resiste ao frio e à solidão do Altiplano. São vestígios de uma cultura e de uma língua milenares que estão em perigo de extinção.

Vicente Catacora e Rosa Nina dão vida, no longa-metragem Wiñaypacha, a estes dois octogenários que formam um casal inseparável.

Aos pés da majestosa montanha Allincapac, mais de 5 mil metros acima do nível do mar, os protagonistas desse filme - o primeiro gravado na íntegra em língua aimará - sobrevivem às inclemências do tempo e da miséria, esperando um vento que lhes traga de volta seu filho que emigrou.

Sol e Lua, seus nomes na língua ancestral, sofrem, choram, riem e vivem ligados à Pachamama, a Mãe Terra.

O jovem cineasta peruano Óscar Catacora, de 31 anos, nos conta a história deles. Não fazem falta música, movimentos de câmera e nem efeitos especiais: 96 planos fixos bastam para compor uma narrativa que comove e estremece.

Com seu primeiro filme, ele ganhou no Festival de Cinema de Guadalajara (México) os prêmios de Melhor Jovem Diretor, Melhor Obra e Melhor Fotografia e será o indicado peruano aos prêmios Oscar e Goya na categoria de melhor filme estrangeiro e ibero-americano de 2019.

A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ele no festival Hay Arequipa, que aconteceu entre 8 e 11 de novembro.

BBC News Mundo - "Wiñaypacha" é uma ficção, mas também é autobiográfica. O protagonista, Vicente Catacora, é seu avô materno. Que outros componentes da sua vida pessoal há no filme?

Óscar Catacora - Vivi parte da minha infância com meus avós paternos nas partes altas de Puno, a uns 4,5 mil metros de altitude. Eles não falavam castelhano, por isso eu falo perfeitamente aimará. O filme se baseia nesse passado com meus avós e na nostalgia que eles sentiam pela ausência do meu pai e de seus outros filhos.

Meu pai me enviou para viver com meus avós quando eu era bem pequeno, tinha 6, 7 anos. E fez o mesmo com meu irmão. Passávamos três ou quatro meses lá durante as férias. Há esse costume entre os que vivem na zona alta do Peru. É uma tradição necessária e que hoje está se perdendo.

Meus avôs paternos morreram há vários anos. Para a produção do filme, buscávamos atores que pudesse interpretá-los e, finalmente, decidimos apostar no meu avô materno, que também é aimará. Ele apoiou muito o projeto por uma questão familiar.

BBC News Mundo - Rosa Nina, a mulher que interpreta Phaxsi, não é sua avó, mas também não é atriz. Como foi trabalhar com ela?

Catacora - Rosa nos foi indicada por um amigo por suas qualidades artísticas e sua personalidade sociável. Fomos à casa dela e ela aceitou imediatamente nosso convite.

A senhora nunca tinha visto um filme e nunca tinha ido a uma sala de cinema. Lembro bem quando me disse: "Não sei muito bem o que me estão propondo, mas vou apoiá-los". Para nós foi incrível receber essa resposta. E falar em aimará com ela foi chave.

Tivemos seis meses de trabalho intenso de preparação de atuação. Ao princípio, eles erravam muito nos diálogos, improvisavam, não dominavam as pausas, o ritmo... Não foi fácil. Era algo novo para eles.

BBC News Mundo - O que te inspirou a fazer este filme?

Catacora - Durante minhas aulas de comunicação para desenvolvimento visitei vários povoados andinos, onde vi de perto o abandono das pessoas de terceira idade.

Seus filhos tinham emigrado para as cidades e voltavam muito poucas vezes por ano para vê-los. Eles, de certa maneira, sofriam de abandono.

BBC News Mundo - Poderíamos então dizer que o abandono é o tema central?

Catacora - Sim, o filme aborda vários temas, mas o central é o abandono da terceira idade. Willka e Phaxi estão distantes da sociedade. Precisam de outras pessoas, de outros que possam acompanhá-los e apoiá-los.

Tenho muito respeito por personagens mais velhos. Graças aos meus pais aprendi que os mais velhos têm de ser respeitados, que têm sabedoria.

Mas no Peru e em outras partes do mundo há muitas pessoas que nunca visitam seus pais e avós. É uma realidade que existe. Muita gente está perdendo o respeito pelos mais velhos. Ignoram e os maltratam.

Na cidade e nas montanhas, um adulto velho é um estorvo. Mas na cultura andina não existe isso: quanto mais velhas, mais veneradas as pessoas são.

O filme também fala sobre a perda de identidade do povo andino. A cultura e a língua andinas são pouco valorizadas pela sociedade. Recentemente têm ganhado um pouco mais de importância.

E fala sobre um efeito da globalização: quando um filho emigra para outro espaço social em busca de melhores oportunidades. É uma denúncia, uma crítica a quem abandona suas raízes ancestrais.

BBC News Mundo - Numa cena, Phaxsi conta a Willka que teve um sonho: seu filho voltaria. A busca pelo filho é um tema recorrente. Quem este filho representa? É o próprio espectador?

Catacora - Sim. Alguns me dizem que, mais que uma indireta, é uma direta aos espectadores que abandonam seus pais.

Mas também representa nossa sociedade, os filhos que nunca vão poder dar sequência ao legado cultural. Esse filho que foi embora para um lugar longe e que nunca vai poder transmitir os conhecimentos de sua cultura a futuras gerações.

É como um filho que nunca nasceu, é uma metáfora, na verdade.

BBC News Mundo - Quais outras metáforas tem o filme?

Catacora - São muitas. Uma delas é a do fósforo, que é um produto da globalização. Os povos originais se converteram em dependentes do sistema globalizado. Por isso acontecem várias tragédias no filme.

Outra metáfora é a cena final, que aborda a cosmovisão andina. Por isso se fala muito da Pachamama, a Mãe Terra. Na cultura andina, morros têm sexo. Há um morro macho e uma fêmea e há um casal de morros.

A avó sobe essa montanha para se tornar deusa, um ser sagrado. Passamos um bom tempo buscando esse cenário natural para concluir o filme. Não foi fácil encontrar a geografia adequada.

BBC News Mundo - A montanha é outra protagonista do filme. Como foi rodar a mais de 5 mil metros de altitude?

Catacora - Foi um grande desafio. Apesar de em Puno vivermos a 3,8 mil metros acima do nível do mar, subir mais mil metros é complicado, porque você sente a diferença climática. Trabalhamos a zero grau em alguns casos, às vezes menos.

Mas não diríamos que foi sofrido. Não nos queixamos do trabalho. Na cultura aimará o trabalho não é nenhum castigo de Deus.

E, sim, a montanha é importante. A cordilheira dos Andes é considerada uma beleza paisagística para tirar boas fotos. No entanto, as pessoas não se dão conta do que está por trás desse desafio.

Pode ter uma família como a do filme esperando seu filho. Pode haver uma cultura que vem sendo maltratada pela incursão das empresas mineiras ou de outras instituições. O filme de certa forma expõe essa realidade.

BBC News Mundo - Há, sem dúvida, uma forte intenção de crítica política no filme.

Catacora - Sim, é uma crítica ao Estado que abandona os povos originais. É um olhar político para que o Estado se preocupe com essas populações.

O Peru é multicultural, tem cerca de 49 línguas nativas. Algumas estão desaparecendo pouco a pouco. O Estado agora está promovendo a recuperação e preservação de algumas.

Os povos indígenas recebem algum apoio. Mas temo que seja mal utilizado com o pretexto de preservar, e que muitos se aproveitem disso. Acho que é um tema delicado.

Deveria haver mais políticas de proteção e apoio, mas com um tratamento cuidadoso. A ideia não é que o Estado converta esses povos em dependentes. Deveria haver um fortalecimento para eles, dar-lhes apoio para que aprendam a se sustentar depois.

O Estado deveria evitar que o povo aimará dependa dele.

BBC News Mundo - Que mensagem quer transmitir a quem vê seu filme?

Catacora - Que entendam que a unidade familiar é o mais importante da vida. Que aprendam a valorizar seus costumes e tradições. Que valorizem um pouco a importância da família. Que olhem para o passado, de onde vêm, isso vai ajudá-los a se projetar no futuro.

Minha avó costumava dizer que a maneira como você trata seus pais é como seus filhos te tratarão quando for mais velho.

BBC News Mundo - E que interpretação gostaria que fizessem?

Catacora - Não gostaria que vissem o povo aimará como ignorante, nem como miserável. Um dos grandes valores desse povo é o orgulho. Somos um povo resistente e enfrentamos assim algumas culturas que quiseram nos aniquilar.

BBC News Mundo - O filme ganhou vários prêmios. Esperava ter tanto sucesso com seu primeiro filme?

Catacora - Na verdade, não. Queríamos fazer um bom filme, e não estar em festivais.

É bom ouvir as notícias que correm, mas talvez eu não expresse muito.

Tem a ver com minhas raízes, o homem aimará não se emociona facilmente. Não quero dizer insensível, mas não exteriorizo muito essa emotividade. Sinto e vivo isso internamente, e às vezes compartilho.