quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Perdão das dívidas estudantis nos EUA

Por que o perdão das dívidas estudantis nos EUA não é elitista. Não, não é um socorro a baristas preguiçosos 

Paul Krugman, 30/08/2022, FSP

Confissão embaraçosa: tenho assistido a "Mulher-Hulk: Defensora de Heróis". Em geral, não sou fã do gênero super-herói; mas depois de "Orphan Black" eu vejo qualquer coisa estrelada por Tatiana Maslany. De todo modo, um dos pontos da trama do programa é que a personagem-título está relutante em revelar seus superpoderes. Por quê? Entre outras coisas, ela se preocupa (corretamente, ao que parece) que, quando as pessoas souberem o que ela é capaz de fazer, ela terá dificuldade para pagar seus empréstimos estudantis.

Não acho que os autores pretendessem fazer uma declaração política. Eles estavam apenas reconhecendo a onipresença da dívida estudantil –e a ansiedade sobre ela– nos Estados Unidos modernos. E essa generalidade é o motivo pelo qual os ataques dos republicanos à política de perdão das dívidas do presidente Biden – que eles geralmente retratam como um presente para elites privilegiadas ou para gastadores preguiçosos– provavelmente fracassarão.

Vamos falar sobre os números. O governo Biden diz que seu plano proporcionará alívio a até 43 milhões de americanos. É muita gente, não uma pequena elite mimada. Em particular, os dados do Fed de Nova York dizem que mais de 12 milhões de americanos na faixa dos 30 anos –mais de um quarto desse grupo– ainda têm dívidas estudantis não pagas.

O que isso significa é que mesmo que você concorde com a teoria política de lanchonete de Trump –segundo a qual os únicos eleitores que importam são operários que usam bonés de beisebol– deve estar ciente de que alguns desses caras provavelmente pegaram empréstimos para frequentar escolas de comércio ou faculdades comunitárias, muitas vezes recebendo em troca nada além de dívidas. Mesmo entre os que não tomaram empréstimos estudantis, muitos provavelmente têm filhos, irmãos, primos ou amigos que o fizeram. Assim, o plano Biden afetará muitas pessoas.

Resumindo, o perdão das dívidas estudantis não é algum tipo de preocupação da elite; é uma questão ampla, pode-se até dizer populista. A votação inicial sobre o plano de Biden é um pouco mista, com uma pesquisa do Emerson College mostrando um apoio muito maior do que outra do CBS/YouGov. Mesmo esta última, no entanto, mostra que a maioria dos americanos aprova o plano; ele ainda encontra muito menos oposição entre os brancos não universitários do que se poderia esperar, dada a desaprovação geral desse grupo a tudo o que é ligado a Biden.

A outra ponta da reação da direita envolve invocar a responsabilidade pessoal – na verdade, pintar os destinatários do perdão das dívidas como rainhas do bem-estar. Os esforços republicanos nessa frente, entretanto, foram extraordinariamente surdos.

Apenas sob princípios políticos gerais, dizer a dezenas de milhões de americanos que são preguiçosos e irresponsáveis –que são todos, como disse Ted Cruz, como um "barista preguiçoso" que desperdiçou anos "estudando coisas completamente inúteis"– parece… burrice. Para ser brutalmente franco, esse tipo de caricatura pode ter funcionado para os republicanos quando os insultos eram dirigidos aos negros urbanos. Mas é provável que saia pela culatra quando estamos falando de um amplo espectro de americanos que estavam apenas tentando subir na vida. Além disso, muitos dos críticos mais proeminentes do perdão das dívidas são quase comicamente fora de sintonia, hipócritas ou ambos. Na verdade, apague o "quase".

Por exemplo, Marco Rubio orgulhosamente declarou que pagou toda a sua dívida estudantil –depois que foi eleito para o Senado e conseguiu um contrato para escrever um livro. Por que todos não podem fazer isso?

Na frente da hipocrisia, a Casa Branca está tendo um dia de folga zombando de congressistas republicanos cujas empresas receberam perdão de dívidas sob o Programa de Proteção de Salários. É verdade que o perdão das dívidas para empregadores que mantiveram suas forças de trabalho durante a pandemia de Covid-19 foi incorporado a esse programa; também é verdade que pesquisas posteriores sugerem que apenas cerca de um quarto dos fundos do programa apoiavam empregos que, de outra forma, teriam desaparecido. O resto foi, na verdade, um presente para os empresários.

De maneira mais geral, é difícil levar a sério as palestras sobre responsabilidade pessoal quando vêm de um movimento cheio de pessoas –de Donald Trump, famoso por dar calote em seus empreiteiros, para baixo– que há muito se recusam a pagar o dinheiro que devem. É difícil superar o espetáculo de Stephen Moore, que Donald Trump tentou nomear para o Federal Reserve, chamando as pessoas que não pagam suas dívidas de "caloteiros"; afinal, a indicação de Moore falhou em parte porque ele se recusou a pagar à sua ex-mulher US$ 300 mil em pensão alimentícia aos filhos.

Agora, nada disso significa que o plano de Biden deva ser isento de críticas, embora a veemência com que alguns centristas o atacaram permaneça intrigante. Acima de tudo, o plano oferece um alívio pontual, mas não resolve o problema subjacente que levou a toda essa dívida estudantil – que não é uma proliferação de baristas preguiçosos; é uma sociedade que exige credenciais educacionais para muitos empregos sem tornar a educação acessível.

A questão é que Biden tentou resolver esse problema subjacente; faculdade comunitária gratuita fazia parte de sua proposta original Reconstruir Melhor. Mas ele não conseguiu aprová-la no Congresso. Ele está, porém, oferecendo uma ajuda real a milhões de americanos –e os republicanos claramente não têm ideia de como responder.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Enquanto isso no Fies - Brasil

Fies: inadimplência cresceu 82% em 2020 


Biden confirma perdão a dívidas estudantis nos EUA próximo a eleição

Medida vale para devedores que ganham até US$ 125 mil por ano e deve ser contestada na Justiça 

Zolan Kanno-Youngs, Stacy Cowley, Jim Tankersley, 24/08/2022

Washington | The New York Times

O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou nesta quarta-feira (24) que dará um perdão de US$ 10 mil (R$ 51 mil) nas dívidas de empréstimos estudantis contraídas por americanos que ganham menos de US$ 125 mil (R$ 639 mil) por ano.

Foram meses de expectativa em relação a essa promessa que ele fez em campanha. Biden também prorrogou até o final do ano uma suspensão do pagamento dos empréstimos em vigor desde março de 2020, na época da pandemia de Covid.

Em anúncio no Twitter no qual descreveu detalhes do plano, ele destacou o "alívio às famílias trabalhadoras e de classe média que se preparam para retomar os pagamentos de empréstimos estudantis federais em janeiro de 2023".

Biden também disse que os que fizeram empréstimos para graduação poderão limitar pagamentos a 5% da renda mensal, mudança capaz de reduzir significativamente as contas de milhões de devedores. Os atuais planos governamentais baseados em renda geralmente limitam os pagamentos a 10% da renda discricionária de quem fez o empréstimo.

O perdão da dívida, embora muito menor que o valor pedido por alguns democratas, ocorre após meses de deliberações na Casa Branca sobre justiça e temores de que o plano possa exacerbar a inflação antes das eleições de meio de mandato. O plano quase certamente enfrentará recursos na Justiça.

Nos EUA, 45 milhões de pessoas devem um total de US$ 1,6 trilhão (R$ 8,2 trilhões) de empréstimos federais contraídos para cursar a faculdade —mais do que devem em financiamentos de carros, cartões de crédito ou qualquer dívida de consumo, exceto hipotecas.

NB: O PIB dos EUA estimado para 2022 é de US$ 24 trilhões

Muitos democratas argumentaram que o perdão da dívida é necessário para sanar disparidades raciais na economia. Mas os críticos dizem que o perdão generalizado é injusto para aqueles que apertaram os cintos para pagar a faculdade. Republicanos e alguns democratas afirmam ainda que isso aumentará a inflação, dando aos consumidores mais dinheiro para gastar.

A Casa Branca procurou tratar dessas preocupações econômicas direcionando a ajuda, que só será estendida a mutuários que ganham menos de US$ 125 mil por ano ou famílias que ganham menos de US$ 250 mil (R$ 1,3 milhão). O governo afirma que 90% do alívio irá para famílias que ganham US$ 75 mil por ano ou menos.

Os alunos que receberam bolsas Pell, para estudantes de baixa renda, terão direito a mais US$ 10 mil em perdão de dívidas. À primeira vista, a medida poderá custar aos contribuintes cerca de US$ 300 bilhões ou mais em dinheiro efetivamente emprestado e que nunca será reembolsado. Mas o verdadeiro custo é mais difícil de calcular, e menor, porque era provável que grande parte dessa dívida não fosse paga. Mais de 8 milhões de pessoas —1 em cada 5 devedores— deixaram de saldar seus empréstimos antes da pandemia. Muitas tinham saldos pequenos e agora poderão ter as dívidas canceladas.

Legisladores democratas e grupos progressistas argumentaram que lidar com as disparidades raciais econômicas exigiria o perdão de US$ 50 mil, citando relatórios que mostram que negros tomadores de empréstimos acabam tendo saldos médios mais altos do que seus pares brancos.

Manifestantes pedem cancelamento de débitos estudantis em protesto em Washington - Kenny Holston - 4;abr.22/The New York Times

O deputado Tony Cárdenas, que se reuniu com a Casa Branca para defender o cancelamento da dívida, disse que mesmo o alívio financeiro limitado pode ser o fator de dinamização necessário para o partido de Biden antes das eleições de novembro. "Muitos jovens vão poder dar um suspiro de alívio, vão poder comprar uma casa em breve. Eles podem fazer planos de começar uma família mais cedo."

Ele e outros membros da bancada latina ajudaram a aumentar a pressão sobre Biden. Mas na Casa Branca os principais assessores discutiam ramificações políticas e econômicas da decisão. O presidente estaria preocupado que o projeto fosse visto como uma doação, o que seria uma afronta aos que pagaram suas mensalidades ou as de seus parentes. Alguns argumentavam que Biden não teria autoridade legal e deveria trabalhar com o Congresso em vez de usar um ato executivo.

A inflação crescente (Inflação nos EUA acelera para 9,1% em junho, maior nível em 40 anos)  também complicou o processo. "No meio da esmagadora inflação de Biden, como o presidente poderia justificar uma doação de empréstimos estudantis que ignora os americanos mais prejudicados pela inflação?", questionou no mês passado o deputado republicano Kevin Brady.

Os conselheiros econômicos de Biden, no entanto, argumentaram que, ao retomar os pagamentos de empréstimos e combinar o perdão com limites de renda, isso teria um efeito desprezível no aumento dos preços ao consumidor. O chefe de gabinete Ron Klain ainda destacou que a ajuda poderia galvanizar jovens eleitores, cada vez mais frustrados com o presidente.

Contestações legais são esperadas, embora não esteja claro quem teria legitimidade para levar o caso ao tribunal. Um artigo recente na revista Virginia Law Review argumentou que a resposta pode ser ninguém: os estados, por exemplo, têm pouca influência na operação de um sistema federal de empréstimos.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


Sair do palco no auge da encenação

Quero morrer em sala de aula...

O desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação. Dar aulas era o que valia.

Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo, 31 de agosto de 2022

Foi a mensagem que guardei. A expressão desse desejo nos tirava da plenitude da juventude; daquele indomável impulso para o futuro que os jovens imaginam como inacabável e nos colocava em contato direto com o oposto da juventude: a maturidade profissional, a velhice e a morte. 

 'O desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação.' Foto: Pixabay

Espantei-me com a frase. Primeiro pensei que fosse uma trivial expressão de complacência, mas me desfiz desse engano, porque percebi que o desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação, pois “dar aula” era o que importava. Era o que fazia com mais cuidado e amor.

Jamais esqueci esse mestre - vamos chamá-lo de Freitas e imaginar que morava num pequeno apartamento coalhado de livros numa rua ao lado da faculdade; e que tinha uma esposa compreensiva e paciente. Que era simples, e que dele emanava o raro gosto daqueles que fazem o que amam. 

Como disse, fiquei surpreso com a declaração feita no início de uma aula, quando da apresentação do programa do curso sobre Sociologia Comparada. Matéria que, para ele, era um método de evitar julgamentos superficiais, essa fonte de preconceitos, porque sempre comparamos com base no nosso ponto de vista. Para realizar uma autêntica comparação, dizia, era preciso apagar-se no ponto de vista do diferente, porque o diferente é sempre vítima de mal-entendidos. Ou ele é lido como superior, o que nos reduz a meros vira-latas; ou ele é visto como inferior, o que nos coloca como superiores. 

A perturbadora diversidade humana -, pois, tirando os livros sagrados, ninguém sabe como ela foi implantada - é o maior desafio das comparações. É complicado, terminava, descobrir que o outro é um alternativo: um outro modo de construir o mundo. Guardei como um tesouro essa lição. E, com ela, professor que também sou, mantive essa “inocência” comparativa que, antes de julgar, tenta penetrar no espaço do outro para trazê-lo de volta à nossa consciência.

Deixei a faculdade faz tempo. Mas soube que o professor Nilo foi afastado pela idade. Um diretor imbecil entendeu que, depois de 70 anos, os professores seriam aposentados. Nessa onda, foi-se o professor Freitas que não morreu em sala de aula, como sonhava, mas num hospital...

Uma pessoa disse que seus colegas nada fizeram para protestar quando Freitas foi afastado - pois eram realistas e tinham bom senso -, ficaram um pouco tristes, mas logo foram tomados por suas vidas e logo esqueceram o colega, mas os escritores servem para relembrar por um momento esse amor pelo ato de ensinar que possuía o professor banido. Antes que a vida com sua voracidade nos faça esquecer novamente. 

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Hannah Schmitz e a Red Bull na Fórmula 1

 HANNAH SCHMITZ: A SUPERESTRATEGISTA DA RED BULL

Nora Gonzalez, 29/06/2022 

Sabem aquele ditado que diz que a cada enxadada vem uma minhoca? Como já escrevi algum dia aqui, no meu caso é uma surucucu que vem. Um assunto puxa o outro e assim vamos que vamos. O tema de hoje foi lembrado pelo assíduo leitor “FOC”: a estrategista da Red Bull Racing. Sim, é “a”, é uma mulher.

Novamente, o que me move a escrever sobre ela é a novidade — para não mencionar que a pessoa é fera. A equipe tem sido sensacional nas estratégias, nas mudanças de estratégias e nas leituras que faz dos acontecimentos e das estratégias das outras equipes. Mereceria uma coluna inteira a pessoa responsável por isto, fosse mulher, homem, criança de colo ou marciano.

Mas, como nem todo mundo que lê minha coluna me acompanha há mais tempo, vamos aos avisos legais, tão necessários ultimamente:

• Esta coluna não é sobre a primeira mulher a ter um cargo de grande importância na Fórmula 1. Esta é apenas uma coluna sobre um (outro) registro histórico.

• Esta coluna é sobre a principal estrategista mulher numa equipe de ponta de Fórmula 1 agora. Isto pode mudar a qualquer momento. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.

• Esta coluna não é sobre quem é melhor estrategista: homem, mulher, trans, cis, L, G, B, T, Q, I, A ou +. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.

• Esta coluna não é sobre presença de mulheres na Fórmula 1, se são poucas, muitas ou por quê. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.

• Nenhuma mulher foi subestimada, ferida em sua dignidade ou de qualquer outra maneira para a pesquisa e redação deste texto. Esta é apenas uma coluna sobre um registro histórico.

Bem, devo ter esquecido algum outro habeas corpus preventivo, mas vamos lá. Paciência. O assunto hoje é a ótima Hannah Schmitz e sua habilidade em transformar dados (que as outras equipes também tem) em decisões acertadas (algo que nem todo mundo faz). Esse é o ponto e daí minha admiração pelo trabalho dela. Faço mais um parêntese aqui: trabalhei vários anos numa empresa de modelos preditivos, analíticos e algoritmos. Simplificando, são programas sofisticadíssimos que podem predizer o que uma pessoa vai comprar com base no seu histórico de compras e, assim, enviar-lhe as ofertas mais adequadas. Por exemplo, se você vem comprando tijolos e cimento, é lícito supor que está construindo e que, em breve, precisará de pisos e azulejos, e assim a empresa envia promoções específicas — quem não odeia receber ofertas de algo que não tem nada a ver? Sem falar no desperdício de recursos. Ou que também detectam possíveis fraudes em compras com cartão de crédito com base no histórico de compras de uma pessoa. Enfim, meus anos nessa empresa mais outros tantos em banco (sempre responsável pela área de Comunicação, claro, que de desenvolvimento não entendo nada) me fizeram gostar e valorizar muito esse trabalho. Mas, como diz meu guru acadêmico Régis Debray, a informação não é poder, e sim o que se faz com ela — senão, os bibliotecários seriam os donos do mundo.

É o caso da Hannah. Ela tem mestrado em Engenharia Mecânica na Universidade de Cambridge e chegou à Red Bull Racing no ano da formatura, 2009, como estagiária, mas em pouco tempo virou engenheira de modelagem e simulação e um ano e meio depois já era Engenheira Sênior de Estratégia e desde o ano passado é Engenheira Chefe de Estratégia.

“Trabalhei em dinâmica de veículos, primeiro fazendo trabalhos de modelagem e simulação e, depois de um tempo, senti que realmente queria uma conexão mais direta com as corridas, e a posição surgiu na estratégia”, disse Hannah. “Eu mudei para esse departamento e estou lá desde então, há quase 13 anos”, conta. Para mim, a frase que melhor define o que ela faz e porque o faz tão bem é a de uma declaração dela: “Todo mundo tem o mesmo acesso aos mesmos dados, mas é o que você faz com esses dados que lhe dá vantagem.”

O trabalho de Hannah é fundamental, pois é ela quem recomenda quando parar, quais pneus usar e como os pilotos devem trabalhar juntos. “Os dados entram em todas nossas simulações”, diz Hannah. “Antes mesmo de chegarmos à pista, nossas simulações terão o que esperamos que os pneus façam, o que achamos que será a ultrapassagem naquela pista e todos os ritmos que esperamos de nossos concorrentes e de nós. E então, quando estamos na pista, podemos usar dados para estimar melhor todas essas variáveis. Basicamente, estamos constantemente usando os dados e refinando esses modelos.”

Para mim, não são apenas os dados, e especialmente sua qualidade, mas as decisões que são tomadas a partir deles que são o segredo de uma equipe vencedora. E, especialmente, mudar rapidamente de cenário em função de condições climáticas, da estratégia dos adversários e de todas as variáveis que se apresentam a cada corrida. Acho fantástico isso. Aliás, sempre gostei na história e nos filmes, das questões de estratégia. E lá vem uma das minhas tão frequentes digressões. Minha parte favorita em seriados como Chicago Fire é quando chegam ao local do chamado e o chefe Boden organiza o salvamento: ele decide na hora qual o tipo de salvamento, divide as equipes, diz qual vai primeiro, por qual caminho… Ou no filme Gladiador quando o personagem organiza, em segundos, a estratégia de defesa dos escravos em plena arena. Sensacional!

É claro que Hannah e sua equipe tem à disposição tecnologia de última geração (usam a da Oracle) que lhes permite testar bilhões (sim, bilhões) de cenários e fazer combinações usando simulações. Tudo isso é feito semanas antes de cada grande prêmio.

Se a cara mais conhecida da Red Bull é a de Christian Horner, chefe de equipe e executivo-chefe da Red Bull Racing, ele faz questão de destacar a importância de Hannah e sua equipe: “É um papel fundamental, sentar-se ao lado da pista no muro dos boxes, utilizando todos os dados e informações para tomar decisões sobre a estratégia de corrida”, disse. “Essa função é o eixo central.” Acrescentou. Para o público em geral, Hannah ficou mais conhecida a partir da corrida de 2019 quando depois da vitória no Brasil a equipe a colocou no pódio para receber o troféu de Construtores. Lindo e merecido reconhecimento de alguém que fica sempre apenas nos bastidores.

Reconhecimento no GP do Brasil de 2019 (Foto: Boteco F1)

O trabalho de Hannah e sua equipe é, basicamente, traçar todos os cenários possíveis e suas variáveis para tomar a melhor decisão a cada momento e mudá-la sempre que necessário, sabendo antecipadamente suas consequências e avaliando prós e contras. Na preparação para uma corrida, eles criam um relatório de pré-visualização que analisa todas as estratégias potenciais que a equipe pode seguir no dia da prova. O relatório inclui uma enorme quantidade de informações e variáveis, como análises de corridas recentes e dados históricos de cada pista específica para ajudar a prever o desempenho de pneus e carros. Eles modelarão o que acontece se houver um acidente em diferentes pontos da pista, em diferentes momentos da corrida e considerarão as previsões da meteorologia, as chances de chuva leve ou pesada, sua duração, o vento, entre outros muitos cenários e possíveis resultados. A equipe consegue criar gráficos que mostrem a pontuação esperada com base em certas estratégias e, a partir daí, decidir qual o resultado que melhor atende ao momento da equipe.

Os pneus são uma das principais variáveis nos cenários traçados. Cada equipe tem a mesma quantidade de pneus que pode usar durante um fim de semana de corrida, por isso a estratégia de pneus, quais usar, quando e por quanto tempo, é crucial. Um bom exemplo disso foi o Grande Prêmio do Brasil de 2019. Naquele dia, Hannah tomou a decisão de fazer Max Verstappen parar no boxe pela terceira vez, embora isso significasse entregar a liderança ao seu rival. Foi uma decisão arriscada, mas com um novo conjunto de pneus, Max conseguiu recuperar rapidamente a primeira posição e vencer a penúltima corrida da temporada. Ela ter subido no pódio certamente uma honra, pois há tanta gente envolvida e responsável por uma vitória que escolher somente uma pessoa para receber o prêmio acaba deixando de fora muitos outros que mereceriam estar lá também. Mas foi lindo ver a Hannah naquele dia lá, pois a estratégia de pneus foi a chave da vitória. “Foi um momento incrivelmente especial, o auge da minha carreira. Eu tinha acabado de voltar ao trabalho depois de ser mãe, era algo gigante para mim, eu queria provar que continuava aqui, que poderia seguir fazendo meu trabalho bem. Foi uma experiência fantástica”, resumiu Hannah.

No GP de Mônaco deste ano, o papel de Hannah foi fundamental na vitória de Sérgio Pérez. A equipe deu mais um show de estratégia numa pista conhecida por as ultrapassagens serem difíceis. Hannah notou que Pierre Gasly, na modesta Alpha Tauri, tinha um rendimento muito bom graças aos pneus intermediários e optou por arriscar: mandou Max e Checo pararem quando a pista estava secando. Quando a Ferrari, que corria numa pista que a favorecia, reagiu, era tarde demais. A vitória do mexicano e o terceiro lugar do holandês arrancaram elogios do normalmente frio Helmut Marko, assessor da Red Bull e ele mesmo ex-piloto: “Se conseguimos vencer esta corrida foi principalmente por causa da Hannah”, disse.

A Mulher Que Está Apavorando a Ferrari na Fórmula 1 | Hannah Schmitz 

É claro que o uso de alta tecnologia ajuda a ampliar o número de cenários e de simulações, mas as decisões finais cabem à Hannah e sua equipe. Ou, pelo menos, as recomendações finais, mas as decisões são tomadas com base nas conclusões e nos dados dela. Uma vez na pista, Hannah analisa dados de treinos e corridas de qualificação, concentrando-se em variáveis como as condições específicas daquele momento da pista, o ritmo do carro e a degradação dos pneus para evoluir ainda mais a estratégia da equipe e mapear as paradas para troca. É claro que a análise da concorrência é outro componente crucial para determinar as estratégias rivais durante todo o final de semana de corrida. Mas isso está longe de ser pré-definido estaticamente. À medida que a corrida se desenrola, Hannah continua modelando cenários rapidamente e oferecendo, eventualmente, novas opções de estratégia para os pilotos, sempre, é claro, de forma a dar a eles a melhor chance de sucesso. É como um moto contínuo, um processo permanentemente em andamento.

“É incrivelmente alucinante. Você fica sempre no limite quando toma uma decisão que vai definir algo em uma fração de segundos. Você tem, talvez, uns 20 segundos, o que não parece nada, mas, em uma corrida, esperar esse tempo todo para ver se tomou a decisão certa, parece uma eternidade. Manter a calma é um dos atributos mais valiosos para quem é estrategista”, descreveu a engenheira sobre a função atual numa entrevista ano passado.

Mas se a quantidade de simulações e cenários poderia ser literalmente infinita se fossem apenas as questões tecnológicas, e as equipes de F-1 tenham um arsenal de ferramentas e tecnologia para auxiliar na estratégia, elas estão sujeitas aos regulamentos da FIA, que limitam o uso destes recursos. Para a temporada de 2022, por exemplo, as equipes estão limitadas no tempo que podem gastar em modelagem e simulação na pista. Ironicamente para gerenciar estas restrições de tempo e os limites de gastos, a própria Oracle tem ferramentas de simulação, tudo para não extrapolar tempos nem gastos. Algo que só torna ainda mais meritório o trabalho desta inglesa admirável.


Nora Gonzalez é jornalista, foi repórter (inclusive de indústria automobilística) e editora da Gazeta Mercantil e de O Estado de S. Paulo durante muitos anos. É fã de carros desde pequena, especialmente de Fórmula 1. 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Pílulas 6

A imagem que fala

Carlos Drummond de Andrade - estátua em Copacabana Rio de Janeiro

"Está sem mulher, está sem discurso,

está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode ..."

Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio — e agora?

 Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

 Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

 Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?

Simples poesia

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Westworld, o filme de 1973 e a série de 2016 – 2022

No filme os robôs se rebelam devido a falhas no controle central. Na série, os robôs de última geração (têm “sentimentos”) provocam uma rebelião e tomam conta da estória.

Mas, o destaque é da série (imperdível) Love, Death & Robots da Netflix e o episódio Automated Customer Service (S2.E1), direção Jennifer Yuh Nelson (supervising director), John Scalzi e Tim Miller. Neste episódio há uma revolta das máquinas de aspirar pó conectadas em rede. Um gol bem mais interessante que Westworld.

Westworld: Onde Ninguém tem Alma, Westworld, 1973, Michael Crichton

https://www.imdb.com/title/tt0070909/

Westworld, Série de TV, 2016–2022 Lisa Joy e Jonathan Nolan (criação) – HBO Max

Sinopse da série

Westworld é um parque temático futurístico para adultos, dedicado à diversão dos ricos. Um espaço que reproduz o Velho Oeste, povoado por androides – os anfitriões –, programados pelo diretor executivo do parque, o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins), para acreditarem que são humanos e vivem no mundo real. Lá, os clientes – ou novatos – podem fazer o que quiserem, sem obedecer a regras ou leis. No entanto, quando uma atualização no sistema das máquinas dá errado, os seus comportamentos começam a sugerir uma nova ameaça, à medida que a consciência artificial dá origem à "evolução do pecado". Entre os residentes do parque, está Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood), programada para ser a típica garota da fazenda, que está prestes a descobrir que toda a sua existência não passa de bem arquitetada mentira.


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Claudia e Brigitte, ícones do cinema, ainda vivem

Claudia Cardinale, 1938

Brigitte Bardot, 1934  

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O que falar da escravidão no ambiente audiovisual: The Underground Railroad, Watchmen e Alice

1. The Underground Railroad: Os Caminhospara a Liberdade, The Underground Railroad Minissérie de televisão, 2021 (Amazon)

The Underground Railroad resenha

2. Watchmen, Minissérie de televisão,2019 “Agora está na hora de matar um Deus” (HBO Max)

‘Watchmen’ leva 11prêmios e deixa claro que será lembrada para além do Emmy 2020

21 set 2020 | Por Beatriz Sardinha

A minissérie Watchmen (2019), da HBO, tem um elenco formidável e conta com Regina King, Yahya Abdul-Mateen II, Louis Gossett Jr., Jovan Adepo, Jean Smart e Jeremy Irons, todos indicados ao Emmy 2020,  além de outras 20 indicações. Dessa forma, a produção se torna a segunda mais indicada da história.

A obra não apresenta nenhum episódio “abaixo da média”, ainda que dois episódios foquem em personagens específicos. Esses episódios focalizados foram ambos, inclusive, indicados ao prêmio de melhor direção de minissérie ontem à noite. Watchmen é certeira em praticamente tudo o que se propõe a realizar. A produção da HBO bebe da obra-prima de Alan Moore e Dave Gibbons na quantidade correta, adicionando novos elementos àquele universo.  A minissérie amplia seu universo com sucesso ao incorporar as personagens e história da HQ com o contexto contemporâneo, 34 anos depois.

A protagonista Angela Abar, que rendeu o prêmio de melhor atriz de minissérie a Regina King, fala no primeiro episódio de um suspeito que “cheira tanto a supremacia branca que parece uma cândida”. Fazendo um trocadilho da fala da personagem com a palavra cândido, pode-se dizer que um dos objetivos do criador da série e vencedor do prêmio de melhor roteiro, Damon Lindelof, é o de expor aqueles que, até então, eram os cândidos da sociedade, ainda que se mantivessem no anonimato.

O primeiro episódio começa com o massacre da “Wall Street Negra” em 1921, na cidade de Tulsa. O ocorrido corresponde a um acontecimento verídico, mas que se mostrou inédito para muitos dos espectadores da série. Ainda que finalizada no início de 2019, a produção era uma das mais atuais da edição da premiação Emmy 2020.

Não é “mimimi”, é a minissérie colocando personagens – históricos ou fictícios – em seus devidos lugares. Não seria nenhum absurdo pensar que atualmente a figura de Rorschach fosse utilizada por um grupo supremacista, uma vez que, na obra original, muitas de suas reflexões divididas com o leitor apresentam convicções, no mínimo, problemáticas. É difícil não lembrar de nossa apropriação de símbolos problemáticos, como no caso das numerosas pessoas utilizando-se de maquiagens do Coringa em manifestações de 2019 e 2020.

O melhor episódio da minissérie é, sem questionamentos, o sexto. Este, que é uma das melhores horas do audiovisual produzidas nos últimos tempos, foi premiado nas categorias de melhor direção e de melhor ator coadjuvante para o trabalho primoroso de Jovan Adepo como o jovem Will Reeves, que assim como Angela, fazia justiça encapuzado. Ele é, inclusive, um dos personagens colocados em seu devido lugar de destaque e que, como tantas outras figuras negras de relevância, foram apagados da história.

Nos levemos a sério, aqueles que consideraram errada a escalação de Yahya Abdul-Mateen II vencedor por seu papel de Cal Abar, baseando-se apenas no argumento de que ia contra a obra original, além de exporem seu racismo, como muitos dos “cândidos” da série, não entenderam suas motivações e seu relacionamento com Angela.

Angela viveu em Saigon, no Vietnã, onde não havia muitas pessoas que se pareciam com ela, e percebemos o quanto o pertencimento é importante para a protagonista. Daí sua afeição pela personagem Sister Knight, que, na infância, era uma das únicas pessoas com quem tinha essa identificação. Cal, mais tarde, pergunta a Angela qual dos corpos ela deseja que ele incorpore, e ela escolhe aquele que traz a ela uma sensação maior de pertencimento. Esse traço da personalidade de Cal deve ser levado em consideração em seu desenvolvimento em Watchmen, e tornam ainda mais acertada a escalação de um ator negro para o papel. Em seu discurso de aceitação, Yahya comentou que “Watchmen foi sobre alguém que veio para a Terra dar amor para uma mulher negra, e ele fez isso no corpo de um homem negro, e sou muito orgulhoso disso. Eu dedico esse prêmio às mulheres negras na minha vida”.

O final da série não é conclusivo, pois não nos dá uma definição do que acontecerá com Angela. Mas talvez a incerteza seja realmente a melhor resposta. Assim como Calvin, a escolha pela incerteza lhe permitiu uma das mais belas jornadas.

Watchmen saiu da cerimônia do Emmy com 11 prêmios – sete técnicos e quatro em categorias principais, incluindo melhor minissérie – e com um legado para o conteúdo de super-heróis. Talvez esteja na hora de todos a conhecerem.

Tulsa há 100 anos 

Watchmen, HQ

Uma das Graphic Novels mais influentes de todos os tempos e um eterno bestseller, WATCHMEN só cresceu em estatura desde sua publicação original, como minissérie, em 1986. Esta edição de luxo, com capa dura, papel especial e formato diferenciado, traz a lendária saga escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, totalmente recolorida digitalmente por John Higgings, o colorista original. Não apenas isso, o volume de 460 páginas também apresenta uma quantidade de extras jamais vista no Brasil, trazendo trechos do roteiro original, esboços de Gibbons, comentários sobre os personagens, textos dos criadores e mais. Uma edição primorosa que não pode faltar na estante de nenhum colecionador. Uma edição primorosa que não pode faltar na estante de nenhum colecionador. O ano é 1985. Os Estados Unidos são uma nação totalitária e fechada, isolada do resto do mundo. A presença de arsenais nucleares e dos chamados super-heróis mantém um certo equilíbrio entre as forças do planeta... até que o relógio do fim do mundo começa a marchar para a meia-noite e a raça humana para um abismo sem-fim. A sombria e inigualável trama tem início com ilusões paranóicas do supostamente insano herói Rorschach, um dos Watchmen que patrulhavam os EUA décadas atrás. Mas ele estaria realmente insano ou na verdade teria descoberto uma sórdida conspiração para assassinar super-heróis -- ou, pior ainda, milhões de civis inocentes? Fugindo da lei, Rorschach junta-se a ex-companheiros do passado em uma desesperada tentativa de salvar suas próprias vidas... e o que acabam descobrindo, além de abalar suas estruturas, poderá alterar o próprio destino do planeta Terra! Seguindo duas gerações de heróis mascarados, desde a Segunda Guerra até os tensos anos da Guerra Fria, surge esta pioneira epopéia de ódio, amor, reencontros impossíveis, grandes reviravoltas e muita ação, como só a criatividade de Alan Moore e Dave Gibbons poderia conceber! WATCHMEN foi considerada pela revista TIME uma das cem melhores obras em língua inglesa de todos os tempos.

Saiba o que Alan Mooredisse sobre todas suas HQs adaptadas para filmes


3. Alice, 2022, Krystin Ver Linden



SINOPSE: Alice (Keke Palmer) é uma escrava que passa os dias em uma plantação na área rural do estado da Geórgia. Querendo liberdade, um dia ela briga com o seu patrão e dono do local, Andrew (Jonny Lee Miller). Fugindo para não ser morta, Alice se depara com uma estrada de cimento e logo descobre que o ano é 1972. Ela é logo resgatada por um ativista, Frank (Common) também negro, que a ajuda a se orientar e descobrir as mentiras que seu antigo patrão a falou.

ALICE | OFFICIALTRAILER | 2022 

Créditos finais do filme

Dedicado aos afro – americanos que foram escravizados durante o século XX e àqueles que foram oprimidos em todo o mundo.

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Joanne e Paul

As Últimas Estrelas doCinema, The Last Movie Stars, Série de TV, 2022 – Ethan Hawke (HBO Max)

Paul e Joanne

O destaque: a figura de JoanneWoodward, 1930 

Quando era jovem, eu queria atuar. E admito que não permitia que nada me atrapalhasse ... até ter filhos. Espero que elas entendam que, apesar de tê-las amado, se tivesse que fazer tudo de novo, talvez não teria filhos. Atores não são bons pais.” (Joanne Woodward, no final do episódio 2)

Sobre Paul Newman (1925–2008) 

Relação de 50 anos entre o ator de 'A Cor do Dinheiro' e Joanne Woodward, 1930  é destrinchada em 'As Últimas Estrelas do Cinema'

Mauricio Stycer, 17/08/2022, FSP

No início da década de 1990, o ator Paul Newman, morto em 2008, encomendou ao amigo Stewart Stern, roteirista de filmes como "Juventude Transviada", que escrevesse a sua biografia. Stern gravou dezenas de entrevistas, mas Newman desistiu do projeto antes que ele começasse a escrever o livro.

Perto do fim da vida, o ator colocou fogo nas fitas gravadas por Stern. Mas, não se sabe por quê, preservou as transcrições —cerca de 15 mil páginas. Em 2007, dias depois que a atriz Joanne Woodward (In 1987: "Acting is like sex. You should do it, not talk about it.") foi diagnosticada com Alzheimer, Newman soube que estava com um câncer terminal. Morreu no ano seguinte e nunca mais se falou da biografia. Em 2019, as filhas do casal encontraram as transcrições escondidas na lavanderia no porão da casa da família em Westport, no estado americano de Connecticut. E decidiram fazer algo em homenagem à mãe, ainda viva.

Encarregado de realizar um documentário com base neste material, mas isolado em casa por causa da pandemia de coronavírus, o ator Ethan Hawke teve a ideia brilhante de convidar atores para lerem as transcrições das entrevistas em gravações feitas por Zoom.O resultado, imperdível, é uma série em seis episódios, "As Últimas Estrelas do Cinema", ou as últimas estrelas de cinema, disponível na HBO Max. Ainda que muitas vezes pareça realmente uma "canonização festiva" do casal, como disse Richard Brody na New Yorker, é um documentário complexo, com muitas camadas.

Para quem vive no universo artístico, ou admira este mundo, "As Últimas Estrelas do Cinema" oferece um curso compacto sobre nuances da arte da interpretação. Tanto Newman quanto Woodward estudaram no Actors Studio, em Nova York, sob a batuta de Lee Strasberg e o seu famoso "método".

Cinco anos mais nova que o marido, Woodward sempre foi considerada mais talentosa do que ele. Em 1957, ainda na primeira fase da carreira, ganhou o Oscar de melhor atriz por "As Três Faces de Eva". A certa altura, reduziu o ritmo de trabalho para cuidar dos filhos, sendo injustamente relegada a um lugar menor, enquanto Newman se transformava num tipo icônico de Hollywood —foi indicado ao Oscar dez vezes e só ganhou por "A Cor do Dinheiro", em 1987.

George Clooney encarnou Newman, enquanto Laura Linney leu as falas de Woodward. Vários outros atores, roteiristas e diretores participam da série lendo depoimentos de figuras importantes na vida do casal. As falas se sobrepõem a cenas de filmes dos dois, cuidadosamente escolhidas, além de imagens antigas, públicas e privadas, do casal.

A série aborda, sem passar pano, o alcoolismo de Newman e expõe claramente a culpa que sentia pela morte, por overdose, do único filho homem, o também ator Scott Newman. Os depoimentos da primeira mulher, Jackie Witte (na voz de Zoe Kazan), são duríssimos, até cruéis, com o ex-marido. Por outro lado, Ethan Hawke é benevolente com a série de filmes ruins ou caça-níqueis que Paul Newman fez, como "Inferno na Torre", por exemplo, mas não deixa de registrar que são de qualidade duvidosa.

Newman e Woodward foram, ainda, importantes ativistas políticos e doaram centenas de milhões de dólares — com a ajuda da venda de molho de salada Newman — para benemerência.

Mais que tudo, as seis horas da série celebram um casamento de 50 anos, um amor profundo, ainda que enfrentando chuvas e trovoadas, com cumplicidade total, em casa e nos estúdios — fizeram 16 filmes juntos, alguns sob a direção dele.

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Dez anos sem Carlos Reichenbach, e sua obra ainda é um eco do Brasil

Diretor que estrela mostra no Rio de Janeiro tinha generosidade infinita para se relacionar com o cinema e os seus autores

Inácio Araújo, FSP, 24.jun.2022

É impossível para mim falar de Carlos Reichenbach de uma maneira que não seja estritamente pessoal.

Agora, que a mostra "Uma Década sem Carlão", organizada por Ruy Gardnier na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, homenageia a obra do cineasta no momento em que se completaram dez anos de sua morte — em 14 de junho —, me ocorre lembrar de como era difícil o tirar da rua para que começássemos a escrever um roteiro ou argumento de filme. À medida que caminhava era interrompido por amigos, conhecidos, críticos, outros cineastas. E a cada pessoa que o abordava e perguntava de coisas do cinema ele se detinha, respondia, iniciava uma conversa.

Essa capacidade quase infinita de se relacionar com qualquer coisa que dissesse respeito a cinema era uma característica que nunca vi semelhante em outra pessoa. Não distinguia entre os que pensavam como ele ou não, os mais importantes ou menos, os de direita ou de esquerda. Havia nele um movimento de enorme gentileza e outro de curiosidade, de atenção ao que se dizia.

Não era diferente com os filmes. Gostava mais de gostar dos filmes dos outros do que dos dele próprio — uma característica bem rara na categoria. Por isso foi um professor de uma ou duas gerações de pessoas talentosas. Não impunha seus gostos, nunca. Apenas os expunha. Chega a ser curioso que muitos diretores o temessem como diretor de fotografia de seus filmes, pensando que ele poderia interferir na feitura do filme. Nada mais equivocado. Quando fotograva um filme, Carlão queria ver a expressão do pensamento do outro, do diretor. Suas ideias ele sabia quais eram, e as exporia em seus próprios filmes. Vejamos as obras de um cineasta com que colaborou com frequência, como Jean Garrett —não têm nada a ver com os filmes de Reichenbach.

Não admitia palpite em seu trabalho, mas deixava os colaboradores à vontade para contribuírem. Era preciso entender, no entanto, que isso devia se dar por aproximação às ideias dele, isto é, do autor. Foi um adepto sem restrições da ideia de que os filmes têm um autor, como os livros ou as pinturas.

Cineasta Carlos Reichenbach na rua do Triumpho, em foto feita pelo cineasta e fotógrafo Ozualdo Candeias - Ozualdo Candeias/Reprodução

Imaginou, mais de uma vez, virar produtor. Quando comprou a Jota Filmes, empresa de publicidade, há 50 anos, foi com a ideia de usar sua estrutura na produção de filmes baratos, rodados rapidamente, à maneira do que fazia Roger Corman nos Estados Unidos. A ideia era propiciar aos amigos e às pessoas em quem reconhecesse afinidade a oportunidade de filmar. Não deu certo. Ele tentaria outra vez, em 1989, quando juntou um grupo de amigos na Casa de Imagens.

A generosa capacidade de escuta, na rua, no set de filmagem, na sala de projeção fez dele também um mestre para mais de uma geração de cinéfilos e cineastas. Sabia escutar, mas também apontar as virtudes que via em certos filmes e cineastas de quem pouco se ouvia falar ou se lia na crítica, mais ocupada com os "grandes nomes".

Foi, em parte, o que prejudicou a compreensão de sua obra. Podia ser, por muitos, aceito como o "bom sujeito" simpático. Mas, se ousasse contratar um ator conhecido para um filme, não faltava quem o classificasse de "comercial" —trabalhou com Cauã Reymond, Betty Faria, Carlos Alberto Riccelli entre outros.

Longe disso. Queria que seus filmes fossem vistos e tentou, desde o fim do século passado, se adaptar a um regime de produções mais caras e cuidadas. Nem por isso abriu mão de suas ideias. Que se reveja seu "Garotas do ABC", capaz de antecipar a onda fascista e a decadência da atividade sindical no Brasil, sem abrir mão do humor e do caráter multifacetado da maioria de seus filmes.

Carlão foi antes de tudo um cinéfilo. Sabia admirar Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Orson Welles, Luiz Sergio Person (que foi seu professor), com a mesma paixão que dedicava a Samuel Fuller — então pouco conhecido — ou Jesús Franco. Jesús Franco? Ele é horrível — tentei certa vez argumentar. É sim, ele respondia. "Ele é capaz de fazer cem filmes, 97 são péssimos, mas os outros três, geniais." Entendia o cinema como uma arte popular, que devia ser apreciada por todos, sem preconceito. Por isso não se esquivava das cenas de sexo ou de violência. Ao contrário –tudo que fazia parte do repertório popular de seu tempo era caro a ele.

Carlos Reichenbach 

Como repudiava a convenção, usava esse repertório como ponto de partida para explorar os clichês, sem nunca se submeter a eles. Sua rejeição às convenções, ao moralismo, ao atraso da sociedade brasileira o levaram a ter a obra catalogada como "marginal", junto com Sganzerla, Julio Bressane, Andrea Tonacci e outros tantos igualmente vitimados por nosso conservadorismo.

Poucos críticos se atreveram a levar sua obra a sério, como João Carlos Rodrigues. O primeiro prêmio que recebeu, um "especial pela integridade da obra", foi pessoalmente conquistado por Walter Lima Júnior, presidente do júri no Festival de Gramado de 1984, depois da polêmica sessão de "Extremos do Prazer", de que parte dos jurados se retirou antes mesmo do final do filme. O reconhecimento seguinte veio de Catherine Chicot e Hubert Bals, assistente e diretor, respectivamente, do Festival de Roterdã. Estranhamente, foi mais rápida e fácil a aceitação de seu trabalho no exterior, onde encontrou defensores especialmente entre os críticos do jornal Libération, Serge Daney e Louis Skoreki, e, em menor escala, dos Cahiers du Cinéma.

Também não é estranho que a atual mostra do MAM tenha como curador Ruy Gardnier, um dos fundadores da revista eletrônica Contracampo, que iniciou uma espécie de revolução na crítica cinematográfica no Brasil desde o fim dos anos 1990 e tirou do limbo alguns dos melhores cineastas brasileiros. No mesmo dia 14 de junho, data de sua morte, Carlos Reichenbach completaria agora 77 anos. Não é o caso de lamentar a morte prematura —Carlão disse o que tinha a dizer. Mas resta muito ainda a compreender e absorver da tremenda riqueza de sua personalidade, isto é, de sua obra.

Carlos Reichenbach: tradução cinema