terça-feira, 24 de julho de 2012

A morte


De Luis Fernando Verissimo
Em O Estado de São Paulo, de 12 de Julho de 2012

A morte não terá domínio

Li que Samuel Beckett dizia que quem morria passava para outro tempo. Não queria dizer outro mundo, com um presumível outro clima. Referia-se ao tempo do verbo. Entre todas as mudanças provocadas pela morte havia essa: o morto passava irremediavelmente ao pretérito. Era bom pensar assim. A morte acontecia no mundo antisséptico das palavras e das regras gramaticais, nada a ver com a decomposição da carne. O "é" transformava-se em "era" e "foi", e pronto. A migração do morto, em vez de ser da vida para o nada, era só entre categorias verbais.
A vida vista como uma narrativa literária nos protege do horror incompreensível da morte. Podemos nos imaginar como protagonistas de uma trama, que mesmo quando não é clara indica alguma coerência, em algum lugar. O próprio Beckett só escreveu sobre isso: a busca de uma trama, qualquer trama, por trás do aparente absurdo da experiência humana. E um enredo, ou um sentido que faça sentido, só pode ser buscado na narrativa literária, no encadear de palavras que leva a uma revelação, mesmo que esta não explique nada, muito menos a morte. E se falar, falar, falar sem cessar, como fazem os personagens do Beckett na esperança de que aflore algum sentido não der resultado, pelo menos está-se fazendo barulho e mantendo a morte afastada. A literatura tem essa função, a de uma fogueira no meio da escuridão da qual a morte nos espreita. Ou de uma matraca contra o silêncio final. Vale tudo, mesmo a garrulice incoerente de um personagem do Becket, contra a escuridão e o silêncio.
Num poema que fez sobre seu pai moribundo Dylan Thomas o insta a reagir ferozmente contra o esvaecer da luz - "Rage, rage against the dying of the light" - e a não se entregar à morte sem uma briga. Não sei se o Beckett encontrou o consolo que procurava pelos seus mortos na ideia de que tinham apenas mudado de tempo de verbo mas imagino que, como Dylan Thomas na sua poesia inconformada, tenha recorrido à literatura como um meio de negar à morte o seu triunfo. Ninguém morre. Há apenas uma revisão na narrativa da sua vida para atualizar o tempo dos verbos. Outra vez Dylan Thomas: "And death shall have no dominion", e a morte não terá domínio.
Diz-se que quem morreu "já era", o que é o mesmo que dizia o Beckett com mais sensibilidade. Mas Beckett queria dizer mais. Os personagens de narrativas literárias mudam do tempo presente para o tempo passado mas continuam no mundo, mesmo que no mundo restrito dos livros e das estantes. Salvo, talvez, os cupins e as traças, nada ameaça a sua perenidade. "São" eternamente.

sábado, 14 de julho de 2012

A greve

A greve dos docentes do sistema federal de ensino superior está rolando desde 17/05/2012. Finalmente em 13 de julho o governo fez uma proposta.

A seguir (1) o comunicado do Comando Nacional de Greve do Andes – SN, em 13 de julho e (2) um artigo do Prof. Roberto Leher, de 27/05/2012, para o Jornal Dia Dia.


O secretário de Relações do Trabalho, Sergio Mendonça, apresentou na tarde desta sexta-feira (13), às entidades do movimento docente, uma proposta que envolve tabelas e tópicos com aspectos conceituais sobre a carreira docente. Ao mesmo tempo em que o CNG/ANDES-SN tomava conhecimento das tabelas, no outro lado da Esplanada dos Ministérios, os ministros Aloizio Mercadante e Miriam Belchior davam uma entrevista coletiva falando do impacto orçamentário da proposta, que seria implementada entre 2013 e 2015.

A reunião no Ministério do Planejamento começou com os representantes do governo apresentando as tabelas. Imediatamente, os representantes do CNG/ANDES-SN pediram explicações e esclarecimentos. Ao invés de esclarecer, as falas do governo geraram mais dúvidas, e, por isso, houve a solicitação de que o governo apresentasse as respostas por escrito. A reunião foi suspensa e recomeçou cerca de uma hora depois com a entrega do documento. Como encaminhamento final, ficou agendada a realização de nova reunião no dia 23 de julho, às 14h. O Comando Nacional de Greve fará uma análise preliminar da proposta do governo para subsidiar as deliberações das assembléias gerais. Essa análise será concluída neste sábado.




Roberto Leher (UFRJ)

A longa sequencia de gestos protelatórios que levaram os docentes das IFES a uma de suas maiores greves, alcançando 48 universidades em todo país (28/05), acaba de ganhar mais um episódio: o governo da presidenta Dilma cancelou a reunião do Grupo de Trabalho (espaço supostamente de negociação da carreira) do dia 28 de maio que, afinal, poderia abrir caminho para a solução da greve nacional que já completa longos dez dias. Existem algumas hipóteses para explicar tal medida irresponsavelmente postergatória:

(i) a presidenta – assumindo o papel de xerife do ajuste fiscal – cancelou a audiência pois, em virtude da crise, não pode negociar melhorias salariais para os docentes das universidades, visto que a situação das contas públicas não permite a reestruturação da carreira pretendida pelos professores;
(ii) apostando na divisão da categoria, a presidenta faz jogral de negociação com uma organização que, a rigor, é o seu espelho, concluindo que logo os professores, presumivelmente desprovidos de capacidade de análise e de crítica, vão se acomodar com o jogo de faz de conta, o que permitiria o governo Dilma alcançar o seu propósito de deslocar um possível pequeno ajuste nas tabelas para 2014, ano que os seus sábios assessores vindos do movimento sindical oficialista sabem que provavelmente será de difícil mobilização reivindicatória em virtude da Copa Mundial de Futebol, "momento de união apaixonada de todos os brasileiros", e
(iii) sustentando um projeto de conversão das universidades públicas de instituições autônomas frente ao Estado, aos governos e aos interesses particularistas privados em organizações de serviços, a presidenta protela as negociações e tenta enfraquecer o sindicato que organiza a greve nacional para viabilizar o seu projeto de universidade e de carreira que ‘resignificam’ os professores como docentes-empreendedores, refuncionalizando a função social da universidade como organização de suporte a empresas, em detrimento de sua função pública de produção e socialização de conhecimento voltado para os problemas lógicos e epistemológicos do conhecimento e para os problemas atuais e futuros dos povos.

Em relação a primeira hipótese, a análise do orçamento 2012[1] evidencia que o gasto com pessoal segue estabilizado em torno de 4,3% do PIB, frente a uma receita de tributos federais de 24% do PIB. Entretanto, os juros e o serviço da dívida seguem consumindo o grosso dos tributos que continuam crescendo acima da inflação. Com efeito, entre 2001 e 2010 os tributos cresceram 265%, frente a uma inflação de 90% (IPCA). Conforme a LDO para o ano de 2012, a previsão de crescimento da receita é de 13%, porém os gastos com pessoal, conforme a mesma fonte, crescerá apenas 1,8% em valores nominais. O corte de R$ 55 bilhões em 2012 (mais de 22% das verbas do MCT) não é, obviamente, para melhorar o Estado social, mas, antes, para seguir beneficiando os portadores de títulos da dívida pública que receberam, somente em 2012, R$ 369,8 bilhões (até 11/05), correspondente a 56% do gasto federal[2]. Ademais, em virtude da pressão de diversos setores que compõem o bloco de poder, o governo Federal está ampliando as isenções fiscais, como recentemente para as corporações da indústria automobilística, renúncias fiscais que comprovadamente são a pior e mais opaca forma de gasto público e que ultrapassam R$ R$ 145 bilhões/ano. A despeito dessas opções em prol dos setores dominantes, algumas carreiras tiveram modestas correções, como as do MCT e do IPEA. Em suma, a hipótese não é verdadeira: não há crise fiscal. Os governos, particularmente desde a renegociação da dívida do Plano Brady (1994), seguem priorizando os bancos e as frações que estão no núcleo do bloco de poder (vide financiamento a juros subsidiados do BNDES, isenções para as instituições de ensino superior privadas-mercantis etc.). Contudo, os grandes números permitem sustentar que a intransigência do governo em relação a carreira dos professores das IFES não se deve a falta de recursos públicos para a reestruturação da carreira. São as opções políticas do governo que impossibilitam a nova carreira.

Segunda hipótese. De fato, seria muita ingenuidade ignorar que as medidas protelatórias objetivam empurrar as negociações para o final do semestre, impossibilitando os projetos de lei de reestruturação da carreira, incluindo a nova malha salarial e a inclusão destes gastos públicos na LDO de 2013. O simulacro de negociações tem como atores principais o MEC, que se exime de qualquer responsabilidade sobre as universidades e a carreira docente, o MPOG que defende a conversão da carreira acadêmica em uma carreira para empreendedores e, como coadjuvante, a própria organização pelega que faz o papel dos truões, alimentando a farsa do jogral das negociações.

Terceira hipótese. É a que possui maior lastro empírico. As duas hipóteses anteriores podem ser compreendidas de modo mais refinado no escopo desta última hipótese. De fato, o modelo de desenvolvimento em curso aprofunda a condição capitalista dependente do país, promovendo a especialização regressiva da economia. Se, em termos de PIB, os resultados são alvissareiros, a exemplo dos indicadores de concentração de renda que alavancam um seleto grupo de investidores para a exclusiva lista dos 500 mais ricos do mundo da Forbes, o mesmo não pode ser dito em relação a educação pública.

Os salários dos professores da educação básica são os mais baixos entre os graduados[3] e, entre as carreiras do Executivo, a dos docentes é a de menor remuneração. A ideia-força é de que os docentes crescentemente pauperizados devem ser induzidos a prestar serviços, seja ao próprio governo, operando suas políticas de alívio à pobreza, alternativa presente nas ciências sociais e humanas ou, no caso das ciências ditas duras, a se enquadrarem no rol das atividades de pesquisa e desenvolvimento (ditas de inovação), funções que a literatura internacional comprova que não ocorrem (e não podem ser realizadas) nas universidades[4]. A rigor, em nome da inovação, as corporações querem que as universidades sejam prestadoras de serviços diversos que elas próprias não estão dispostas a desenvolver pois envolveriam a criação de departamentos de pesquisa e desenvolvimento e a contratação de pessoal qualificado. O elenco de medidas do Executivo que operacionaliza esse objetivo é impressionante: Lei de Inovação Tecnológica, institucionalização das fundações privadas ditas de apoio, abertura de editais pelas agencias de fomento do MCT para atividades empreendedoras. Somente nos primeiros meses deste ano o Executivo viabilizou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, um ente privado, que submete os Hospitais Universitários aos princípios das empresas privadas e aos contratos de gestão preconizados no plano de reforma do Estado (Lei nº. 12.550, 15 de dezembro de 2012), a Funpresp (Fundação de Previdência Complementar dos Servidores Públicos Federais), que limita ao teto de R$ 3.916,20, medida que envolve enorme transferência de ativos públicos para o setor rentista e que fragiliza, ainda mais, a carreira dos novos docentes, pois, além de não terem aposentadoria integral, não possuirão o FGTS, restando como última alternativa a opção pelo empreendedorismo que ilusoriamente (ao menos para a grande maioria dos docentes) poderia assegurar algum patrimônio para a aposentadoria. Ademais, frente à ruina da infraestrutura, os docentes devem captar recursos por editais para prover o básico das condições de trabalho. Por isso, nada mais coerente do que a insistência do Executivo em uma carreira que converte os professores em empreendedores que ganham por projetos, frequentemente ao custo da ética na produção do conhecimento[5].

Os operadores desse processo de reconversão da função social da universidade pública e da natureza do trabalho e da carreira docentes parecem convencidos de que já conquistaram os corações e as mentes dos professores e por isso apostam no impasse nas negociações. O alastramento da greve nacional dos professores das IFES, o vigoroso e emocionante apoio estudantil a essa luta sugerem que os analistas políticos do governo Federal podem estar equivocados. A adesão crescente dos professores e estudantes ao movimento comprova que existe um forte apreço da comunidade acadêmica ao caráter público, autônomo e crítico da universidade. E não menos relevante, de que a consciência política não está obliterada pela tese do fim da história[6]. A exemplo de outros países, os professores e os estudantes brasileiros demonstram coragem, ousadia e determinação na luta em prol de uma universidade pública, democrática e aberta aos desafios do tempo histórico!

Rio de Janeiro, 27 de maio de 2012




sexta-feira, 13 de julho de 2012

Mulher inacessível


Thais, 36, é professora de matemática e leciona 34 horas semanais em duas escolas, uma pública e outra privada, na cidade de São Paulo. Seu salário é de R$ 1.700. Para complementar, vende cosméticos que lhe rende R$ 1.000 em dez horas de trabalho por semana. Ela é casada com o João Carlos, 42, funcionário de uma concessionária de automóveis. O casal tem dois filhos: João de 7 anos e Carla de 5.
A rotina de Thais é infernal. Acorda às 5 horas, arruma o café da manhã dos meninos que tomam o ônibus para a escola às 06h30min horas. As 7 sai de casa para o trabalho docente nas duas escolas em que tem aulas. Tudo isso de ônibus e metrô. Nas quartas e sábado vende cosméticos. No domingo descansa? Negativo. Neste dia prepara aulas e corrige testes de seus alunos e alunas. E João e Carla? Conversa com eles nos intervalos (no recreio) desta maratona. A sorte deles é o pai que tem mais tempo livre.
Thais está entre os 266 mil docentes da educação básica do país que possuem uma segunda ocupação, um “bico” fora do ensino segundo a Folha de São Paulo de 07/11/2011. Este número representa 10,5% do magistério nacional, índice bem acima da população brasileira (3,5% tem uma segunda ocupação).
João Carlos vive com Thais há dez anos. Ela sempre na maratona diária. Ele, mais tranquilo, tem uma rotina apenas alterada no fim do mês: a maldita meta de venda de automóveis da empresa.
Carla aniversaria dia no dia 28 de setembro. Naquele ano esta data, seu 6º niver,  foi num sábado. Os pais resolveram, junto com a filha, comemorar no McDonald. É a terceirização da festa já que pelas atividades da mãe foi impossível sua organização no condomínio onde moram. Foram convidadas as colegas, os colegas de escola, os parentes e agregados, cerca de 30 convivas.
No convite para a meninada dizia início da festa às 18 horas. João Carlos levou os filhos. E cadê Thais? Trabalhando. A turba convidada estava se esbaldando no tobogã e nos outros brinquedos do McDonald. 19 horas e nada de Thais. Às 20 horas o pai deliberou por cantar os parabéns e cortar o bolo. Às 20h05min chegou a esbaforida Thais no meio do parabém para você. Pode?
- Desculpe filha, mamãe saiu tarde do shopping de vendas. Meus parabéns, disse Thais beijando e abraçando Carla.
- Problema não mãe, já estou acostumada, disse a resignada filha.
Denise Alvarez em seu ótimo livro (e um belo título) tem o diagnóstico disto aí: “... fica clara esta mistura entre tempo social e tempo profissional, pois não é mais a vida profissional que interfere na vida social e sim o inverso, a vida social é que se infiltra na vida profissional, “atrapalhando” seu desempenho. Daí a afirmação que os aniversários – data única na vida de uma pessoa, que acontece uma vez por ano – têm o hábito de se concentrar em datas inconvenientes. Exemplo claro da relação entre temporalidade ergológica e tempo vivido nas relações sociais, pois não temos dois corpos: um dedicado ao trabalho e outro à vida social. O que há é uma fusão permanente entre valores que aí são tecidos e reelaborados. (Denise Alvarez, Cimento não é concreto, tamborim não é pandeiro, pensamento não é dinheiro! Para onde vai a produção acadêmica? Myrrha, Rio de Janeiro, 2004). Thais faz parte daquelas pessoas infectadas pelo trabalho.
 Thais precisa do trabalho para ajudar a pagar as contas da família? Sim. É a realidade da profissão professora no contexto desta droga malhada chamada educação brasileira. Mas também conheço pessoas que faz do trabalho uma fuga. Dizem: trabalho muito para não pensar em meus problemas pessoais. Nestes casos só Freud mesmo para explicar. Não tenho dados para afirmar que seja o caso de Thais. Mas relato a seguir o que aconteceu numa noite.
João Carlos chegou do trabalho mais tarde do que o normal. Encontrou os filhos dormindo e Thais no computador preparando aula. Constrangido resolveu confessar.
- Thais preciso te dizer uma coisa muito séria.
Thais na frente do computador.
- Será que você está prestando atenção?
E Thais continua no computador.
Já revoltado com a cena João Carlos finalmente disse:
- Hoje de noite fui para um motel com uma colega de trabalho.
Thais na frente do computador.
 - E você não vai me dizer nada? disse o marido.
Thais sem tirar os olhos da tela do computador respondeu:
- Tá bom João, agora vai dormir que preciso terminar minha aula.
João foi para a cama e Thais pensou: Deus sabe o que faz.
A vida continuou para os dois. Há coisas que não tem explicação, tem existência.

Edson Pereira Cardoso, julho de 2012.

Este texto foi inspirado por uma palestra de Denise Alvarez realizada na UFES.