Tatiana Leskova / Agência O GLOBO
Às vésperas de completar 90 anos, dia 6 de dezembro, Tatiana Leskova não combina com a imagem de uma senhora serena, inativa, avessa à tecnologia. Enquanto conversa com o repórter, pega seu iPad, faz uma ligação por Skype para o editor Joel Gehlen e confirma a data de lançamento da fotobiografia “Tatiana Leskova, imagens de uma bailarina solta no mundo”, que já pode ser comprada pela internet, no endereço www.letradagua.com.br: 30 de outubro, na Livraria Argumento. Em seguida, ela lê o e-mail do editor britânico que vai lançar até o Natal, na Inglaterra, “Tatiana Leskova, uma bailarina solta no mundo”, caprichada biografia escrita pela jornalista Suzana Braga. Elétrica, Tatiana — conhecida como dona Tânia no meio da dança — mantém a forma que sempre lhe rendeu elogios com três sessões semanais de pilates e duas de gyrotonic. E serenidade é uma palavra distante de seu vocabulário.
— Continuo boa de briga. Digo o que penso — afirma ela, que já foi chamada de “linha dura”, “intransigente”, “ferina”, “autoritária”, “ditatorial”, “perfeccionista”. — Passei fome na infância, enfrentei muita coisa na vida, por isso sou durona.
Ela manteve uma academia que teve como alunos Márcia Haydée, Nora Esteves, Roberta Marquez, Márcia Milhazes, Dani Lima, Deborah Colker, Marília Pêra, Betty Faria, Fernanda Torres e Claudia Raia. Quem estudou com ela não esquece a severidade da mestra.
— Ela sempre foi muito exigente. Mas a exigência e a pouca tolerância com os erros são absolutamente necessários para o balé clássico — diz Ana Botafogo, que, apesar de não ter se formado com ela, foi aluna “itinerante”. — E depois, quando ela foi diretora do balé do Municipal, no fim dos anos 1980, me deu grandes oportunidades e me fez crescer muito como artista.
— Havia gente que chorava, desistia. Eu às vezes ficava muito brava. Mas pensava: “Vou batalhar e mostrar que consigo.” E por trás dos rompantes havia muito amor. Ela é a maior referência de dança do país. Costuma falar: “O dia em que você achar que está boa já tá na hora de parar” — diz Laura Prochet, solista do Municipal.
Tatiana admite o rigor.
— Mas nunca bati em ninguém com uma vara. Batia no chão, para o pianista e os alunos manterem o ritmo — pondera.
Esse gênio fortíssimo se deve em parte ao pai, que a criou sozinho após a morte de sua mãe, quando ela tinha 9 anos. Naturalizada brasileira, ela nasceu na França, filha de imigrantes aristocratas russos, refugiados da Revolução de 1917, que perderam suas riquezas e privilégios.
— Meu pai dizia: “Você não pode mentir, tem que ser honesta consigo mesma.” Na Rússia, você era obrigado a fazer serviço militar. Então ele tinha essa mentalidade.
Dele Tatiana também herdou sua curiosidade e seu vasto conhecimento.
— Em vez de contos de fadas, ele lia para mim a mitologia grega e romana, e eu tinha que saber cada deus — diz ela, que no momento lê os cinco livros escritos por seu bisavô, Nikolai Leskov, lançados pela Editora 34.
Sobre Tatiana, escreve o crítico Antônio José Faro em seu “A dança no Brasil e seus construtores”, publicado em 1988: “Sem ela é possível que nossa dança estivesse ainda engatinhando, lutando para ser reconhecida, e nossos bailarinos mendigando espetáculos. A dança clássica no Brasil só pode ser avaliada antes e depois de Tatiana.” Na biografia, Suzana diz: “Com Tatiana a dança brasileira pulou do mero adestramento para o patamar artístico e profissional.” A trajetória da bailarina e coreógrafa se confunde em parte com a do Teatro Municipal, onde dirigiu o corpo de baile em três gestões: 1950/64, 1970/80 e 1987/1990. Foi uma relação de amor e ódio mútuo, em que se misturam grandes produções de balé com carência de verbas, falta de continuidade, brigas com bailarinos, greves, salários atrasados, burocracia. Ela reclama que os diretores davam ouvidos demais à comissão de bailarinos e que sua autoridade era desrespeitada.
— Tatiana é uma pessoa admirável, que tem carisma artístico e uma liderança indiscutível — diz José Carlos Barboza, que foi presidente da Fundação Teatro Municipal no período final de Tatiana no teatro. — Só que ela tem uma visão autoritária e imperial de que o diretor artístico pode tudo. É a escola a que estava acostumada, tinha formação dos corpos de baile antigos, mas não havia mais clima para isso no Municipal. Estávamos virando fundação, com criação de plano de cargos e salários, tudo isso exige muita conversa e cooperação com os bailarinos.
Ao fazer o balanço, ela sintetiza:
— O Municipal é minha casa.
Tatiana começou a estudar dança aos 10 anos com Lubov Egorova (“Minha segunda mãe”) e, aos 16, ingressou no prestigioso Original Ballet Russo.
Correu o mundo e teve grandes performances. Em 1943, em Buenos Aires, conheceu um brasileiro culto e sedutor, Luiz Reis, por quem viria a se apaixonar e a largar a companhia em 1944, instalando-se no Rio. Ele era casado, mas isso não impediu que vivessem uma caso que durou 40 anos — “20 de paixão e 20 de amizade” —, até a morte dele, em 1986.
— Luiz era um casanova, me enganava, mas era um gentleman, meu melhor amigo, minha única e última paixão — diz.
Tatiana nunca quis nada dele, e quando Luiz morreu não recebeu um centavo.
— Dele só tenho um canivete suíço que a governanta me deu. E a memória, que é a coisa mais importante.
Na sala de seu apartamento, em Ipanema, há fotos de Luiz, dos pais de Tatiana, de seus avós maternos, de um bisavô, da madrinha.
— A empregada me disse: “A senhora só tem foto de gente morta. Parece um cemitério.” Respondi: “Não, é minha família.”
Curiosamente, a viúva de Luiz, a francesa Giselle, tornou-se amiga de Tatiana.
— Ela dizia: “Você é a única mulher honesta que Luiz encontrou na vida.”
Tanto que, ao morrer, Giselle deixou uma herança para ela. Foi graças a esse dinheiro que pôde comprar o apartamento, algo impossível com sua aposentadoria de cerca de R$ 2.500.
— Eu fazia de tudo no Municipal: dava aula, ensaiava, coreografava, remontava. E ganhava uma ninharia. Se não fosse Giselle eu acabaria no Retiro dos Artistas — diz ela, que não teve filhos e mora com seu cão basset Toddy. — Não dava tempo, tinha que trabalhar, sustentar a família. E o Luiz era casado.
Por trabalhar, entende-se conviver com nomes como o coreógrafo George Balanchine, os compositores Stravinsky e Rachmaninoff, a bailarina Alicia Alonso. Com o amigo Rudolf Nureyev trabalhou algumas vezes, como quando ele, diretor da Ópera de Paris, chamou-a para remontar “Les présages”, de Léonide Massine, coreógrafo de quem Tatiana havia sido intérprete de várias obras. Foi um sucesso, e por mais de uma década ela remontou balés de Massine.
Há alguns anos, fazia muitas remontagens de balés pelo mundo. A última — justamente de “Les présages” — foi em 2008, em Londres. De vez em quando dá master classes. Na quarta, vai para Santos, integrar o júri do concurso Youth American Grand Prix. De lá, segue para São Paulo, onde faz o último ensaio da coreografia do grand pas de deux de “O Quebra-nozes”, que remontou para a São Paulo Companhia de Dança. As apresentações são dia 10 e 11. A academia em Copacabana fechou as portas em 2002.
— O número de alunos caiu muito depois que saí do Municipal. E vi que não tinha muitos talentos. Não dava para dar aula por dar. Ou faço bem feito ou não faço — diz ela, que distribuía bolsas de estudos a alunos sem condições.
Tatiana observa que os alunos de hoje acham que sabem tudo e não escutam os professores.
— Eles veem vídeos, DVDs, olham na internet. Você já era — ironiza, referindo-se aos professores. — Mas, para ser bailarino, é preciso trabalho, suor, lágrimas, dedicação, disciplina e fé. E um artista tem que ter alma de artista. O pessoal bota malha e pensa que dança. Eugenia Feodorova (outra grande mestra, russa, que veio para o Brasil) dizia: “Tem muito bailarino que gosta da dança, mas a dança gosta de poucos.” Todo mundo tem sonho. Mas a gente tem que trabalhar duro, subir a escada degrau por degrau. Não é porque quer. Eu gostaria de cantar, mas como poderia com essa voz rachada?
Sua voz era “muito fina, francesa”. No quinto dia após assumir o corpo de baile do Municipal, perdeu “a voz”, que ficou rouca e grave.
— Eu tinha que gritar numa sala muito grande, com bailarinos conversando, barulho de rua, querendo me impor, com 27 anos. Operei as cordas vocais, fiz empostação, não adiantou nada. Mas acho que agora tenho uma voz sexy.
Antes de se despedir, ela brinca mais uma vez:
— Não me pinte muito mal, mostre-me como sou, verdadeira, honesta com os outros e comigo. Eu sou como eu sou, me aceitem ou não.
Mauro Ventura
22/09/2012
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