sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Insurgentes

O estadunidense John Reed em seu livro “México Insurgente” (Boitempo, 2010) relata sua passagem pela revolução mexicana, como jornalista. Reed passou quatro meses no México a serviço de um jornal de Nova Iorque. Retrata o povo mexicano em luta e em especial, Pancho Villa.
Reproduzo aqui (p. 67) um diálogo com revolucionários mexicanos.

- Estamos lutando – disse Isidoro Amaya – pela libertad.

- Que quer dizer libertad?

- Libertad é quando eu posso fazer o que eu quero!

- Mas suponha que isso prejudique alguém.

Respondeu-me com a grande frase de Benito Juarez:

- O respeito pelo direito alheio é a paz!

Eu não estava preparado para isso. Surpreendeu-me tal conceito de liberdade de um mestizo descalço. Considero-o a única definição correta de liberdade – fazer o que quiser! Os norte-americanos apontaram-no com ar de triunfo como um exemplo de irresponsabilidade mexicana. Creio, porém, que é uma definição melhor do que a nossa: “Liberdade é o direito de fazer o que ordena a Corte de Justiça”. Todo menino mexicano em idade escolar conhece a definição de paz e parece compreender o que ela significa. Mas nos Estados Unidos dizem: os mexicanos não querem a paz. Isso é uma mentira estúpida. Deem-se os americanos o trabalho de fazer um inquérito no exército maderista, perguntando se querem a paz ou não! O povo está cansado da guerra.

Contudo, para ser justo, devo informar o que Juan Sanchez expressou:

- Há guerra agora nos Estados Unidos? – perguntou.

- Não – contestei, mentindo.

- Não há guerra, de nenhuma espécie? – ele pensou um pouco.  – Como vocês passam o tempo, então?

Corta
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6 de Janeiro de 2011:
A grande máquina de guerra dos EUA custa 1,5 trilhão de dólares (equivalente ao PIB brasileiro) ao ano, valor que significa 43% dos gastos militares em todo o mundo.

http://www.vermelho.org.br/es/noticia.php?id_noticia=144867&id_secao=9  12/12/2013

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 A resposta a Juan Sanchez, em 2011, mostra como os EUA passam o tempo.


 

Pancho Villa (in the Presidential chair) chats with Emiliano Zapata at Mexico City.
Tómas Urbina is seated at far left, Otilio Montaño (with his head bandaged) is seated to the far right.

 

 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Sempre juntos, eternamente separados


Criaturas sem lembrança da sua meia-vida humana, jamais podem se tocar. Apenas a angústia de um átimo, na aurora ou no poente quando estão por se tocar. Sempre juntos, eternamente separados. Enquanto o soI Ievantar e se pôr. Enquanto houver o dia e a noite, enquanto estiverem vivos. Do filme “Feitiço de Áquila” (1985), Richard Donner.  

O enredo do filme “Feitiço de Áquila” é mais ou menos assim: Europa, século XII. O Bispo de Áquila (John Wood) toma consciência que sua amada, a bela Isabeau (Michelle Pfeiffer), está apaixonada por Etienne Navarre (Rutger Hauer), um cavaleiro. Áquila fica possuído de raiva e ciúme e lança uma maldição sobre o casal: de dia ela sempre será um falcão (falcão peregrino ou falcão real) e de noite Navarre toma a forma de um lobo (lobo cinzento), sendo que desta forma fica o casal impedido de se entregar um ao outro. Lembro que estas espécies de falcão e lobo são monogâmicas.

Com este prólogo contaremos a seguir a estória de Alice.

Alice morava em Campinas. De família trabalhadora ela sempre teve uma vida agitada. Aos 18 anos estudava e trabalhava para se virar nos estudos e ajudar a família. Já nesta idade arriscava na música. Tinha boa voz e começou a cantar com a turma da faculdade. Gostava de Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Dominguinhos e o sempre Noel Rosa. Alice sabia todas as músicas do Noel.

O sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque a gente implora: / Sol, pelo amor de Deus, / não vem agora / que as morenas / vão logo embora / Eu sei tudo o que faço / sei por onde passo / paixão não me aniquila / Mas tenho que dizer / modéstia à parte / Eu sou da Vila. (Feitiço da Vila)

Aos 30 anos Alice morava em São Paulo. Já formada em Ciências Sociais trabalhava no IBGE como pesquisadora. Mas ela fazia outras coisas. A música não saiu de sua vida. No início paulistano cantava na noite e aprendeu piano. Como cantora sabia que não sobreviveria, mas era o que mais gostava. E a noite era dela. Por isso adequou seu horário de trabalho no IBGE para depois do meio-dia. Seguia a máxima do Noel: Sol, pelo amor de Deus, não vem agora...

E Alice namorava? Claro, a noite é também para as paixões. Teve o Mário (músico), teve o Fábio Aurélio (analista de sistemas), teve o Clayton (sociólogo) e outros namoricos. Estas paixões foram boas, mas não aniquilaram Alice.

Aí entra a segunda personagem desta estória: o Silvio.

O Sílvio quase aniquilou Alice. Quando se conheceram numa noite ela estava nos 30 e ele nos 40. Ele era um empresário bem sucedido com uma vantagem: culto, bonito, sexy e um senão: era casado. Tinha esposa (Clara) e filhos. Empresário bem sucedido significa morar com a família numa casa própria espaçosa, ter outros imóveis, jogar na bolsa de valores, viajar em férias a Paris, Nova Iorque, Istambul etc. Sílvio era da noite. Quando jovem foi da turma do sexo, drogas e rock. Estava bem quando estava na noite acompanhado de um uísque, amigos e amigas. E com a música nos bares da vida melhor ainda.

Clara era do tipo de mulher que tinha uma sensualidade especial, era reservada de um jeito que a fazia diferente das demais mulheres e o segredo de sua atratividade, para Sílvio, era uma mistura de passividade e distinção. E nesta maré o casamento Clara-Silvio seguiu em frente por muito tempo. Nunca se dissolveu. Sempre juntos.

Alice e Sílvio viveram muito tempo juntos, muito juntos, porém apenas a noite. De dia tinham suas vidas separadas. Cada um num canto, cada um na sua. À noite Alice vivia. De dia trabalhava. Vivia porque cantava e ficava com seu homem querido.

Esta rotina dual como no filme “Feitiço de Áquila” até que no início não desgastava Alice. Mas depois ela reclamou.

Vamos ficar neste chove não molha até onde, Sílvio? Disse um dia ela para ele.

Você quer que eu seja sincero, Alice: não sei se sei até onde.

Ah é seu cafajeste, então vai a merda! Respondeu Alice.

Depois desta conversa não se viram por um tempão. Acabou a dualidade.

Mas não teve jeito, exatos 90 dias após, se reencontraram na noite. Alice se lixou para o aniquilamento. Venceu a paixão.

E continuaram como na música do Chico: O nosso amor é tão bom. O horário é que nunca combina. Eu sou funcionário, ela é dançarina. Quando pego o ponto, ela termina.

Sílvio faleceu aos 60 anos e deixou, agora sim, Alice aniquilada. Ela curtiu - no mal sentido - a ausência dele por muito tempo. Demorou a Alice considerar Silvio morto, mas com o tempo decidiu oferecer ao seu ego continuar a vida. E continuou vivendo (à noite) e trabalhando (de dia).

Decorrido um ano da morte do marido Clara chamou Alice para uma conversa. Combinaram o encontro no Terraço Itália na Avenida Ipiranga, centro de São Paulo. Era a primeira vez que se encontraram. Alice, tensa, pensou “que diabo esta mulher quer de mim”. Mas que nada. Foi uma conversa tranquila. Falaram de trivialidades e num certo momento Clara disse:

“Você foi a única mulher honesta que Silvio encontrou na vida”.

Alice quase caiu da cadeira quando ouviu a declaração e Clara continuou

“Sabe o que penso Alice, nós mulheres vivemos períodos na vida em que nos portamos como idiotas. São os momentos em que nos apaixonamos por um homem.
Aconteceu comigo e com você em relação ao Sílvio, aquele cafajeste que nos seduziu”.

Clara e Alice se encontraram outras vezes até o falecimento da primeira.

Hoje Alice vive num bom apartamento de 200 m2 que Clara deixou como herança para "a única mulher honesta que Silvio encontrou".


NB: Qualquer relação das personagens desta estória não é mera coincidência com a vida de Tatiana Leskova que foi bailarina, coreógrafa e professora de balé do Municipal do Rio de Janeiro.