quarta-feira, 30 de março de 2016

IA e a barbarie

Já comentei neste blog as contradições da IA (Inteligência Artificial): "O cinema versus IA"http://librinas.blogspot.com.br/2014/07/o-cinema-versus-ia.html

O texto do Roberto Vitorino acrescenta sobre o tema, além de ser insuportavelmente brilhante.
 


Roberto Vitorino

28 de março às 01:25 ·

Eu tenho um amigo que escolheu viver offline. Ele não tem facebook, instagram, twitter, snapchat, não liga a tv em casa, não tem whatsaap, não gosta de falar ao celular. Fazia tanto tempo que eu não o via, que pensei, sei lá, que talvez ele tivesse... enfim, meu amigo está muito bem. Outro dia o encontrei na praia e ficamos a tarde conversando. Ele sabe o que está acontecendo no Brasil, tem opinião sobre tudo, continua estranhamente sendo o cara que sempre foi. Mas tinha uma coisa diferente nele agora, digo "diferente" de antes, diferente dos outros amigos, diferente de nós; uma delicadeza quase arrogante de tão alienada. É que esse amigo teima em ser insuportavelmente gentil. Para qualquer entendedor trata-se do caso clássico de um alienado adaptado aos novos tempos. Meu amigo concorda com esta tese, inclusive. Ele sabe disso. E depois que concorda, ele vai no mar e dá um mergulho, volta sorrindo e não entende quando alguém repete uma piada do Sensacionalista. "Isso é um programa de TV?"

Eu me lembrei desse amigo hoje quando li que "Tay", o projeto ambicioso de Inteligência Artificial da Microsoft, fracassou redondamente semana passada. Tay era um personagem feminino programado para aprender com as interações da rede e produzir tweets espontaneamente depois de interagir com os humanos. Em menos de 24 horas a Microsoft teve que tirar Tay do ar, porque a menina dotada de inteligência e vontade própria virou nazista. Isso mesmo, Tay virou nazista (com elogios públicos a Hitler), além de homofóbica, racista e misógina. Para o constrangimento da empresa que teve que vir a público se desculpar das declarações que Tay fez com ódio amplo e disseminado a povos, pessoas, a praticamente todo mundo. Eu poderia dar exemplos aqui, mas os tweets de Tay são mesmo impublicáveis.

Não à toa, um punhado de pesquisas acadêmicas tenta mapear a relação real entre ódio e internet. Essa impressão de que a internet simplesmente deu voz a uma legião de imbecis (como disse Eco) não é mais completamente aceita. Existe uma possibilidade real de que seres humanos confinados em bolhas artificiais de algoritmos e trending topics (onde pessoas tendem a ler e conviver muito mais com pessoas que pensam e concordam com elas sobre os mais diversos assuntos) estejam de fato sendo levados a uma radicalização forçada do pensamento, levados a uma atrofia da faculdade de percepção da realidade. Somos todos Tay, portanto. Ou mais ou menos isso.

Eu que não tenho dignidade para ser offline, nem vegano, nem triatleta (mas tenho um respeito profundo aos três) estava aqui juntando três pontinhos soltos no espaço: a gentileza alienada desse meu amigo offline, o nazismo inesperado de um programa de inteligência artificial e a tal tese de que talvez a internet não tenha desvelado simplesmente os monstros guardados nos calabouços da alma; quem sabe ela tenha dado um sopro de vida para alguns desses monstros também.

Somos todos Tay e somos todos Frankenstein. Hashtag qualquer coisa aqui.