“Bilhões de pessoas estarão em breve nas ruas, procurando por abrigo. Isso explica por que ideias da extrema direita autoritária têm se infiltrado no mundo inteiro. Elas simbolizam a submissão de 99% da humanidade ao 1% mais rico”
Anahi Martinho, Folha de São Paulo, 09/11/2018
A escritora Virginie Despentes Jean-Francois Paga/Leemage
Paris, 2014. Clima de pânico em meio a ameaças terroristas. Um cinquentão falido, dono de uma loja de discos, tenta sobreviver após fechar seu negócio. Sem recursos, mergulha numa trajetória de decadência e vai parar nas ruas, vivendo como sem-teto.
“Vernon Subutex”, o mais recente romance da francesa Virginie Despentes, é comédia humana da atual geração, que jurou fidelidade à contracultura e agora padece sob o colapso do sistema de bem-estar social e a volta do fascismo. Best-seller na França e finalista do prêmio Man Booker International deste ano, o romance é o primeiro volume de uma trilogia que vai virar série de TV em 2019. No Brasil, deve chegar também no ano que vem, pela Companhia das Letras.
No livro, o protagonista Vernon concretiza o pesadelo pequeno-burguês que assombra uma sociedade paranoica: a perda de status. Humilhado por velhos amigos, passa a viver da caridade de estranhos, cercado por um sentimento crescente de extremismo social.
“Bilhões de pessoas estarão em breve nas ruas, procurando por abrigo. Isso explica por que ideias da extrema direita autoritária têm se infiltrado no mundo inteiro. Elas simbolizam a submissão de 99% da humanidade ao 1% mais rico”, diz a escritora em entrevista à Folha.
Cria do movimento anarcopunk oitentista europeu, ex-prostituta e “feminista casca-grossa” (nas próprias palavras), Despentes estreou na literatura francesa aos 23 anos com “Baise-Moi” (1993), uma jornada sanguinolenta de duas amigas em busca de vingança.
O romance deu origem ao filme homônimo, em que a própria autora dirigiu atrizes pornô em cenas de sexo não simuladas. Lançado em 2000, o longa virou cult após ser censurado no país.
Em 2006, Despentes publicou o manifesto “Teoria King Kong”, no qual diz ser “a voz das mulheres feias, das caminhoneiras, das frígidas, das mal comidas, das incomíveis, das histéricas, das psicóticas, de todas as excluídas do mercado da boa moça”.
No ensaio autobiográfico, lançado no Brasil pela n-1, ela narra em detalhes o estupro que sofreu aos 17 anos, quando foi atacada, junto com uma amiga, por três homens armados com um rifle.
“Estupradores são os terroristas do patriarcado, que trabalham para que outros homens não precisem estuprar ninguém”, diz ela à Folha. “Um homem que caminha na rua à noite sozinho dispõe do trabalho invisível dos estupradores: são eles que transformam a cidade em um lugar masculino”, completa.
Um dos capítulos de “King Kong” é intitulado “Impossível estuprar essa mulher cheia de falhas”. Questionada sobre a fala do presidente eleito Jair Bolsonaro à deputada Maria do Rosário em 2003, quando disse que ela não merecia ser estuprada por ser “muito feia”, a escritora comenta que a frase “significa que ser estuprável é um sinal que você tem as qualidades necessárias para pertencer ao campo da humanidade como fêmea”.
Em 1991, Despentes passou a trabalhar como prostituta. Por três anos, ela se manteve com um trabalho que considera digno e bem pago se comparado a outras atividades proletárias que exerceu antes. “Tenho a impressão de que usam o trabalho sexual para legitimar qualquer outra forma de exploração. Trabalhar 12 horas por dia e não conseguir pagar seu aluguel é aceitável. Trabalhar em um ambiente miserável, sendo humilhado por um patrão estúpido é aceitável. Então você traça uma linha: trabalho sexual não é”, diz.
Ela mesma admite que, antes de se lançar à profissão, acreditava que as prostitutas eram vítimas —inconscientes ou manipuladas. A vivência do trabalho sexual trouxe outra perspectiva. “Quem faz o trabalho tem uma opinião válida sobre o trabalho. Se você acredita que fazer sexo por dinheiro destrói sua faculdade de analisar a situação, então você acredita que sexo para as mulheres fora da instituição do casamento e da propaganda romântica é sempre destrutivo”, pondera.
Ela parte do pressuposto que, enquanto vivermos sob o sistema liberal econômico, sexo será mercadoria. Assim, a luta pela regulamentação se torna necessária para que a profissão possa ser exercida em condições adequadas, seguras e confortáveis. “Dar prazer não implica se sentir miserável. Sexo não prejudica o cérebro. Chupar um pênis nunca destruiu nenhum neurônio.”
Ainda em “King Kong”, Despentes explora a ética ambivalente que viveu ao transformar sua imagem para aparentar uma “hiperfeminilidade”.
A experiência a coloca face a face com a tirania do sistema, que prende as mulheres na armadilha da busca infinita pela beleza. “Mulheres bonitas que concordam em agradar a homens poderosos não são um detalhe: elas constituem o poder da masculinidade”, diz.
Doze anos depois de seu lançamento, “Teoria King Kong” já se tornou bibliografia obrigatória do debate de gênero. Admirada com a ousadia da atual geração, a autora diz se sentir “vivendo num sonho”.
“A internet mudou tudo. Eventos como #MeToo eram impensáveis há dez anos. Coisas que estou lendo agora na internet são tão furiosas! Porra, essas meninas são mais bravas do que eu jamais fui. Passei a vida inteira me sentindo raivosa demais e, de repente, essas jovens me fazem parecer fofa. Estou adorando isso.”
E arrisca um conselho radical às mulheres das gerações Y e Z: que abandonemos a heterossexualidade. “Eu recomendaria a todas vocês desistirem de serem héteros. Não vejo como conseguiriam suportar os homens como minha geração suportou. O slogan da minha geração era: ‘Você tem que amar os homens’. E nós realmente os amamos. Eles eram os grandes mestres de tudo. Essa era acabou.”
Virginie Despentes, 49
Nascida em Nancy, na França, estreou na literatura aos 23 com ‘Baise-Moi’. Publicou, entre outros, os romances ‘Teen Spirit’ (2002) e ‘Bye Bye Blondie’ (2004), que virou filme com Emmanuelle Béart e Béatrice Dalle dirigido e roteirizado pela escritora. Seu manifesto “Teoria King Kong” (2006) foi publicado no Brasil pela n-1
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/11/feminista-casca-grossa-francesa-virginie-despentes-deve-lancar-romance-no-brasil.shtml 22/11/2018
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