Viveiros de Castro: “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”
Em entrevista à Pública, antropólogo diz que madeireiros e mineradores ilegais funcionam como “carne de canhão” para privatização da Amazônia
CIRO BARROS E THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA), EL PAIS - BRASIL
12 outubro 2019
Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro.
A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.
Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Pergunta. Um sujeito que o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?
Resposta. Essa frase está num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade, porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar, porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha, de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.
E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente, envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e, portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual, a mudança climática, a crise de todos os sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso. Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente, implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando, como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria, sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em 1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética. O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai terminar”, mas “está terminando”.
P. Em algumas entrevistas, já vi o senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?
R. Acho que sou pessimista, sim, em vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for, efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical, dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que, entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita, de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal potência mundial [os Estados Unidos], em breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos, sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?
P. É o que me pergunto todo dia.
R. Tem que chamar um psicanalista para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e psicanalista] fez do fascismo. Para analisar isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
P. Em 2013, eu tinha 23 anos e foi um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise — principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.
R. Você tinha uma situação em que o PT se comportou de uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que o Lula é um personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata, enquanto chamar o PSDB de um partido social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e, ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões. A Carta aos Brasileiros do Lula, em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.
P. Tem uma entrevista que o Celso Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula [2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho? E Belo Monte?
R. Primeiro, eu queria fazer uma ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez, não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte, com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples: dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa maneira, na economia.
P. E Belo Monte?
R. Bom, uma das grandes divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região, pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor, gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.
Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte jamais.
P. O Governo Bolsonaro elegeu alguns inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais. Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo dos índios?
R. O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares: “Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.
P. E a Amazônia?
R. A Amazônia é um objeto imaginário, complicadíssimo no Brasil. Primeiro que a gente precisa sempre lembrar: a Amazônia não é brasileira. A Amazônia é de nove países.
As cabeceiras, as formadoras do Solimões e de grande parte dos afluentes da Amazônia, estão fora do território brasileiro. Se o Peru, a Colômbia, a Bolívia resolverem fechar a torneira, seca.
Vão sobrar os rios que são formados no Cerrado, no Brasil central, o Xingu, Tocantins, Araguaia, Tapajós… Que estão sendo destruídos. O Cerrado está sendo arrebentado, esses rios também estão ferrados.
O escândalo sobre a França falando da Amazônia… A Guiana Francesa é francesa. A França é amazônica, o que vão fazer com isso? Podemos fazer nada. Podemos tentar invadir a França, que nem a Argentina fez com as Malvinas, vai dar super certo…
E a Amazônia tem essa coisa: você, ao mesmo tempo, utiliza aquilo como um cartão de visitas, como um orgulho — “Olha só o verde, o paraíso, muitas árvores…” — e, de outro lado, você quer destruir a Amazônia para os outros não pegarem.
Então você tem aquela atitude de um infantilismo absurdo: “A Amazônia é nossa, e eu faço dela o que quiser. Então vou tocar fogo nela porque ela é minha”. Eu posso fazer que nem a criança que vai quebrar o brinquedo porque o brinquedo é dela, entendeu?
É um pouco isso que os militares falam, que não tem que se meter com a Amazônia, a Amazônia é nossa. Nossa pra fazer o quê?
Por que as Forças Armadas não quiseram intervir em três denúncias recentes de ataque de garimpeiros ao Ibama? Porque eles estão do lado dos garimpeiros.
Não é só essa admiração ridícula do Bolsonaro pelo garimpo, que vem desde a amizade dele, em Serra Pelada, com o Curió, não. Isso é só a parte mais, digamos assim, grotesca. Mas a ideia de utilizar a população pobre, miserável, desesperada, como carne de canhão, pra entrar lá, pegar malária, matar índio, ser morto, destruir, ferrar e tudo, é uma ideia que na verdade está na cabeça dos militares.
Na verdade, isso faz parte da ideologia nacional. O garimpeiro é mais brasileiro do que o índio para o militar. Agora, quando você chega nesse pessoal que está fora, tipo os índios, a população tradicional, os ribeirinhos, os caboclos, os sertanejos, o pessoal cujo modo de vida é contraditório, no sentido forte da palavra, a esse projeto de país, aí a coisa pega.
O que está acontecendo, também, é que em parte esse genocídio que está sendo praticado no Rio de Janeiro em cima das favelas, com a polícia atirando de helicóptero, é porque, em larga medida, o chamado “proletariado” se tornou meio dispensável. Não é preciso tanto trabalhador assim, e você tem uma quantidade de pessoas, hoje, que são consideradas supérfluas dentro do sistema econômico. E essas pessoas estão sendo massacradas.
P. Um grande traço desse governo que me parece diferente dos anteriores é essa coisa de apresentar lideranças e populações como “ah, olha aqui, os Paresi [etnia do Mato Grosso] querem plantar soja”. Essa narrativa do índio do século 21.
R. De um lado, acho que nós estamos assistindo a uma espécie de ofensiva final contra os povos indígenas.
É a grande onda agora, e vai por todos os lados. Se não for comprando eles com dinheiro, vai ser metendo os evangélicos malucos lá pra quebrar, pra proibir pajelança, fazer o diabo, acusar os índios das coisas mais loucas.
Porque é o seguinte: índio não é santo. Ninguém é. Tem filho da puta entre os índios, não sei se tanto quanto, mas eles não estão excluídos, digamos, do hall da filhadaputice humana. Então sempre vai ter algum índio, alguma pessoa indígena, que vai servir de traidor, como é o caso dessa moça, essa mulher Kalapalo que o Bolsonaro arrastou pra lá e pra cá e que foi, inclusive, renegada pela sua aldeia, pelo seu povo.
Sem contar outra coisa: os povos indígenas raramente possuem uma estrutura política que tem um porta-voz, uma pessoa que fala em nome da população. Então, o que acontece é que se tem um cara que fala alguma coisa, vai chegar outro que vai dizer o contrário, porque tem as lutas políticas internas. Se não é luta política interna, o fulano de tal se alia com o agronegociante pra ferrar o outro. Ele vai fazer isso.
Pra começar, os povos indígenas são trezentos e poucos no Brasil. Chamar todos eles de indígenas não diz muita coisa sobre eles, diz muito mais sobre a Constituição brasileira, sobre legislação, que chama de indígena uma coisa. A noção de indígena, na verdade, é uma palavra, principalmente, de significado jurídico.
Daí a confusão: isso é índio, isso não é índio, não sei o quê. Quando, na verdade, índio é uma forma de relação com o Estado. É claro, tem uma dimensão histórica, são populações descendentes, remanescentes, e que se pensam como ligadas às comunidades pré-colombianas. Mas são também comunidades que têm uma certa relação de exterioridade em relação ao Estado nacional e à etnia dominante, que é uma relação muito particular. E essa relação passa, principalmente, por uma certa relação com a terra.
E que, na verdade, é o nó do problema, porque o que acontece é o seguinte: a Amazônia é a parte do Brasil que representa o que era todo o Brasil em 1500. Não que ela seja exatamente igual, longe disso. Mas essa é a parte que ainda não foi destruída, que ainda não foi civilizada, que ainda não foi “conquistada”. E agora é: “Temos que acabar os serviços começados em 1500”.
E como a Amazônia virou um foco de atenção internacional por conta do fato de que é a maior floresta tropical do mundo, porque tem uma importância grande no equilíbrio geoquímico e termodinâmico do planeta, evidentemente está todo mundo olhando pra ela.
Esse seria o momento em que o Brasil poderia, se tivesse uma diplomacia menos alucinada do que a desses malucos que estão no ministério… Ela estaria naturalmente faturando, no sentido positivo da palavra, utilizando isso como um trunfo importante na sua posição no cenário internacional. Mas, ao contrário, eles estão batendo o pé, fazendo uma birra absolutamente ridícula. E vão sofrer as consequências. Agora eles têm um inimigo importante, que é o papa, que, evidentemente, não tem tantas legiões, como dizia o Stálin, não tem um exército, mas exerce um poder grande sobre a opinião pública.
P. O senhor falou da questão da liderança indígena, que não tem uma voz que fale por todos, mas a gente tem a figura do Raoni, por exemplo. Eu queria que o senhor comentasse o papel dele nesse processo da resistência indígena atualmente. E, sobre a questão da terra, queria que o senhor falasse do papel que tem a reforma agrária.
R. A reforma agrária é um caso especialmente importante. O Brasil não fez reforma agrária, e tudo o que acontece no Brasil, em parte, se explica por isso. Se optou por jogar a população rural nas cidades e entregar o campo à agricultura mecanizada e concentrada. O que acontece na Amazônia é que você ainda tem uma porção grande de população tradicional, ribeirinhos, que não sei o que vai ser dela, porque a soja já chegou na Amazônia faz tempo. A fronteira econômica está subindo e, à medida que ela sobe, vai expulsando gente, jogando fora árvore, colocando boi — o Brasil tem mais boi do que gente. E esse boi, evidentemente, não vai todo para a barriga da população brasileira. Então nós estamos, na verdade, alimentando o mundo. E o engraçado é que vejo, frequentemente, o governo se orgulhar de que o Brasil está alimentando o mundo. Devia estar alimentando os brasileiros, né? Pra começar.
P. A fome voltou…
R. É, a fome voltou, e nós nos orgulhamos de que estamos alimentando a China. Que orgulho é esse? Se a população brasileira inteira estivesse, de fato, em saúde nutricional espetacular, você poderia se dar ao luxo de se orgulhar de também estar alimentando outros países, né?
Na verdade, nós estamos queimando os móveis da casa para nos aquecermos, digamos assim. A gente está destruindo o Brasil, exportando água, exportando solo para fora do Brasil, e estamos mais ricos por causa disso? A desigualdade diminuiu depois de anos de destruição do Cerrado, da Amazônia? O ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo da soja, todos esses ciclos com a mesma estrutura, a saber: o Brasil como exportador de produtos primários para as metrópoles capitalistas. Estamos na mesma posição em que estávamos em 1500. É uma colônia de exportação de commodities.
Agora é commodities high-tech, né? Não é mais o braço escravo, não é mais o índio amarrado, agora é a colheitadeira, é o grande trator, é a feira de Barretos.
O Brasil continua sendo uma colônia que consegue o prodígio de ser uma autocolônia, colônia dos outros e a colônia de si mesmo.
Enfim, e a reforma agrária, o que aconteceu com o MST? Acho que o MST se deu mal no Governo Dilma. Ele perdeu o fôlego, perdeu o pique, perdeu a capacidade política, em parte porque ficou nas mãos da sua relação com o governo do PT.
Eu sou otimista numa coisa: acho que o Trump não vai ser reeleito. Mas eu falei que o Bolsonaro não ia ser eleito, e ele foi, né? Eu falei que, se ele fosse eleito, eu saía do país. Eu não saí, né?
Mas, se o Trump não for reeleito, a situação do Brasil vai mudar muito, porque não tem mais um outro maluco. Essa aposta total da Presidência numa relação carnal com os EUA do Trump é bem arriscada.
P. Essa extrema-direita mundial aflorando assim parece que é algo cíclico, né?
R. O fato é que isso está ligado, evidentemente, a uma crise econômica mundial, a crise do capitalismo. Não por acaso teve a crise de 1929, em seguida tem o fascismo. E hoje você tem a crise que começou em 2008 e que, na verdade, não acabou. Esse é um ponto de mudança: estamos numa crise econômica mundial, que está se manifestando no Brasil de uma maneira particularmente dramática — não se sabe o que vem depois dela. Essas reações de extrema-direita são claramente reações, parece que são movimentos reativos diante de uma crise, de uma precarização, em relação às condições de vida, e também uma reação à crise ambiental.
Boa parte dos refugiados que estão saindo dos seus países de origem estão saindo por causa de questões de destruição das condições materiais: secas brutais, enchentes. Então, são refugiados do clima, em larga medida. Esse pessoal que está indo para os Estados Unidos, tentando pular o muro de qualquer jeito, em grande medida, é refugiado do clima.
O que me preocupa mais de tudo é a crise ecológica. O problema é que ela atinge o que a gente pode chamar de condições realmente materiais de existência. Não é o salário; é o ar. Não é o emprego; é a água.
Então, são coisas que atingem um nível de fundamentalidade para animais reais, pessoas reais, como nós somos, que precisam de ar, de água, de uma porção de coisas materiais. É nesse nível que a crise se manifesta. No esgotamento dos recursos pesqueiros, na acidificação dos oceanos, na subida no nível do mar, no aquecimento da temperatura, que provoca secas, que provoca enchentes, que provoca furacão, que provoca refugiados.
Esse tipo de crise é uma crise que, para que se possa sobreviver a ela, você precisa de uma radicalidade nas mudanças da forma que se tornou hegemônica no mundo.
Mudanças muito radicais, que não vão ser três torres eólicas que vão resolver. Vai precisar de muito mais que isso, vai precisar de uma mudança radical nos padrões de consumo, das sociedades desenvolvidas, de uma redistribuição radical dos recursos pela população do planeta.
Mas é mais fácil, em vez de acontecer isso, que aconteça outra coisa, guerras genocidas, extermínios maciços de população, destruições gigantescas de meio ambientes inteiros… É por isso que eu não sou muito otimista, né?
P. No seu livro "Há mundo por vir?", que você escreveu com a Débora [Danowski, filósofa e companheira de Viveiros de Castro] se fala que essa catástrofe climática impõe ao ser humano uma mudança metafísica de não pensar o mundo inteiro a partir de si mesmo, com uma centralidade no homem.
R. Não basta ficar dizendo: “Ah, a culpa é do cristianismo, a culpa é de quem botou o homem acima de outras criaturas”. Isso tudo não deixa de ser verdade, mas acho que o fundamental não é isso.
Acho que o que marca a modernidade ocidental é uma certa confiança de que o homem, através da tecnologia, é capaz de resolver qualquer problema que surja, de que sempre haverá uma solução. O pessoal está cada vez mais aceitando que há uma crise ecológica, mas [pensa que] alguém vai dar um jeito nisso. E se não der? Por que tem que dar? Nem tudo tem solução.
Acho que a crise ecológica não tem solução no sentido de manter o status quo atual. Isso é fora de questão. E todo mundo sabe: se o mundo inteiro consumisse a quantidade de energia per capita que consome um cidadão americano, você precisava de cinco planetas Terra para sustentar a humanidade inteira. Qual é a alternativa?
P. Você falou que a gente deveria perguntar aos índios a respeito do fim do mundo porque o mundo deles está acabando desde 1500. Que lições concretas os povos indígenas podem nos dar a respeito dessa convivência com esse fim do mundo, que é gradual, não acontece de uma vez?
R. É evidente que os 7 bilhões de pessoas humanas que vivem no planeta Terra não podem viver como vivem, hoje, uma população de 500 pessoas na Amazônia. Mas os povos indígenas, em geral no mundo inteiro, e não só os povos indígenas brasileiros, têm uma relação com o resto da realidade, particularmente com a realidade biológica, viva, outros seres vivos, que é muito diferente daquela que está implícita no nosso modo de vida e explícita em várias doutrinas religiosas, filosóficas etc.
Qual é essa relação? Essas populações se veem como parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível que os demais seres. Não quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só se percebem como no mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas de existência, digamos assim.
O que acontece na modernidade ocidental é que o homem se considera como um ser de exceção. Ele é um animal, mas ele tem alguma coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de alma, agora é cultura, ciência, tecnologia… Mas é alguma coisa que torna o homem metade animal, metade anjo, alguma coisa assim. E o lado extra-animal, superanimal do homem, compensa, cancela, libera a espécie dessa imanência terrestre — transcende a realidade material.
Já os povos tradicionais, porque a história os conduziu a outra direção, não se veem acima das demais criaturas. Eles podem achar que os homens são mais inteligentes do que os jacarés, mas eles não acham que essa diferença é uma diferença de grau, não é uma diferença de natureza.
Para nós, é uma diferença de natureza. É uma espécie de hipocrisia. Porque a gente tem essa sensação de que a gente é dotado de alguma coisa que nos tira de qualquer problema, que as outras espécies vão se extinguir, mas a nossa não — quando a gente sabe que vai se extinguir também.
É como se a espécie humana fosse o único animal que, porque ela sabe que é um animal, ela não é um animal. Porque, como ela sabe que é um animal, isso a torna diferente de todos os outros animais e, portanto, não é animal.
O que é uma contradição em termos. Ao saber que é um animal, devia torná-la mais atenta às condições que a aproximam dos outros animais: da necessidade de um ambiente tolerável pela espécie.
P. O senhor até usou a expressão de que a espécie humana está se suicidando.
R. Num certo sentido. Talvez toda espécie se extinga porque se suicide, a menos que caia um meteoro na cabeça dela, é claro. Quando a gente fala “espécie”, também precisa ter cuidado, porque, quando a gente fala “espécie”, nove vezes em dez está falando é dos países superdesenvolvidos, seu modo de vida superdesenvolvido.
Essa é outra palavra que eu gosto de usar, que é superdesenvolvimento. O que a gente chama de [país] desenvolvido, na verdade, é superdesenvolvido, no sentido de excessivamente desenvolvido. No sentido de que consome muito mais do que é necessário, muito mais do que é razoável e muito mais do que é possível, dadas as condições materiais deste planeta. Então, esses países são países superdesenvolvidos.
Eles têm que se “desdesenvolver” para que outros países, outros povos, possam se desenvolver um pouco mais, de modo a equalizar um pouco as condições de existência de Bangladesh com a Califórnia.
Quer dizer que Bangladesh tem que virar a Califórnia? Não. Quer dizer que a Califórnia tem que virar Bangladesh? Também não. Mas tem que haver um meio-termo aí, tem que haver uma certa aproximação entre esses dois povos, entre o camponês de Bangladesh, a favela carioca e os condomínios de luxo de Miami e de Los Angeles. Porque, se não aproximar, o planeta vai explodir.
O Brasil é um país que está sendo usado pelo sistema econômico mundial para fazer um experimento científico, que é: o quanto você pode ferrar uma população sem produzir uma insurreição sangrenta? Até quando você pode ir tirando direitos, ferrando, explorando, expropriando, matando, jogando na informalidade, sem que isso produza um motim, uma revolução, uma explosão de violência popular? É quase como se fosse um experimento científico: o quanto eu posso torturar esse bicho antes dele morrer, sem que ele morra?
E a gente sabe que a humanidade aguenta muita coisa, então é difícil imaginar… Tem a famosa ideia de que um dia o morro vai descer… Mas e se não descer?
P. E tem a resistência indígena…
R. Você me perguntou do Raoni, esqueci de responder a isso. O que acontece é o seguinte: sim, o Raoni se tornou um símbolo, esse símbolo é capaz de catalisar a luta indígena, ele é um símbolo essencialmente para fora, um símbolo para os não índios, sobretudo. Em parte, por causa do visual que é muito marcado, em parte porque ele é um senhor, já está há muito tempo na luta, literalmente. E os índios estão se vendo obrigados a construir alianças, causas comuns. Eu me lembro de uma frase do Daniel Munduruku, que é um escritor: “Eu não sou índio, eu sou Munduruku. Índio é uma coisa de vocês, eu sou Munduruku”. Tem toda a razão.
Mas os Munduruku agora estão se juntando com, sei lá, Kayapó, com os Araweté, com os Parakanã… Para que todos esses povos, que não são uma coisa só, possam apresentar uma frente só diante de um outro lado, que, esse sim, é uma coisa só, nós, o Estado brasileiro, a etnia dominante, que é branca.
Por que eles nos chamam de brancos? Inclusive, palavra que, muitas vezes, pode ser aplicada a um negro? Porque o problema não é de cor. Uma metonímia, branco pra falar de brancos, negros, amarelos e azuis, mas ao mesmo tempo é porque o branco é de fato a figura central. O branco é uma coisa só pra eles: é o Estado.
As sociedades indígenas situadas no Brasil sempre foram sociedades com grande potencial anárquico. No sentido de que, dadas as condições demográficas e ecológicas do Brasil pré-colombiano, numa sociedade indígena, se você não está satisfeito com a aldeia, com o teu pessoal, você pega as tuas coisas, pega a rede e vai embora, faz a aldeia do outro lado. Ou seja, eram sociedades que não tinham necessidade de produzir sistemas políticos piramidais com um líder fundamental. Porque, se não está contente com o líder, vai embora e faz outra aldeia. Isso permanece nas sociedades indígenas como um impulso refratário a qualquer pessoa que fale em nome do todo, que, ao mesmo tempo, é contraditório com o que eles precisam agora, que são nomes que possam falar em nome deles todos contra esse Estado etnocida.
Os índios estão, de fato, numa situação complicada. Eles têm ao mesmo tempo que produzir lideranças, às vezes até supraétnicas. O Raoni, por exemplo, que é um Kayapó, mas não está falando ali em nome dos Kayapó. Ele está falando em nome dos índios, de todos os povos indígenas, e, ao mesmo tempo, isso é uma coisa que vai um pouco na contramão da própria sensibilidade política indígena. E eles têm que negociar isso, não vai ter outro jeito, porque eles estão enfrentando um inimigo que os obriga a se unir. Eles só estão unidos por causa dos brancos. São os índios que estão segurando a Amazônia da força destrutiva do agronegócio, do grande capital e desses malucos militares que acham que Brasil bom é criar um deserto, que governar é criar um deserto.
P. Hoje a gente vê um obscurantismo que chegou ao ponto de se questionar o formato da Terra.
R. Acho que tudo está naquela frase do Darcy Ribeiro, que todo mundo cita com razão, que é: a má educação no Brasil, a destruição, o péssimo sistema educacional no Brasil, não é um defeito, é um projeto. Acho que existe, sim, um projeto de deseducar a população brasileira, exceto quando se trata de formar mão de obra qualificada para certas funções específicas do mercado de trabalho capitalista. Mas, do ponto de vista do que a gente chama de cultura em geral, acho que existe um projeto de impedir o povo de aprender.
Por que esse ataque às universidades está se dando agora que a política de cotas entrou para valer? Tem cursinho de pré-vestibular na Maré, aprovando todo mundo no vestibular das universidades públicas. “Não pode isso. Se esse povo começar a pensar, vai dar um problema.” Tem que manter a população sob controle.
E agora você tem essas coisas loucas, tipo terraplanismo, revisionismo histórico, negacionismo climático. De onde é que vem isso? Principalmente dos Estados Unidos, vem do [Steve] Bannon, vem do alt-right, vem da nova direita. E vem junto com o quê? Com uma certa fantasia da Idade Média, cruzados e Deus-vult e não sei o quê. Então acho que existe uma espécie de projeto de regressão histórica alucinada, mítica.
Acho que não é por acaso que chamam o Bolsonaro de “mito”, porque existe aí uma mobilização de certas estruturas míticas que são politicamente reacionárias e que estão sendo difundidas, no meu entender, deliberadamente, por uma elite que, evidentemente, não acredita nisso. Você acha que o Olavo de Carvalho acha que a Terra é plana? Claro que não.
Acho que em parte tem um projeto deliberado de introduzir a confusão, o terraplanismo, negacionismo e tal, e que passa por um projeto político mais amplo, de regressão cultural antiliberal, antidemocrático.
Colaborou: Carolina Zanatta
Eduardo Batalha Viveiros de Castro (Rio de Janeiro, 19 de abril de 1951) é um antropólogo brasileiro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Formado em ciências sociais pela PUC-Rio, concluiu em 1977 o mestrado em antropologia social no Museu Nacional e em 1984 o doutorado, na mesma instituição.[1] Publicou inúmeros artigos e livros, considerados como importante contribuição para a antropologia brasileira e a etnologia americanista, entre eles: From the enemy's point of view: humanity and divinity in an Amazonian society, Amazônia: etnologia e história indígena e A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.
Lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade de Chicago e na Universidade de Cambridge. Uma de suas mais significativas contribuições refere-se ao desenvolvimento do conceito de perspectivismo amazônico.
Sobre ele, diz Claude Lévi-Strauss, seu colega e mentor: "Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual".
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