segunda-feira, 30 de maio de 2022

Caubóis durões, a masculinidade tóxica e o suicídio

Na terra dos caubóis, a luta para evitar suicídios de ‘homens durões’

Por Jose A. Del Real, 30/05/2022, 

Bill Hawley, servidor da saúde pública do Wyoming, combate a masculinidade tóxica que pode levar à morte

THE WASHINGTON POST- Bill Hawley acredita que é grande demais o número de homens que não se dispõem ou não conseguem falar a respeito de seus sentimentos, e encara cada dia como uma oportunidade de mostrar a eles como fazer isso. “Aí está aquele sorriso que eu gosto”, diz ele a um caubói vestindo couro na zona rural do nordeste de Wyoming, onde ele mora. “Eu poderia chorar só de pensar em como você tem um coração maravilhoso”, diz ele a um amigo de meia idade no trabalho. “Depois de conversarmos na semana passada, pensei muitas vezes nas suas palavras”, diz ele a um militar veterano usando roupas camufladas. “Pode pensar o que quiser, mas aquilo foi importante para mim.”

Bill Hawley, à esquerda, fala com um veterano de guerra em Buffalo; como especialista em prevenção de suicídios, ele ajuda pessoas que lutam contra vícios e problemas de saúde mental  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

No papel, Bill é o “especialista em prevenção” do departamento de saúde pública de Johnson County, uma região que liga a planície às montanhas de Wyoming e tem quase o tamanho de Connecticut, mas uma população de apenas 8.600 moradores. Sua autoridade oficial está ligada a pessoas com problemas ligados ao tabagismo e abuso de drogas e álcool, bem como impulsos suicidas, frente aos limitados programas estaduais de serviço social. Parte burocrata, parte orientador, boa parte da vida de Bill gira em torno de chamadas no Zoom e subcomissões, siglas governamentais e solicitações de recursos.

Mas a missão dele vai além do monótono edifício do governo local na rua Klondike Drive, onde trabalha. Um a um, ele espera cultivar nos homens de Wyoming um novo tipo de masculinidade americana. A abordagem dele é a um só tempo radical e comum.

Normalmente, tudo começa com uma simples pergunta.

“Como está se sentindo?” pergunta Bill ao homem de roupas camufladas, que vive no Lar dos Veteranos de Wyoming, que Bill visita várias vezes por semana. Recentemente, Bill o convenceu a deixar de fumar.

O homem caminha apoiado em um andador, levando um tanque de oxigênio.

“Podemos falar um pouco a respeito de gatilhos”, incentiva Bill. “São coisas que vão espreitar você e preparar uma armadilha.” “Tenho um monte de gatilhos”, responde finalmente o veterano de 72 anos, entre violentos espasmos de tosse. “Pode chamar de gatilhos, mas são coisas que nunca vão embora.”

Homens estoicos e durões que sofrem sozinhos

Aqui, na terra dos caubóis, paisagem e origem de incontáveis mitos americanos, Bill sabe que os “homens de verdade” devem ser estoicos e durões. Mas, em um momento em que há tantas visões concorrentes de masculinidade, seja nos Estados Unidos ou no próprio Wyoming, Bill está questionando o significado de ser um homem de verdade.

Com frequência, o que ele vê nos homens americanos é o desespero.

Em todos os EUA, os homens responderam por 79% dos suicídios em 2020, de acordo com análise do Washington Post dos dados dos Centros para a Prevenção e Controle de Doenças, que indicam também o Wyoming como estado com maior incidência de suicídios per capita no país. A maioria dos suicídios envolve armas de fogo, e há muitas delas no Wyoming, e o uso de álcool e drogas costuma desempenhar um papel importante. Entre os sociólogos, o Oeste Montanhoso foi apelidado de “Cinturão do Suicídio”.

Cada vez mais, teorias a respeito da disparidade de gênero nos suicídios se concentram nas potenciais armadilhas da própria masculinidade.

Os dados também contêm um mistério sociológico que nem os especialistas sabem explicar totalmente: das 45.979 mortes por suicídio nos EUA em 2020, cerca de 70% ocorreram entre homens brancos, que representam apenas 30% da população total do país. Isso faz dos homens brancos o grupo mais exposto ao risco de suicídio no país, especialmente na população de meia idade, mesmo sendo super-representados em posições de poder e destaque nos EUA. Essa proporção aumentou constantemente nos 20 anos mais recentes.

Alguns pesquisadores clínicos e estudiosos do suicídio agora se perguntam se há algo de especial na masculinidade branca americana que mereça uma investigação aprofundada. As implicações são significativas: em média, há duas vezes mais suicídios do que homicídios anuais nos EUA.

Expectativa dos homens acaba dissociada da realidade

Bill, branco de 59 anos, tem sua própria teoria. É algo ligado à dissociação entre as expectativas dos homens para suas vidas e a realidade de suas experiências individuais, agravado por normas culturais que incentivam a repressão de qualquer sentimento diferente da raiva. A masculinidade tóxica costuma se manifestar externamente. Mas ela também causa estragos internos.

“Conversas podem salvar vidas”, Bill costuma dizer, pois elas salvaram a vida dele muitas vezes desde o dia em que ele tentou se matar, duas décadas atrás, depois que uma sequência de comportamentos destrutivos e angústia mental levou a um divórcio, à perda da esperança, ao afastamento em relação aos dois filhos. Então, agora ele conversa com outros homens “a respeito de como nos sentimos quebrados por dentro”, a respeito “de uma saúde completa: mente, corpo e alma”.

Ele não tem medo nenhum de soar meloso. Alguns homens respondem com desconforto, encarando-o sem piscar. Mas, talvez improvavelmente, alguns respondem à sinceridade dele falando de seus vícios, dos problemas com valentões de meia idade que ainda os provocam por “agir como gays”, a respeito da sua busca por escassos terapeutas na zona rural dos EUA que possam ajudá-los a cicatrizar suas feridas.

É um trabalho lento. Como está se sentindo? O veterano controla o acesso de tosse e começa a contar a Bill a respeito da mulher, que morreu. Fala do pai, morto há muito. E fala do filho, morto recentemente. Então, falam do Vietnã. Do soldado seu colega que subitamente se matou um dia quando os dois estavam juntos. “É o mesmo pesadelo toda vez”, diz o homem, com os olhos cada vez mais cheios d’água. “Nunca consegui entender.” Bill toca o braço dele.

“Quero que saiba que, depois que você parar de fumar, não deixarei de visitá-lo. Vou continuar visitando, ajudando e apoiando você”, diz Bill.

Ele é apenas um homem vivendo nos EUA em 2022, igual a outros 162 milhões, presos entre antigos padrões de masculinidade americana e um mundo novo em que tais ideias mudam rápido. Aqui ele enxerga uma oportunidade, de ajudar os homens a serem melhores para quem convive com eles ao ajudá-los a serem versões melhores de si mesmos. Se o mito do caubói americano foi forjado em cidades de fronteira como esta, por que tal mito não pode ser desconstruído e reconstruído também aqui?

Outdoor orienta sobre a prevenção ao suicídio perto da Buffalo High School; Wyoming tem a maior taxa de mortes por suicídio per capita dos EUA, de acordo com dados federais Foto: Arquivo pessoal

De quase pastor luterano à tentativa de suicídio

Anteriormente em sua vida, Bill quis ser um pastor luterano, como o pai tinha sido, e às vezes a fala dele assume a cadência de um sacerdote. Em vez disso, tornou-se educador e, entre meados dos anos 80 e meados dos anos 90, trabalhou em escolas ligadas a religiões. Esse trabalho o levou a Nova York com a primeira mulher, seguindo para St. Louis e, finalmente, Myrtle Beach, Carolina do Sul. Chegou ao cargo de diretor. O casal teve dois filhos.

Bill se sentia importante. De vez em quando, liderava as preces na sua igreja. Isso o fazia se sentir próximo do exemplo do pai. Dava a ele uma sensação de realização.

Mas foi durante esses anos que as expectativas em relação à sua vida colidiram com a realidade e a falibilidade humana. Um caso com uma subordinada envolvendo bebedeiras, que ele tentou esconder sem sucesso, deixou-o sem alternativa a não ser renunciar à diretoria. Isso marcou o início do fim do seu primeiro casamento. Já em 1997, ele acabou em Baltimore, onde começou uma espiral de pobreza. Basicamente, abandonou os filhos, diz com arrependimento.

Participou de festanças. Dirigiu bêbado. Envolveu-se com as mulheres erradas nos lugares errados. E houve a crise que se seguiu a um longo episódio de mania, conforme os sinais do seu transtorno bipolar se tornavam difíceis de ignorar. Ele se tornou violento e ameaçador. Um dia, tentou se matar.

Hoje, Bill diz que o período é confuso, uma névoa de mudanças de humor, drogas e álcool. Mas ele tem clareza quanto a um fato: levado pelo ego e seus impulsos, ele se tornou um mau marido e um pai ausente. Estava ferido por dentro, e feria os demais à sua volta.

A capacidade para o suicídio é fomentada pelo convívio com a dor e a violência, dizem acadêmicos e clínicos, sendo facilitada pelo conhecimento técnico de como usar armas letais. Pesquisas mostram que, em média, os homens desenvolvem mais capacidade para o suicídio do que as mulheres porque isso é incluído na sua socialização. E ainda que as mulheres sejam mais propensas a tentar o suicídio, ao menos nos EUA, entre os homens a probabilidade de morrer de suicídio é maior, pois eles costumam escolher formas mais letais, como armas de fogo ao invés de remédios.

O medo de não fazer parte e de se tornar um fardo são preocupações mais centrais nos casos de suicídio entre homens, de acordo com importantes especialistas no assunto, e os desafios de saúde mental podem intensificar tais fatores. Os homens costumam ser mais resistentes à busca de ajuda com a própria saúde mental do que as mulheres, de acordo com os especialistas, pois emoções diferentes da raiva são consideradas por eles como femininas.

Em 2000, depois da sua tentativa de suicídio, Bill se mudou para Buffalo para viver com a mãe e o pai, a pedido deles. “Trinta e sete anos nas costas, e morando com os pais”, diz ele agora, lamentando.

A reconstrução da sua vida passou por antidepressivos e estabilizadores de comportamento. Foi necessário ir à terapia. Ele conseguiu um emprego em um restaurante local ligado a um motel, o Stagecoach Inn, onde trabalhou em troca da estadia. Foi onde conheceu Denise, mãe de Jeremiah. Bill diz que foi nesse momento que sua vida recomeçou.

Se a ideia que ele tinha de “ser um homem de verdade” foi destruída, foi a partir dos seus destroços que ele conseguiu reconstruir uma versão mais saudável de si.

Ele enxerga sua história como um caso de redenção, que só foi possível por ter sobrevivido à tentativa de suicídio. Passou a acreditar que pode usar os pedaços quebrados de si para ajudar os outros. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Em tempo

O filme "Ataque dos cães", 2021, de Jane Campion (a masculinidade tóxica) em Filmes parte 20 

Pílulas 2 sobre Nava 

Nava (o suicídio)

sábado, 28 de maio de 2022

Tolstoi e o neonazismo brasuca

 Lendo Tolstoi sob a supervisão de um bárbaro

Anônimo aborda mulher num café, toma seu exemplar de ‘Anna Karenina’ e condena seu autor

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 28 de maio de 2022

Aconteceu em Ipanema, na manhã de 10 de maio de 2022. Repito: de 2022, não de 1933. E numa praça da Zona Sul do Rio de Janeiro, não na Bebelplatz ou logradouro similar de Berlim sob dominação nazista.  Não presenciei o fait divers, mas conheço bem quem o vivenciou e dele me deu conta: minha fisioterapeuta.

Estava ela numa das mesas da varanda do Armazém do Café da Praça Nossa Senhora da Paz, a tomar seu expresso enquanto lia o romance Anna Karenina, quando um quarentão alto e de boa aparência aproximou-se dela e, espichando o braço, alcançou o livro, que só largou depois de lhe ver a capa, com o título e o nome do autor. “Por que você tá lendo esse livro comunista?”, cobrou o desconhecido.

Entre assustada com a súbita intrusão do estranho e pasma com sua desfaçatez e crassa ignorância, minha amiga retrucou: “Tolstoi comunista?! Mas ele morreu antes da Revolução Soviética.” 

 Verdade que Tolstoi poderia ter tomado conhecimento do Manifesto Comunista antes mesmo de iniciar sua produção literária, mas àquela altura ele já estava comprometido ideologicamente com o anarquismo cristão, além de encasquetado com a ideia de um romance envolvendo adultério, suicídio e uma romântica dama da aristocracia czarista.

Muita gente boa (Faulkner, Nabokov) considera Anna Karenina o melhor romance de Tolstoi e quase nenhum deles desperdiçou tinta comparando-o a Madame Bovary, quando nada porque o tema predominante em Anna Karenina são as contrastantes concepções de felicidade, por ele condensadas na abertura do livro. Bem, é possível que o bully que buliu com minha amiga tenha confundido Tolstoi com Trotski; hipótese plausível, a julgar pelo seu esbregue, que em seguida cresceu em decibéis, até culminar com uma suposição (“Já sei: você é eleitora do Lula!”) e uma ameaça: “Isso vai acabar!” 

Isso o quê? Eleições? Poder ler escritores russos? Poder ler Tolstoi? Poder ler Anna Karenina tomando café em público?

Resumo da ópera: minha amiga foi assediada por um lídimo neonazista brasuca, tão ignorante e ultrajante quanto aqueles folclóricos meganhas da ditadura militar que apreenderam uma edição de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, pensando tratar-se de uma obra de doutrinação comunista, embora fosse mais lógico tomá-la por uma história do Flamengo. 

Conhecemos bem essa gente. Seus ancestrais, se não surgiram, vicejaram frondosamente no Terceiro Reich, onde, mal instalado o regime nazista, 25 mil exemplares de livros de Marx, Freud, Kafka, Thomas Mann e outros “subversivos” foram incinerados em praça pública sob o patrocínio do ministro mais poderoso de Hitler. Todo 10 de maio, aquele sinistro auto de fé é lembrado com repúdio na Alemanha. Aqui não lhe faltam homenagens, ainda que involuntárias e sem tochas na mão.


sexta-feira, 27 de maio de 2022

Genivaldo de Jesus Santos e a tortura com câmara de gás

Pai, aposentado e querido na cidade: quem era o homem morto pela PRF em Sergipe

Carlos Madeiro, UOL, 27/05/2022

Genivaldo de Jesus Santos, 38, é descrito como um homem simpático, brincalhão e querido pela população de Umbaúba, onde nasceu, no litoral sul de Sergipe. Aposentado por problemas mentais, casado há 17 anos e pai de um menino de 7, o homem negro acabou morto asfixiado dentro de uma viatura, transformada em uma câmara de gás improvisada por policiais rodoviários federais na última quarta-feira (25). Imagens gravadas com câmera de celular registraram a ação. "Era muito conhecido na cidade, trabalhou vendendo rifas. 

Ele falava e cumprimentava todo mundo, era sempre muito educado, perguntava: 'Quer comprar uma rifa de um bilhete?'. Agradecia, comprasse ou não, ele agradecia", conta Alisson Felismino, blogueiro em Umbaúba e conhecido da vítima.
Genivaldo não tinha condenações, nem respondia a processos na Justiça. Ele se aposentou cedo por causa da esquizofrenia que tratava havia duas décadas. Segundo Alisson, o transtorno nunca o impediu de ser uma pessoa alegre e pacífica. "Brincava com todo mundo, e infelizmente aconteceu esse caso, que pegou todo mundo de surpresa", diz.

O caso chocou a cidade de Umbaúba, de cerca de 26 mil habitantes. Ontem (26) foi um dia de comoção, começando com um protesto que reuniu centenas de pessoas pela manhã. No carro de som, conhecidos de Genivaldo manifestaram indignação com a truculência policial. "Ele era uma pessoa muito querida na cidade", conta o sobrinho da vítima Wallison de Jesus, que assistiu a toda a abordagem de Genivaldo pela PRF na quarta-feira.

 
Genivaldo era uma pessoa querida na cidade, dizem sobrinho e amigo Imagem: Arquivo pessoal

De acordo com o relato de testemunhas, ele foi abordado durante uma blitz na rodovia BR-101, quando trafegava de motocicleta. Imagens mostram que três que se lançam sobre ele e tentam imobilizá-lo após encontrar uma cartela de remédios. Em um outro vídeo, Genivaldo aparece erguendo os braços, de forma a colaborar. Ainda assim, é possível ouvir que os policiais gritam e ofendem Genivaldo. Em seguida, o homem já aparece no porta-malas, com a fumaça que o asfixiou escapando da viatura.
Família sem renda 

Genivaldo era um bom pai e marido e gostava de estar ao lado da família, afirma o sobrinho. "Ele era uma pessoa calma, prestativa, que nunca se envolveu em uma briga, nunca maltratou ninguém", diz. O carinho que todos tinham por ele, afirma, motivou a manifestação de repúdio da população. Ainda de acordo com Wallison, Genivaldo tomava remédio controlado devido à esquizofrenia, mas também tratava problemas cardíacos. "Ele era aposentado, e era a renda dele que sustentava a casa. Amanhã [hoje] vamos nos reunir para ver como faremos para ajudar [esposa e filho dele]", diz.

A viúva, Maria Fabiana dos Santos, confirmou, em entrevista à Folha após o enterro, que não sabe como fará agora para sustentar a casa. "Além de viver um pesadelo, estamos agora sem saber como faremos para nos sustentar. Era o dinheiro do meu marido que dava conta do sustento da casa e que garantia um ensino de qualidade para nosso filho", disse Fabiana, que agora busca ajuda da Defensoria Pública da União. Ela disse que os policiais "agiram com crueldade pra matar" ao conceder entrevista para a TV Sergipe, afiliada da Globo no estado. "Eu não chamo nem de fatalidade, isso foi um crime mesmo", afirmou. "Vivo com ele há 17 anos, ele tinha havia 20 anos o problema dele, nunca agrediu ninguém, nunca fez nada de errado, sempre fazendo as coisas pelo certo, e em um momento desses pegaram ele e fizeram o que fizeram."
O corpo de Genivaldo foi enterrado ontem no cemitério da cidade, sob grande comoção, com aplausos e gritos por justiça.

"Aqui na cidade, a quem você perguntar, vão dizer quem era ele, vão dizer que era uma pessoa boa, que todos gostavam. Tanto que a manifestação foi um sucesso", conta.

População faz protesto após morte de homem negro no porta-malas da PRF
 

 Investigação

O MPF (Ministério Público Federal) em Sergipe deu 48 horas para que PRF (Polícia Rodoviária Federal) dê detalhes sobre o procedimento interno que apura a abordagem. A Procuradoria informou ainda que solicitou à PF (Polícia Federal) que instaure inquérito para investigar a conduta dos agentes. Também foram solicitadas informações já apuradas inicialmente à Delegacia de Polícia Civil de Umbaúba.

Em nota, a PF informou que o inquérito já foi aberto e que já trabalha no caso. A PRF afastou os policiais envolvidos na ação das ruas e abriu procedimento interno para apurar a conduta deles. Segundo o laudo do IML (Instituto Médico Legal de Sergipe), a causa da morte foi asfixia mecânica, ou seja, quando o ar deixa é impedido de chegar aos pulmões. O gás usado, segundo os policiais, foi o lacrimogêneo.

PRF diz que foi fatalidade 

Em nota, a PRF de Sergipe diz que, durante uma ação policial realizada, Genivaldo "resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe da PRF" —o que é desmentido pelas imagens, que mostram ele imobilizado pelos policiais. A corporação afirmou que, em razão de sua "agressividade", foram empregadas "técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à delegacia da polícia civil da cidade".
A PRF, porém, não explica quais seriam essas técnicas e instrumentos. Ainda de acordo com a nota oficial, durante o deslocamento até a delegacia "o abordado veio a passar mal e foi socorrido de imediato ao Hospital José Nailson Moura, onde foi posteriormente atendido e constatado o óbito".

Caso Genivaldo teria guerra de narrativas sem vídeos de ação da PRF em Sergipe, diz Jeferson Tenório 

A CÂMARA DE GÁS DA PRF

 

Polícia de Bolsonaro cria sua pena de morte particular

Carlos Eduardo Fraga, 27/05/22, Isto é

A morte de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, após ser abordado por blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF), no município de Umbaúba, litoral Sul de Sergipe, mostra como a polícia de Bolsonaro vem atuando com um padrão de pena de morte particular, com tortura vil e violência cada vez maior, incentivada pelo presidente.

Depois de ser abordado pelos policiais na BR-101, por agentes da PRF, por conduzir uma motocicleta e não utilizar capacete, Genivaldo foi submetido a ação truculenta dos agentes, o imobilizaram amarrando-lhe seus pés e o colocara-no dentro do porta-malas da viatura como se fosse um animal. Pior, em seguida jogaram gás lacrimogêneo no interior do veículo, formando uma espécie de “câmara de gás”. Um horror. E não vimos Bolsonaro condenar a ação.

A ação foi testemunhada por diversas testemunhas, inclusive pelo sobrinho de Genivaldo, Wallyson de Jesus, que ao perceber que o tio havia sido abordado informou de imediato aos policias de que Genivaldo sofria de esquizofrenia. Toda a ação foi gravada por pessoas que assistiam a operação da PRF inconsolados. “A gente pediu para pegar leve, que ele ia atender o que eles pedissem. Mas o policial chamou reforço no microfone, e chegaram mais dois policiais em seguida.”

Segundo relato de Wallyson, os Agentes da Policia Rodoviária Federal haviam encontrado uma cartela de remédio controlado no bolso do tio. Em vídeo que circula nas redes sociais, Genivaldo é visto dentro da viatura com os pés para fora do porta-malas, se debatendo enquanto dois policiais pressionam a porta. No vídeo é possível ouvir os seus gritos de desespero e agonia. Algum tempo depois, quando os policiais abrem a porta, Genivaldo já se encontra inconsciente.

“Pegaram a granada, jogaram por baixo do porta-malas e explodiu a granada lá dentro. Os populares ao redor, ninguém aguentou com aquilo ali e saiu todo mundo de perto. Quando ele desmaiou, jogaram os pés dele para dentro e fecharam a porta da mala com ele lá dentro”, declarou Wallyson de Jesus.

Segundo comunicado da PRF, Genivaldo “foi conduzido á Delegacia de Polícia Civil. No entanto, durante o deslocamento, passou mal, foi socorrido e levado para o Hospital José Nailson Moura, onde posteriormente foi atendido e constatado o óbito”.

De acordo com laudo do IML ( Instituto Médico Legal), a causa da morte foi,”insuficiência aguda secundária a asfixia”. Ele deixa a esposa e um filho de oito anos. Também em nota a PRF informou, que foi aberto um inquérito para investigar as circunstâncias que levaram ao óbito de Genivaldo e de que “diligências foram iniciadas para esclarecer o ocorrido o mais breve possível”. Os agentes que participaram da ação, foram afastados da função. A PF (Polícia Federal) de Sergipe, também instaurou um inquérito para averiguar as circunstâncias da morte de Genivaldo.

A forma que a morte de Genivaldo ocorreu revoltou a população de Umbaúba, que realizou protestos na manhã de quinta-feira, 26, pedindo justiça por sua morte. Nos protestos, moradores exibiam cartazes afirmando que “esse crime não pode ficar impune.” O enterro de Genivaldo, foi acompanhado por centenas de pessoas, que gritaram por “justiça” e usaram a chance para denunciarem excessos policiais e para pedirem para que ocorra mudanças políticas no estado.

Ontem, o ministro da Justiça, Anderson Torres, se manifestou sobre o caso, através de seu Twitter: “Determinei a abertura da investigação pela Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal sobre a abordagem policial de ontem, em Sergipe. Nosso objetivo é esclarecer o episódio com a brevidade que o caso requer”, declarou.

De acordo com a nota técnica divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública “a morte de Genivaldo Jesus Santos chocou a sociedade brasileira pelo nível de sua brutalidade, expondo o despreparo da instituição em garantir que seus agentes obedeçam a procedimentos básicos de abordagem que orientam os trabalhos das forças de segurança no Brasil”.

A esposa de Genivaldo, Maria Fabiana dos Santos, condenou a brutalidade que os policiais agiram. “Eu não chamo nem de fatalidade, isso foi um crime mesmo. Eles agiram com crueldade para matar, porque eu vivo com ele há 17 anos,ele tinha há 20 anos o problema dele, nunca agrediu ninguém, nunca fez nada de errado, sempre fazendo as coisas pelo certo, e em um momento desses pegaram ele e fizeram o que fizeram” Disse Maria em entrevista á TV Sergipe.

Os Agentes da PRF claramente se utilizaram de força excessiva, com o Genivaldo, o abordando de forma brutal e cruel não respeitando seus direitos como cidadão. Desta forma, exemplificando o despreparo que a Polícia Rodoviária Federal , tem em lidar com situações básicas de abordagem e na utilização de instrumentos de menor potencial ofensivo como o gás lacrimogêneo e spray de pimenta que foram utilizados de maneira incorreta e excessiva, ocasionando na morte de um homem, em uma simples abordagem rodoviária, algo que deveria ser de costume rotineiro aos agentes.

Demonstrando assim, que o exercício da profissão desses agentes despreparados que não, somente são ineficientes a simples ações atribuídas a sua profissão como também colocam a integridade física da população em risco. Abusando de sua posição de poder, de forma cruel e brutal. As ações desses Policiais da PRF, devem ter as consequências punitivas cabíveis aos seus atos.
 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Christian Marazzi

Biocapitalismo. A vida no centro do crescimento econômico

IHU On-Line - EDIÇÃO 301 | 20 JULHO 2009

Para Christian Marazzi, vivemos a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970

Graziela Wolfart - Tradução Benno Dischinger

A partir da análise que faz da atual crise financeira mundial, o economista francês Christian Marazzi considera que os pilares do capitalismo financeiro que hoje se encontra em crise, são os seguintes: “um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, Marazzi afirma que “o modo capitalista de governar está (...) em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense) que impede uma regulação concertada da saída da crise. Chama-se ´globo-esclerose´ e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial”. Ele constata que “assistimos (...) a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma ‘desglobalização’) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte”.

Christian Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lausanne e Genebra. Entre suas obras, citamos Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007) e Capital and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti.
A obra O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009) foi traduzida para o português neste ano.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise ou vivemos apenas uma crise nas finanças? O que caracteriza essa crise?
Christian Marazzi - Esta é a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970. Os pilares do capitalismo financeiro, hoje em crise, são os seguintes: um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição. É o assim chamado biocapitalismo, que põe no trabalho a vida inteira dos trabalhadores, fazendo-os trabalhar gratuitamente na esfera da reprodução e da circulação, mas sem pagá-los. A globalização, por sua vez, estendeu este processo de “colonização” capitalista, dos processos de valorização do capital, para além dos portões das fábricas. Mas uma característica específica deste capitalismo hoje em crise é a centralidade das finanças e do débito privado (o endividamento das famílias). Num certo sentido, o estado social (Welfare State) “delegou” à economia privada e às finanças algumas das suas funções fundamentais, em particular, a criação de uma demanda aglutinada com o mecanismo do déficit spending keynesiano. Ou seja, a economia financeira criou rendimentos necessários ao crescimento econômico, por meio de débitos privados, dos quais os subprimes americanos são somente um exemplo. É este “modelo” de capitalismo que não funciona mais, e é com base na crise deste modelo que o capitalismo está hoje procurando se reestruturar. Entretanto, a crise será particularmente longa e corre o risco de durar uma dezena de anos.

IHU On-Line - O capitalismo ainda tem força para governar nossas vidas? Onde deverá estar o poder a partir deste cenário de crise?
Christian Marazzi - O capitalismo governa hoje as nossas vidas através da crise, das demissões, da pobreza difusa, do medo e do sentimento de culpa (a culpa de ter se endividado e de dever reconstruir o próprio balancete familiar!). O modo capitalista de governar está, no entanto, em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense), que impede uma regulação concertada da saída da crise. Trata-se da “globo-esclerose” e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial. Nesse sentido, é possível que as lutas sociais possam aprofundar a crise do governo capitalista sobre as nossas vidas.

IHU On-Line - O senhor também identifica a crise da teoria neoliberal?
Christian Marazzi - Certamente o neoliberalismo está conhecendo uma crise de legitimidade política, além da econômica. Mas não estou certo de que seja o fim do liberalismo. Assistimos, ao invés disso, a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma “desglobalização”) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte. Nos próximos meses e anos, os movimentos de luta serão confrontados com estes impulsos neoliberais e populistas e deverão organizar-se para reconstruir uma frente de resistência contra a restauração do liberalismo reacionário.

IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico?
Christian Marazzi - É preciso lutar contra a pobreza, contra o desemprego, contra a perda das aposentadorias. É preciso lutar pela abolição dos débitos privados das famílias e pela criação de novas formas de consumo social nos quarteirões, nas cidades, em regiões inteiras. Creio que a luta contra o conceito capitalista de “crescimento econômico” seja a próxima fase: inventar formas de “crescimento ecológico”, abolir o uso capitalista do território, dos espaços urbanos. Isso me parece ser o horizonte alternativo que se delineia para nós.

IHU On-Line - Quais os riscos e limites de uma economia real internacional globalizada?
Christian Marazzi - Os riscos estão ligados ao uso capitalista da internet como “dispositivo de comando” (o olho do poder). Mas creio que a digitalização do capitalismo seja um bem para a luta política anticapitalista, no sentido de que permite generalizar o conhecimento crítico e coordenar as lutas sociais.

IHU On-Line - Em que medida a crise financeira internacional transforma o capitalismo cognitivo?
Christian Marazzi - O capitalismo cognitivo está atravessando uma fase crítica, no sentido de que, para reduzir os custos de produção, o capital está licenciando uma parte importante dos knowledge workers. Haverá, nos próximos meses, processos de concentração do capital cognitivo e a eles deveremos saber responder com processos de dispersão da inteligência inovadora. Unir os knowledge workers às lutas dos pobres, eis o que devemos tentar.

IHU On-Line - Qual o valor que adquire o biocapitalismo e a política do comum neste momento de crise?
Christian Marazzi - O biocapitalismo põe a vida no centro do crescimento econômico. A própria vida, a vida nua, se torna fonte de valor, ou melhor, um mais-valor absoluto que não é reconhecido pelo capital e, portanto, não é pago. Por essa razão, o rendimento garantido  é a forma de reconhecimento da força produtiva da vida colocada no trabalho.


O economista das revoluções pós-modernas

Christian Marazzi desvia-se do marxismo ortodoxo para enxergar novas estratégias do capital e como a multidão em rede podem vencê-las

OutrasPalavras. Por Antonio Martins. Publicado 06/08/2010

Por Bruno Cava, colunista do Outras Palavras (Crítica Nômade)

Christian Marazzi é um economista pós-moderno.

O leitor pode até torcer o nariz com o adjetivo. Afinal, com tantas idas e vindas ao redor dele, pós-moderno pode ser qualquer coisa. De filosofias maneiristas a niilismos dogmáticos, de ecletismos dândis a relativismos moderninhos. Talvez valha mesmo a impostura: pós-moderno, no fundo, é o que se quer de mais muderno.
Ademais, tampouco se pode precisar o “moderno” antes do “pós-” — ou a modernidade, ou o modernismo. Três termos por sinal distintos. Tem autor aí dizendo que jamais fomos, sequer, modernos.

Que dirá pós-modernos.

Apesar disso, em 1979, Jean-François Lyotard sedimentou um significado para pós-moderno. O seu livro A Condição Pós-Moderna marcaria o debate das três décadas seguintes. Para o filósofo francês, a condição pós-moderna se caracteriza pela descrença irremediável nas metanarrativas.
As narrativas do progresso, do desenvolvimento, da civilização simplesmente não convencem mais. Doravante, o retorno à comunidade de valores, aos universais e às utopias não passa de tentativa inautêntica e ineficaz. As ciências e a filosofia demonstraram a impossibilidade de uma narrativa capaz de explicar e abarcar a multiplicidade do mundo. Reinam a ambigüidade, o paradoxo, o paralogismo, a dissolução dos grandes esquemas.

Nesse sentido, o pós-modernismo deslegitimou duas das mais corpulentas narrativas do século 20: o marxismo e a psicanálise (alvos prediletos de Michel Foucault, por exemplo). A primeira estruturada, grosso modo, ao redor da dialética histórica, do planejamento como modelo de gestão econômica, da centralidade do modo de produção como fator de explicação e intervenção. A segunda em cima do teatrinho edipiano, e do inconsciente como mola propulsora do indivíduo e da sociedade. A primeira abalada desde o estruturalismo francês dos anos 1960. A segunda, decisivamente a partir de O Anti-Édipo (1972), por Gilles Deleuze e Felix Guatarri.

O pós-moderno do pensamento de Christian Marazzi igualmente recusa as metanarrativas – nele também não há esquemas rígidos ou teleologias supra-históricas – mas não se furta à narrativa. Em O Lugar das Meias, a sua principal obra, publicada em francês em 1994 e reeditada no Brasil somente quinze anos depois, o economista não se esquiva de narrar uma história, para nela identificar rupturas e viradas, que definem configurações do capitalismo e de sua resistência.
A obra narra a exaustão dos velhos programas e avirada paradigmática do capitalismo.

O pós-moderno exige outro ciclo de lutas

A narrativa de Marazzi acompanha a corrente de pensadores materialistas que relacionam o pós-moderno ao surgimento de um novo modo de produção, logo uma nova sociedade. Pensadores como Alain Touraine ou Daniel Bell, para quem a sociedade pós-industrial tem por força econômica vital o conhecimento e a informação. E principalmente como Antônio Negri, filósofo que é a principal referência do autor.

Ao longo da agitada década de 1970, Marazzi e Negri foram ativistas do grupo Autonomia Operária, que congregava intelectuais não-alinhados à ortodoxia do Partido Comunista Italiano (PCI). Esse círculo operaísta criticou ferozmente o pacto neokeynesiano entre a burguesia industrial-desenvolvimentista e um sindicalismo obsoleto, — que ainda operava sob categorias do marxismo industrial, fordista e gramsciano. Esta conjuntura consolidou-se com a famosa aliança entre a Democrazia Cristiana e o PCI, contra a qual se insurgiu toda a extrema-esquerda italiana, culminando no assassinato de Aldo Moro em 1978. Ficou comprovado que nem Marazzi nem Negri tiveram qualquer participação na ação, executada por um aparelho das Brigadas Vermelhas, embora tenha sido o pretexto para a perseguição generalizada de intelectuais de esquerda, no ano seguinte.

O Lugar das Meias, como consequência, atribui a parcela da esquerda o erro de trabalhar com conceitos e práticas que não fazem mais sentido dentro da nova configuração do capitalismo: o pós-moderno. A esquerda girava em falso porque estava presa a uma concepção de trabalho, distribuição e resistência, que eram pertinentes na antiga sociedade industrial, mas não na sociedade pós-industrial.
Na esteira de Antônio Negri, Marazzi narra que, nas décadas de 1960 e 1970, exauriu-se o potencial transformador das lutas sindicais e estudantis dentro do formato tradicional de pressão ao estado por mais empregos, direitos do trabalho formal e desenvolvimento industrial. Houve aí uma virada paradigmática, que conduziu o capitalismo do moderno ao pós-moderno, do fordista ao pós-fordista, do capitalismo industrial ao cognitivo. O pós-moderno passou a exigir outro ciclo de lutas.

Singular nessa matriz negriana de O Lugar das Meias, a posição das lutas como fator reconfigurador do capitalismo. A emergência de um novo modo de produção deve-se menos à lógica interna do capital do que às lutas democráticas por mais liberdade. As lutas vêm antes: o capital não se renova, ele é forçado a renovar-se. A cada etapa capitalista corresponde um ciclo de lutas, que afirma outro mundo e assim revoluciona o sistema. Nesse sentido, a passagem do moderno ao pós-moderno significou uma conquista dos trabalhadores; ao invés de mera captura e anulação das forças revolucionárias pela classe dominante, como profetizado de maneira pessimista, e até apocalíptica, por alguns intelectuais da esquerda.

Antes, na modernidade, tinha-se a economia baseada na unidade da fábrica, na divisão técnica do trabalho, na massificação do consumo, no modelo corporativo tradicional, na lei da oferta e da procura, na prevalência do “setor produtivo de base” (industrial), na interpenetração e cumplicidade entre estado e burguesia industrial. A educação hierarquizada, o sistema de saúde, a previdência, a democracia parlamentar e partidária, tudo isso se coordena nesse modo de produção, constituindo, no conjunto integrado de relações de poder, a sociedade industrial, a tal modernidade ocidental.
Não queriam simplemente melhores salários, mas sobretudo não ser operários. Daí os slogans de maio de 68: “Não trabalhar jamais”, “Autogestão da vida quotidiana já”!

O pós-moderno, por sua vez, irrompe do ciclo de lutas dos anos 1960 e 1970, cujo mote essencial era romper essa lógica industrial e moderna de trabalho. Opõe-se a ele como um todo, afirmando outro modo de vida. O cidadão não queria mais simplesmente melhores salários e direitos trabalhistas, mas sobretudo não ser operário, não ser instrumentalizado num mundo-fábrica hierarquizado e espoliatório. É nesse prisma que podem ser lidos slogans de maio de 1968, como o “Não trabalhar jamais!” ou “Autogestão da vida cotidiana já!”, bem como o célebre pôster em que as pessoas são retratadas como engrenagens de uma grande máquina.

Ainda na narrativa de O Lugar das Meias, o ciclo de lutas dos anos 1960 e 1970 culmina num novo modo de produção. A narrativa anuncia o seu capítulo pós-moderno. O regime de produção torna-se, destarte, pós-fordista. Implica profundas transformações na sociedade, inaugurando a sociedade pós-industrial. Como resultado de lutas globais, essa sociedade mundializa também os fluxos socioeconômicos, transpondo as fronteiras dos estados-nações. Como consequência, recompõem-se, em caráter global, tanto as classes dominantes (a “aristocracia” financista e multinacional), quanto redes de militância, colaboração e produção livre (a multidão).

Para Marazzi, no pós-moderno aparece uma nova linguagem social, potencializada pela intensificação da comunicação. As redes comunicativas entram na esfera da produção. Tornam-se vitais nos processos de valorização e circulação dos bens. Um capitalismo de redes. Quem detém a informação, produz mais e melhor. Inverte-se a lei econômica tradicional: não mais a oferta cria a sua demanda, mas a demanda é quem inventa a sua oferta. A teoria do valor deve ser remodelada para captar o trabalho imaterial. Os direitos autorais, as patentes, o copyright e o marketing passam a agregar mais valor aos bens do que o custo (industrial) de fabricação.

A fluidez do novo capitalismo exige reações rápidas e enorme adaptabilidade. A cadeia produtiva fica cada vez mais enxuta (“lean production”). Demite, flexibiliza contratos de emprego, terceiriza (“out-sourcing”). Elimina grandes estoques, expele métodos e processos onerosos, agora chamados externalidades. Pretende atender às demandas em tempo zero (“just-in-time’). A generalização das externalidades, associada ao hiper-crescimento do setor terciário, faz com que a fábrica dissemine-se na sociedade. Ao invés do regime disciplinar do chão-de-fábrica, nasce uma sociedade de controle que modula a aplicação do poder e captura a vida mediante dispositivos difusos e anônimos. Fábrica por assim dizer social, porém controlada e socialmente desprotegida. Implode-se o regime fordista de direitos e fragmentam-se os cidadãos em classes e subclasses.

No campo da formulação teórica, o neoliberalismo substitui o desenvolvimentismo do período anterior. E serve de ferramenta preferencial para a direita pós-industrial.  Enquanto isso, incapaz de reconhecer a mutação profunda no trabalho, parte da esquerda reedita o keynesianismo, propondo um retorno ao período anterior. Neokeynesianismo baseado na soberania nacional, no “setor produtivo de base”, no emprego formal — não à toa, termina por servir ao projeto reacionário da burguesia nacional-desenvolvimentista destronada.

Se o capitalismo quer governar as vidas impondo a pobreza difusa, o risco e do medo, é dessa crise que podem se articular as redes de resistência e a transformação
Mas o modo de produção induz a desarticulação do “welfare state”. A sociedade pós-industrial conforma com um estado-crise. Vive-se um capitalismo de catástrofe iminente. Risco de desemprego, de recessão, de colapso. Festim dos grupos especulativos. O neoliberalismo pauta-se pela gestão do risco, traduzida no economês financeiro. Indicadores financeiros, como o risco-país e as taxas de juros, determinam as técnicas de governo (e os noticiários), concentradas em impedir que o risco saia das margens toleráveis.

Daí a prioridade passar à estabilização financeira: estabilidade da moeda, geração de superávit e eliminação de custos fixos do estado. Na sociedade pós-industrial, inexiste separação entre economia real (industrial e serviços) e economia financeira (gestão do risco, especulação). Nela, não é que os mercados ocupem o lugar do Estado, mas é o próprio Estado que se reconfigura, política e juridicamente, para servir de arcabouço e garantia para o funcionamento dos mercados. Estado e mercado são unha-e-carne e é preciso inventar alternativa a um e outro. Atravessá-los em diagonal.

A narrativa de Marazzi conclui com a identificação do ciclo de lutas correspondente ao pós-moderno. O caso é que existe um impasse no modelo atual de capitalismo. Agora, para produzir valor, ele precisa promover a vida social, fazer circular afetos e valores, multiplicar os nós comunicativos. Necessita incentivar redes sociais, as mesmas que também se articulam em trabalho livre e militância global. Assim, o novo operário social torna-se cada vez mais independente dos circuitos de acumulação.
Tome-se o exemplo do telefone celular. A lucratividade das companhias situa-se mais no seu uso do que na compra dos aparelhos. Mas o que define o uso? A vida. Tanto mais valor será produzido quanto mais relações sociais ocorrerem. Este, o modelo da “new economy”. Na nova economia, a vida está investida ela mesma nos processos produtivos.

Como se pode produzir sem o recurso a grandes aparatos fabris, os meios de produção tornam-se acessíveis à maioria. Na sociedade pós-industrial, pode-se produzir ao difundir conteúdos, digitalizar experiências, inventar linguagens, comunicar-se criativamente. A informação esquiva-se do controle pós-fordista — copyright e patentes — e se dispersa, incontrolável, pelo corpo social. Tempos de democratização da informação, midialivrismo, ativismo internauta, Wikipédia, tuíter e “Wikileaks”.
Se o capitalismo tenta governar hoje as vidas através da pobreza difusa, do risco e do medo, é dessa mesma crise, da enorme classe de precários e internautas-artistas, que podem se articular as redes de resistência e a transformação.

Nada mau para uma narrativa pós-moderna. Marazzi demonstra que as políticas democráticas também funcionam com a força da narrativa. Que o pós-moderno significa menos a dissolução final das narrativas do que a sua multiplicação, a sua explosão em mini-narrativas e nos múltiplos ciclos de lutas. Narrativas agora menos pretensiosas e grandiosas, escritas e reescritas ao sabor das aventuras militantes e movimentos sociais. Na verdade, a erosão da narrativa-mestra fortalece a luta. Pois, além de evitar a mistificação da história única e absoluta da liberdade e prosperidade, também deslegitima o suposto triunfo do mercado como ponto final da História.
Se, com Marazzi, a constituição do sujeito político ainda dependa de força criativa da narrativa, temos a ousadia de juntar duas palavras fora de moda para lutar por uma revolução pós-moderna.


terça-feira, 24 de maio de 2022

Milícias na floresta

Milícias invadem a floresta

Não há o que celebrar diante da violência que os yanomamis voltam a enfrentar

Cristina Serra, FSP, 23/05/2022

Este 25 de maio assinala os 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Sob forte pressão internacional e às vésperas da realização da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, a Eco-92, no Rio de Janeiro, o então presidente Collor garantiu o território aos yanomamis, acossados por uma "corrida do ouro", nos anos 1980, que quase os levou ao extermínio.

A data deveria ser motivo de comemoração porque foi também um marco na mudança da relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, a partir da Constituição de 1988. Mas não há o que celebrar  diante da violência  que a etnia volta a enfrentar, em inédita intensidade.

Operação da Polícia Federal revelou um modus operandi que poderia ser definido como miliciano-empresarial. Como se sabe, as milícias agem por dentro do aparelho de Estado, com conexões políticas que asseguram a impunidade das organizações criminosas.

Um dos investigados pela PF é o empresário Rodrigo Martins de Mello, suspeito de comandar a operação logística com aeronaves que levam para os garimpos alimentos, combustível e máquinas. Mello é pré-candidato a deputado federal pelo PL, partido de Bolsonaro.

Floresta cravejada de áreas abertas para mineração. Registro de invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami em maio de 2020, no estado de Roraima - © Chico Batata/Greenpeace

Também os mundurucus, caiapós e xipayas, no Pará, e as etnias da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, tiveram seus territórios invadidos recentemente. É uma guerra com várias frentes de ataque. Garimpeiros e seus financiadores são exércitos invasores. Corroem as comunidades, promovem conflitos, levam drogas, violência sexual, poluição da terra e dos rios, doenças e morte.

O presidente, e seu ódio aos indígenas, não carrega essa responsabilidade sozinho. Governos e forças políticas locais, por ação ou omissão, favorecem os invasores. Uma pauta hostil no Congresso e a morosidade do STF em decidir sobre o "marco temporal" também. "O Brazil tá matando o Brasil". O verso de Aldir Blanc e Maurício Tapajós em "Querelas do Brasil" é de dolorosa atualidade.


segunda-feira, 23 de maio de 2022

665.627 vítimas brasileiras

Bolsonaro insiste em desacreditar vacinas e produzir mortes

Presidente tira de novo o freio da boca e volta a atacar imunizante chinês

Marcelo Leite, FSP, 21/05/2022

Jair Bolsonaro progrediu. Deputado, defendia que a ditadura militar deveria ter matado 30 mil. No poder, presidente, ajudou a despachar mais de 100 mil para a cova —se bem que muitos nem eram inimigos, talvez 30 mil bolsonaristas.

A multidão de defuntos que mandou "para a ponta da praia", como diria em seu linguajar odiento, compõe parcela significativa das 665 mil vítimas brasileiras. Para quem tem o coração peludo e o cérebro esfarelado, pode parecer pouco diante de 1 milhão de cadáveres do coronavírus nos EUA, ou 13 a 17 milhões no mundo — mas não.

Primeiro, há a subnotificação, maior aqui do que por lá. Estimativa de Elisabeth França, da UFMG, publicada em 5 de maio, apontava 18% a mais de mortalidade no primeiro ano da pandemia, ou 37 mil óbitos acima do cômputo oficial no período.

Supondo que o percentual se tenha mantido, estaríamos na casa de 875 mil brasileiros vitimados pela Covid. E muita gente não ficaria surpresa se a cifra real chegasse perto de 1 milhão, patamar lúgubre que otimistas de ocasião sempre deram por delirante.

Nem é preciso usar esse deflator, entretanto, para dar-se conta de que o Brasil está mal na fita e que Bolsonaro, imitador sem talento de Donald Trump, superou o mestre. Basta pôr os dados na proporção das respectivas populações.

Cotejando 665 mil com 213 milhões de brasileiros, chega-se a 3,12 mortes por mil habitantes. Nos Estados Unidos, o cálculo indica 3,03/1.000 — vergonha para o país mais desenvolvido do planeta, decerto, que contava porém com um movimento antivacina enraizado e amplo, o que bolsominions ainda não lograram por aqui.

Não foi falta de esforço e caráter de Bolsonaro. Agora mesmo, ele teve o desplante de tirar partido do aumento de casos na China para lançar gasolina caríssima na fogueira negacionista, pondo em dúvida a eficácia da coronavac de João Doria, sem a qual o país teria ficado refém da ignorância presidencial.

"Por que que a China tá com Covid? Não é de lá a vacina? Qual é o problema? Ou era vacina só para exportar? Não era para ter ninguém com Covid na China", lascou o presidente na sua Idade da Pedra mental.

A ditadura asiática, que não titubeia na hora de impor draconianos lockdowns em megacidades como Xangai, teve até aqui 15.602 mortes por Covid. Com 1,4 bilhão de habitantes, ostenta 0,01/1.000 de taxa de óbitos, conta que o homem da casa de vidro não se deu ao trabalho de fazer e talvez nem conseguisse (trabalho não é com ele).


Em tempo



sábado, 21 de maio de 2022

A mãe do Freud

Mães Judias

Diz que quatro mães judias se encontraram no céu. Como não podia deixar de ser, a conversa toda é sobre os filhos.

- Não posso me queixar - diz a primeira. - Meu filho, até hoje, só me deu felicidade. Um santo. E na Terra, por causa dele, todo mundo só fala em caridade, em virtude, em bons sentimentos.

- Seu filho é. . . ? - pergunta a segunda.

- Jesus Cristo! - diz a primeira. E, inclinando-se para frente, em tom confidencial e com um gesto que indica tudo em volta: - O dono disto aqui.

- Não é do pai dele?

- Bem. . . É da família.

Agora, alegria, alegria, quem me dá é o meu filho - diz a Segunda mãe. - Ach, como eu me orgulho dele. Na Terra, por casa dele, todo mundo só fala em justiça, em mudanças sociais, em solidariedade humana.

- Como é o nome dele?

- Karl. Karl Marx.

- Hmmm - fazem as outras, apertando a boca.

- O Shnuga - suspira a mãe de Marx, lembrando o seu apelido de bebê.

- E o meu filho? - diz a terceira - Um professor. Este sim é para uma mãe se orgulhar. Inteligeeeeeente! Um crânio. Na Terra, por causa dele, todo mundo só fala no Universo, na relatividade, nos buracos negros. . .

- Quem é ele?

- O Beto.

- Beto?

- Einstein.

- Ah.

Falta falar a quarta mãe e as outras três se viram para ela.

- Eu nem quero falar porque vocês vão ficar com inveja de mim - diz ela.

- Fala.

- Que filho!

- Quem é?

- Um doutor.

- O que foi que ele fez?

- Por causa dele, na Terra, todo mundo só fala na mãe.

E a mãe de Freud fica sorrindo, deixando-se admirar pelas outras três.

Filho era aquele!

(Luís Fernando Veríssimo)

In A mãe do Freud, Luis Fernando Veríssimo, 13ª edição, L&PM, 1987

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Professores de faculdades privadas: categoria em extinção?

Acervo Online | Brasil - Diplomatique

por Andrea L. Harada Sousa, Gabriel Teixeira e Plínio Gentil, 13 de maio de 2022 

Efeito da financeirização, do EaD e sob ataque dos empresários do setor, professores de faculdades privadas são hoje categoria em extinção. Mas será que queremos uma educação sem professor?

Então entendemos o novo sistema, a redução brutal da carga horária total dos cursos, professores dando aulas para 150 alunos remotamente, reajuste de 11,2% com redução do quadro dos professores e redução de carga horária, inclusive a redução do uso das instalações da universidade. Entendemos o novo sistema e também entendemos o que acontece quando educação vira mais uma pasta no portfólio de ações de um conglomerado. O novo sistema assim é, em síntese, a precarização do ensino e do trabalho. (Lucas, estudante de quiropraxia na Anhembi-Morumbi em audiência pública no dia 11/04/2022)

Ele quer ensino híbrido por quê? Porque daí a gente dá aula, nós professores, meia parte da semana para 190, 200 alunos e eles pagam pra gente R$40. (Adriana, ex-professora da Anhembi-Morumbi em audiência pública no dia 11/04/2022)

Imagina você sendo um aluno de enfermagem que foi aprender aplicação de vacina, passagem de sonda, realização de enema, oxigenoterapia, tudo através de vídeos. (Mariana, estudante de enfermagem da Uninove em audiência pública no dia 02/05/2022)

Crescimento subsidiado, mas não regulamentado

Já há alguns anos, o crescimento das instituições de ensino superior privadas é substancial no Brasil. Entre a expansão, iniciada durante a ditadura militar e aprofundada a partir do final dos anos 1990, e o processo de mercantilização e concentração em grandes conglomerados atraídos por fartos subsídios públicos a partir dos anos 2000, fomos assistindo ao surgimento de grandes prédios, instalações confortáveis com logomarcas ainda maiores, onde milhares de estudantes confirmavam a distopia que os dados do censo da educação superior indicavam ano a ano: a hegemonia do setor privado em relação ao público. O número de matrículas nos dez últimos anos ilustra o tamanho do setor privado: em 2010 eram 1.643.298 estudantes matriculados em instituições públicas e 4.736.001 em instituições privadas, em 2020 são 1.956.352 matriculados nas instituições de ensino superior públicas, ao passo que as instituições de ensino superior privadas concentram 6.724.002, ou seja 77,5% das matrículas estão nas instituições privadas e 22,5% nas públicas (INEP, 2022).

Concentradas, predominantemente no Sul e Sudeste do país, nas regiões centrais ou nas proximidades de estações de metrô, essas instituições atraíram a juventude trabalhadora que ansiava alguma mobilidade social e econômica por meio do curso superior. Tal anseio encontrava lastro no discurso da democratização do acesso por meio, sobretudo, dos programas de incentivo federal como o Prouni e Fies.

No entanto, a democratização do acesso e o consequente crescimento do setor privado de ensino superior não significou efetiva ampliação de estudantes participando de cursos de qualidade e pedagogicamente estruturados. Tampouco, significou melhoras nas condições de trabalho para docentes e demais profissionais da educação. O que se viu, na prática, foram fusões e aquisições sucessivas ao longo dos anos, resultando no mercado de ensino superior mais concentrado do mundo, marcado fortemente pela presença de grupos e capitais financeiros de vários cantos do globo.

Resultado também de regulações frágeis, o mercado de ensino superior privado no Brasil hoje é marcado por fraudes nos programas federais de incentivo, emissão de diplomas falsos, manipulações para driblar avaliações do Ministério da Educação e meios de gestão etc.[1] O grupo estadunidense Laureate, que já esteve presente em todos os continentes, e que chegou a ser dono de doze instituições de ensino superior no Brasil, por exemplo, tinha, só em nosso país, mais de 25% de todas as suas matrículas mundiais. A corporação, que encerrou suas atividades no Brasil em 2020, vendendo suas faculdades para o grupo Ânima, contava, enquanto operava no país, com uma coordenação nacional responsável por articular fraudes sistemáticas na documentação de avaliação dos seus cursos e instituições junto ao MEC. O objetivo era centralizar e padronizar procedimentos, de modo a facilitar o trabalho de gestores, na ponta, e garantir a nota máxima tão almejada para a propaganda e captação de novos alunos.

A escala crescente dos grupos de ensino superior operantes no Brasil foi tornando recorrentes práticas desse tipo, de modo que é costumeiro escutar relatos semelhantes de profissionais e gestores de instituições de ensino superior de outros grupos país afora. Todo tipo de experimentação corporativa, como a utilização de robôs para acelerar processos e eliminar custos, passou a ser feita no país. Nesses casos, resta evidente que tais manobras visaram e visam à ampliação dos lucros das empresas educacionais. Embora se tenha pretendido outorgar à iniciativa privada um papel social para democratizar o acesso ao ensino superior, sem imposição de obrigações ou contrapartidas, o tipo de expansão e a finalidade desse processo se desdobrou em formas de exploração da mercadoria educação e da força de trabalho docente até então só imagináveis em ficções distópicas.

O crescimento do setor também foi acompanhado pela consolidação de suas entidades representativas, que atuam junto ao poder público para viabilizar os interesses empresariais na educação e para pressionar por políticas educacionais vantajosas. Trata-se de uma rede que se organiza por meio de entidades patronais – em geral estaduais – que no plano federal se expressam pelas ações da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) e do Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior, que anuncia em sua definição ter como “objetivo defender os legítimos interesses do ensino superior particular”. Nesse caso, a defesa dos interesses das instituições de ensino superior particulares passa também, é claro, pelo financiamento público e por infindáveis negociações de dívidas com o próprio Estado.

A submissão do Estado aos interesses do mercado, inclusive o financeiro, já tem sido objeto de amplos estudos sobre os modos de ser do neoliberalismo e tudo quanto ele engendra, inclusive a conversão de direitos públicos em serviços privados, além da supressão de direitos sociais, em especial aqueles que deveriam proteger as trabalhadoras e os trabalhadores. No Brasil, desde o governo de Michel Temer, essa super-representação dos mercados nas instituições de regulação do ensino superior só fez crescer. Faz anos que o cargo de Secretário de Regulação do Ensino Superior, responsável pela fiscalização das instituições de ensino superior públicas e, especialmente, privadas, é ocupado por pessoas vindas do mercado de capitais, que atuam em bolsas de valores. Na seara da educação, interesses articulados entre Estado e diferentes frações da burguesia, brasileira e mundial, em todos os níveis de ensino, uma educação orientada pelo e para o mercado. Consideradas apenas essas breves linhas sobre o problema e já estaríamos diante de um fosso. Mas não é só.

Tecnologia, EaD: educação pelo e para o mercado

O avanço tecnológico na educação não é um mal em si. Porém, especificamente no caso da educação à distância, a forma da sua regulamentação deliberadamente vaga no Brasil[2] acaba favorecendo empresários do ensino, que viram no avanço tecnológico oportunidades de negócio e aumento no faturamento. Em 2020, por exemplo, descobriu-se que as instituições de ensino superior do grupo Laureate, hoje Ânima, à época dono de doze instituições de ensino superior, passou a usar algoritmos no lugar de professores na correção de provas e demais atividades feitas pelos estudantes, sem que o fato fosse de conhecimento prévio da comunidade acadêmica. O algoritmo, logicamente, atribuía nota máxima para respostas plagiadas de sites da internet, ao passo que zerava atividades em que houve alguma tentativa de elaboração ou reflexão. Após a repercussão do caso, todos os professores dos cursos EaD foram demitidos.

Submetida aos interesses do capital e combinada a uma regulamentação débil, a tecnologia aplicada à educação tem sido instrumento de precarização tanto da formação, como das condições de trabalho de docentes. Nessa medida, as consequências do EaD não podem ser tomadas como descaso, elas são antes um projeto em curso e em execução.

O uso das chamadas novas tecnologias na educação, que já ocorre desde o início dos anos 2000 com a adoção dos primeiros cursos na modalidade à distância (EaD), foi amplamente intensificado durante a pandemia de Covid-19 e alavancou a oferta de diferentes serviços educacionais e novas oportunidades de negócios por parte das grandes corporações, levando seus investimentos para além da oferta de cursos de graduação e pós-graduação. É comum, no meio docente de instituições de ensino superior privadas, relatos de aulas ministradas para mil, 2 mil estudantes. Um dos autores deste artigo chegou a ministrar aulas EaD para mais de 20 mil alunos ao longo de um semestre letivo.

O pacote de produtos e serviços educacionais oferecido por empresas privadas de educação, muitas delas de ensino superior, vão desde plataformas digitais, serviços de gestão, produção e venda de conteúdos, até metodologias de ensino e processos avaliativos. Essa diversificação se efetivou também na distinção entre a oferta de cursos massificados para os mais pobres (EaD, híbrido, remoto) e outros com mensalidades elevadas, referidos como cursos “Premium”, nos quais atividades são predominantemente presenciais (especialmente os cursos da área da saúde). Nesse sentido, a diversificação de produtos e serviços educacionais pelo setor privado não só consiste numa estratégia de compensação diante da queda dos repasses de subsídios públicos, a partir da crise das instituições de ensino superior e do Prouni, como também responde a uma demanda cada vez mais central na formação superior brasileira: a distinção entre cursos de baixíssimo custo, massificados, sem professores e com elevada carga de conteúdos digitais de um lado, e cursos de “elite” de outro, ampliando e aprofundando a desigualdade social e de formação profissional num país que fabrica mais e mais pobreza a cada ano.

O mercado educacional se converteu e se consolidou como modelo de negócios, atraindo investidores de toda natureza (muitos sem qualquer vínculo com a educação), sem qualquer relação com a democratização do ensino superior, com a redução das desigualdades ou com o desenvolvimento do país. Na realidade, representam a efetiva oportunidade de valorização para capitais privados de várias partes do mundo, num ritmo e intensidade que nem a experiência chilena foi capaz de produzir. Nesse cenário, estudantes são tratados como ativos financeiros e docentes como custos a serem eliminados.

Aliás, a pauta que o setor empresarial da educação disputa agora junto ao governo é o 5G e o metaverso, para que a aplicação de recursos tecnológicos ao ensino possa ser ampliada, tornando-o ainda mais automatizado e gerido com base num capitalismo algorítmico e uberizado. Basta ver a parceria entre a TIM e a Cogna (holding do setor financeiro que atua em vários negócios no país, especialmente na educação superior), que formaram a Ampli, focada na oferta de cursos de graduação, pós-graduação e cursos livres 100% pelo celular.

Iniciativas como essas, como dito pelo próprio CEO da Kroton – braço da Cogna na educação superior –, não só prometem enorme valorização de ambas as empresas, como elevam a um novo patamar a massificação feita pelo mercado e para o mercado, além de alçarem também a novo nível o propósito de extinção do trabalho docente ou, ao menos, a expropriação das suas atribuições, transferindo-as para robôs e programações de inteligência artificial.

Nesse caso, o que notamos é que a tecnologia aplicada ao ensino superior e à formação profissional reforça assimetrias e aprofunda desigualdades, bem como recoloca em novos patamares as condições de trabalho e atribuições docentes. Para estudantes, abre-se a possibilidade de cursos acessíveis, a baixíssimo custo (porque massificados, padronizados e indiferenciados), ainda que o custo seja uma formação promovida, literalmente, por um robô e/ou por uma sequência de videoaulas gravadas sob condições adversas, sabe-se lá há quantos anos. A sanha da qualificação permanente, tão reivindicada pelo mercado de trabalho e tão desejada por parcelas cada vez maiores da força de trabalho brasileira, parece por acabar devolvendo-os ao mesmo lugar.

O depoimento de estudantes e professoras ligados à instituição de ensino superior dos grupos Ânima e da Uninove, em audiências públicas realizadas em abril de 2022, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) pelo mandato do deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL), é forte o bastante para explicitar o que salta aos olhos e nos serve de epígrafe neste texto.

Professores de faculdades privadas: entre a precarização, a extinção e a uberização?

A fim de viabilizar sua capacidade de lucro, as corporações educacionais promoveram amplas reestruturações e um dos alvos centrais foi, como sempre ocorre, o enxugamento da folha de pagamento. Respaldadas pelas alterações na legislação do trabalho (em especial a lei da terceirização e a reforma trabalhista), pelas potencialidades das tecnologias de inteligência artificial e pelo aprofundamento da desregulamentação promovida pelo Ministério da Educação pós-2017, as corporações educacionais criaram um ambiente de vale-tudo nas relações de trabalho.

Professoras e professores do ensino superior privado são, em sua imensa maioria, aulistas. No passado, isso significava que a atribuição de aulas poderia variar de semestre a semestre a depender da formação de turmas, variando igualmente a jornada e a remuneração, o que já era fator de precariedade e instabilidade. Com as mudanças no setor, sobretudo com o uso de tecnologias, o quadro se agravou seriamente. Entre 2018 e 2020, professores do EaD da Laureate Brasil chegaram a ministrar aulas para mais de 40 mil alunos por semestre. Ao todo, cerca de trezentos profissionais lecionavam, desde São Paulo, para cerca de 300 mil estudantes de todas as instituições de ensino superior ligadas ao grupo no país.

É verdade que, mesmo antes da reforma trabalhista, as instituições de ensino superior privadas já adotavam práticas que intensificavam o trabalho docente, como a junção de turmas, para que um mesmo professor realizasse o trabalho de outros, mantendo inalterada sua remuneração, o famoso “ensalamento”, que gerava salas superlotadas.

Com o EaD também na modalidade presencial, além do ensino híbrido legado pela pandemia, a jornada de trabalho docente foi drasticamente reduzida: hoje é frequente que professores do ensino superior tenham duas ou quatro aulas por semana apenas. Isso porque, com as disciplinas online e com as alterações no currículo, parte significativa da grade curricular passou a ser remota. Atualmente, um único professor, trabalhando duas ou três vezes na semana, leciona para um total de estudantes que antes demandaria algumas dezenas de profissionais. Obviamente, tal feito ocasionou demissões em massa,[3] como se viu ao longo de 2020, mas também um sensível rebaixamento da qualidade e profundidade das aulas.

Mas essas mudanças foram mais profundas e têm implicado uma reorganização total dos percursos formativos. Com menos docentes e maior número de estudantes por salas virtuais, o material didático e as “metodologias ativas” ganharam maior centralidade no vocabulário educacional corporativo. Cursos de graduação EaD hoje se resumem a três ou quatro videoaulas de 30 minutos cada, mais uma apostila. A prova é uma só no semestre, sempre objetiva. As questões são feitas de maneira simples a fim de descomplicar sua resolução. O que antes demandava troca e acompanhamento atento e continuado de profissionais, hoje se faz à frio, pelo computador, sem ferramentas de checagens do aprendizado.

Em paralelo, novas “EdTechs” vêm ganhando força nos últimos anos, especializadas na produção de videoaulas, de apostilas e de banco de questões que irão alimentar as plataformas digitais EaD. Nesse novo mercado, os ex-professores, agora chamados de “conteudistas”, se inscrevem em convocações e concorrem entre si, assumindo riscos e arcando com o custo de produção e venda de materiais didáticos, em troca de remunerações que variam de R$ 200 a R$ 700, já inclusos os direitos autorais. Tais como motoristas de aplicativo, legiões de profissionais ficam à espera de novas chamadas para a produção de conteúdo, sem qualquer vínculo formal ou direitos trabalhistas.

Esmagados entre robôs, algoritmos e postos de trabalhos incertos e de baixa remuneração, tem restado a um número expressivo de docentes aceitar trabalho na condição de “tutores”, um tipo de subcategoria docente. Supostamente, tutores fazem a ponte entre professores e estudantes, mediando atividades. Na prática, contudo, nesse cenário a figura do tutor acaba servindo de verniz à precarização do trabalho docente. São mestres e doutores que trabalham 40 horas semanais, por cerca de R$ 1 mil mensais para formular e apresentar conteúdos, ministrar aulas, corrigir atividades, tirar dúvidas e produzir materiais didáticos, todas atribuições tipicamente docentes. Na prática, a contratação do tutor virou o novo caminho para escapar do pagamento do mínimo salarial docente e dos direitos trabalhistas conquistados nas convenções sindicais.

O modo de fragmentação e reconfiguração do trabalho observado indica que as corporações do setor educacional viram na expansão do EaD, e no desenvolvimento tecnológico, um meio de promover uma nova divisão do trabalho docente, que expropria dos trabalhadores um conjunto relativamente amplo de saberes e fazeres. É, portanto, um processo que coloca profissionais da educação diante de um dilema quase insolúvel: a demissão; a intensificação, a precarização e desqualificação; ou, por fim, a disputa por vagas uberizadas nas EdTechs. Além disso, com o trabalho remoto há grande dificuldade de organização e questionamentos coletivos.

Os efeitos dessa forma de educação atingem igualmente professores dos cursos presenciais e docentes que trabalham nos cursos e disciplinas online nas mais diferentes formas de utilização do EaD no ensino superior, convertendo assim o conjunto de professores numa massa precarizada em que a precarização de uns retroalimenta a precarização de todos.

Não bastasse a violenta redução de jornada e as demissões em massa, há também a apropriação indevida pelas instituições de ensino superior privadas da produção intelectual de docentes. Conteúdos variados (textos, vídeos, áudios, atividades, provas), elaborados por professores, e cuja utilização pelas instituições de ensino superior converte este material em ativos circulantes que municiam diferentes instituições, visto que são vendidos e compartilhados sem qualquer barreira legal. Trata-se, portanto, de uma forma de expropriação e espoliação do trabalho docente.

De tudo isso decorre uma espécie de extinção da figura tradicional dos professores no ensino superior privado. Substituídos por robôs ou por novos formatos precarizados de contratação, vê-se, em pleno século XXI, a emergência de formas esdrúxulas de desintegração e descorporificação de uma categoria, até pouco tempo, numericamente bastante expressiva. São muitos conhecidos, ex-colegas de trabalho que abandonaram a carreira docência e foram trabalhar no ramo do comércio, que foram fazer uber, ou que foram trabalhar de barbeiro. Durante a pandemia, não faltaram relatos de professores que sequer tinham condições de comprar comida ou pagar o aluguel.

São diversas e complexas as determinações para que chegássemos a esse quadro, ainda inconcluso. Mas é com ensino à distância, com a falta de regulamentação e, em muitos casos, também com a dificuldade de mobilização das entidades de classe (de trabalhadores) que observamos uma deterioração ainda mais acintosa do trabalho docente. As sucessivas omissões intencionais e criminosas do MEC nos assuntos laborais e de regulação dos cursos e instituições fere o sentido e a função social de uma formação profissional superior, comprometendo o futuro de gerações e da própria sociedade brasileira.

Com a possibilidade da abertura de polos como franquias educacionais, desvinculadas de cursos presenciais, é corrente vermos pequenas salas alocadas dentro de escolas, de igrejas, em cima de padarias ou dividindo espaço com lojas de empréstimos que ostentam a placa de faculdade e oferecem um menu variado de cursos de graduação, graduação tecnológica e pós-graduação. Muitas vezes são estruturas extremamente precárias que, dificilmente, poderiam abrigar laboratórios de informática, professores e tutores e menos ainda estudantes, mesmo que o polo funcione apenas como apoio. Com isso, vai-se passando a boiada também na educação superior.

Até fevereiro deste ano, o MEC registrava mais de 35 mil polos ativos de EaD. Dificilmente se encontrará um docente nestes mais de 35 mil polos, que oferecem dezenas de cursos em diferentes áreas. De acordo com o último censo divulgado,[4] apenas entre 2010 e 2020 o crescimento no número de matrículas foi de 42% no setor privado.

Assim, se era notável o crescimento do setor privado de ensino superior por conta da estrutura dos prédios e pela movimentação de estudantes e docentes, hoje a desintegração pode ser observada em qualquer sala de professores ou em qualquer sala de aula. Ao longo desse processo, primeiro sumiram os cursos presenciais de licenciatura e com eles os docentes que neles lecionavam. Agora que a modalidade EaD penetra no conjunto de cursos e em outras áreas de formação os professores de cursos presenciais já sequer enchem uma pequena sala no horário do intervalo, muito embora continuem estáveis os números de matrículas no ensino superior privado.

Campanha salarial defende mais que direitos

Este é o ambiente no qual se realiza neste momento a campanha salarial dos professores do ensino superior privado no estado de São Paulo, que querem reposição da inflação e das perdas acumuladas no período da pandemia, aumento real e regulamentação do EaD (para citar apenas os pontos centrais).

Ao defender essa pauta, defendem também a existência da categoria e mais do que isso colocam em evidência a farsa da expansão via ensino à distância. Defendem uma regulamentação que ponha fim à esbórnia da formação fake, para que professores não sejam prescindíveis ou meros apêndices do maquinário tecnológico.

Já os empresários do ensino, representados pelo Sindicato das Mantenedoras do Ensino Superior (Semesp), não satisfeitos com a terra arrasada que se tornou o trabalho docente no ensino superior privado, querem reduzir os parcos direitos que ainda restam e não aceitam sequer dialogar sobre a regulamentação das relações e das condições de trabalho no EaD.

Procuramos, ao longo deste artigo, demonstrar a calamidade que se abate sobre professores e estudantes do ensino superior privado. Assim como ao ensino que as corporações privadas têm oferecido. Fatos que têm sido fartamente noticiados na mídia e se intensificaram porque governo e empresários da educação, de forma conjunta, aproveitaram “para passar a boiada”, ou o que restava dela, durante a pandemia.

Precisamos combater a ideia fetichizada e corrente de que tecnologia equivale a modernidade e que ela proverá o mundo de carros sem motoristas, lojas sem caixas, centrais de atendimento sem atendentes até educação sem professores. Porque no campo do ensino privado e sob a falaciosa aparência de avanço, a tendência que se evidencia é a superexploração, a espoliação e a fragmentação do trabalho docente que expõe a intenção de reduzi-lo ao mínimo necessário para reproduzir produtos pasteurizados em cursos online travestidos de formação profissional, mas que não pode ocultar a formação invertebrada para o trabalho precário condizente com o futuro desigual que as elites sempre desejaram. E esse não é um problema apenas das professoras e dos professores do ensino superior privado.


Andrea L. Harada Sousa é professora, diretora do Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos e pesquisadora do NETSS na FE Unicamp; Gabriel Teixeira é membro da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta e pesquisador do IFCH/Unicamp; Plínio Gentil é professor universitário, com doutorado em Direito e em Educação. procurador de Justiça em São Paulo e membro do Grupo de Pesquisa “Educar Direito” da UFSCar.


Referências

[1] O detalhamento de fraudes está disponível em muitas matérias e diferentes veículos , citamos apenas alguns: https://apublica.org/2019/05/professores-acusam-laureate-de-forjar-documentos-para-obter-o-reconhecimento-de-cursos-ead-no-brasil/ e https://veja.abril.com.br/educacao/escola-de-fraudes-universidades-manipularam-resultados-do-enade/ e https://veja.abril.com.br/educacao/a-fraude-de-r-1-bilhao-no-fies/ e https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/05/11/estudantes-que-receberam-diplomas-emitidos-por-faculdade-suspeita-de-fraude-podem-ter-os-documentos-cancelados-diz-pf.ghtml e https://universidadeaesquerda.com.br/uniesp-s-a-demissao-de-professores-em-greve-descumprimento-das-obrigacoes-trabalhistas-e-desrespeito-a-legislacao-educacional-e-mais-do-mesmo-na-historia-da-empresa/ e https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2020/06/03/justica-federal-bloqueia-r-2-bi-de-diretores-da-uniesp-por-fraudes-no-fies.htm

[2] Em 2007 é publicado o documento Referenciais de Qualidade para Educação Superior a Distância. Mas é no governo de Michel Temer que se edita em 2017 o Decreto 9057, recebido pelas entidades representativas do ensino privado como marco regulatório do EaD e desobriga o vínculo do credenciamento de cursos presenciais para oferta de cursos EaD e estende a modalidade para cursos de pós-graduação e em 2018 a Portaria 1428 que autoriza a oferta de 40% de aulas a distância em cursos presenciais.

[3] Demissões em massa têm sido divulgadas e materializam o processo que analisamos neste artigo sobre a ameaça que paira sobre o trabalho docente no ensino superior privado, ou seja, a extinção da categoria. Disponível em: BRASIL. Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Educacional Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior. Brasília, DF, c2022. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2022 e https://www.brasildefato.com.br/2020/09/09/universidades-particulares-demitem-professores-em-massa-e-lotam-salas-virtuais e https://diplomatique.org.br/ensino-mercantil-e-demissao-em-massa-de-professores-no-ensino-superior-privado/ e https://www.brasildefato.com.br/2020/06/25/lucro-e-o-objetivo-principal-diz-professor-da-uninove-demitido-em-meio-a-pandemia

[4] BRASIL. Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Educacional Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior. Brasília, DF, c2022.


Comentários

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Karl De Medeiros

Uma Profissao em extincao!

Gabriel Grabowski

Parabéns autories. Excelente texto e abordagem. Educação mercantil entrega isto mesmo: formação precária

Maria De Fátima Oliveira Peringer

Infelizmente, o cenário é terrível para a educação. Outro espaço que vai nesta chamada "hibridade" é a universidade pública, onde temos aulas de matemática financeiro a distância. O professor tendo que estar sempre "vitaminado" o Lattes. Como se ter publicações Qualis Aa fosse mais importante que a sala de aula Temos q TB pensar por que reduziu a procura? Ou vamos botar culpa apenas na pandemia?

Guilherme Ferreira Silva

Olá, considerando o vínculos dos autores com o sindicato em SP, seria interessante a tentativa de articulação com outros Estados. Aqui em Minas Gerais não vemos nenhuma movimento do sindicato. Os alunos denunciam ao Procon que diz que é responsabilidade do MEC, O MEC diz que é do Procon, e o MP diz que é demanda individual. Se não houver ações concretas e denúncias em âmbito nacional, a educação superior não terá volta. Perderão os alunos, os professores e a sociedade.

Danyela Medeiros

Excelente reflexão... Parabéns aos autores! Essa degradação do trabalho docente também está chegando à educação básica. O que podemos fazer para pegar o caminho de volta?

Luisa Durán Rocca

Excelente texto. A formação é muito mais que aula; é trocas, é pesquisa, é extensão, é relações pessoais, valores compartilhados, expeiências vividas, que não acontecem no mundo virtual.


quinta-feira, 12 de maio de 2022

O Homem do Norte - filme

 'O Homem do Norte' se perde entre os urros de um viking meritocrata

Novo filme de Robert Eggers faz banho de sangue com tintas de 'Hamlet', mas diálogos ruins não ajudam jornada de vingança

Inácio Araujo, 11/05/2022

A primeira questão que suscitam os filmes de mitologia contemporâneos diz respeito à sua cor. A tonalidade geral varia entre o bronze e o chumbo. As variações privilegiam uma gama que vai do marrom ao amarelo. O azul é raro e o vermelho quase inexiste.

Não é um detalhe. Em "O Homem do Norte", novo filme do diretor Robert Eggers, de "A Bruxa" e "O Farol", o sangue jorra abundante. Cabeças são cortadas, barrigas são abertas, mas nem assim o vermelho aparece. Estamos em território viking. Ali, um rei guerreiro é traído pelo irmão —Fjölnir, "o bastardo". Amleth, o filho, de não mais de dez anos, jura vingar o pai e parte para o exílio.

Vale a pena aproveitar a sugestão shakespeariana do nome Amleth. De fato, existe algo de podre naquele reino nórdico. Talvez sejam os diálogos. Entre os vikings se fala de maneira solene, embora o essencial pareça ser a capacidade dessa gente de emitir urros. Eles urram para odiar, urram para lutar, urram para matar. Costumam urrar também quando matam um inimigo e bebem o seu sangue. O urro corresponde, no mais, às metáforas animalescas que representam. O rei morto é um corvo, cujo espírito aparece providencialmente de tempos em tempos para livrar a cara do filho. Amleth vestirá a pele de lobo em dado momento e ela terá repercussões no futuro.

Aos fatos. Depois de adulto e bombado, Amleth decide que é hora de preparar sua vingança. Descobre que Fjölnir foi deposto e se refugiou na Islândia, ainda mais ao norte, com família e corte. Ele se dispõe a ser escravizado para melhor se aproximar do tio que usurpou o seu trono.

Cada etapa de sua preparação é regada a sangue, claro, embora nem o sangue seja vermelho. No mais, algumas surpresas existem ao longo da trama, mas não chegam a transformar nada de significativo. A sede de vingança de Amleth permanece intacta e, para executar seu plano, conta com a ajuda de uma bela jovem, por quem se apaixonará e será mútuo e tal e coisa.

O intrigante em "O Homem do Norte" é saber a que corresponde essa vingança. A um juramento feito ao pai, sem dúvida. Mas, à parte isso, estamos diante de um herói sem outro tipo de substância. Seu desejo de vingança não tem transcendência. Ele não pretende, por exemplo, fazer o bem a populações maltratadas. Não importa a mínima liberar os homens e mulheres escravizados. Ele o fará apenas na medida em que isso convenha a seus planos. Muito menos deseja instaurar justiça.

O Homem do Norte – Trailer Oficial #1

Por que luta, afinal, Amleth? Ele é o homem que precisa superar as adversidades para se afirmar no mundo. Ele precisa vencer, eis o essencial. Transposto para nossos dias, esse homem seria um empreendedor, o sujeito que luta para não naufragar num mundo hostil e precisa (ou deseja) demonstrar, a si mesmo, o seu valor.

Amleth é, afinal, um meritocrata, um príncipe destituído que deve demonstrar o valor da monarquia —ou melhor, a virtude de seu sangue. Por isso se preocupa com o prosseguimento de sua linhagem, e com efeito a sua amada Olga terá filhos gêmeos — que poderão dar sequência à saga de Amleth, caso o filme emplaque e se transforme numa franquia.

À inacreditável platitude do roteiro corresponde uma encenação que se dedica, basicamente, a gerenciar os urros e massacres que se organizam em torno do neomonocromatismo que caracteriza o cinema comercial "de grande espetáculo" na era digital. Para resumir, "O Homem do Norte" são duas horas e tanto de intenso sofrimento.

"O Homem do Norte" confirma: Robert Eggers é um senhor cineasta 


'O Homem do Norte' pode desmontar fixação da direita pelos vikings

Filme traz cultura que lembra muito mais a dos indígenas do Brasil pré-colônia do que a do ideal supremacista europeu

Reinaldo José Lopes, 11 05 2022 - FSP

Narrativas de fantasia épica têm sido cada vez mais instrumentalizadas por extremistas de direita e supremacistas brancos nas últimas décadas. Aconteceu com "O Senhor dos Anéis" e está acontecendo com "O Homem do Norte", filme do americano Robert Eggers lançado agora que tenta recriar a atmosfera do mundo dos vikings, retratando a Islândia de mais de mil anos atrás.

Não é difícil entender por que a direita raivosa e racista gosta de se apropriar desse tipo de história. Para começar, as tramas e personagens se inspiram com frequência nas mitologias do norte da Europa —em geral as da Escandinávia, mas por vezes também as de povos celtas, como galeses e irlandeses—, retratando culturas supostamente puras e isentas de qualquer influência "não branca".

Seus personagens masculinos representariam um ideal descomplicado de coragem marcial e resistência indômita ao inimigo, sem dúvida um prato cheio para quem quer se matricular num clube de tiro. E as mulheres dessas narrativas costumam exibir uma beleza padronizada e longos cabelos louros que reforçam o estereótipo de pureza europeia.

Ao menos alguns dos lunáticos que invadiram o Congresso americano logo depois da eleição de Joe Biden, em janeiro do ano passado, se veem representados nesses elementos, assim como os "tupinivikings" brasileiros que aderiram ao bolsonarismo –durante a campanha eleitoral de 2018, por exemplo, surgiram memes comparando Jair Bolsonaro a Faramir, personagem heroico e abnegado de "O Senhor dos Anéis".

Para que tais histórias funcionem como simples roteiro ideológico desses grupos, porém, é necessário ignorar a complexidade e a ambiguidade presentes nelas. É nesse ponto que "O Homem do Norte" pode, ironicamente, funcionar como uma ferramenta para desmontar os contos de fadas supremacistas, porque o filme deixa claro que não havia nada de "europeu" nos guerreiros louros e cabeludos da era dos vikings.

A afirmação talvez pareça maluquice, mas é exatamente esse o resultado da pesquisa detalhada feita pela equipe de Eggers durante a produção do longa. O diretor contou com a ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandinávia medieval, como o britânico Neil Price, da Universidade de Uppsala, na Suécia, para reconstruir o cotidiano e a maneira de pensar dos nórdicos do século 9º d.C.

O apego quase obsessivo a essas referências trouxe às telas uma cultura que lembra muito mais, digamos, os tupinambás que dominavam a costa brasileira em 1500 do que qualquer sociedade que classificaríamos como europeia hoje.

Com efeito, as estruturas tribais da Escandinávia dessa época, com seu apego aos códigos de vingança, sua religião fortemente influenciada pelo xamanismo —incluindo a crença de que certos guerreiros podiam se identificar espiritualmente com lobos, corvos e ursos— e sua anarquia política não poderiam estar mais distantes da suposta defesa da "cultura ocidental" feita pela extrema direita de hoje.

Isso para não falar, é claro, dos supostos "valores cristãos" dos ideólogos atuais. No filme, personagens cristãos só aparecem como escravos dos escandinavos, sendo acusados de adorar cadáveres torturados, uma maneira plausível de imaginar como um viking pagão enxergaria um crucifixo.

Em suma, o protagonista Amleth e os demais vikings de "O Homem do Norte" claramente não pensam em si mesmos como "ocidentais", "europeus" —e talvez nem mesmo como "brancos". Seu horizonte cultural é muito mais estreito, peculiar e difícil de conceber com a cabeça do século 21. E não deixa de ser irônico também o fato de que a amada do protagonista seja uma serva de origem eslava, enquanto boa parte das teorias racistas dos séculos 19 e 20 consideram os povos eslavos uma "raça inferior", atrasada e indigna de ser considerada 100% europeia. Hitler não curtiu isso.

Por fim, quem se sente tentado a ver no filme uma glorificação da violência viril precisa deixar de lado o fato de que a vingança implacável desencadeada por Amleth é essencialmente fratricida e autodestrutiva. É significativo que a extrema direita se reconheça nesse tipo de espelho.

The Northman OST | Original Motion Picture Soundtrack