quarta-feira, 30 de maio de 2012

Caravaggio

Caravaggio está no Brasil.

A partir de 15 de julho próximo a mostra "Caravaggio e seus seguidores" acontecerá em Belo Horizonte na Casa Fiat de Cultura. A seguir vai para São Paulo, no Masp, de 26 de julho a 30 de setembro. São seis obras do pintor e mais 14 quadros de pintores caravaggescos. Imperdível!

Nesta mostra estará o quadro São Jerônimo que escreve. Só por ele vale a visita.


São Jerônimo que escreve (1605-1606)

Em 1606 Caravaggio matou um jovem durante uma briga e foge de Roma com a cabeça a prêmio. A caveira no quadro São Jerônimo é um símbolo da morte. Segundo o curador italiano Giorgio Leone o crânio é uma espécie de espelhamento do rosto do santo que está inacabado. "Creio que ele não conseguiu terminar a face porque teve que fugir de Roma (1)".

O crânio volta a aparecer no quadro São Francisco em meditação.


São Francisco em meditação (1606)

São Francisco "feito já em fuga" (exílio) segura a caveira na mão, como se tivesse a consciência de seu fim, segundo Leone.

É desta fase A morte da virgem. Novamente a preocupação com a morte.


A morte da virgem (1605-1606)

Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) nasceu em Milão em 28 de setembro de 1571 e morreu em Porto Ercole em 18 de julho de 1610. Normalmente é identificado como um pintor barroco. O século XVII é século do barroco nas artes. A arte dos seiscentos.

"Sua vida foi marcada pelos mais variados acontecimentos, seja na esfera pessoal seja na publica, sua ligação para com a igreja não o impedia de adentrar no submundo existente na realidade presente em suas obras, os ladrões, mendigos e prostitutas presentes em seus quadros não são somente oriundos de sua imaginação fundada na realidade que o mesmo observa o artista italiano além de observar esta realidade como artística ele a viveu como homem (2)"

Para o pintor a presença divina se faz através dos humildes e dos necessitados. O realismo tem presença marcante em sua obra. A morte está presente em Caravaggio não como algo distante e sim como algo real. Foi assim em sua vida.

Medusa Murtola (1597)

O enfrentamento da realidade traz em seus quadros não heróis, trazem vítimas. É por essas e outras que Caravaggio transcende ao barroco.

O barroco é o estilo internacional do século XVII. A arte barroca está ligada à contra-reforma, um período histórico em que a igreja católica estimulou nas artes a volta dos símbolos religiosos. Do ponto de vista cultural é o início da liquidação da herança renascentista baseada nos princípios da tolerância.

Se o espaço é estático na renascença, no barroco é fragmentado. Se a luz é uniforme e equilibrada na renascença, no barroco caracteriza-se pela tensão e contração. No barroco tem a presença do movimento, da mobilidade. Caravaggio tinha a luz a serviço do drama e visava chocar e comover. Ele estava interessado a dramatizar o sagrado.

Conversão de São Paulo (1600)

As ideias barrocas têm suas marcas não apenas nas artes plásticas. Estão presentes na literatura, na música, na arquitetura etc.

Padre Antônio Vieira e sua eloquência é barroco. Cervantes idem. Lope de Vega e Macbeth de Shakespeare são barrocos.

Na música a polifônia de Bach e Haendel é barroca. A ópera é um gênero barroco por excelência.

Almodovar namora o barroco. Ana Costa analisa o filme Fale com ela: "No filme, a narrativa almodovariana é barroca: corpos em sofrimento, formas que se transmutam e se superpõem. A arte barroca tem a propriedade de transformar o padecimento em gozo, onde entra a apresentação da paixão. A paixão almodovariana se desdobra no drama, esticando até seu limite de suportabilidade (3)".
 

São João Batista jovem (1600)

Outro que namora o neobarroco: Glauber Rocha. "Quando consideramos "barrocos" os filmes e os textos de Glauber, e também as obras de diversos autores contemporâneos, isso não significa que já não se toma o barroco como um estilo artístico de determinada época, datado, fixo e morto" (4).

O filme Caravaggio de Derek Jarman (1986) retrata uma biografia do pintor com suas nuances conhecidas: a relação com a igreja, suas brigas, seu exílio, sua bissexualidade e seus métodos de trabalho.


Cena de Caravaggio, filme de Derek Jarman, 1986

Em algumas cenas deste filme há uma mistura de figurinos do século XX com os do século XVII, como na figura mostrada acima. Algo me diz que Jarman quis mostrar o Caravaggio atemporal. Caravaggio atual. A rebeldia, a insatisfação com a realidade em que vive e a manifesta tradução de sua personalidade em sua obra são as marcas desta grande personagem.

Caravaggio é punk!


 
Baco (1596)

Narcisuss, 1599



Pieta, 1499


Citações:

As reproduções dos quadros que estão neste texto estão disponíveis em http://www.caravaggio-foundation.org/

(1) http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,mostra-reune-obras-de-caravaggio-e-de-seus-discipulos,876259,0.htm 25/05/2012

(2) http://tribunasnalcova.wordpress.com/2009/09/07/caravaggio-e-o-barroco 25/05/2012

(3) Ana Costa, A arte de Almodovar, disponível em
http://www.psicanaliseebarroco.pro.br/portugues/revista/leitura.asp?CodObra=116&CodRev=10 30/05/2012

(4) Jair Tadeu da Fonseca, Alegoria, barroco e neo barroco em Lezama Lima e Glauber Rocha. Disponível em http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/58885_6799.PDF 30/05/2012

(5) Beyond Caravaggio page   14/02/2017


 

terça-feira, 22 de maio de 2012

Meias


Ela tinha uma sensualidade especial, era reservada de um jeito que a fazia diferente das demais mulheres, e o segredo de sua atratividade era uma mistura de passividade e distinção. Parecia que escondia em seu interior uma misteriosa qualidade, que a fazia permanecer como alguém distanciada, sempre com seu tranquilo sorriso, inclusive quando se entregava ao desejo febril de seu esposo. Ele gostava daquele olhar distante, daqueles olhos claros que sorriam e da maneira tão peculiar de abandonar-se a si mesmo. (1)

Samantha é uma mulher singular. Vivia, com Arthur, um casamento de 20 anos. Em harmonia, sem muita surpresa. Ela considerava o marido um líder. Fazia o que ele pedia. Todo santo dia, antes de ir para o trabalho, Arthur pedia para Samantha colocar em seus pés as suas meias e depois o sapato. Quem fazia o prato de comida para ele no almoço? Samantha, claro. E sem misturar o arroz com o feijão!

Samantha, apesar das meias, tem boas lembranças de seu casamento. Ela nasceu em Indaiatuba, cidade do interior de São Paulo, de família tradicional. Estudou em colégio de freiras e teve a formação clássica de que mulher para ser mulher tem que ser uma boa esposa e uma boa mãe. Aos 21 anos casou-se com Arthur e desta relação apareceram dois filhos que foram criados em Campinas onde o casal passou a residir.

Samantha sempre foi do lar. Cuidava dos filhos, da casa e do marido com esmero e dedicação.

Boa cozinheira servia os seus com a competência de uma Roberta Sudbrack. Samantha tem um livro com recortes de receitas muito bem organizado. Arthur e filhos consideravam imbatíveis a torta de limão e o rosbife com nhoque ao sugo feitos por Samantha.

Nossa personagem é uma libertina na cama. E o Arthur? Às vezes era líder na cama. Às vezes não. Nestas horas ela não gostava. Ela gosta de homens com liderança agressiva. Ela esperava o prazer de Arthur. Quando isto não acontecia, o Arthur passivo, Samantha se frustrava.

É como escreveu Anais Nim em seus diários: A vontade dele, o prazer dele, o desejo dele, a vida dele, o trabalho dele, a sexualidade dele como medida, comando – como centro da minha órbita. Não me importa trabalhar, ter meu espaço intelectual como artista; mas como mulher, ah, Deus, como mulher eu quero ser dominada. Não me importa se me disserem que tenho de andar com minhas próprias pernas, ser independente – eu posso fazer isso – mas eu serei caçada, penetrada, possuída pela vontade de um homem na hora que ele quiser, ao seu comando.

Anais Nin foi uma mulher plural. Escritora viveu na primeira metade do século XX, uma vida agitada. Na época em que escreveu o que citei acima vivia (em Paris) numa dúvida entre três homens e uma mulher com os quais tinha uma intensa relação amorosa. Anais, além de uma intelectual incrível, foi uma libertária e uma libertina. Como o diabo gosta.

Numa época da vida Samantha como dona-de-casa teve uma decisão sui generis: se embrenhar pela literatura de Clarice Lispector. Até hoje seu livro de cabeceira é Perto do coração selvagem. Os dilemas de Clarice passaram a serem os de Samantha: a mulher, o casamento, o desassossego, o humano e outras questões sempre não lineares da autora. Mais tarde veio a conhecer Virgínia Wolf e Anais Nim.

Cá pra nós, ninguém passa impune por essas mulheres.

Recentemente Arthur teve problemas graves de saúde. Câncer no cérebro descoberto tardiamente. Faleceu seis meses após a descoberta da doença. Samantha sentiu muito a perda do marido. Afinal foi um casamento bem vivido de mais de vinte anos.

Para ela uma situação contraditória como se fosse uma mistura da dor de perder com a sensação de liberdade de deixar alguém partir (Elizabeth Bishop).

Passado o período de luto Samantha encontrou-se com uma amiga. E esta curiosa perguntou sobre como a amiga conviveu tanto tempo com Arthur na situação de submissão. Citou a estória das meias. Respondeu Samantha:

- Sabe o que é amiga, fazemos isso para que os homens pensem que mandam e que são superiores. E soltou um tímido sorriso maroto.

Epílogo

Cinco anos antes de Arthur morrer Samantha conheceu um homem. Passaram a se encontrar com frequência. Tornaram-se amantes. Sim, ela traia o marido.

Até hoje este homem tem sobre ela uma liderança amorosa e libidinosa. Ela continua com sua sensualidade especial misturando atratividade e distinção.

Mas calçar meias e fazer o prato no almoço para ele nunca mais.


Citação:

(1) Javier Moro, sobre Dona Leopoldina e Dom Pedro I em O Império é você, p. 96, Planeta, 2012.


NB: a ideia inicial deste texto veio da crônica Essas mulheres e suas histórias, de Joaquim Ferreira dos Santos em O Globo de 7 de novembro de 2011.

De Isabela Guerreiro: “O marido de uma amiga minha chega a pedir que ela lhe coloque as meias. Num dia, ela desabafou: ‘Se um dia fosses pra guerra, criatura, quem iria colocar as balas no teu revólver?’ Felizmente esse tipo de relação está cada vez mais raro hoje em dia, ou eu estou sendo ingênua?” Isabela, marido é gente folgada e assim continuará sendo, por definição e índole, até o fim dos tempos, cada vez mais próximo, dessa bizarrice que é o casamento. Conheço homem que não passa manteiga no pão porque considera isso uma prenda do lar e diz que o faz por respeito, por não querer invadir o espaço da patroa. Ô raça.

Essasmulheres-2