Deu em O Globo de 04/01/2014.
A revolta contra o silício
Gentrificação em São Francisco e
colaboração com a NSA tornam empresas de tecnologia alvo de protestos nos
Estados Unidos
Rennan Setti (Email)
Publicado:4/01/14 - 12h00
Em novembro, manifestantes protestaram em frente
à sede do Twitter, em São Francisco, EUA: contra despejos e incentivos fiscais
a firmas de tecnologia David Paul Morris / Bloomberg
RIO - Os Estados Unidos pós-crise
elegeram a plutocracia como alvo de um ódio comungado por todos, dos homeless
à classe média hipotecada. Jovens armaram barracas em Wall Street em protesto
contra o 1% de endinheirados com a ajuda de smartphones, Twitters e Facebooks.
Nenhuma contradição no fato de essa parafernália ser responsável por uma
inédita concentração de milionários no outro lado do país, uma vez que ela
tornou possível o recente levante árabe. O Vale do Silício seguia blindado da
fúria contra o capital. Mas a combinação de ofertas de ação extravagantes,
arrogância, esbanjamento e um escândalo de espionagem começa a cobrar seu preço
aos geeks.
O desconforto virou notícia no início
de novembro de 2013, quando 150 pessoas protestaram em frente à sede do
Twitter, em São Francisco. Naquele dia, a rede social estreava na Bolsa
levantando US$ 2,1 bilhões e dando à luz 1,6 mil milionários. Por causa de
empresas como aquela, denunciavam os manifestantes, a cidade que já foi morada
de hippies e artistas tem hoje o metro quadrado mais caro do país. Apenas 10%
dos imóveis cabem no orçamento de quem ganha o salário médio, e despejos se
tornaram uma constante.
- Nem mesmo a Corrida do Ouro, no
século XIX, produziu tanto lucro na região - lembra Kevin Starr, professor da
University of Southern California. - Nenhuma economia do planeta suporta os
efeitos negativos desse tsunami de riqueza instantânea. Para o bem ou para o
mal, São Francisco desbrava um paradigma econômico nos EUA que refletirá em
outros países em seu descasamento de salários e na diminuição da prosperidade
da classe trabalhadora.
Nada simboliza tanto o conflito
quanto os ônibus da Google, que levam funcionários de São Francisco à sede da
empresa, em Mountain View, com direito a wi-fi e ar-condicionado. Há algumas
semanas, um dos veículos foi bloqueado durante meia hora por manifestantes que
acusavam a frota de usar indevidamente os pontos da cidade e de privar o
sistema de transportes de receita importante.
Em fevereiro, Rebecca Solnit escreveu
no “London Review of Books” que os ônibus são a prova de que, “diferentemente de
mega-empregadores em outros tempos e lugares, as corporações do Vale não estão
muito interessadas em melhorar o transporte público.”
Essa é uma face do dogma libertário
que reina no Vale, aquele que, segundo críticos, está no cerne de uma ideologia
corrompida. Para Evgeny Morozov, que deu aulas em Stanford, o que ele chama de
“solucionismo” faz start-ups acreditarem que seus apps e gadgets, não
governos, podem resolver os problemas do mundo.
“Eles pensam que tudo o que ajuda a
contornar instituições lhes dá, por definição, poder e liberdade. Você pode não
conseguir pagar seu plano de saúde, mas se um app alerta para o fato de que
você precisa de exercícios, eles acham que estão resolvendo um problema”,
contou Morozov à revista “New Yorker”.
Em novembro, Morozov publicou o
ensaio “Por que temos permissão para odiar o Vale do Silício”, em que advoga a
necessidade de combater a “linguagem banal mas eficiente” de empresas como
Google e Facebook e reexaminar sua “história furada”.
Ele argumenta que é urgente
“reinjetar política e economia no debate”, pois sua ausência permite às
corporações refutar como luditas e retrógrados todos os que se opõem aos rumos
da “tecnologia” e da “internet”. O próprio vernáculo “digital” esvaziaria a
discussão escondendo os reais interesses em jogo: seduzir nossas ansiedade e
privacidade com produtos “gratuitos”, engendrados agora em um modelo de
negócios monolítico baseado em anúncios.
“Por que tudo o que pode ‘destruir a
internet’ também arrisca quebrar a Google? Coincidência?”, escreveu. “Permitir
à Google organizar toda a informação do mundo faz tanto sentido quanto deixar a
petrolífera Halliburton organizar todo o petróleo do mundo.”
Morozov é um crítico contumaz, mas
mesmo a liberal “The Economist” previu que 2014 será o ano em que “a elite
tecnológica se juntará a banqueiros e petroleiros na demonologia pública.” Um
dos motivos é a colaboração de gigantes da tecnologia com a Agência de
Segurança Nacional (NSA) na espionagem de internautas. Outro está nas manobras
de firmas como Apple para deixar de pagar bilhões em impostos nos EUA. Há ainda
o esbanjamento de milhões em ocasiões como o casamento de Sean Parker,
ex-Facebook, que contratou a figurinista de “O Senhor dos Anéis” e Sting.
“Os geeks se transformaram nos
capitalistas mais impiedosos. A nova economia já foi uma fronteira aberta. Hoje
ela é dominada por um punhado restrito de oligopólios”, observou a revista.
O gosto pelo controle se manifesta em
muitas formas. O maior investidor da Exxon Mobil controla 0,04% das ações, mas
29,3% do Facebook estão nas mãos de Mark Zuckerberg. Apps, considerados jardins
murados por tecnólogos, estão substituindo a web aberta. Coincidência ou não,
as principais empresas do setor estão entre as mais secretas que já existiram:
a Apple organiza eventos para a imprensa onde é proibido fazer perguntas.
Para Alex Soojung-Kim Pang, consultor
na Strategic Business Insights, a transição de uma economia baseada em
fabricação de hardware para outra de negócios de internet acelerou a acumulação
de riquezas a uma velocidade inédita, alterando o DNA do Vale:
- Testemunhei a mudança quando
ensinei em Stanford, em 2000. Os alunos desenvolviam atitude do tipo “Por que
tenho que ler suas baboseiras se ganharei US$ 50 milhões no ano que vem?”.
Para Pang, o Vale se tornou um culto
à “disrupção”, cuja meta não é apenas o sucesso, mas a destruição de modelos
estabelecidos:
- O sofrimento de velhos modelos se
tornou a métrica do sucesso. Quanto mais os outros perderem, mais eu ganho. Se
desenvolvo software de educação, não é o bastante chegar às crianças na África.
Preciso que professores sejam demitidos nos EUA.
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