segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Contra o silício


Deu em O Globo de 04/01/2014.

A revolta contra o silício


Gentrificação em São Francisco e colaboração com a NSA tornam empresas de tecnologia alvo de protestos nos Estados Unidos

Rennan Setti (Email)

Publicado:4/01/14 - 12h00

Em novembro, manifestantes protestaram em frente à sede do Twitter, em São Francisco, EUA: contra despejos e incentivos fiscais a firmas de tecnologia David Paul Morris / Bloomberg

RIO - Os Estados Unidos pós-crise elegeram a plutocracia como alvo de um ódio comungado por todos, dos homeless à classe média hipotecada. Jovens armaram barracas em Wall Street em protesto contra o 1% de endinheirados com a ajuda de smartphones, Twitters e Facebooks. Nenhuma contradição no fato de essa parafernália ser responsável por uma inédita concentração de milionários no outro lado do país, uma vez que ela tornou possível o recente levante árabe. O Vale do Silício seguia blindado da fúria contra o capital. Mas a combinação de ofertas de ação extravagantes, arrogância, esbanjamento e um escândalo de espionagem começa a cobrar seu preço aos geeks.

O desconforto virou notícia no início de novembro de 2013, quando 150 pessoas protestaram em frente à sede do Twitter, em São Francisco. Naquele dia, a rede social estreava na Bolsa levantando US$ 2,1 bilhões e dando à luz 1,6 mil milionários. Por causa de empresas como aquela, denunciavam os manifestantes, a cidade que já foi morada de hippies e artistas tem hoje o metro quadrado mais caro do país. Apenas 10% dos imóveis cabem no orçamento de quem ganha o salário médio, e despejos se tornaram uma constante.

- Nem mesmo a Corrida do Ouro, no século XIX, produziu tanto lucro na região - lembra Kevin Starr, professor da University of Southern California. - Nenhuma economia do planeta suporta os efeitos negativos desse tsunami de riqueza instantânea. Para o bem ou para o mal, São Francisco desbrava um paradigma econômico nos EUA que refletirá em outros países em seu descasamento de salários e na diminuição da prosperidade da classe trabalhadora.

Nada simboliza tanto o conflito quanto os ônibus da Google, que levam funcionários de São Francisco à sede da empresa, em Mountain View, com direito a wi-fi e ar-condicionado. Há algumas semanas, um dos veículos foi bloqueado durante meia hora por manifestantes que acusavam a frota de usar indevidamente os pontos da cidade e de privar o sistema de transportes de receita importante.

Em fevereiro, Rebecca Solnit escreveu no “London Review of Books” que os ônibus são a prova de que, “diferentemente de mega-empregadores em outros tempos e lugares, as corporações do Vale não estão muito interessadas em melhorar o transporte público.”

Essa é uma face do dogma libertário que reina no Vale, aquele que, segundo críticos, está no cerne de uma ideologia corrompida. Para Evgeny Morozov, que deu aulas em Stanford, o que ele chama de “solucionismo” faz start-ups acreditarem que seus apps e gadgets, não governos, podem resolver os problemas do mundo.

“Eles pensam que tudo o que ajuda a contornar instituições lhes dá, por definição, poder e liberdade. Você pode não conseguir pagar seu plano de saúde, mas se um app alerta para o fato de que você precisa de exercícios, eles acham que estão resolvendo um problema”, contou Morozov à revista “New Yorker”.

Em novembro, Morozov publicou o ensaio “Por que temos permissão para odiar o Vale do Silício”, em que advoga a necessidade de combater a “linguagem banal mas eficiente” de empresas como Google e Facebook e reexaminar sua “história furada”.

Ele argumenta que é urgente “reinjetar política e economia no debate”, pois sua ausência permite às corporações refutar como luditas e retrógrados todos os que se opõem aos rumos da “tecnologia” e da “internet”. O próprio vernáculo “digital” esvaziaria a discussão escondendo os reais interesses em jogo: seduzir nossas ansiedade e privacidade com produtos “gratuitos”, engendrados agora em um modelo de negócios monolítico baseado em anúncios.

“Por que tudo o que pode ‘destruir a internet’ também arrisca quebrar a Google? Coincidência?”, escreveu. “Permitir à Google organizar toda a informação do mundo faz tanto sentido quanto deixar a petrolífera Halliburton organizar todo o petróleo do mundo.”

Morozov é um crítico contumaz, mas mesmo a liberal “The Economist” previu que 2014 será o ano em que “a elite tecnológica se juntará a banqueiros e petroleiros na demonologia pública.” Um dos motivos é a colaboração de gigantes da tecnologia com a Agência de Segurança Nacional (NSA) na espionagem de internautas. Outro está nas manobras de firmas como Apple para deixar de pagar bilhões em impostos nos EUA. Há ainda o esbanjamento de milhões em ocasiões como o casamento de Sean Parker, ex-Facebook, que contratou a figurinista de “O Senhor dos Anéis” e Sting.

“Os geeks se transformaram nos capitalistas mais impiedosos. A nova economia já foi uma fronteira aberta. Hoje ela é dominada por um punhado restrito de oligopólios”, observou a revista.

O gosto pelo controle se manifesta em muitas formas. O maior investidor da Exxon Mobil controla 0,04% das ações, mas 29,3% do Facebook estão nas mãos de Mark Zuckerberg. Apps, considerados jardins murados por tecnólogos, estão substituindo a web aberta. Coincidência ou não, as principais empresas do setor estão entre as mais secretas que já existiram: a Apple organiza eventos para a imprensa onde é proibido fazer perguntas.

Para Alex Soojung-Kim Pang, consultor na Strategic Business Insights, a transição de uma economia baseada em fabricação de hardware para outra de negócios de internet acelerou a acumulação de riquezas a uma velocidade inédita, alterando o DNA do Vale:

- Testemunhei a mudança quando ensinei em Stanford, em 2000. Os alunos desenvolviam atitude do tipo “Por que tenho que ler suas baboseiras se ganharei US$ 50 milhões no ano que vem?”.

Para Pang, o Vale se tornou um culto à “disrupção”, cuja meta não é apenas o sucesso, mas a destruição de modelos estabelecidos:

- O sofrimento de velhos modelos se tornou a métrica do sucesso. Quanto mais os outros perderem, mais eu ganho. Se desenvolvo software de educação, não é o bastante chegar às crianças na África. Preciso que professores sejam demitidos nos EUA.



Nenhum comentário:

Postar um comentário