quinta-feira, 16 de julho de 2020

Um de nós morrerá

Paul Newman não foi o primeiro, nem o último. Virou astro fazendo papéis originalmente destinados a James Dean e que haviam ficado vagos após a morte prematura do astro, em 1956. Naquele mesmo ano, Jimmy deveria interpretar Rocky Graziano na cinebiografia do pugilista por Robert Wise. Newman substituiu-o e interpretou Marcado pela Sarjeta, ou Somebody Up Like Me.

No ano seguinte, Dean estava programado para interpretar a estreia de Arthur Penn na direção, mas quem fez The Left Handed Gun foi, de novo, Newmam. O filme estreou em 1958.  Em todo o mundo foi lançado com a tradução do título original para diferentes línguas. Le Gaucher, El Zurdo, O Canhoto. Fazia todo sentido, considerando-se que se tratava de um western e culmina com uma instituição do gênero, o duelo. Um pistoleiro destro, outro, canhoto.


 No Brasil, ficou Um de Nós Morrerá. No começo dos anos 1960, até o mestre John Ford já não acreditava nos mitos do western, que ajudara a construir. Ford dirigiu em 1962 um filme visceral no processo de desmistificação, enterrando os mitos em O Homem Que Matou o Facínora. Sam Peckinpah prosseguiu e até aprofundou a tendência e não houve, naquela década, grande diretor de westerns que não mostrasse velhos mocinhos, cansados de guerra. O fim da lenda, do heroísmo.

Na Itália, os spaghetti westerns construíram sua estética sobre os bounty killers, caçadores de recompensas que representavam a escória nos exemplares norte-americanos do gênero.
Penn havia feito nome na TV, nos anos 1950. Hoje em dia, grandes nomes do cinema estão migrando para a televisão, em busca de liberdade criativa. Estão fazendo o caminho inverso da geração de John Frankenheimer, Sidney Lumet e Penn, que desembarcou em Hollywood cheia de expectativa, com a promessa de injetar sangue novo na indústria.

Frankenheimer foi o primeiro, em 1956, com No Labirinto do Vício. Nos anos 1960, fez filmes que marcaram época, como Sob o Domínio do Mal, a primeira versão (com Frank Sinatra), O Segundo Rosto e o admirável The Fixer, adaptado de Bernard Malamud, em que Dirk Bogarde está genial. No Brasil, chamou-se O Homem de Kiev. Seguiram-se mais três grandes filmes por volta de 1970 – Os Paraquedistas Estão Chegando, O Pecado de Um Xerife e O Homem do Buzkashi. Depois, foi o resto.

Lumet começou fazendo história com Doze Homens e Uma Sentença, em 1957. Depois, tornou-se ziguezagueante, mas com momentos de brilho – O Grupo, O Homem do Prego. Nos 70, enfileirou filmes impactantes – Serpico, Um Dia de Cão.

Penn foi o maior de todos, mas certamente haverá controvérsia. A Um de Nós Morrerá seguiram-se O Milagre de Anne Sullivan, Caçada Humana, Bonnie & Clyde/Uma Rajada de Balas. Nenhum outro cineasta de sua geração foi tão crítico com os EUA. Penn filmou a América com desgosto, mostrando como o país, historicamente, nunca conseguiu resolver seus conflitos senão através da violência.
Com Um Lance no Escuro, de 1975, fez o maior filme da era Watergate. E, embora tenha realizado outros filmes depois, seu verdadeiro adeus foi em 1982, com Amigos para Sempre. Diante do filho baleado, no hospital, o pai imigrante diz apenas, e com amargura, ou será rancor?, "América!".

Tudo começou com a cinebiografia de Billy the Kid. Antes, entre 1953 e 58, Penn realizara cerca de 200 telefilmes dramáticos. Um de Nós Morrerá pertence a uma fase que o próprio diretor definia como psicanalítica, quando fazia filmes para retratar uma sociedade que não saía da puberdade, e na qual os revólveres substituíam o falo. Howard Hawks já tivera esse lampejo no fim dos anos 1940, em seu western (clássico), Rio Vermelho, quando Montgomery Clift e John Ireland ficam exibindo suas pistolas, para ver quem tem a maior. Essa linha freudiana prosseguiu até que, em Uma Rajada de Balas, de 1967, Clyde/Warren Beatty supera a impotência e faz sexo com Bonnie/Faye Dunaway. Habilitam-se a uma vida plena, mas é tarde demais. A polícia, no encalço da dupla – que já virou lenda aos olhos do público da Depressão –, fuzila os dois. Essa desmontagem psicanalítica do mito já está em Um de Nós Morrerá, quase uma década antes.

O filme baseia-se numa peça escrita por Gore Vidal, A Morte de Billy the Kid, e o roteiro é assinado pelo futuro diretor Leslie Stevens. Vidal já transformara seu pistoleiro num homossexual neurótico. Penn mantém o foco na psicanálise, mas por outro viés. A impotência, real ou figurada, sempre esteve no centro de seu cinema. William Bonney, chamado de Billy, é um órfão que vai trabalhar para um velho fazendeiro. No início, ele antecipa o garoto selvagem de François Truffaut. Parece um idiota, ou algum tipo de deficiente. Responde de forma monossilábica, os movimentos dos olhos e do corpo são desarticulados. O homem que o adota, Tunstall, é o oposto disso. Articulado, culto. Reúne o conhecimento instintivo de Billy e algo mais, uma consciência. Tunstall tem uma passagem relâmpago pelo filme e pela vida de Bonney. Fica uns dez minutos, mas é essencial.

Numa cena, Tunstall lê, Billy parece agitado. Curioso pelo livro, mas temeroso. Sua mãe possuía uma Bíblia, lia passagens para ele. Tunstall lê o título do capítulo – Através de um espelho escuro. Explica a que se refere. Algo que não se pode ver, mas se teme. “Um inimigo”, diz Billy. “Não, pode ser um amigo”, retruca Tunstall. É, claramente, nesse começo, o pai que Billy nunca teve. Ensina-o a ler, a escrever. Não anda armado e, percebendo a revolta que ameaça destruir o jovem Billy, tenta convencê-lo a domá-la. De alguma forma, Tunstall antecipa Anne Sullivan/Anne Bancroft no filme seguinte, mas logo é assassinado, e para Billy é um novo trauma. Ele já tinha tentado defender a mãe. Não conseguiu defendê-la, nem a Tunstall. Seu objetivo passa a ser a vingança. Quatro homens, incluindo o xerife, mataram seu mentor. Não existe possibilidade de recorrer à lei e à justiça, porque são corruptas. Billy assume a justiça por conta própria. Caça os quatro homens, vira um vingador.

Durante toda a sua obra, Penn nunca recorreu aos métodos de Sam Peckinpah – a câmera lenta, por exemplo – para mostrar a violência e seus efeitos. A violência em seus filmes levanta sempre questões de ordem moral, aqui relativas ao envolvimento dos quatro homens na morte de Tunstall e às características pessoais de cada um. As cenas são muito fortes, intensas. Newman era um ator do Método. Não lhe bastava interpretar, tinha de incorporar, de 'ser' o personagem. Mais de um crítico acha que a presença convulsiva de Newman deixa o filme datado, mas, para quem entra no espírito, é fascinante acompanhar a evolução de William Bonney e sua transformação em Billy the Kid. Só como adicional de informação. Não foi uma convivência tranquila no set. Penn e Newman tiveram momentos de confronto. Divergiam quanto ao conceito do personagem, que o ator já interpretara na TV, em 1955.

Na concepção trágica de Penn, Billy é um outsider em busca de família. Perde o pai substituto e terá outras perdas ao longo do caminho. Mata dois dos quatro homens e tem seu momento (ousado) de sexo com a mulher de um sujeito que parece inofensivo, mas é pistoleiro (e pode ser cruel). O sexo vira motor, a maneira como a mulher deseja o Kid, e se torna desejável para ele. A essa altura, dois movimentos impulsionam a narrativa – a lenda de Billy como pistoleiro cresce no Oeste selvagem e ele passa a ser caçado por outra figura que se tornou lendária, Pat Garret. Esse era um amigo – um irmão? –, mas um tiroteio, destruindo seu casamento, leva ao antagonismo. A cena é muito bem construída. A foto posada no átrio da igreja, Pat Garret ao centro, como pilar da sociedade. (O ator John Dehner, que faz o papel, é muito bom, austero, em oposição a Newman.) A partir daí, o caminho é sem volta. A construção do mito é feita pelo escritor de novelas baratas Moultrie, interpretado por Hurd Hatfield, que se tornara conhecido ao interpretar O Retrato de Dorian Gray, a versão de Albert Lewin, de 1945.

Moultrie é um personagem ambíguo. Veste-se de preto, antecipando a morte de Billy. Possui uma fixação homossexual no jovem pistoleiro. Transforma Bonney no Kid. Penn usa os símbolos. Com Tunstall, Billy encontra os ciganos, queimando o boneco de palha. Na festa que vira fuzilaria, outro boneco é queimado. Após o sexo, Billy encontra o jornal que anuncia sua morte, e que ele queima. As chamas da paixão? Um pouco, mas o fogo marca a morte de Bonney e sua ressurreição como Kid.

 A oposição entre lenda romantizada e realidade brutal antecipa Bonnie & Clyde. Como ocorre com frequência para os personagens de Penn, a consciência chega para eles tardiamente. Para Billy, antecede a morte violenta. Penn sempre gostou de criar esse tipo de efeito dramático. Não há liberação emocional para o espectador, que é levado a torcer pelos personagens (Billy, Bonnie, Clyde etc), somente para que o autor corte o cordão umbilical numa ruptura extrema que interrompe bruscamente o efeito catártico.
Um de Nós Morrerá foi tão mal recebido nos EUA que Penn chegou a pensar que não teria futuro no cinema. Foi dirigir teatro, o que foi decisivo para sua evolução como diretor de atores. Voltou somente quatro anos depois, com O Milagre de Anne Sullivan, baseado na peça de William Gibson. Vale lembrar – durante dois anos Penn ficou em cartaz com outra peça de Gibson, Dois na Gangorra, interpretada por Henry Fonda e Anne Bancroft. Apaixonado por ela, o dramaturgo desenvolveu uma teleplay que Penn transformou em O Milagre de Anne Sullivan, seu clássico de 1962, pelo qual Anne e Patty Duke ganharam os Oscars de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante.

Em 1966, foi a explosão de Caçada Humana e, no seguinte, Bonnie & Clyde. Caçada/The Chase é um daqueles filmes faróis. A caçada a um fugitivo acirra todos os preconceitos durante o fim de semana, numa cidadezinha sulista. Penn dirigiu um elenco de astros e estrelas (Marlon Brando, Jane Fonda, Robert Redford, etc). Criou cenas integradas ao imaginário do cinéfilo – o xerife Calder/Brando leva uma surra memorável, mas se levanta, todo rebentado, para tentar fazer valer a lei e a ordem.

Sam Spiegel foi um produtor importante, vencedor do Oscar com os filmes de Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, de 1954) e David Lean (A Ponte do Rio Kway e Lawrence da Arábia, de 1957 e 62). Dispõe da fama de ter sido produtor cooperativo, mas viveu às turras com Penn e afastou o diretor da montagem. Penn, que tinha um Caçada Humana ideal na cabeça, sempre rejeitou o trabalho, achando que a preferência foi sempre por tomadas e cortes mais convencionais. Já a crítica dividiu-se e o autor do texto está entre os que reputam o filme como obra-prima. “Tout est dans la mise-en-scène”, como diziam os críticos franceses, nem a remontagem conseguiu destruir o grande filme que é.

O mais crítico de Penn, como representação de uma sociedade doente. Ele continuou se exercitando no cinema de gênero. Filmou gângsteres (Bonnie & Clyde), mocinhos e bandidos do Wild West (Pequeno Grande Homem e Duelo de Gigantes), detetives particulares (Um Lance no Escuro). A revisão dos gêneros faz-se por um olhar único – seu projeto foi retomar, à européia, de forma autoral e consciente, grandes clássicos da tradição hollywoodiana. David W. Griffith, Kazan, Richard Brooks. Não se pode esquecer que Robert Benton e David Newman escreveram Bonnie & Clyde para ser filmado por François Truffaut ou Jean-Luc Godard.

Em 2007, recebeu um Urso de Ouro especial por sua carreira em Berlim. O repórter estava lá, integrando o grupo que fez questão de entrevistá-lo. Discutimos cada filme. Admitiu que talvez mudasse algumas coisas em Um de Nós Morrerá. Achava a música invasiva e a balada nos créditos um clichê que gostaria de ter evitado, mas o estúdio – a Warner – impôs.

Como obra de um estreante no cinema, orgulhava-se do trabalho de câmera – com o fotógrafo J.Peverell Marley –, tendo plena consciência de haver influenciado outros diretores de westerns, como Sam Peckinpah e o Marlon Brando de A Face Oculta, de 1961.

Luiz Carlos Merten , O Estado de S. Paulo
15 de julho de 2020

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