sábado, 15 de março de 2014

Terra inacabada 3

Em 7 de novembro de 2011, escrevi neste blog um texto com o título "Terra inacabada" http://librinas.blogspot.com.br/2011/11/terra-inacabada.html. Era sobre a questão da Amazônia e as intervenções e interações com os humanos. Dentre outras coisas disse sobre o complexo hidrelétrico do rio Madeira. Voltei ao assunto em "Terra inacabada 2"
http://librinas.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html

No texto de 2011 termino com a frase "Deus ainda não voltou à Amazônia para terminar seu trabalho. Os homens continuam lá, eles ainda não saíram."

Em 2014 está assim.
 

Hidrelétricas do Madeira subestimaram hidrografia e mudanças climáticas

POR TELMA MONTEIRO

A "oferta" foi feita por um diretor de Meio Ambiente de uma empreiteira, em 20 de janeiro de 2009, durante uma reunião em Porto Velho (RO): "Serão R$ 60 milhões à disposição das organizações não governamentais". O dinheiro, segundo ele, seria referente à compensação ambiental da usina Santo Antônio, no Rio Madeira, que poderia ir diretamente para as ONGs. A lei determina o recolhimento, pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), da compensação ambiental de até 0,5% sobre o custo das obras físicas de empreendimentos. O consórcio, informou o diretor, estava negociando com o MMA a ideia de destinar o recurso para projetos com ONGs e associações da região. Claro que, com isso, pretendia-se reduzir as resistências que o empreendimento provocava.

Estou expondo apenas um exemplo dos inúmeros artifícios usados e que ilustram a necessidade visceral do governo Lula e das empresas Furnas e Odebrecht de construir duas mega-hidrelétricas no Madeira, o maior afluente do Rio Amazonas. As usinas Santo Antônio e Jirau foram impostas à sociedade e viabilizadas com tantas irregularidades, ilegalidades, escamoteamento de informações, desinformações e subterfúgios que o resultado catastrófico acabou por ficar visível muito antes do que se previa.

Creio que não há mais dúvidas, hoje, de que a hecatombe que acontece em Rondônia, Acre e Bolívia tem, sim, relação com a construção das hidrelétricas no Rio Madeira. Basta consultar a história do processo de licenciamento das usinas no Ibama ou as mais de 20 ações civis públicas ajuizadas pelos Ministérios Públicos Federal e do Estado de Rondônia e por organizações não governamentais, para constatar que tudo estava previsto.

Nesta semana uma nova ação ajuizada por instituições de RO obteve a liminar que obriga os consórcios ESBR de Jirau e SAE de Santo Antônio a indenizar as vítimas da enchente e a refazer os estudos ambientais. A Justiça Federal, portanto, confirmou a responsabilidade das usinas e do Ibama no agravamento dos impactos da cheia do rio Madeira em Rondônia e no Acre.

A opção pelas turbinas tipo bulbo foi a justificativa principal para que a licença prévia das duas hidrelétricas fosse concedida. O argumento de que com elas o reservatório seria menor e com isso os impactos ambientais reduzidos, foi uma falácia. A única pessoa com poder para acatar o parecer dos técnicos do Ibama, sobre a inviabilidade ambiental das usinas e a extensão dos impactos não dimensionados no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), era a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Mas ela se rendeu às pressões. Aceitou como verdade que as turbinas resolveriam as questões ambientais e tapou olhos e ouvidos para o que diziam os experts da sociedade.

Prova disso é o último parágrafo da conclusão dos técnicos do Ibama, no famoso parecer 014/2007, de 21 de março de 2007, que tem que ser lembrado, enquadrado e estampado em jornais, portais e revistas. É apenas um parágrafo de oito linhas (no original), mas que traduz, em toda a sua amplitude e consequências, os impactos que estão acontecendo agora com a cheia histórica do Rio Madeira. Vejamos:

"Dado o elevado grau de incerteza envolvido no processo; a identificação de áreas afetadas não contempladas no Estudo; o não dimensionamento de vários impactos como ausência de medidas mitigadoras e de controle ambiental necessárias à garantia do bem-estar das populações e uso sustentável dos recursos naturais; e a necessária observância do Princípio da Precaução, a equipe técnica concluiu não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos Hidrelétricos Santo Antônio e Jirau, sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental, mais abrangente, tanto no território nacional como em territórios transfronteiriços [Bolívia], incluindo a realização de novas audiências públicas. Portanto, recomenda-se a não emissão da Licença Prévia."

Não é preciso dizer que depois desse parecer alguma coisa de muito grave aconteceu, pois as fatídicas usinas estão aí. E os problemas apontados no parecer se materializaram. O que mudou no processo que fez com que a licença fosse concedida apenas três meses depois e sem o novo EIA/RIMA recomendado? Foi a alteração nos projetos? Foi a revisão dos impactos? Foi a mudança da equipe técnica? Nada disso.

Os problemas apontados no parecer eram de tal gravidade, veja-se as consequências hoje, que foi necessária a recomendação de um novo Estudo de Impacto Ambiental, pois a fase de complementações já se esgotara em 2006. Ou seja, tecnicamente, deveria haver um novo processo de licenciamento, com outro EIA/RIMA.

Será que mostrar tudo o que foi tramado de sórdido desde o início da campanha do governo Lula para impor as usinas hidrelétricas do Rio Madeira poderá ajudar agora os desabrigados de Rondônia, Acre e Bolívia? Poderá ajudar a recompor as perdas de pequenos comerciantes, agricultores, trabalhadores? Poderá trazer de volta as 100 mil cabeças de gado perdidas nas águas que invadiram a Bolívia? Poderá reverter os casos de doenças que virão depois que a enchente baixar? Poderá recuperar a qualidade das águas, agora contaminadas por lixo e esgoto? Poderá fazer com que os alunos recuperem as aulas perdidas nesse período? Poderá pagar o prejuízo causado pelo isolamento do Acre?

Porque o que levou a isso, na verdade, foi a concepção de dois projetos hidrelétricos eivados de falhas técnicas, que subestimou o Rio Madeira, que desconsiderou a bacia hidrográfica como um todo e a influência das mudanças climáticas no seu regime de cheias no Brasil e no país vizinho, a Bolívia. Junte-se a isso a minimização dos impactos, a falta proposital de exatidão nas informações. Tudo junto só poderia trazer o resultado que estamos assistindo na região há mais de um mês.

É preciso dar um "cala boca" definitivo nesses representantes atuais dos dois consórcios, autoridades do MME e do Ibama, que vêm a público para dar explicações técnicas indecifráveis para a sociedade leiga, tentando convencer que o agravamento da enchente em Rondônia, Acre e Bolívia não é consequência das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau. O jargão utilizado por esses "próceres" do setor elétrico lobista não nos convence mais, pois a verdade está estampada nas imagens e nas vozes da população afetada.

Há disponíveis dezenas de relatórios e documentos produzidos por especialistas brasileiros e bolivianos, por pesquisadores de renome, doutores, cientistas, engenheiros internacionais, que alertaram, desde o início, sobre os impactos, esses mesmos que estão aí e outros que ainda virão, que as duas hidrelétricas produziriam. Caso isso não baste, no primeiro Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE) das usinas, patrocinado por Furnas e Odebrecht, os técnicos apontaram os problemas dos impactos dos efeitos de remanso tanto no Brasil como na Bolívia e alertaram para o nível de assoreamento do reservatório, entre outros.

Os efeitos de remanso já foram descritos por vários especialistas em relação às usinas do Madeira. A explicação é que, apesar da cota máxima prevista no projeto, o nível do rio poderá subir mais do que isso a montante (acima), em situação de eventos extremos, e a água vai se espalhar pela planície sulcada por igarapés e pequenos rios, antes de chegar à barragem. É isso que está acontecendo ao longo do Rio Madeira, desde a Bolívia.

Outro problema que pode agravar a situação, no futuro, é o aporte de sedimentos do rio Madeira. O Ministério de Minas e Energia (MME) chegou a contratar um especialista internacional para dar um parecer sobre os sedimentos das águas do Madeira. A interpretação divulgada do parecer, não só minimizou o problema, como ainda desconsiderou os alertas do consultor e a sugestão de um arranjo mais eficiente e mais barato para Santo Antônio.

Infelizmente, listar aqui todos os problemas descritos no processo e que podem afetar duramente as populações das áreas de influência das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, exigiria um espaço de um livro em vários volumes. Já temos amostras demais, como os efeitos das águas dos vertedouros de Santo Antônio que estão "comendo" a margem direita e já desalojaram dezenas de famílias do bairro Triângulo, em Porto Velho. Seria esse mais um efeito da mudança não aprovada do layout das estruturas da usina de Santo Antônio?

O reverso da medalha está aí. As usinas do Madeira foram impostas à sociedade com o argumento de que estaríamos a beira do apagão se elas não fossem construídas. Hoje, quase concluídas e com muitas turbinas em operação, elas não estão servindo para gerar energia. As turbinas de Santo Antônio foram desligadas por ordem do Operador Nacional do Sistema (ONS) devido à cheia. As linhas de transmissão de 2.450 quilômetros não estão transportando nenhum Mwh. E a previsão é que as cheias da bacia do Rio Madeira devem avançar para todo o mês de março.

Na mesma toada vão as obras de Jirau, com algumas poucas turbinas em operação, com custos que já dobraram. Subsidiados pelo BNDES dos governos de Lula e Dilma Rousseff, estão ameaçadas de colapso pela enchente histórica. Do outro lado da fronteira, as autoridades bolivianas alegam que tinham a garantia das autoridades brasileiras de que as usinas não afetariam seu território. Balela. Tanto os bolivianos como os brasileiros sabiam direitinho que a Bolívia sofreria com as hidrelétricas. Até os estudos de viabilidade confirmavam isso. Estudos que os próprios empreendedores fizeram e que a Aneel aceitou.

Em 11 de março de 2009, fui convidada para uma reunião num hotel em Brasília, com o staff do governo boliviano que estava preocupado com os efeitos negativos da usinas em seu território. O grupo estava no Brasil para assinar um acordo proposto pelo governo brasileiro ao governo boliviano, que dizia respeito às hidrelétricas. Os participantes não estavam satisfeitos com a minuta do acordo e fui convidada para esclarecer alguns pontos sobre os impactos ambientais e sociais das usinas.

A minuta do acordo não refletia o entendimento técnico havido entre a Bolívia e o Brasil em uma reunião em La Paz, em 2008. Os bolivianos não estavam dispostos a assinar o acordo, pois tinham tido notícias do grave episódio da mortandade de toneladas de peixes em época do defeso (quando sobem até a cabeceira para a desova e reprodução), durante a construção das ensecadeiras da usina de Santo Antônio. Queriam detalhes sobre se isso poderia vir a afetar futuramente a atividade pesqueira dos ribeirinhos bolivianos. Eu havia escrito um artigo alertando para o desastre; partiu daí, então, o interesse deles por mim e o convite.

Em contrapartida, o governo brasileiro estava interessado em construir mais duas hidrelétricas no Rio Madeira Cachoeira Esperança, na divisa com a Bolívia e El Bala, no rio Beni. Prometeu aos bolivianos que manteria um monitoramento permanente da qualidade da água e dos sedimentos a jusante, para prevenir possíveis impactos em seu território. Os bolivianos também informaram que a proposta do Brasil era bancar a construção das hidrelétricas e comprar toda a energia produzida por elas.

Nada melhor para calar uns e outros, que promessas de dinheiro e mega obras para políticos corruptos e empreiteiras sequiosas por empreendimentos que consomem muito concreto e aço e que precisam remover milhares de metros cúbicos de rochas. Na época, as duas hidrelétricas foram acertadas, e então ficou o dito pelo não dito. Os impactos das usinas do Madeira em terras bolivianas ficaram em segundo plano.

No Brasil, para conceber e construir projetos como os do Rio Madeira ou Belo Monte, não é preciso ter conhecimento técnico apenas, tem que saber enganar bem, fornecer dados inconsistentes. Saber manipular informações, números, valores, desconstruir laudos de especialistas internacionais, estatísticas, convencer autoridades e, principalmente, bancar muitas campanhas eleitorais. Se fosse possível conceder um prêmio de manipulação ele seria dividido entre os idealizadores do projeto Madeira e o governo Lula.


Telma Monteiro é ativista ambiental, pesquisadora independente, especializada em análises de processos de licenciamento ambiental de hidrelétricas na Amazônia


Blog da Amazônia / Altino Machado


http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2014/03/13/hidreletricas-do-madeira-subestimaram-hidrografia-e-mudancas-climaticas/ 15/03/2014


 

sábado, 1 de março de 2014

A Copa do Cu do Mundo

José Miguel Wisnik
http://oglobo.globo.com/cultura/a-copa-do-cu-do-mundo-11753269

01/03/2014

A Copa do Cu do Mundo

Linchamento é um simulacro perverso e inaceitável de julgamento sumário

Quando escrevi, no sábado passado, o artigo "O touro à unha", falando sobre as camadas de Brasil real que a perspectiva da realização da Copa do Mundo trouxe inesperadamente à tona, com tudo o que o país tem de difícil, eu não esperava que Caetano Veloso escrevesse no domingo um artigo, intitulado "O cu do mundo", em que falava das entranhas expostas de uma nação onde emergem sinais inquietantes da prática e da admissão pública de linchamentos. Nos dois textos estava em jogo a violência brasileira, ancestral, crônica, sintomática, e seu recrudescimento neste momento conturbado em que ela parece se voltar sobre si para obscurecer mas também para revelar, talvez, sentidos. Naquele mesmo domingo, à noite, um fato sinistro confirmava a junção dos dois temas: um grupo de torcedores do São Paulo trucidava um torcedor solitário do Santos que estava num ponto de ônibus qualquer da cidade. Enquanto isso, como num estranho alinhamento de planetas maléficos e benéficos, eu me deparava, num espetáculo do Teatro Oficina, com uma formulação iluminante do problema aquela que dá nome a este artigo.


Imagens ligadas à execução do torcedor foram mostradas segunda-feira no "Jornal Nacional". Uma câmera de prédio capta, à distância, o movimento de dois carros parando próximos a uma esquina, dos quais descem dois grupos evidentemente aliados e armados de instrumentos contundentes. Sorrateiros e ostensivos como quem compartilha um segredo público, covardes conscientes, fingindo mal, entre si, de valentes, dobram a esquina e desaparecem da vista para retornar minutos depois e fugir nos dois carros. Pode-se considerar banalizado, diante da repetição de brigas de torcidas e casos de mortes em estádio e seus entornos, sem falar nos assaltos cotidianos, o assassinato inominável que está fora da cena, e que acontece quase cinematograficamente nos minutos de ausência.

Mais que isso, no entanto, as imagens expõem o grau de gratuidade sórdida a que chega a violência ali documentada (não sei até que ponto as imagens estão permitindo agora a localização e o enquadramento do grupo infame). Não se trata propriamente, aqui, de linchamento: linchamento é um simulacro perverso e inaceitável de julgamento sumário. Briga de torcidas, por sua vez, se faz a quente, na base do corpo a corpo, na panela de pressão do estádio ou da rua. Aqui temos a predação fria, em estado quimicamente puro, digamos assim, que parasita o jogo de futebol para buscar através deste a imagem regressiva de um outro a liquidar. Existe nisso o próprio modelo de uma faccionalização da vida que pode ser reconhecido em muitos campos, e que supõe a massa podre de um enorme ressentimento acumulado.

Ninguém como Zé Celso Martinez Correa, por sua vez, tem assumido ao longo das décadas o princípio vivificante do teatro como aquela experiência em ato que dá voz e corpo à doença social, tocando nela. O espetáculo em questão é o quarto da série das "Cacildas!", que tem como mote o estado de coma de Cacilda Becker, que antecedeu sua morte, em 1969, tomado como um imenso fluxo onírico, à maneira do "Vestido de noiva" de Nelson Rodrigues, através do qual se vai repassando e transfigurando toda a carreira da atriz, e com ela a história do teatro brasileiro. Desigual e fulgurante como sempre, nas suas seis horas de duração, a peça tem passagens sublimes como nunca, sem deixar de ter como alvo de seu mergulho no passado as urgências do presente.

Numa sequência ao mesmo tempo divertida e contundente, na base do programa de auditório, joga-se com a iminência da realização, no Brasil, desse maior espetáculo da Terra que é chamado nada mais nada menos do que a Copa do Cu do Mundo. Todo o sentido crítico que se possa, toda a virada pelo avesso do padrão Fifa, exibido pela culatra, toda a remissão às misérias, às derrisões e aos terrores da doença brasileira, tudo está aí, nesse nome. Mas também, no reconhecimento disso, a capacidade de afirmar a potência da cultura (com trocadilho), de rir das máscaras canastronas, de exercer o apetite de viver e, por incrível que pudesse ser e é, de marcar um lugar original no planeta. É claro que isso só pode ser afirmado em vista da grandeza artística do todo, e no modo como o espetáculo vai fundo na experiência social e vital do país.

A discutida camiseta da Adidas para a Copa, onde se estampa "I love Brazil" na forma de um coração-bunda, é uma versão limitada, mercadológica pitoresca e não assumida do fato de que se olha difusamente a Copa no Brasil como uma espécie de Copa do Cu do Mundo. O espetáculo de Zé Celso eleva esse conteúdo a uma outra potência: não o quarto mundo, não o cu do mundo, mas a quarta dimensão do cu do mundo.