sábado, 16 de fevereiro de 2013

Machado de Assis

Machado de Assis: a procura da reflexão em detrimento da paisagem

Blog do André Setaro, 12/02/2013


Não me lembro mais onde li, mas fiquei a pensar: "Nos livros de Machado de Assis não existe paisagem". A constatação é curiosa e revela que o bruxo do Cosme Velho era um escritor "avant la lettre". Nos grandes romances do século XIX, quase todos são muito detalhados em relação à descrição da paisagem. Em Honoré de Balzac, por exemplo, um capítulo de "Eugenia Grandet" é quase todo dedicado, com um luxo de detalhes, à descrição, a chegar ao cúmulo de descrever, numa casa, as pedrinhas, os talhes da porta e das janelas. Balzac é muito detalhista, mas a análise paisagística é uma tônica do romance do século retrasado.
Mas em Machado de Assis (1839/1908), se há descrição, esta é bem sucinta. O mestre, o maior dos escritores brasileiros em todos os tempos, principalmente a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), o seu "estalo de Vieira", preocupa-se mais na reflexão das coisas que estão sendo ditas. O seu período descritivo e uma descrição "light" – termina em "Iaiá Garcia" (1878).

Acho que foi Autran Dourado quem disse que todo ano lê, religiosamente, "Brás Cubas", "Quincas Borba" (1892), e "Dom Casmurro" (1900), "para limpar a língua". A estilística machadiana é única e insuperável, a fazer dele um autor singular. Encontra-se entre os maiores da história da literatura, mas seu azar foi ter escrito em português, língua rica, mas pouco lida. Há décadas atrás, está a ser revisado e apreciado nas universidades americanas e européias, e o crítico Harold Bloom (aquele da "Angústia da influência" e "O cânone ocidental") o tem em alta conta.
Verdade seja dita, e dita por um grande admirador do grande romance do século XIX, a descrição esmiuçada da paisagem é irritante. Mas naquela época, quando a fotografia ainda era muito incipiente, e o cinema só veio a existir a partir de 1895, havia a necessidade de o leitor ter a paisagem imaginada. Mas Machado de Assis não se molda a esta querência de realidade, excluindo-a de seus últimos romances. Mas se poderá argüir que o bruxo do Cosme Velho descrevia o Rio de Janeiro da Corte Imperial. Sim, mas com citações breves: "Enfiou-se pela rua dos Inválidos, mas viu que era longe para chegar à rua do Ouvidor". E pronto.

Mas relendo "Helena" (1876), que precede a fase maior do romancista, há rigorosa estruturação da fábula, ou da história. Os elementos da fabulação estão em perfeita sintonia com a perspectiva de expectação do leitor, que desliza seus olhos pela sintaxe machadiana com um grande interesse pelo que está por vir. Ainda na sua época romântica, o desfecho, trágico, faz parte do momento. Vê-se, aqui, um escritor rigoroso no seu pleno domínio da narrativa ou, a melhor dizer, da sintaxe da língua.

A magistral utilização do tempo em "Quincas Borba", para ficar num exemplo apenas, mostra que, em sua segunda fase, Machado procura somente a reflexão. Rubião Braz acorda num dia de Ano Novo, senta-se num sofá e, com as mãos, fica a mexer nas borlas do roupão. Pensa em como chegou até aquela posição confortável e, até quase a metade do livro, a "ação" localiza-se nos arcanos da memória do grande personagem, a reviver como veio a conhecer Cristiano Palha e a bela, esplendorosa, magnífica Sofia (talvez a mulher mais perfeita "esculpida" por Machado de Assis).

Certa ocasião, vários intelectuais, encantados e extasiados com a prosa de "Quincas Borba", foram a Ferreira Gullar lhe perguntar o que queria Machado de Assis realmente dizer no livro. Gullar pensou um instante e respondeu: "É um livro sobre a arte de escrever".

Se, na fase romântica, anterior à explosão "brascubasiana", e, com ela, a desconstrução do romance tradicional, Machado procura estabelecer a estrutura narrativa numa forma "in progress", a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" tudo se reduz ao estudo de caracteres, muito embora, já no seu primeiro livro, "Ressurreição", pretenda, justamente, antes de tudo, a observação de comportamentos.
Escreveu Machado na advertência da primeira edição de "Ressurreição" (1872): "Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com estes simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e, sobretudo, se o operário tem jeito para ela. É o que lhe peço com o coração nas mãos".

Para buscar o interesse do leitor, apóia-se em dois simples elementos: o esboço de uma situação e o contraste entre caracteres. O propósito do primeiro livro se alarga a partir de então até atingir a metalinguagem, a meta-literatura a partir de "Brás Cubas", quando, em determinado momento, para desfazer a ânsia das leitoras da "biblioteque rosé", dá-lhes o conselho de pular o capítulo, caso queira saber logo os detalhes de determinado assunto. Um escritor na melhor tradição de Cervantes e Xavier de Maistre.

As adaptações cinematográficas dos livros de Machado de Assis sempre foram desagradáveis àqueles que conhecem o estilo do grande mestre. "Dom Casmurro", por exemplo, que se chamou "Capitu" na versão cinematográfica, é um verdadeiro assassinato à obra literária perpetrada por várias mãos: as de Paulo César Saraceni (diretor), e, por incrível que pareça, pelas mãos de duas reconhecidas e talentosas pessoas das letras: o crítico cinematográfico e autor literário Paulo Emílio Salles Gomes e sua esposa, na época, Lygia Fagundes Telles. Sem falar na eleita para o papel título tão delicado: a desajeitada Isabella, escolhida porque era, então, mulher de Saraceni.
"Quincas Borba", do ilustre realizador paulista Roberto Santos, nem chegou a ser lançado, mas o que se diz é que é um filme abaixo de qualquer crítica. Vários contos de Machado foram adaptados para a tela, mas com resultados pífios, a exemplo de "Um homem célebre", com Walmor Chagas. E se chegou ao cúmulo de querer modernizar o bruxo do Cosme Velho com outra versão de "Dom Casmurro" cuja ação se passa na época atual: "Dom", de Moacyr Góes, com Maria Fernanda Cândido e Marcos Palmeira. O resultado? Melhor não dizê-lo.

O fato é que o romance filmado é uma utopia, porque duas práticas narrativas que se baseiam num diferente noção de espaço e de tempo. A menos que se queira ficar-se pela "ilustração" de histórias contadas pelo romance, o filme deve converter para o seu espaço-tempo a ação que pediu de empréstimo ao primeiro. Não deve haver, portanto, qualquer preocupação de fidelidade à letra do texto original mas, pelo contrário, a mais ampla liberdade na procura de soluções dramáticas e de "figuras" estilísticas capazes de produzir, na tela, o mesmíssimo efeito poético confiado na página a outros tantos recursos ao dispor da linguagem escrito-verbal. Hitchcock já disse, na sua proverbial sabedoria, que nunca gostou de adaptar obras literárias consagradas. E cita um exemplo: caso alguém queira filmar "Crime e castigo", de Dostoievsky, o filme teria de ter um tempo (para manter fidelidade) de duração excessivo: mas de duzentas horas de projeção. Mas, mesmo assim, a estilística dostoievskyana desapareceria em função da narrativa do realizador cinematográfica. E, perdido o estilo, tudo se perde, porque, como dizia Buffon, "o estilo é o homem"

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