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O deslumbre*
Ao visitar o Brasil a bordo do Beagle, Charles Darwin escreveu: “Deleite, entretanto, é uma palavra fraca para expressar os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, esteve perambulando sozinho numa floresta brasileira”.
Durante as coletas, sempre gostei de me separar do grupo para momentos de contemplação silenciosa. Na mata fechada, basta nos afastarmos cinquenta metros uns dos outros para desparecermos atrás dos troncos. Dá aflição pensar como é fácil se perder. Desorientado especialmente como sou desde criança, muitas vezes precisei gritar para seguir a direção do gritos que me respondiam, conforme o combinado entre nós, por questão de segurança.
Para quem entra numa floresta do rio Negro, as belezas são reveladas de acordo com a direção para qual o olhar se dirige.
O chão forrado de raízes que entrelaçam e por uma camada espessa de folhas secas. As cores vão do verde aos vários tons de amarelo, marrom e cinza das que caíram há mais tempo. Sobre elas, juntam-se gravetos que estalam sob nossos pés e outros ainda úmidos que envergam sob o peso do corpo. É preciso estar atento a eles, porque, ao pisar numa extremidade, a outra pode se erguer do chão e travar o passo dado com perna oposta. Caí mais de uma vez por desatenção a esse detalhe.
Plantinhas com meia dúzia de folhas se esgueiram aqui e ali no meio da folhagem. Difícil imaginar que um dia serão árvores enormes, se lhes for concedida a luminosidade de que necessitam.
Esporos de samambaias de diversas espécies germinam nesse mar de folhas em decomposição. O ambiente lhes oferece o que mais desejam: sombra e umidade. O formato das folhas varia de acordo com a espécie, mas a distribuição espacial é semelhante: nascem em galhos finos e elásticos, mas resistentes. Na escala evolutiva, as pteridófitas constituem o primeiro grupo de plantas de vasos para conduzir a seiva. A depender da claridade, guardam distância umas das outras ou se aproximam em tufos de um metro de altura que contrastam com as mais jovens, de um palmo, e as recém-nascidas.
Na terra firme, avencas são raras, encontradas eventualmente junto a fragmentos de troncos decompostos ou nas bordas de pequenos cursos de água. Nas matas do rio Jaú, vi uma pedra de três metros de altura, sobre a qual escorriam filetes de água, coberta de avencas de folhas miúdas. Eu nunca tinha visto tantas num lugar só.
Completam esse tapete de folhas mortas, que repousa sobre uma rede de raízes conectadas umas às outras para constituir o arcabouço de sustentação da floresta, os troncos que se quebram e o galhos que despencaram das arvores. São úmidos, revestidos de fungos que formam manchas cinzentas e esverdeadas, salpicadas em toda a sua extensão. Com eles dividem esse habitat buquês com estruturas semelhantes a pequenas folhas coladas ao tronco. São os líquens, quimeras estranhas resultantes da associação mutualística entre algas e fungos, nas quais a alga faz fotossíntese e o fungo contribui com água e minerais.
Entremeadas às manchas desses habitantes, há microflorestas verdes, grudadas aos troncos, sem raízes nem vasos para conduzir a seiva. São as briófitas, os vegetais mais antigos do planeta, cujos ascendentes provavelmente estão na base da evolução de todas as plantas terrestres. Dão a impressão de tapetes lisos, homogêneos, mas têm uma diversidade enorme. Um dos seus três grandes grupos, os musgos, reúne mais de 14 mil espécies já descritas, que ocupam 1 % da superfície terrestre, desde as florestas tropicais até as tundras canadenses. Em nosso laboratório temos estudado espécies colhidas na Antártida pelo botânico Mateus Paciência.
As briófitas têm grande importância ecológica, por armazenar carbono e umidade e por serem consideradas espécies pioneiras: ao se instalar num local, criam nichos ecológicos para insetos e plantas. Elas não se limitam a viver apenas nos substratos do solo, sobem pelos caules das árvores ao redor. Com uma lente de aumento que ganhei de seu Luiz Coelho, nosso saudoso mateiro, aprendi a observar as características dessas miniplantas que conseguem se fixar aos troncos mesmo sem ter raízes, formando microflorestas que imitam as verdadeiras: algumas são arbustos com folhas minúsculas, outras parecem samambaias ou arvorezinhas e palmeiras quase microscópicas. É possível passar horas a admirar essas micropaisagens de plantas ancestrais.
Nas trilhas aparecem flores miúdas e frutos que denunciam as espécies das árvores, dos cipós e dos arbustos de onde caíram. Como as temperaturas variam pouco no decorrer do ano, as chuvas é que comandam a floração, mais frequente nos meses secos. É um prazer pega-las nas mãos para admirar a delicadeza da anatomia, a sutileza das cores e imaginar que tipo de inseto é capaz de polinizá-las.
Frutos que vão do tamanho de uma pitanga ao de um abacate jazem no solo à espera do primeiro mamífero com fome que levará suas sementes no aparelho digestivo, para germiná-las à distância.
O olhar que sobe tem acesso a outra floresta, formada por troncos, arbustos, palmeiras, cipós, casas de formigas e de cupins, epífitas e hemiepífitas agarradas aos galhos que lhes oferecem sustentação.
As primeiras forquilhas nas ramificações dos troncos são os locais preferidos das bromélias, que formam touceiras das quais emergem flores vermelhas e amarelas de longa duração. A água armazenada entre as folhas compactas tem importância na multiplicação de mosquitos de interesse em saúde pública, outros insetos e até na sobrevivência de pequenos anfíbios, que se aproveitam das condições locais para se alimentar e reproduzir.
Ao lado das bromélias, vivem as epífitas verdadeiras, que passam todo seu ciclo de vida apoiadas nas árvores que as hospedam. Epífitas com folhas curtas ou longas, de todos os formatos, agarram-se às forquilhas. Algumas são rasteiras, parecem grama aderida aos galhos, outras têm folhas compridas e pedentes.
As orquídeas dão um show à parte com sua festa de flores amarelas, lilás, vermelhas cor de sangue, inteiramente brancas ou com pintas avermelhadas. O perfume pode ser sentido a metros de distância. Orquídeas de flores únicas, grandes, reinam soberanas junto a outras miúdas, que formam cachos para atrair abelhas, vespas, morcegos e besouros de hábitos diurnos e noturnos. Difícil eleger a mais linda, dá vontade de levar todas para casa e passar o resto da vida no meio delas.
As hemiepífitas, por outro lado, podem germinar nas árvores, levadas pelos pássaros, e lançar suas raízes até alcançar o solo ou seguir o caminho inverso: nascer no chão e ascender pelos caules. Nas duas possibilidades, em algum momento do ciclo de sua vida, perderão o contato com o solo para viver como epífitas verdadeiras.
O cipó-titca, de valor comercial, é uma dessas hemiepífitas, uma trepadeira que escala o tronco de uma árvore até atingir a copa, local em que suas raízes começam a crescer na direção do solo. Essas raízes aéreas são cortadas pelos ribeirinhos, os rolos colocados na canoa e levados para os comerciantes, que os transformarão em cestos, peneiras, móveis e objetos decorativos.
Germinar no topo das árvores também é a estratégia das figueiras-mata-paus, árvores com raízes que, ao alcançar o solo, irão se desenvolver e comprometer o crescimento daquela que lhe deu suporte, até sufoca-la e ocupar sua posição à luz do sol. Tenho uma foto de uma dessas árvores assassinas, com folhagem exuberante, ao lado de um esqueleto quase seco que um que um dia foi a árvore majestosa que ela sufocou.
A alguns metros do chão, formigueiros e cupinzeiros enormes abraçam os caules. A primeira vez que vi seu Luiz abrir uma brecha num deles com um golpe de terçado, achei que seus habitantes levariam dias para reparar o estrago. Imediatamente, saiu uma multidão de formigas alvoroçadas, caminhando em zigue-zague, esbarrando suas antenas umas nas outras, como um exército bem treinado. Quando voltamos, duas horas depois, o formigueiro estava íntegro, nem sinal de corte. A mesma capacidade de reparação coletiva da vivenda é compartilhada com os cupins.
As palmeiras preenchem o espaço visual entre os troncos. Na mata fechada predominam as de baixa estatura. Algumas são quase rasteiras ou têm poucos metros de altura. Outras têm alturas intermediárias como é o caso das piaçabas, palmeiras de interessa comercial que não passam dos quinze metros. Quando há fartura de luz e espaço, bacabas e buritis podem chegar a atingir vinte ou trinta metros de altura. Tucumãs, açais, pupunhas e bacabas, entre outras, dão frutos consumidos em toda a bacia do rio Negro e em outras regiões da Amazônia.
Pupunha é minha preferida. A polpa tem um gosto que mistura coco com milho verde. São fáceis de descascar com a mão, a casca se desprega da polpa com facilidade. Combina tão bem com café preto que, numa manhã, cheguei a comer quinze. Nem almocei naquele dia. Quando soube que cada unidade tem entre noventa e cem calorias, tomei um susto.
Numa conversa que tive com o arqueólogo Eduardo Neves, da USP, ele me explicou que os indígenas do Alto Rio Negro desenvolveram diversas epécies de pupunha que dão frutos maiores, entre elas uma variedade sem caroço. Só de pensar fiquei com água na boca.
Se em terra firme olhamos para o céu, o azul é recortado pelo dossel da floresta em milhares de fragmentos. Há copas tão fechadas que impedem a passagem do sol. As árvores de troncos grossos do filme Fritzcarraldo, que povoam o imaginário popular, são raríssimas. O diâmetro do tronco da maioria delas não passa de algumas dezenas de centímetros. Plantas que vivem em competição pela luz não gostam de desperdiçar energia no crescimento horizontal; preferem investi-la no vertical. O sucesso dependerá menos da grossura do tronco do que na rigidez de suas fibras, que o protegerão das intempéries. Impossível quebrar com as mãos mesmo troncos jovens de quatro, cinco centímetros de diâmetro.
Mateus Paciencia descreveu assim a visão do teto da floresta:
São espirais, braços de um polvo, com folhas opostas, alternas, em zigue-zague ou dispostas ao acaso, nos ápices dos ramos mais altos ou distribuídas simétrica e parcimoniosamente por toda a planta, até o dossel. Ao lado das que perdem as folhas e deixam a luz entrar, outras não permitem que penetre um raio de sol sequer.
Das copas pendem inúmeras variedades variedades de cipós, plantas que desenvolveram a estratégia de se apoiar nas outras para chegar ao dossel ou de seguir o trajeto inverso: germinar nas copas e lançar suas raízes para baixo. Algumas espécies têm caules da grossura de uma cobra, em outras eles lenhosos, tão grossos quanto o caule da árvore que lhe dá suporte.
No alto, podemos identificar a folhagem exuberante de alguns cipós que são indistinguíveis das copas frondosas da vizinhança. Suas raízes aéreas podem ser tantas e descer tão paralelas que imitam cordas de um instrumento musical gigante.
Há árvores com galhos forrados de briófitas, fungos e línquens, que servem de suporte para samambaias, orquídeas, bromélias, cupinzeiros e formigueiros onde entram e saem formigas apressadas, transitando para cima e para baixo. Essas plantas protegem e se beneficiam da presença de seus habitantes.
Cada uma delas é um nicho ecológico. A floresta é composta de bilhões desses nichos dispersos em toda a extensão de suas infinitas partes.
Os indígenas e a biodiversidade
O homem chegou à Amazônia há pelo menos 12 mil anos. A ocupação humana dessa região é tão antiga quanto a de outros locais da América do Sul, ocorrida na transição do Pleistoceno para o Holoceno.
Dos primeiros grupos de caçadores-coletores ás migrações das populações sedentárias que desenvolveram as plantações de mandioca, as terras da bacia do rio Negro foram ocupadas por sucessivas populações que se deslocavam à procura de condições de subsistência mais favoráveis.
Numa conversa com o indigenista Marcos Wesley, que dirige o ISA em São Gabriel da Cachoeira, falávamos sobre a diversidade das plantas do rio Negro, quando ele expôs a fragilidade da visão científica a respeito da floresta:
- Você esquece que os indígenas vivem na região há milhares de anos. Impossível analisar as florestas do rio Negro sem considerar a intervenção de mãos no plantio e no espalhamento, ao redor das aldeias e das trilhas na mata, de espécies em que tinham interesse.
Em minha ignorância, jamais havia pensado nessa possibilidade. Para mim, a floresta era um organismo praticamente intocado pelo povos originais. Wesley acrescentou:
- Para entender a biodiversidade da floresta é preciso analisar as evidências arqueológicas que contam a história antiga dos povos indígenas e de como eles modificaram o meio, numa época em que os europeus ainda viviam em cavernas. Você precisa conversar com o Eduardo Neves.
Eduardo Góes Neves é professor no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Um dos principais pesquisadores dedicado à Amazônia, ele escreveu livros e publicou diversos artigos sobre o tema em revistas internacionais de primeira linha.
Eduardo atribui o mau conhecimento da cultura dos povos originais do período pré-colonial à falta de documentação e de estudos arqueológicos:
- Considerar que se tratava de uma cultura mais “primitiva”, por não ter relatos escritos, é desconhecer a história da humanidade. O Homo sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, enquanto a habilidade para escrever foi adquirida há apenas 4 mil ou 5 mil anos. Portanto o analfabetismo nos acompanhou 98,5% do tempo da existência da nossa espécie. A tradição oral dos indígenas brasileiros antecede em milênios a formação do que chamamos de povo português.
São muitas as evidências do papel dos povos originais na formação das florestas que habitaram por tanto tempo.
Em várias regiões do rio Negro existem manchas de terra escuras de consistência oleosa que contrastam com os solos arenosos predominantes nos rios da região. Chamadas de terras pretas, elas ocupam áreas que vão de um hectare até noventa hectares, com profundidades de um metro a três metros, que os arqueólogos tem estudado com muito ineresse. Diz Eduardo Neves:
- Terras pretas são sítios arqueológicos que acumulam restos de esqueletos de animais e de seres humanos, de objetos de uso doméstico, dejetos e fragmentos de cerâmicas de importância histórica. Essas terras devem ter se formado por compostagem, às custas da matéria orgânica desprezada por povos que viveram nesses locais. Constituem solos mais estáveis, que permitem sucessivas plantações de roças sem perda de fertilidade depois de três ou quatro anos, como ocorre com terras de solo arenoso que predominam na região.
Nas ruinas que conheci no Baixo Rio Negro, como as da vila de Velho Airão e do leprosário de Paricatuba, há árvores enormes no interior das casas desabadas. Sempre achei que se tratava de um fenômeno natural a floresta tomar de volta o espaço que lhe fora roubado. Os arqueólogos consideram que a atividade humana interferiu, como explica Eduardo:
- Esses locais, ricos em refugos orgânicos de seus habitantes, acumulados no decorrer de séculos por caçadores-coletores e, mais tarde, por habitantes de grandes aldeias e pelos migrantes nordestinos, continham sementes que germinaram na vizinhança e no interior das casas abandonadas.
Por milhares de anos, a intervenção dos indígenas na composição das matas ao seu redor, por meio do fogo controlado, da plantação dos pomares, da domesticação de espécies úteis às suas necessidades e da eliminação das que eram nocivas ou sem utilidade prática, ao redor das casas e ao longo das trilhas, alterou a biodiversidade sem romper o equilíbrio ecológico.
No decorrer dessa longa convivência, as sociedades indígenas desenvolveram tecnologias não só para adaptar o ambiente à sobrevivência delas como para otimizar sistemas de produção de alimentos, os quais acabaram por se incorporar à paisagem atual.
Eduardo Neves resume:
- A Floresta Amazônica deve ser entendida como uma agrofloresta, um patrimônio biocultural dos brasileiros.
Durante pelo menos 12 mil anos, os povos originais conviveram em harmonia com as florestas. Em apenas meio século – 1970 a 2020 –, o homem branco destruiu 20 % da floresta. Na seca de 2024, mais de 1500 focos de incêndio concomitantes foram registrados na região amazônica. Nós é que somos civilizados?
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· Drauzio Varella, O sentido das águas: histórias do rio Negro, pp. 136-146, Companhia das Letras, 2023
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