sábado, 27 de abril de 2024

GREVE 2024

O desconforto com a greve nas universidades federais

Boa parte dos funcionários federais se veem como apoiadores do petismo 

Gustavo Alonso, FSP, 26/04/2024

Ao menos 52 universidades e 79 institutos federais encontram-se em greve. Como campo de batalha, a greve é ao mesmo tempo justa e problemática, especialmente em meio a um governo supostamente de esquerda, de origem sindical e trabalhista.

Para quem vive o cotidiano universitário é visível o desconforto de muitos colegas com a greve. Na Universidade Federal de Pernambuco, onde trabalho, a votação digital sinalizou um quase empate. A iniciativa da paralisação ganhou por pouco na semana passada.

Em governos tucanos ou bolsonarista, era comum ver a universidade em peso contrária ao governo, mas com o PT é diferente.

Um componente do drama particular desta greve é que parte da burocracia federal sindicalizada é claramente contra o movimento. O petismo, forjado no cotidiano do mundo do trabalho, ainda tem forte penetração em vários sindicatos e em muitas reitorias espalhadas pelo país, que estão pressionando o movimento grevista com ameaça de corte de ponto e estimulando o denuncismo de colegas.

Faixa do Sinasefe, sindicato que representa servidores federais de educação, anuncia greve no campus do IFSP (Instituto Federal São Paulo) na capital paulista - Helena Schuster/Folhapress

As razões para não fazer a paralisação são muitas. Alguns consideram que não é o momento de acirrar os ânimos e radicalizar a política já tão polarizada. Outros argumentam que nenhum sindicato da classe ousou fazer greve contra Bolsonaro, que constantemente atacou e depreciou a categoria. Por que deveriam fazer greve agora, sob um governo supostamente de esquerda?

O que pega para muitos professores e técnicos das universidades e escolas técnicas é que o apoio eleitoral dado a Lula parece não ter nenhum valor político mais pragmático. Historicamente, boa parte dos funcionários federais se veem como apoiadores do petismo. Funcionários públicos são quase sempre associados a uma espécie de voto seguro, um tipo de apoio que jamais penderá para o lado bolsonarista.

Um dado que ajuda a complexificar o embate é que setores tidos pelo PT como "golpistas" tiveram aumentos consideráveis e foram cortejados por Lula. Auditores fiscais, policiais, setores do Judiciário: todos ganharam seu naco através da postura conciliatória do governo federal. Esperava-se que Lula acenasse também em direção a seus aliados tradicionais e não apenas buscasse cooptar setores adversários com benesses populistas. Mas isso não aconteceu, o que gerou insatisfação de muitos. Como sintetizou uma amiga minha, professora universitária: "A gente tem corte no salário, corte no orçamento, corte na pesquisa. Alguma coisa boa tem que ter pra nós. Não se pode cortar tudo".

Mas o governo não pensa assim. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já declarou que não há margem para conceder o desejo dos servidores. O paradoxo é que meses atrás o mesmo governo, que agora diz não haver dinheiro, bateu bumbo para proclamar que o Brasil tinha voltado a crescer acima do esperado e que conseguimos voltar ao ranking das dez maiores economias do mundo. E houve recorde de arrecadação de impostos. Dinheiro há. Então quais são as prioridades do governo? E, sobretudo, qual é o projeto de esquerda para a educação pública nacional?

É preciso colocar os pingos nos is. A greve não luta por aumento de salário. Mais de 30% dos salários de professores e técnicos federais estão defasados em relação à inflação. O que se quer é que esse fosso seja diminuído. Esse é o lado justíssimo da greve. Pede-se também a reestruturação da carreira, de forma a resgatar direitos. Aí há alguns impropérios, frutos da falta de bom senso. Um exemplo é a demanda pelo fim do registro de ponto eletrônico para docentes do ensino básico, técnico e tecnológico.

Uma greve educacional é sempre muito ruim. Diferentemente de uma fábrica, onde a produção perdida não pode ser recuperada, nas universidades e escolas técnicas o período perdido têm que ser reposto. O que acarreta verões com aulas e alunos com três semestres letivos por ano. Mas, diante do desleixo do governo com seus apoiadores, qual alternativa resta?

Embora favorável à greve, penso que haveria alguns contextos que me forçariam a votar contra ela. Se acaso o governo estivesse minimamente preocupado com uma revolução da educação básica nacional, me veria forçado a pisar no freio das demandas universitárias.

Se Lula e o PT estivessem interessados em reformar as universidades, eu também seria contrário à greve. Desde 2002 o petismo sempre agiu como se o único problema da universidade brasileira fosse a necessidade de expansão física e numérica. E nenhuma reforma burocrática consistente foi realizada. Qualquer um que vive a universidade sabe que, mesmo sem dinheiro, há muito o que fazer.

Por fim, se o governo estivesse usando o discurso de "aperto dos cintos" com todas as categorias, não haveria do que reclamar.

Diante desse quadro, a greve é justa. Embora sempre inconveniente. É uma casca de banana para um presidente que nasceu politicamente tendo a greve como principal instrumento político.






sexta-feira, 26 de abril de 2024

Filmes parte 40

O Início do Fim, Fat Man and Little Boy, 1989, Roland Joffé

Vatel, um Banquete para o Rei, Vatel, 2000, Roland Joffé

Just Noise, 2021, Davide Ferrario

O Ninho: Futebol & Tragédia, Minissérie de televisão, 2024, Pedro Asbeg

O Problema dos 3 Corpos, 3 Body Problem, Série de TV, 2024, Minkie Spiro, Jeremy Podeswa, Derek Tsang, Andrew Stanton

Drácula - A Última Viagem do Deméter, The Last Voyage of the Demeter, 2023, André Øvredal

Três Corpos, San ti, 2023, Lei Yang

Yojimbo, o Guarda-Costas, Yôjinbô, 1961, Akira Kurosawa

Dersu Uzala, 1975, Akira Kurosawa

Capitu, 1968, Paulo César Saraceni

Não Atire, Niet Schieten, 2018, Stijn Coninx

A Cabeça de Joaquín Murrieta, La Cabeza de Joaquín Murrieta, Série de TV, 2023, Humberto Hinojosa Ozcariz & David Pablos

Dias Perfeitos, Perfect Days, 2023, Wim Wenders

Gran Torino, 2008, Clint Eastwood

Fallout, Série de TV, 2024

RIPLEY, Ripley, Minissérie de televisão, 2024, Steven Zaillian

O Sol por Testemunha, Plein soleil, 1960, René Clément

Ran, 1985, Akira Kurosawa

Audácia dos Fortes, Singing Guns, 1950, R.G. Springsteen

Obrigado a Matar, A Lawless Street, 1955, Joseph H. Lewis

O Regime, The Regime, Minissérie de televisão, 2024, Stephen Frears & Jessica Hobbs

Xógun: A Gloriosa Saga do Japão, Shôgun, Minissérie de televisão, 2024, Frederick E.O. Toy &Jonathan van Tulleken

14/03/24
O Início do Fim, Fat Man and Little Boy, 1989, Roland Joffé

Fim do filme: 21 dias depois, em 6 de Agosto de 1945, a bomba chamada "Little Boy" foi jogada sobre Hiroshima. 3 dias depois daquilo, a bomba chamada "Fat Man" foi jogada sobre Nagasaki.
Pelo menos 200.00 pessoas morreram como resultado das explosões. O Japão rendeu-se incondicionalmente na Baía de Tóquio em 2 de Setembro-1945.


O pacifista que criou a Bomba Atômica: Guerra, política e ética científica no filme O Início do Fim(1989)

15/04/24

Vatel, um Banquete para o Rei, Vatel, 2000, Roland Joffé

Vatel – Um Banquete para o Rei se passa no ano de 1671. O rei Luís XIV (Julian Sands) vive em Versailles. No norte da França, o Príncipe de Condé (Julian Glover), enterrado em dívidas, planeja uma solução para fazer com que não só ele mas toda a província fique livre das dívidas: ele decide convidar o rei para passar um final de semana recheado de iguarias e entretenimento.
Se o Príncipe conseguir cair nas graças do rei, toda a região será salva do desastre econômico. Porém, apenas um homem poderá preparar um banquete suntuoso e ainda cuidar da diversão real: François Vatel, o mordomo do Príncipe. Mas em meio a todo o trabalho resultante da preparação para a visita real, Vatel se apaixona pela bela Anne de Montausier (Uma Thurman), o que atrapalha os planos do Príncipe de Condé.

15/04/24

Just Noise, 2021, Davide Ferrario

Mario Azzopardi, Aaron Briffa, Roland Joffé, Jean Pierre Magro, Albert Marshall, Pedja Miletic, Shayne Putzlocher, Sara Shaak - executive producer

O longa narra como os cidadãos de Malta lutaram pela independência da Grã-Bretanha em 1919. Quando o Exército foi enviado para conter os distúrbios e o governo britânico encobriu o encontro sangrento.

15/03/24

O Ninho: Futebol & Tragédia, Minissérie de televisão, 2024, Pedro Asbeg

16 atletas sobreviveram ao incêndio que ocorreu em 8 de fevereiro de 2019. Em outubro de 2023, apenas três ainda estavam no Flamengo. Em novembro de 2023, Filipe Chrysman foi dispensado do Guarani Futebol Clube.
Ao final da edição desta série, o processo criminal ainda estava em andamento. Oito pessoas enfrentam dez acusações de homicídio culposo e três de lesão corporal. Ao final da edição, Andreia Candido e Cristiano Esmario estão com caso ainda em aberto.
As outras nove famílias atingidas fizeram acordos confidenciais com o Flamengo.
Ao final da edição, Benedito Ferreira, segurança, que salvou três meninos, ainda buscava indenização.
Esforços foram feitos para ouvir de outras famílias, sobreviventes, representantes, e outros envolvidos nessa tragédia.
Alguns nunca responderam e muitos se recusaram a participar


Então, fazer esse trabalho era uma obrigação, uma missão, pela memória desses meninos, pela memória dessas pessoas que sobreviveram e para que a justiça seja feita, que a gente de alguma forma com esse trabalho busque justiça, a Justiça precisa acelerar, tem casos e situações que podem ser prescritos e a gente acabar não tendo ninguém responsabilizado. É uma situação muito triste, você imaginar que depois de cinco anos não houve ninguém responsabilizado.
Pedro Asbeg, diretor da minissérie "O Ninho: Futebol & Tragédia"

 
Marília Barros, mãe de Arthur, um dos mortos do Ninho do Urubu — Foto: Netflix

Documentário faz o que Flamengo deveria ter feito: honrar a vida dos mortos
Milly Lacombe, UOL, 14/03/2024

Arthur Vinicius, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Christian Esmério, Gedson Santos, Bernardo Pisetta, Jorge Eduardo, Vitor Isaías, Samuel Thomas, Athila Paixão.
Esses são os nomes dos jovens que morreram queimados no Ninho do Urubu no dia 6 de fevereiro de 2019. Tinham entre 14 e 17 anos. Suas vidas estão contadas no documentário "O Ninho: Futebol e Tragédia", que a Netflix produziu com apoio do UOL e com base em reportagens do Portal. O documentário está disponível a partir dessa quinta-feira, 14 de Março.

"Não é fácil falar para vocês", disse o presidente Rodolfo Landim no primeiro pronunciamento oficial depois da tragédia. Um pronunciamento de trinta segundos com o vice de futebol, Marcos Braz, colado em seu cangote. Estava difícil para o presidente falar? Ele estava sofrendo? Pelo que exatamente? Pela tragédia ou pela crise que teria que começar a gerir?

O documentário responde.

Sem alvará, com puxadinho no meio de CT milionário, fios expostos, fios sem conduíte, gambiarras elétricas, crianças dormindo amontoadas em um container subdividido em "quartos". O container improvisado num estacionamento tinha apenas uma porta e janelas com grades. Era, se levarmos em conta todas as irregularidades das instalações, uma arapuca.
Tudo bastante detalhado em "O Ninho". Os riscos a respeito das irregularidades foram comunicados à diretoria do Flamengo. Por email. 

A resposta, em resumo, dizia: deixa assim. "O senhor estava dormindo na hora do incêndio?". Essa foi a primeira pergunta feita pela polícia ao segurança Benedito Ferreira, que tempos depois foi demitido pelo clube e que vive com sequelas psicológicas até hoje. Seu depoimento no documentário é dilacerante não apenas pelo conteúdo mas porque podemos perceber as sequelas.
O senhor estava dormindo? Estava acordado? Fez seu trabalho ou tem responsabilidade na morte dessas crianças? É isso o que está escondido na pergunta "o senhor estava dormindo?". Quem não morreu queimado morreu por desumanidade moral.

No mesmo ano em que ganharia tudo e conquistaria ainda mais corações, com um time cheio de craques e jogando por mágica, o Flamengo começou a barganha com a vida das vítimas: queria pagar menos. "Não podemos pagar valor fora de proporção", dizia Landim. Qual é a proporção? Quanto vale uma vida? Quem estabelece esse valor? Landim não apareceu na reunião de negociação com a família no MP. Mandou o VP jurídico com os advogados.
O Flamengo que começou chamando a tragédia de tragédia e cujo presidente dizia não conseguir falar por estar muito abalado, passou a tratar as famílias como inimigas. "A família pode buscar um advogado e entrar na justiça contra o Flamengo", disse no contexto em que a revolta das famílias ficava evidente.

A declaração é perversa. Estamos falando do clube mais rico do Brasil contra pessoas periféricas. Está exposto aí nosso sistema de justiça. Um sistema branco e bilionário contra pessoas negras e pobres. A família pode sim buscar um advogado para brigar contra o Flamengo. Como elas podem passar férias em Paris, podem mandar seus filhos esquiar em Aspen e treinar com especialistas na Suíça. Podem? Bem, não tem ninguém amarrando suas mãos, elas não estão proibidas pelo Estado. Mas certamente estão pelo sistema econômico.

No dia em que a tragédia completou um ano, as famílias foram ao Ninho para fazer uma homenagem. Todas, menos uma, foram barradas por não terem solicitado entrada prévia. Não puderam entrar para rezar no local da tragédia. Landim não apareceu na CPI instalada pela ALERJ. O Flamengo não se importa, como o documentário deixa evidente.

Mas a torcida se importa. Fez mural, canta em homenagem aos garotos em todo o minuto 10 das partidas. Dos 16 atletas que sobreviveram ao incêndio apenas três seguem no clube.
Tudo está no documentário, que dramatizou as cenas da tragédia. Depoimentos fortes e de tristeza devastadora. O Flamengo nunca fez um espaço de memória para esses jovens. Nunca contou suas histórias. Nunca celebrou suas vidas. O documentário faz isso. Conhecemos um pouco de seus sonhos, de seus jeitos, manias, rotina. É assim que você honra uma vida. Você conta sua história.
O que é uma diretoria vencedora? A que ganha tudo ou a que trata pessoas como pessoas? A que levanta taças ou a que acolhe a dor dos seus? A que dá a volta olímpica com o time ou a que reconhece a dor do outro?

Mais do que dinheiro, as famílias queriam reconhecimento, conforto e amparo. Queriam saber que o Flamengo se importa com a vida de seus filhos. Não tiveram nem dinheiro nem qualquer vestígio de carinho.

Arthur Vinicius, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Christian Esmério, Gedson Santos, Bernardo Pisetta, Jorge Eduardo, Vitor Isaías, Samuel Thomas, Athila Paixão. O Flamengo não é a sua diretoria, ele é a sua torcida e os jovens que largam tudo para vestir essa camisa e tentar seguir um sonho.


25/03/24

O Problema dos 3 Corpos, 3 Body Problem, Série de TV, 2024, Minkie Spiro, Jeremy Podeswa, Derek Tsang, Andrew Stanton
Criação: David Benioff&D.B. Weiss&Alexander Woo

Ler sobre em Pílulas 17

26/03/24

Drácula - A Última Viagem do Deméter, The Last Voyage of the Demeter, 2023, André Øvredal

Em Drácula - A Última Viagem do Deméter, inspirado na icônica lenda do vampiro Drácula, acompanhamos a terrível história do navio Deméter, que foi fretado para transportar cargas particulares. Estranhos eventos acontecem à tripulação, que tenta sobreviver à viagem oceânica, perseguidos todas as noites por uma presença impiedosa a bordo do navio. Quando o Deméter finalmente chega à costa, é apenas um navio carbonizado e abandonado. Não há vestígios da tripulação. A trama se baseia em um único capítulo do livro clássico de Bram Stoker.

01/04/24

Três Corpos, San ti, 2023, Lei Yang

Baseada no romance de ficção científica de sucesso escrito por Liu Ci Xin, chamado O Problema dos Três Corpos, a série Três Corpos acompanha uma bizarra e anormal situação no ramo das ciências básicas da Terra, que deixa todo o mundo científico em alerta. Em meio a esta trama, Wang Miao (Zhang Lu Yi), um dos maiores especialistas em nanomateriais da China, é convocado por Shi Qiang (Yu He Wei), um detetive da polícia especializado no contraterrorismo, que descobriu estranhos acontecimentos que começaram a ocorrer na comunidade científica há muitos anos, entre eles uma série de suicídios de vários pesquisadores importantes. Juntos, eles investigam uma série de conspirações sobre eventos do passado que colocam toda a humanidade em perigo. Adorocinema 

Leia resenha em  Pílulas 17


 

02/04/24

Yojimbo, o Guarda-Costas, Yôjinbô, 1961, Akira Kurosawa

CRÍTICA | YOJIMBO – O GUARDA-COSTAS por RITTER FAN 28 de junho de 2018

Sem dúvida é a coçadinha na cabeça que faz a diferença. Nos segundos iniciais de Yojimbo, vemos Toshiro Mifune, pelas costas, vestindo seu quimono, dando uma parada, mexendo os ombros e, por dentro de sua roupa, levantando o braço e colocando o dedo estrategicamente para dar aquela coçadinha esperta.

São segundos iniciais preciosos, que falam mais sobre o detalhismo da técnica de Akira Kurosawa e da atuação de Mifune que muitos filmes anteriores. O tom do longa é estabelecido pelos movimentos corporais do personagem Sanjuro Kuwabatake, um ronin que perambula pelo Japão à procura de algum contrato. Nós o vemos apenas pelas costas durante toda a abertura e a música que segue a tal coçadinha rima perfeitamente com ela: tem um tom sério, mas ao mesmo tempo cômico, relaxado, de paz com a vida.

O que vemos na tela, a partir desse ponto, poderia ser mais bem descrito como uma aula de cinema, desde o roteiro até os efeitos sonoros. São tantos detalhes que é difícil, em uma pequena crítica, tratar de todos eles. Mas isso não quer dizer que não posso tentar.

Refilmado pelo menos três vezes (como western spaghetti em Por Um Punhado de Dólares de Sergio Leone; como ficção científica em O Guerreiro e a Espada, estrelando David Carradine, e como filme de gângster em O Último Matador, de Walter Hill), o roteiro do próprio Kurosawa mais uma vez com a inestimável colaboração de Ryûzô Kikushima, é uma joia de narrativa. Silencioso e econômico, o roteiro nos apresenta a aspectos básicos apenas: Sanjuro chega a uma cidade dominada por gangues rivais e ele resolve se intrometer. O desenrolar disso é tão orgânico e natural que, apesar do forte tom de humor negro, somos imediatamente arremessados para aquele universo, aceitando cada aspecto da criação da dupla.

Aceitamos Sanjuro como um ronin maduro, calejado de batalhas e extremamente inteligência em termos estratégicos, além de invencível com a espada. Aceitamos o pavor de Gonji (Eijirô Tôno), o dono da taverna que muito relutantemente acolhe Sanjuro no meio da tensão imposta pelas brigas no vilarejo. Aceitamos – até com um sorriso no rosto – o feliz e incessante trabalho do marceneiro local (Atsushi Watanabe), que fabrica caixões, o único ativo realmente importante e valioso por ali. Aceitamos também as improváveis e de certa forma cômicas gangues rivais, cada uma de um lado da cidade, em delicado equilíbrio de forças.

Com poucos diálogos expositivos, Kurosawa fico livre para criar visuais que tendem à perfeição. Um de seus requisitos para filmar foi a determinação de que a obra inteira deveria ficar em foco. Como o roteiro exigia tomadas em plano geral, o trabalho do diretor de fotografia Kazuo Miyagama com o designer de produção Yoshirô Muraki teve que ser absolutamente preciso. Uma prova disso é o forte contraste que permeia toda as cenas do filme, facilitando a identificação dos personagens mesmo a consideráveis distâncias. Aliás, não foi por coincidência que escolhi a foto que ilustra a presente crítica. Vejam só a inconfundível silhueta – em foco – de Sanjuro, com os braços para dentro do quimono, enquadrados por membros de uma das gangues com roupas mais claras que ele. E isso tudo com os técnicos tendo que compensar as rajadas de vento que assolavam o set durante toda a filmagem e que foram incorporados por Kurosawa na linguagem da película.

Mas o melhor exemplo do foco profundo não está nos planos gerais ou mesmo nos planos conjuntos. Em determinado momento, há uma pausa nas provocações de um lado a outro, pois uma autoridade fiscalizadora vem visitar o vilarejo. Todo o local, a mando dos bandidos, tem que parecer normal aos olhos do oficial que, claro, é extremamente corrupto. Assim, somos levados para dentro da taverna e vemos, sob o ponto de vista de Sanjuro e de Gonji, por detrás das frestas da parede da taverna, o oficial sendo paparicado pelas duas gangues. A câmera está quase encostada na parede, mas nós vemos cada detalhe da madeira enegrecida em perfeito foco, assim como os acontecimentos do outro lado da rua. Não perdemos absolutamente nada graças ao trabalho da fotografia e dos fortíssimos contrastes da cena.

Mas nada transmite mais credibilidade do que um ator tão inserido em seu papel que esquecemos que ele está atuando. Assim é Toshiro Mifune criando seu samurai honrado e pobre, cujos únicos bens são sua mente afiada e sua boca esfomeada e mais afiada ainda. Ele é Sanjuro – ou será que Sanjuro é ele? – e parece estar tão à vontade no papel que fica difícil imaginá-lo em outro, mesmo depois de Rashomon e Os Sete Samurais.

Só que Mifune não está sozinho, apesar de ser o absoluto foco do filme e sua peça principal. Seus coadjuvantes foram perfeitamente escalados, a começar por Eijirô Tôno como Gonji, que nos transmite pavor e sabedoria com um único olhar. Outro que merece destaque é Tatsuya Nakadai, o pistoleiro Unosuke, que olha com tanta lascívia para sua pistola que parece um objeto fálico. Nakadai já era um ator estabelecido no Japão, vindo de obras como Arakure, dirigida por Mikio Naruse e Guerra e Humanidade, de Masaki Kobayashi. Em Yojimbo, o ator faz um contraponto a Mifune, com seu porte nobre contrastando com sua natureza cruel. Ele não vive um personagem totalmente crível, pois esse não foi o objetivo de Kurosawa. Ele tem aquele mesmo tom de invencibilidade do Yojimbo de Mifune, mas como se ele fosse a versão nobre de seu inimigo. O embate entre os dois, que na verdade pouco contracenam, é absolutamente fantástico.

E os embates físicos que existem funcionam muito bem, pois Kurosawa foge do sangue e enfoca na coreografia. O primeiro grande momento é quando Yojimbo enfrenta uma gangue para mostrar à outra que é bom no que faz. Nada de lutas atléticas ou heroicas. O que vemos é velocidade e precisão (algo que chegaria ao seu ápice em Sanjuro, o filme seguinte, mas essa é outra história…) e uma beleza plástica estonteante. Em seguida, vemos o grande embate entre as duas gangues rivais que literalmente dançam um balé ou, fazendo uma comparação mais colorida, passos de uma dança de acasalamento de pássaros exóticos.

No entanto, o que chama a atenção de verdade é o som. Ichirô Minawa a pedido de Kurosawa, não só recriou os sons de espadas batendo umas nas outras como determinou o padrão da indústria para o som desses instrumentos cortando a carne humana. De carne de porcos e de boi, passando por galinhas e panos molhados, Minawa criou uma biblioteca sonora tão rica que nem mais damos valor hoje em dia de tão lugar-comum que ela se tornou. Mas tudo começou – ou recomeçou – em Yojimbo, graças a um diretor perfeccionista cercado de uma competentíssima equipe técnica.

E eu poderia continuar eternamente a escrever sobre Yojimbo, mas não quero levar meus leitores às lágrimas de chateação. Fica apenas uma mensagem: Yojimbo é uma obra tão multifacetada e detalhada – na verdade, isso não é uma novidade se você vem acompanhando as críticas do Especial Akira Kurosawa de meu colega Luiz Santiago – que ela exige que seja vista repetidas vezes. Na verdade, é o espectador que ficará tão intrigado com aquela coçadinha na cabeça que marca o começo de tudo que se sentirá compelido a voltar para ver Sanjuro entrando no vilarejo mais uma vez. E, se isso acontecer, desafio alguém a desligar a TV antes que o ronin dê as costas novamente e vá embora.

03/04/24

Dersu Uzala, 1975, Akira Kurosawa

CRÍTICA | DERSU UZALA (1975) por RITTER FAN, 5 de agosto de 2018

Não sei se é em razão da proximidade do Natal ou se é pelo tema principal de Dersu Uzala, mas senti a necessidade de fazer um depoimento pessoal sobre o filme, fugindo um pouco da objetividade crítica que deve sempre guiar esse trabalho. No entanto, resistindo bravamente às tentações, decidi, no final das contas, fazer as duas coisas: meu “nhé, nhé, nhé” pessoal e a crítica. E, ainda por cima, respeitando meus leitores, eu o fiz em dois momentos claramente identificáveis por sub-títulos. Quem não quiser ler as palavras bem pessoais que afloraram assim que acabei de rever a obra soviética de Akira Kurosawa, podem passar para o segundo capítulo, que trata efetiva e objetivamente da crítica.

A Amizade e a Velhice

Sempre que assisto Dersu Uzala, eu me emociono. E olha que sou costumeiramente conhecido como um cara durão, que não se emociona fácil e por aí vai. Mas, na verdade, é tudo uma máscara para eu manter minha fama de mau e esconder um bobalhão que tem que resistir para não se debulhar em lágrimas ao testemunhar, por exemplo, o desespero de Marlim ao ver seu filho Nemo sendo pescado em Procurando Nemo.

No entanto, mais do que temas de amor, abnegação, sacrifício e outros corriqueiramente utilizando em dezenas e mais dezenas de filmes, a amizade é um que me toca profundamente. Hoje, com redes sociais mil e relacionamentos à distância, o conceito puro de amizade desapareceu ou mudou completamente, o que torna Dersu Uzala uma obra ainda mais urgente, ainda mais contemporânea de uma maneira anacrônica (se é que vocês me entenderam). Não é que amizades não possam perdurar por décadas se os amigos estão distantes geograficamente. Elas podem sim, mas essas amizades nasceram, provavelmente, de contatos pessoais, próximos, de alguma conexão qualquer que acabou unindo aquelas duas pessoas.

Chamem-me de quadrado, antiquado, velha guarda e o que mais vocês quiserem, mas amigo não é conhecido ou colega. Amigo é algo raro, que cada um de nós deve (sim, deve) ter poucos, por mais popular que sejamos. Ter 500 “amigos” no Facebook nada significa. Ter um amigo de infância pode significar o mundo. Tem pessoas que conheço há quase duas décadas e que não considero amigo de verdade. São conhecidos muito próximos e tal, mas amigo mesmo é aquele cara que, sem pedir absolutamente nada em troca, quando te vê depois de 5 meses (ou mesmo 5 anos) sem te ver, te entende perfeitamente e, em alguns segundos, conversa com você sem que aquele período distante tenha significado mais do que um soluço na amizade. Um amigo não quer reconhecimento, não quer conversar ao telefone todos os dias, não quer receber um e-mail ou uma mensagem a cada minuto.

Amigo ultrapassa a barreira do que é ditado pela sociedade como “correto” para efetivamente ser seu amigo. Com isso, quero dizer que seu amigo não é aquele cara que lembra de seu aniversário todos os anos, mas sim o cara que, quando você dá parabéns, agradece como se nada tivesse acontecido e engata em outro assunto completamente diferente. Amigo não espera os parabéns. É o que eu disse: amigo só é amigo se não quer absolutamente nada em troca. E amigos envelhecem juntos. Trocam experiências e ajudam um ao outro a crescer pessoalmente.

E o envelhecimento é outro tema importante, tema esse que só me emocionou agora, quando assisti Dersu Uzala para escrever a presente crítica. Afinal de contas, a idade chegou para mim e eu consigo me identificar com o “problema”. Sim, não sou velho propriamente dito. Tenho 40 anos. Mas é muito diferente de quando você tem 20 ou 30… Ter 40 é melhor.

E realmente acredito que as coisas só continuam a melhorar. Sim, vamos envelhecendo fisicamente e sim, podemos fazer menos coisas do que fazíamos quando jovens. Mas, quando jovem, você olha para trás sem qualquer senso de ter feito alguma coisa na vida. E você olha para frente como se não existisse o dia de amanhã. Quando um pouco mais velho – como agora, eu aos 40 – ao olhar para trás vejo tudo aquilo que construí e que vou deixar para minha família (certamente minha maior “construção”). Olho para frente e vejo – com a cautela que vem com a vivência e alguma sabedoria – as oportunidades que terei. Algumas poderei abraçar sem titubear. Outras terei que deixar passar. Mas sem arrependimentos.

Bom, minha gente, se vocês leram até aqui, agradeço imensamente. Tinha que literalmente colocar isso “para fora”. Na pior das hipóteses, se nenhuma das mensagens que tentei passar acima funcionar, pelo menos reparem como um filme pode mexer com uma pessoa.

A Crítica de Dersu Uzala

Depois que acabou O Barba Ruiva, o contrato de Akira Kurosawa com o estúdio Toho também acabou. O próprio Kurosawa viu a oportunidade de crescer com seus próprios pés e partiu para uma empreitada hollywoodiana ao ser tragado para a malfadada produção de Tora! Tora! Tora!, da Fox. Digo tragado para usar um eufemismo pois o diretor foi, na verdade, ludibriado pelas promessas dos produtores, que diziam que David Lean dirigiria as sequências americanas e Kurosawa as japonesas (o filme trata do ataque a Pearl Harbor pelos dois ângulos).

Acontece que, na verdade, Richard Fleischer é que acabou dirigindo e Kurosawa não conseguiu adequar-se às exigências de Hollywood, sendo defenestrado em três semanas. E, como se esse desgaste todo não bastasse, o filme foi um fracasso de crítica e bilheteria. Com isso, Kurosawa teve que brigar muito para conseguir fazer seu filme seguinte, Dodeskaden, primeira experiência do diretor com cores (ainda que tenha flertado com isso antes) e belíssimo, por sinal. No entanto, o diretor amargurou outro fracasso, o que acabou dificultando em muito a obtenção de fundos para projetos futuros.

Toda essa situação somadas a problemas de saúde e pessoais levou Kurosawa a tentar se matar em 1971. Somente dois anos depois é que, procurado pelo estúdio soviético Mosfilm, o mestre finalmente arregaçou as mangas e voltou a fazer aquilo que fazia de melhor: deixar o público de queixo caído e olhos abertos com suas deslumbrantes imagens em movimento. O resultado foi a obtenção do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e sucesso nas bilheterias, além de ter chamado atenção novamente para sua capacidade como autor.

Assim nasceu Dersu Uzala, obra baseada em livro autobiográfico do explorador russo Vladimir Arseniev. A tocante história do experiente caçador do povo Goldi que forma laços de amizade com um capitão do exército russo que está nas inóspitas terras do leste da Rússia em 1902 consegue ficar ainda mais poderosa por ser baseada quase que integralmente em fatos reais. E claro, apesar de já ter sido levada às telas antes pelo cineasta soviético Agasi Babayan, a narrativa se beneficiou muito do estilo Kurosawa de filmar.

Dersu Uzala foi o primeiro filme do diretor falado em língua não japonesa (é integralmente falado em russo) e a primeira — e única — experiência dele com filme de 70 mm. O resultado é que as já famosas panorâmicas de Kurosawa evocam ainda mais os temas do filme que não só se relacionam com a amizade e a velhice como, também, com a integração com a natureza e com a invasão da chamada “civilização”.

Filmado quase que totalmente em locação no leste da União Soviética ao longo de um ano e meio, o aspecto naturalista do filme é fortemente ressaltado. Somos jogados para dentro da natureza selvagem em uma época em que a chamada civilização ainda não havia chegado a todos os rincões perdidos do planeta. Apesar do tour de force que foi fazer o filme, o resultado é extremamente contemplativo, sereno, capaz de nos fazer olhar para nós mesmos e indagar determinadas atitudes que temos.

Em determinado momento, Dersu Uzala (Maksim Munzuk) leva o Capitão Vladimir Arseniev (Yuriy Solomin) para uma cabana perdida na floresta. Antes de partirem, Dersu faz questão de consertar o teto do local e de pedir mantimentos não perecíveis ao capitão para deixar por ali. Quando indagado do porquê, Dersu simplesmente diz que isso impediria que outros, que porventura usassem a cabana, morressem de fome.

Vejam só que coisa mais linda: um homem simples e que nada tem a não ser a mochila em suas costas que se preocupa não só por quem conhece, mas por pessoas que nunca viu e que, provavelmente, nunca verá. O mundo em que hoje vivemos simplesmente não comporta mais pessoas assim e é isso que vemos gradativa acontecer na fita. Há outro momento mais para a segunda metade do filme em que Dersu diz que, apesar de ter conseguido algum dinheiro com a venda de peles de animais, não tem mais nada pois ele pediu para um comerciante guardar seu dinheiro e, ele não sabe explicar, o cara desapareceu sem dar explicações. A forma como Dersu explica isso ao capitão, sem realmente entender o que aconteceu, é de partir o coração e nos fazer ficar com raiva da humanidade que nos cerca. A atitude aparentemente ingênua de Dersu não é ingênua, mas sim verdadeiramente humana. Tanto é assim que, ato contínuo, o capitão fica sem palavras – literalmente – e tem que sair por breves momentos da companhia do amigo para, longe da câmera de Kurosawa, provavelmente ponderar sobre o ponto em que nós chegamos, isso se ele não tiver chorado.

Kurosawa não usa muitos close-ups e trabalha muitas vezes em plano médio quando lida com Dersu e o capitão. Mesmo assim, as atuações de Munzuk e de Solomin são edificantes. Munzuk não parece estar atuando. Ele simplesmente é Dersu Uzala. Já Solomin me lembra muito Omar Sharif em Doutor Jivago: um nobre soldado que compreende e fica fascinado com a natureza humana.

Quando o filme evolui para tratar dos problemas trazidos pela velhice, Kurosawa mistura o lado místico da crença dos Goldi com as realidades do dia-a-dia. Dersu começa a perder a visão e acredita que isso se deve ao fato de ter atirado em um tigre, animal sagrado para ele. Ao fazer isso, o diretor consegue, de maneira muito eficiente, mostrar a proximidade da relação de Dersu com a natureza e, ao mesmo tempo, de Dersu com o capitão, que oferece moradia em sua casa na cidade.

E o final, já lindamente telegrafado por Kurosawa na já descrita cena do roubo do dinheiro de Dersu, é absolutamente crível e tocante. É o fim de uma era. O fim de um tipo de humanidade e o começo de outra, talvez tão boa quanto, mas certamente muito diferente. É nesse momento que nós, espectadores, assim como o Capitão Arseniev, caímos de joelhos e choramos pela perda de alguém ou alguma coisa muito especial e que é insubstituível.

Dersu Uzala é um dos filmes mais bonitos já feitos e mostrou a todos que, mesmo desiludido, traído e desesperançoso, Kurosawa foi um dos maiores diretores que já existiram.

Capitu, 1968, Paulo César Saraceni

No iutubi aqui 


Roteiro para obra de Machado fica melhor na estante que na tela
Reedição de trabalho de Paulo Emílio e Lygia Fagundes Telles faz lembrar as dificuldades em adaptar o autor
INÁCIO ARAUJO, FSP, 23/08/2008  

Conta Lygia Fagundes Telles que, após o lançamento do filme "Capitu", de Paulo César Saraceni, a atriz Isabella lhe disse que nunca havia sido tão xingada quanto após interpretar a personagem de Machado de Assis. Com efeito, Isabella ficou com a responsabilidade pelo fracasso do filme. Uma revisão talvez relativize tal culpa. 

Ela nunca foi um prodígio de atriz. No entanto, é possível ponderar que "Capitu" não era o filme certo naquele momento. Em 1968, o Brasil tentava ver preto e branco, certo e errado. Não era um momento para a heroína dos olhos de ressaca. A reedição do roteiro de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles para o filme permite, hoje, figurar melhor algumas das dificuldades que ameaçam as adaptações de certos textos de Machado de Assis. Para começar: quem seria a nova Capitu? Esbarramos num problema objetivo (há atriz com porte e capacidade para o papel no Brasil?) e em outro subjetivo: quando cada um tem a sua imagem da personagem não há nada mais difícil do que lhe atribuir uma imagem única. 

Parece-me que não é o único deste fascinante trabalho. Lygia e Paulo Emílio transformaram "Dom Casmurro" em 35 bem articuladas seqüências cinematográficas, que buscam dar conta das sutilezas do triângulo amoroso célebre, bem como de aspectos da vida brasileira do século 19. Ora, Machado escreveu quase 150 capítulos. Há um tanto de liberdade própria da literatura. Mas o enigma talvez não se entregue tão simplesmente. A escrita de Machado é diabólica. Onde inserir, num roteiro, as menções a um sem número de fenômenos, da ópera à lepra, referidos no livro e que nos dão conta de que, possivelmente, Machado levasse o triângulo amoroso muito menos a sério do que Bentinho? Onde inserir as formulações que, afinal, fazem de Machado, Machado? Este não é, no mais, um problema para o roteiro resolver. 

É antes uma questão de mise-en-scène que nos leva ao coração do mistério da adaptação cinematográfica: a de transformar as abstrações literárias em sinais, gestos, em suma, matéria. Ao longo do roteiro existem inúmeras e por vezes preciosas indicações para essa passagem, como na seqüência 25, com Bentinho no escritório, entre fotos que, como o mobiliário, falam de costumes e comportamentos de um momento.

A relação com o leitor

Pode-se argüir ainda a opção dos autores de deixar de lado algo que para Machado era, aparentemente, central: a relação com o leitor -tão importante que levou Hélio de Seixas Guimarães a lhe dedicar um volume ("O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19", Edusp), no qual lembra que "Machado problematiza a figura quase improvável do leitor, procurando incorporá-la à forma do romance". Seria esse "leitor improvável" um precursor do "espectador improvável"? Talvez ambos apontem para um impasse doloroso: a impossibilidade de obra no Brasil. E possam acrescentar sentido ao que costumamos chamar de "ironia" machadiana, que designa uma distância significativa entre o narrador e o narrado. 

O interesse do texto de Machado é tão grande que não será exagerado dizer que simplesmente não sucumbir diante da tarefa hercúlea da adaptação já é um feito admirável -foi isso que aconteceu com o "Capitu" de Paulo Emílio e Lygia. No entanto, a rede de questões lançada pelo roteiro só se pode realizar na mise-en-scène. Penso que este roteiro de "Capitu" precisaria da paixão e da poesia do Jean Renoir de "Um Dia no Campo", da contenção precisa de um Howard Hawks em "Paraíso Infernal", do gosto pela ambigüidade de um Rossellini, da modernidade de um Abbas Kiarostami, da delicadeza de um Walter Lima Jr... Lygia Fagundes Telles acredita que seu roteiro merece bem uma segunda chance. Merece. Mas algo me faz crer que o melhor é deixá-lo assim, sossegado e livre do risco de um novo desgosto, na condição modesta, mas sólida, de um belo volume.

CAPITU, Autores: Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, Editora: Cosac Naify, Quanto: R$ 34 (200 págs.), Avaliação: bom 

TRECHO

No tílburi, Capitu e Bentinho estão um tanto afastados e em silêncio. Ele tamborila de leve na almofada do banco, a outra mão segurando a bengala. Ensaia o seu assobio na ingênua tentativa de disfarçar o mal-estar, nem é um assobio mas um soprozinho que lembra a quadrilha. Fecha a boca em meio a uma frase musical e fica olhando em frente. Capitu está tranqüila, os braços cobertos pela mantilha de renda branca, as mãos entrelaçadas no regaço. Os olhos um pouco apertados revelam que está pensando, pensando. Nítido, o barulho ritmado das patas do cavalo e das rodas nas pedras da rua. Esse ligeiro assobio ele recomeça na escuridão do quarto, quando é apenas o assobio que indica a sua presença antes de acender o lampião. 

A grande cama de casal. Os consoles com os pequenos lampiões de opalina. O oratório parece pulsar sob a luz avermelhada de uma lâmpada votiva. Há uma certa desordem no canapé com suas almofadas amassadas e uma peça de roupa -um xale?- de franjas enredadas caindo até o chão. Capitu tira as longas luvas brancas e as coloca na cadeira onde ele já deixou a casaca. Guardando ainda a forma das mãos e dos braços da dona, as luvas parecem ter vida própria assim meio entrelaçadas nos ombros negros da roupa. Em mangas de camisa, ele desata o laço da gravata. Senta-se no canapé. Ela acende o lampião do toucador e vai tirando o colar. Tira os brincos e abre o porta-jóias, uma caixinha de música que desata a tocar uma canção de ninar. Com um gesto frio, ela baixa a tampa e interrompe a música. Começa a desfazer o penteado mas tem o olhar no marido, observando-o através do espelho.

Extraído de "Capitu", de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles

DOM CASMURRO SEM DOM CASMURRO

Casmurro

Roda Viva | Lygia Fagundes Telles

08/04/24

Não Atire, Niet Schieten, 2018, Stijn Coninx

No iutubi aqui 

Producer: Peter Bouckaert, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Maarten Swart, Nathalie Van Schelvergem, Goele Vandersmissen

De uma só vez, David Van de Steen, de nove anos, perdeu a mãe, o pai e a irmã em um ataque violento em Aalst, assassinados enquanto faziam compras por uma notória gangue de psicopatas. Seu avô, Albert, tem a quase impossível tarefa de dar a David uma nova perspectiva de vida, de futuro. Para ajudar a curar não só as feridas físicas quanto as emocionais do garoto, Albert e sua esposa, Metje, o cercam de carinho e buscam as respostas para diminuir a tristeza do neto. Interfilmes

09/04/24

A Cabeça de Joaquín Murrieta, La Cabeza de Joaquín Murrieta, Série de TV, 2023, Humberto Hinojosa Ozcariz & David Pablos

Criação: Mauricio Leiva-Cock & Diego Ramírez-Schrempp

A Cabeça de Joaquin Murrieta é a nova série mexicana da Netflix que mostra um México do século XIX no meio da corrida ao ouro.

Estamos na Califórnia, 1851. Aqui vemos a corrida do ouro, a ambição dos homens e a xenofobia como o pão de cada dia entre as fronteiras dos Estados Unidos e do México.

É aí que a lenda do “Robin Hood mexicano”, um personagem polêmico cuja história está em A Cabeça de Joaquin Murrieta, uma produção original do Amazon Prime Video, que conta com um elenco de destaque com um enredo de aventuras e retratos de uma época conturbada.
Mas qual a história da série mexicana A Cabeça de Joaquin Murrieta no Amazon prime?
A ficção conta a história de uma figura ao mesmo tempo histórica e mítica: Joaquín Murrieta, uma espécie de Robin Hood que desafiou a lei para beneficiar os mais necessitados.

No enredo dessa história, seu improvável aliado deve parar o vilão Harry Love. O perigo que esse personagem representa faz com que os bandidos deixem suas diferenças para trás e planejem como acabar com quem consideram uma ameaça.
Mais detalhes da série
A série retrata o México do século 19, particularmente no norte do país e na região do atual Texas. Quando mexicanos, americanos, nativos americanos e orientais lutaram, habitando a região e tomando seu poder.

“Uma metáfora na qual me baseei foi a quebra de um país que se parte em dois. É exatamente para mim o que acontece com Joaquín Murrieta quando ele deserta do exército.
Há um paralelo aí que para mim era aquela mexicanidade que até hoje não entendemos”, disse John Manuel Bernal em entrevista.

10/04/24

Dias Perfeitos, Perfect Days, 2023, Wim Wenders

CRÍTICA | DIAS PERFEITOS, por ROBERTO HONORATO 27 de fevereiro de 2024

Quando o cotidiano é suficiente.

O cinema japonês é um dos que melhor representa uma sensação de melancolia ou introspecção através de personagens complexos contra uma narrativa mais objetiva, e essa seria minha exata expectativa para Dias Perfeitos antes de saber do envolvimento de Win Wenders na direção, o que pode trazer uma sensação de conforto por saber que é um diretor competente, porém não é fácil deixar de lado algumas preocupações envolvendo a visão de um diretor alemão sobre a cultura japonesa, principalmente em uma obra tão específica que exige certa experiência que vai além das câmeras.

A história é focada na vida de Hirayama (Koji Yakusho), um homem que parece ter encontrado um equilíbrio na vida, contente em trabalhar como zelador de banheiros públicos em Tóquio, também passa os dias aproveitando seus hobbies e paixão pela arte, como literatura, música e fotografar árvores com sua câmera analógica. Infelizmente, sua rotina é interrompida por constantes encontros com pessoas que logo fazem ele se lembrar de um passado misterioso.

A ambientação que Dias Perfeitos procura é provavelmente algo nos ares de Yasujiro Ozu, que o próprio Wenders considera sua grande inspiração, e não seria estranho comparações na proposta, porém esse é um filme que parece ter atingido a veia de Jim Jarmusch, principalmente o que ele fez em Paterson, uma narrativa introspectiva sobre um protagonista de grande paixão em um estado de satisfação pela sua vida, sem deixar de revelar seu lado mais frágil, ainda que não deixe claro a razão para tal fragilidade. Hirayama, interpretado pelo carismático Koji Yakusho, traz mais do que uma alegria perante o mundano, há também uma perpétua melancolia no olhar, e isso fica mais claro quando o protagonista evita se aprofundar em debates com figuras de seu próprio passado, porém revela mais honestidade em interações com rostos desconhecidos que parecem compartilhar de um mesmo sentimento ambíguo.

Como mencionei anteriormente, deve-se levar em consideração que estamos falando de um diretor alemão trazendo sua própria sensibilidade artística para um longa focado inteiramente em outra cultura, com suas próprias características e peculiaridades assimiladas através do cotidiano. Por um lado, é fácil ver como alguns elementos da obra podem ser interpretados de outra maneira, como a forma que a crítica social sobre a classe trabalhadora seja quase inocente ao ponto de se limitar a pequenas sequências de pessoas ignorando a existência do protagonista ou uma criança o reconhecendo como um igual e não apenas um “funcionário”; e o destaque da literatura e música serem quase inteiramente da língua inglesa também não ajuda o caso do diretor. Por outro lado, é fácil entender também o argumento de que os sentimentos do protagonista podem ser universais, o que fica ainda mais claro nos minutos finais, em uma emocionante cena embalada por Nina Simone.

Dias Perfeitos encontra a beleza no mundano e coloca Koji Yakusho para conquistar todos como a figura central na jornada de um homem que parece contente com seu próprio exílio, e mesmo que deixe o mundo ditar suas próprias regras, utiliza o silêncio ao seu favor, o que faz com que seus pequenos momentos de diálogo entre figuras do presente e passado sejam ainda poderosos e não deixem de trazer ao menos um pouco de esperança.

Dias perfeitos, 2023, soundtrack 

Assistindo Dias perfeitos me lembrei de dois outros filmes do mesmo diretor. Têm em comum o espaço, o road movie e a música

1. O Céu de Lisboa, Lisbon Story, 1994

Madredeus - Lisbon Story - Guitarra

MADREDEUS - Moro em Lisboa

2. Buena Vista Social Club

Buena Vista Social Club Full Album 

11/04/24

Gran Torino, 2008, Clint Eastwood

CRÍTICA | GRAN TORINO (2008), por RODRIGO PEREIRA, 30 de novembro de 2018

Como o Homem Sem Medo na Trilogia dos Dólares (Sergio Leone) e Harry Callahan em Perseguidor Implacável (Don Siegel), para não prolongar demais, Clint Eastwood se consolidou como um dos rostos mais conhecidos de Hollywood. Entretanto, não foi apenas na frente das câmeras, através do western spaghetti ou de personagens durões e carrancudos (apesar disso ser boa parcela de sua contribuição para a arte), que Eastwood trilhou sua carreira. O quase nonagenário ator também aventurou-se como diretor e realizou obras que foram, de uma forma geral, bem recebidas por público e crítica (Sobre Meninos e Lobos, Sully: O Herói do Rio Hudson, Cartas de Iwo Jima, Sniper Americano e Os Imperdoáveis são alguns exemplos). Quanto a Gran Torino, um de seus trabalhos da safra madura em que atua e dirige simultaneamente, o resultado não foge muito disso e é bastante satisfatório.

O filme acompanha a vida de Walt Kowalski (Clint Eastwood), um trabalhador aposentado e veterano da Guerra da Coreia que passa seus dias realizando pequenos reparos domésticos e bebendo cerveja. Viúvo, mal-humorado e com uma relação totalmente conturbada com seus filhos, Kowalski acaba se aproximando do jovem asiático Thao (Bee Vang) após esse envolver-se com uma gangue local e ser obrigado a roubar o carro do velho ranzinza. Apesar de seu desprezo contra asiáticos, negros e latinos, Kowalski aos poucos adquire apreço pelo jovem e sua irmã Sue (Ahney Her), percebendo que tem muito mais em comum com a família deles do que com a sua própria.

Sinto-me na obrigação, porém, de comentar sobre o lado pessoal do astro antes de seguir abordando exclusivamente a obra, especialmente suas opiniões políticas, pois um dos maiores méritos do longa vem justamente de como algumas dessas questões e visões são postas em cena.

Clint Eastwood é, sabidamente, um homem de princípios conservadores. Sempre ao lado do Partido Republicano, declarou apoio ao magnata Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016. Por que essas constatações tornam-se necessárias? Porque a forma como o diretor coloca sua visão conservadora acerca de temas como imigrantes vindo para seu país pode causar uma aversão e repulsa inicial em quem possui uma visão mais progressista (como este que vos escreve), mas que devido a maneira como a trama é conduzida nos convida a refletir sobre nossas opiniões e até questionar algumas certezas.

Não é incomum de se ver uma pessoa conservadora, principalmente em discussões políticas, ser considerada como alguém carregado de preconceitos e atrasos, quase como uma personificação do mal e de tudo que há de ruim. O que Eastwood faz, no entanto, é mostrar como Kowalski, uma personagem que causa asco e repugnância por seus atos desde o início, pode ser vítima de um julgamento prévio e errôneo. Não estou dizendo que está tudo bem em ser xenófobo, racista ou preconceituoso de qualquer forma, obviamente não está, porém o diretor nos desafia a rever alguns conceitos. Como na cena em que o velho veterano resolve, finalmente, se confessar para o padre Janovich (Christopher Carley) e revela seus maiores pecados da vida: ter beijado uma mulher no natal de 1968 já sendo casado; lucrado 900 dólares com a venda de um barco e não pagar os impostos da negociação; pouco conhecer seus dois filhos por não saber como ser mais próximo deles. Essas questões, conforme a própria personagem admite, foram as que mais o atormentaram durante sua vida. Um pouco distante do mal em pessoa, não é?!

A intenção do diretor é clara: mostrar que nem sempre aquilo que julgamos conhecer realmente é o que parece (a velha máxima de não julgar um livro pela capa). Algo ainda melhor, no entanto, vem da honestidade de Eastwood em não “vender” Kowalski ou sua visão de mundo como melhor que as outras. Ele faz exatamente o contrário quando a personagem lentamente percebe que tem muito mais em comum com a família asiática que tanto desprezou (por conta, por exemplo, do respeito às tradições e aos mais velhos perpetuados entre eles) do que com sua própria família, tornando-se cada vez mais próximo de Thao, Sue e seus familiares do que jamais poderia imaginar. Como se também propusesse para si refletir sobre suas convicções.

Apesar dessa interessante e eficiente maneira de abordar visões diferentes de mundo de forma totalmente honesta, nem tudo são flores. As atuações de Bee Vang e Ahney Her são incrivelmente fracas, ainda mais quando colocadas ao lado de alguém como Clint Eastwood, que trabalha com a arte há pelo menos cinco décadas. Para se ter noção, até o andar da atriz em determinados momentos parece algo totalmente forçado e artificial, assim como as explosões de raiva de Vang ao ser trancado no porão contra sua vontade (essa cena chega a dar vergonha alheia).

Mesmo com esses graves problemas de atuação que impossibilitam uma melhor avaliação, Gran Torino é uma obra sólida e eficiente num âmbito geral e tem seu ponto forte na proposta de nos convidar a refletir e questionar julgamentos e opiniões. Uma boa pedida para gerar discussões acerca de diversos assuntos enquanto assiste Clint Eastwood com suas caretas e grunhidos.

12/04/24
Fallout, Série de TV, 2024


Fallout é uma bagunça! | Crítica - 1a Temporada

13/04/24

RIPLEY, Ripley, Minissérie de televisão, 2024, Steven Zaillian

‘Ripley’, o gato como testemunha e como fui injusto com a série da Netflix
Apesar de não ter paciência para acompanhar seriados, tomei coragem de assistir a ‘Ripley’
Por Sérgio Augusto, O estado, 20/04/2024

Minha reação inicial foi, equivocadamente, de rejeição. Apesar de não ter paciência para acompanhar seriados, tomei coragem, mas não aguentei ir além do terceiro episódio de Ripley. Todo mundo a babar de admiração pelo hit da Netflix, e eu precocemente desencorajado por seus longueurs e por seu quase narcisístico tratamento visual.

Cheguei até a esboçar uma questionável comparação com a primeira aventura na tela do sociopata criado por Patricia Highsmith: em O Sol por Testemunha, René Clément dera conta da mesma intriga em duas horas, ao passo que Steven Zaillian consumiu 400 e poucos minutos nos oito episódios de Ripley.

Noves fora as cores, o charme e a beleza dos três protagonistas (Alain Delon, Maurice Ronet, Marie Laforêt) do primeiro e a trilha musical de Nino Rota, elementos que ajudaram a transformar Plein Soleil em cult movie 63 anos atrás.

Afetação geracional ou não, alguns amigos meus chegaram a adotar entre si a frase “Signor Ripley, teléfono!”, a fatídica chamada que fecha o filme de Clément e precede a prisão de Alain Delon (Ripley), como um bordão equivalente ao clássico “sua mãe subiu no telhado”. Os mais abonados se mandaram para a Costa Amalfitana, na Itália, para visitar Mongibello, o sedutor vilarejo tirreno onde Ripley conclui o golpe em Greenleaf e usurpa sua identidade.

Lucio, gato da série 'Ripley' Foto: Netflix 

Estes só não quebraram a cara porque, no lugar de Mongibello, invenção de Highsmith, ao menos encontraram Ischia Ponte, no golfo de Nápoles, a encantadora locação tão bem explorada pela câmera de Henri Decae.
Decae brilha igualmente em cenas de interior, como a do assassinato de Freddy (Bill Kearns), arrematada por uma tomada de legumes de feira espalhados pelo chão, ao lado do cadáver, que me evocou uma natureza-morta – no caso, duas.
O permanente contraste entre a solaridade das imagens e a tenebrosa trama de Plein Soleil é um dos pontos altos do filme, contraposição desprezada por Anthony Minghella em O Talentoso Ripley, um tanto sombrio e esmaecido pela empatia meia-bomba do elenco.

Fui precipitadamente injusto com a minissérie da Netflix, que maratonei até o último minuto, impressionado com a ambição da proposta, a densidade do roteiro, a mise-en-scène maneirista de Zaillian e com o chiaroscuro de Robert Elswit, que já me havia conquistado com o estilo Life-Look que imprimiu às imagens de Boa Noite e Boa Sorte, e agora me impressiona com sua inventiva releitura do tenebrismo de Caravaggio, a influência maior de Ripley, junto, é óbvio, com Hitchcock, de cuja sombra o personagem não consegue desgrudar. Foi com a grana que ganhou pela história de Pacto Sinistro que Highsmith visitou Positano pela primeira vez, onde conheceu o protótipo de seu mítico escroque.

A quem já viu a minissérie não preciso explicar por que lhe daria, aqui, se pudesse, o título de O Gato por Testemunha.

Charmoso ou asqueroso, Tom Ripley é fascinante; veja análise comparativa entre livro, filme e série 

13/04/24

O Sol por Testemunha, Plein soleil, 1960, René Clément

O SOL POR TESTEMUNHA, por Clenio 

O SOL POR TESTEMUNHA (Plein soleil, 1960, Robert et Raymond Hakim, 118min) Direção: René Clément. Roteiro: René Clément, Paul Gégauff, romance "O talentoso Ripley", de Patricia Highsmith. Fotografia: Henri Decae. Montagem: Françoise Javet. Música: Nino Rotta. Figurino: Bella Clément. Direção de arte: Paul Bertrand. Produção: Raymond Hakim, Robert Hakim, Goffredo Lombardo. Elenco: Alain Delon, Maurice Ronet, Marie Laforêt, Billy Kearns, Erno Crisa. Estreia: 10/3/60

Em 1999, o cineasta e roteirista Anthony Minghella conquistou a crítica e o público com um suspense elegante, psicologicamente denso e interpretado com categoria por um elenco acima de qualquer suspeita que incluía Matt Damon, Jude Law e os oscarizados Philip Seymour Hoffman, Cate Blanchett e Gwyneth Paltrow. O filme, "O talentoso Ripley", era a adaptação quase fidelíssima de um romance policial clássico escrito pela mesma Patricia Highsmith que também legou ao cinema a história que inspirou Hitchcock e seu "Pacto sinistro", https://www.papodecinema.com.br/filmes/pacto-sinistro  e, conforme o sabiam os mais informados e saudosistas, a refilmagem de um dos filmes franceses mais famosos e admirados dos anos 60. Estrelado por um galante e sedutor Alain Delon no auge da beleza, "O sol por testemunha" agradou em cheio até mesmo a própria Highsmith - que lamentou apenas a solução final do roteiro, que altera o romance original em nome de uma suposta moralidade que contradiz praticamente todo o tom niilista da trama engendrada com malícia e inteligência.

A história de "O sol por testemunha" é, logicamente, a mesma do filme de Minghella, salvo algumas alterações óbvias como a ausência da milionária vivida por Cate Blanchett na versão anos 90, que não existe no livro e servia para complicar ainda mais a já confusa teia de mentiras contada pelo protagonista, Tom Ripley. Enquanto no filme estrelado por Matt Damon o roteiro explicava passo a passo as circunstâncias que levaram o protagonista até a Itália atrás de um jovem bon vivant procurado por seu milionário pai, a obra de René Clément já começa em plena ação, mostrando os dois jovens (vividos por Delon e Maurice Ronet, semelhantes fisicamente mas radicalmente diferentes em suas almas) levando uma vida regada a festas, bebedeiras e diversões noturnas. Ripley - que está na Europa pago pelo pai de seu amigo Philippe - é constantemente humilhado pelo rapaz, a quem admira na mesma medida que inveja e, em um nível menos consciente, também odeia. Testemunhando a forma agressiva e egoísta com que Philippe trata até mesmo a sua noiva, a escritora Marge (Marie Laforêt), Ripley - que tem um talento fora do comum para a fraude e a mentira - acaba por desencadear uma tragédia que o obriga a assumir a identidade de seu suposto amigo e, consequentemente, envolver-se em uma espiral de violência e mentiras.

É quase impossível comparar "O talentoso Ripley" e "O sol por testemunha". Ainda que dividam o mesmo DNA, os dois filmes tem ambições distintas, soluções visuais diferentes - apesar de Minghella parecer ter querido homenagear Clemént em alguns momentos específicos de sua realização - e seguem caminhos bastante opostos na visão que tem de seu protagonista. Enquanto Minghella usava e abusava do tom homoerótico latente entre os dois protagonistas masculinos, Clemént praticamente ignora esse viés, concentrando-se basicamente em uma quase aversão de Ripley a Philippe, em uma espécie de inveja que justifica seus atos, por mais torpes e cruéis que possam parecer à primeira vista. O Ripley de Alain Delon soa bem mais frio e calculista do que o interpretado por Matt Damon: sua ambição é mais nítida, sem ser diluída por sentimentos mais perdoáveis como o ciúme e o amor. E, por melhor ator que seja, Matt Damon jamais conseguirá ter o mesmo charme magnético de Alain Delon - e talvez por isso a versão francesa da história aposte tanto no olhar extremamente azul de Delon, combinando com a cor do mar onde se dá o clímax da trama.

"O sol por testemunha" ditou moda à época de seu lançamento, incrementando até mesmo a venda dos sapatos brancos usados por seu ator central. Atravessou gerações como um dos filmes de suspense mais charmosos e surpreendentes de seu tempo e hoje, mesmo em comparação com produções caras e repletas de astros mundialmente conhecidos, se mantém como um filme forte e atraente. Mérito da direção segura de René Clemént, da bela trilha sonora do veterano Nino Rota, da esplêndida fotografia do Mediterrâneo e da hipnotizante atuação de Alain Delon - fatores que atenuam o final quase moralista proposto pelo roteiro. Um pecadilho insignificante diante de um clássico (ainda) moderno.

14/04/24
Ran, 1985, Akira Kurosawa

Trailer

CRÍTICA | RAN, por RITTER FAN, 23 de agosto de 2018

Cachorros se voltam contra os donos que desistem da caça.
Arriscaria dizer, sem muito medo de errar, que Ran é o filme que contém as mais grandiosas cenas de batalhas já produzidas para o cinema. É bem verdade que há filmes clássicos inesquecíveis como Lawrence da Arábia e Uma Ponte Longe Demais ou obras modernas como Henrique V, O Resgate do Soldado Ryan e até mesmo O Retorno do Rei, que apresentam cenas maravilhosamente bem coreografadas, com milhares de extras e momentos dilacerantes.

Mas tudo empalidece diante do ataque ao Terceiro Castelo e o cerco às forças do outrora poderoso Lorde Hidetora Ichimonji (Tatsuya Nakadai). Nessa cena, toda ela com os efeitos sonoros reduzidos a zero, com apenas a bela trilha sonora de Toru Takemitsu marcando a tragédia, vemos a suprema atenção aos detalhes que pontilha a carreira de Akira Kurosawa. Cada quadro desse longo plano-sequência é preenchido metodicamente por uma coreografia nunca antes vista no cinema — e que nunca mais seria repetida, pelo menos até o momento em que escrevo essa crítica — demonstrando, ao mesmo tempo, o equilíbrio e jogo de poder entre os irmãos Taro (Akira Terao) e Jiro (Jinpachi Nezu), as traições inerentes a esse jogo e, principalmente, o inexorável caminho à loucura a que Lorde Hidetora é levado.

No entanto, Kurosawa não se contenta com essa lírica cena e trabalha a movimentação de tropas ao longo de todo o filme de maneira irretocável. Nenhum programa de computador simulando extras no set de filmagem pode repetir o que testemunhamos em Ran. São centenas e centenas de soldados em uniformes completos, agindo em uníssono em cenas pré-batalha e em aparente algazarra nas cenas de batalha em si. Digo aparente, pois cada detalhe foi coreografado pela equipe do diretor, sob os olhos mais do que atentos dele. Reparem como nada fica fora do lugar e como o trabalho de som é perfeito: os soldados de infantaria fazem barulhos peculiares de pedaços de armaduras batendo uns contra os outros e os soldados da cavalaria fazem barulhos condizentes com o roçar de placas e armas no dorso dos cavalos. Tudo funciona quase que literalmente como um majestoso e mortal balé.

Esse é o resultado, na verdade, do encontro de dois titãs das arte. O primeiro é William Shakespeare e o segundo, claro, é Akira Kurosawa. Não é a primeira vez que Kurosawa adapta Shakespeare, mas Ran é, certamente, sua adaptação mais fiel de uma peça do bardo inglês: Rei Lear. A história é extremamente cativante: um grande lorde (Hidetora), já idoso, resolve abdicar de seu trono e dividir seu reino entre seus três filhos. O mais velho teria o título do pai e o Primeiro Castelo e os demais, o Segundo e Terceiro Castelos, com as respectivas terras, e todos trabalhariam em conjunto em prol do reino. Hidetora manteria apenas sua guarda de 30 soldados e revezaria sua moradia no castelo de cada filho. Enquanto que Taro e Jiro, com suas palavras bajuladoras, aceitam a ideia, o filho mais novo,  Saburo (Daisuke Ryû) acha tudo uma insanidade e, com toda sua sinceridade e rispidez, pede ao pai para voltar atrás. Ao ser mal compreendido, Saburo acaba sendo deserdado e encontra abrigo com Lorde Fujimaki (Hitoshi Ueki). O resultado é o caos total (aliás, “ran” significa “revolta”, “rebelião”, “distúrbio”) e a vagarosa e extremamente dolorosa descendência de Hidetora à loucura.

Kurosawa estabelece toda a situação fazendo o magistral uso das já famosas cores de Ran. Cada filho tem uma cor. Taro é amarelo, Jiro é vermelho e Saburo é azul. As cores fortes e normalmente ligadas a calor, sangue, excitação e morte de Taro e Jiro contrastam com a cor mais pacífica e sábia de Saburo. Hidetora, por sua vez, veste o branco, a fusão de todas as cores. E, para reforçar a fusão, ele usa a metáfora da flecha, mostrando aos filhos que uma flecha sozinha pode ser quebrada facilmente, mas que três flechas juntas não. Acontece que Saburo, honesto e inteligente, usa o joelho como alavanca para quebras as três flechas, demonstrando que mesmo uma aparente solidez pode desaparecer de um momento para o outro.

E as cores funcionam, também, para guiar o espectador. Kurosawa tinha que lidar com três exércitos principais, mais a guarda pessoal de Hidetora e dois exércitos dos reinos vizinhos e a confusão seria grande demais se ele não criasse o contraste necessário, especialmente se considerarmos que o filme quase não tem close-ups, apenas planos abertos e distantes.

Mas o diretor, que também co-escreveu o filme, não contente com a já complexa trama formada, ainda traz elementos externos à narrativa clássica de Rei Lear. O primeiro deles é a brutalidade passada de Hidetora. O que sentimos pelo velho lorde é compaixão, pena mesmo. No entanto, Kurosawa aos poucos revela como Hidetora alcançou a paz na região: queimando castelos, matando famílias e cegando crianças. Nesse ponto, o diretor passa a brincar com nossos sentimentos o que nos faz indagar se ele queria mesmo que sentíssemos pena ou raiva do idoso senhor. A resposta é simples. Kurosawa queria que entendêssemos que nada é preto ou branco. A vida é composta de tons de cinza, mesmo que vistamos roupas coloridas e alegres.

O outro elemento que Kurosawa traz para a estrutura de seu Rei Lear é, na verdade, outra criação shakespeariana: a figura de Lady Mcbeth, travestida de esposa de Taro, Lady Kaede (Mieko Harada). Movida por sentimentos de vingança, Lady Kaede precipita situações indizíveis, contribuindo ainda mais para a já inevitável tragédia que vemos desenrolar na tela. Mas, também como Hidetora, há uma dubiedade em suas ações. Seriam elas justificadas? Fica para o espectador decidir.

E as atuações de Tatsuya Nakadai como Hidetora e Mieko Harada como Lady Kaede são irretocáveis. Nakadai, então com apenas 53 anos, faz convincentemente um senhor de 70 que, paulatinamente, vai ficando mais velho e mais enlouquecido. Há muita teatralidade em sua atuação, especialmente durante sua queda final aos rincões da insanidade, mas acreditamos no personagem, algo em que somos ajudados pelo fenomenal trabalho de maquiagem, semelhante ao estilo que vemos em Dodeskaden. Harada, por seu lado, é a encarnação do mal, da loba em pele de cordeiro. Mas ela faz seu papel naturalmente, quase sem esforço, o que nos faz ter mais raiva ainda de suas ordens, gritos e maquinações. É um daqueles personagens que dá vontade de entrar na tela para socar. Seja pelas belíssimas batalhas coreografadas por Kurosawa, seja pela intensidade dos sentimentos que o filme faz aflorar, Ran é uma obra inesquecível e essencial para qualquer cinéfilo que se preze.

16/04/24
Audácia dos Fortes, Singing Guns, 1950, R.G. Springsteen

No iutubi aqui 

Rhiannon é um fora-da-lei que frequentemente está envolvido em assaltos a carregamentos de ouro. Certa vez, quando vai roubar uma carruagem, acaba acertando um tiro no xerife e decide levá-lo ao médico. Este decide limpar a barra do bandido e o apresenta ao xerife como o homem que lhe salvou a vida. Como agradecimento, Rhiannon é nomeado representante do xerife, mas entra em conflito com sua nova vida e a possibilidade de planejar um novo assalto.

17/04/24
Obrigado a Matar, A Lawless Street, 1955, Joseph H. Lewis

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OBRIGADO A MATAR (A LAWLESS STREET), 1955 – DESAFIOS PARA RANDOLPH SCOTT, 10 de agosto de 2018  

Randolph Scott atuou em dois westerns dirigidos por Joseph H. Lewis, o cultuado diretor dos policiais “Mortalmente Perigosa” (1950) e “Império do Crime” (1955). O outro filme de Scott com Lewis foi “O Fantasma do General Custer” (7th Cavalry), de 1956 e o veterano cowboy não teve muita sorte nessa parceria pois os melhores faroestes de Joseph H. Lewis são “Ódio Contra Ódio” (The Halliday Brand) e “Reinado do Terror” (Terror in a Texas Town), respectivamente de 1957 e 1958, sendo que este último marcou sua despedida como diretor de longa-metragens. Lewis se iniciou dirigindo os mocinhos ‘Wild’ Bill Elliott e Johnny Mack Brown em westerns da Columbia e Universal e aos 50 anos de idade, após ter sofrido um ataque cardíaco, se bandeou para a televisão, passando a dirigir séries de TV. Nada menos que 51 episódios de “O Homem do Rifle” foram por ele dirigidos. No entanto Joseph H. Lewis conseguiu neste “Obrigado a Matar” algo não muito comum que era ver Randolph Scott atuando com maior boa vontade e empenhado até mesmo em participar de uma luta corporal contra o gigante Don Megowan, numa das melhores sequências deste western.

Delegado marcado para morrer 

A história original teve o título “The Marshal of Medicine Bend”, foi escrita por Brad Ward e roteirizada por Kenneth Gamet. Não confundir com “Shoot-Out at Medicine Bend” (No Rastro dos Bandoleiros), que Randolph Scott filmaria ao lado de James Garner em 1957. A ação deste “Obrigado a Matar” também se passa na cidade de Medicine Bend onde Calem Ware (Randolph Scott) é o delegado. Hamer Thorne (Warner Anderson) e Cody Clark (John Emery) são dois influentes comerciantes da cidade que com a iminente exploração de minério pretendem dominar Medicine Bend. Para isso precisam eliminar o íntegro delegado e contratam um pistoleiro que tenta matá-lo mas acaba morto pelo homem da lei. Chega então à cidade a artista Tally Dickenson (Angela Lansbury) a quem Hamer Thorne quer desposar sem saber que Tally ainda é casada com o delegado. Tally espera que seu marido abdique do cargo mas ao invés disso seu marido se vê obrigado a enfrentar Harley Baskam (Michael Pate), outro pistoleiro contratado para assassiná-lo. No confronto entre ambos Baskam é morto enquanto Thorne acidentalmente mata seu sócio Clark. A população da cidade se une e prende Thorne, com Calem e Tally indo embora de Medicine Bend.

Tramas amorosas

Um dos mais influentes westerns de todos os tempos foi “Matar ou Morrer” (High Noon) e este faroeste é mais um a mostrar um xerife acuado entre o dever e uma decisão pessoal. Para alterar um pouco o cenário a esposa agora é uma dançarina que insiste para que o marido mude de vida deixando o distintivo e o revólver de lado. A história se anuncia interessante porque há um triângulo amoroso formado pelo conquistador Hamer Thorne e a bela Cora Dean (Jean Parker) que com Thorne traía o marido. Forma-se então um segundo triângulo pois Tally, cortejada pelo mesmo Thorne perde as esperanças de reaver o marido delegado. Raros westerns entrelaçam temas como esses, mais comuns aos dramas urbanos, com a defesa da lei e da ordem. Porém, à medida que a trama se desenvolve prevalece a ação deixando de lado as intrigas amorosas. O que é aceitável pois este é um filme com meros 78 minutos, metragem típica dos ‘double features’, os complementos das sessões duplas dominantes à época. Mas a mudança brusca de rumo torna “Obrigado a Matar” um faroeste comum e é quando o homem da lei enfrenta o temível pistoleiro que o filme decai.

Duelos decepcionantes

Calem Ware é avisado do perigo pela cozinheira Molly (Ruth Donnelly) e a comunicação se faz de modo cômico com a simpática velha senhora batendo no teto com uma vassoura. O delegado já sabe que terá que enfrentar alguém que quer acertar contas com ele, coloca o cinturão, o lenço no pescoço, tudo num ritual e vai tranquilamente fazer a barba, deixando exposto seu revólver dependurado numa displicência imperdoável. O pistoleiro percebe e tenta atirar em Calem Ware que preparara a armadilha e é mais rápido com a Deriger que tinha escondida sobre a toalha. Essa excelente sequência contrasta com o segundo desafio que o delegado enfrenta, que tem início com as mesmas divertidas batidas de Molly no teto com a vassoura. Joseph E. Lewis se notabilizou pelo apuro cênico com enquadramentos diferentes mesmo em filmes de baixo orçamento. Ao colocar frente a frente o novo pistoleiro Harley Baskam e o delegado, este demora uma eternidade para sacar, chegando mesmo a dar a impressão de, propositalmente, permitir ser abatido, sequência que deixa bastante a desejar. Mesmo o segundo confronto entre os dois é inconvincente pois o pistoleiro que alardeava experiência e frieza esvazia o tambor de seu revólver mesmo sem ver o opositor. Aquelas que poderiam ter sido as grandes sequências do filme são frustrantes.

A cidade corajosa

Se em “Matar ou Morrer” o delegado Will Kane luta solitariamente contra o quarteto que quer matá-lo, em “Obrigado a Matar”, ao final, a cidade se enche de brio e impede a fuga de Thorne, num mal explicado pundonor. Isso não impede Calem Ware de deixar a cidade ao lado da esposa, não sem antes fazer um altruístico discurso louvando a coragem daqueles que até então não demonstravam bravura alguma. Calem entende que, agora sim, Medicine Bend está pronta para se defender sem sua ajuda e diferente de Will Kane não atira o distintivo no chão, apenas o devolve educadamente. O australiano Michael Pate é quem interpreta Harley Baskam, ele que em muitos filmes se mostrou bom ator. Mas chega a ser irritante como o afetado pistoleiro em mais uma cópia sofrível do Jack Wilson criado por Jack Palance em “Shane” (Os Brutos Também Amam).

Luta renhida

Chama a atenção também neste western a presença de três mulheres no elenco, excetuada a referida cozinheira Molly. A conhecida Jean Parker, de tantos bons momentos no cinema, é a esposa adúltera que afinal se arrepende e se reconcilia com o marido; a excelente Jeanette Nolan aparece em pequena participação e bem que poderia ser melhor aproveitada; a leading-lady de Randolph Scott é Angela Lansbury que consegue a proeza de ser beijada por ele no filme. Já fora da MGM onde esteve sob contrato por muitos anos, a atriz é acentuadamente mais jovem que Scott e interpreta uma esfuziante dançarina de saloon que quer a todo custo voltar a ser apenas dona-de-casa. Os roteiristas sempre constroem as histórias de forma a que Scott seja, quase sempre, um viúvo e desta vez pouco se preocuparam com a coerência. O ponto alto deste faroeste é a renhida luta travada entre Randolph Scott e Don Megowan, encenação extremamente convincente ainda mais levando-se em conta que em boa parte desse embate o veterano cowboy dispensa o dublê, o que é pouco usual. “Obrigado a Matar” é um filme que poderia ter sido muito melhor mas acaba sendo um faroeste mediano na extensa lista de westerns de Randolph Scott e nenhum brilho acrescenta à filmografia de Joseph H. Lewis.

18/04/24
O Regime, The Regime, Minissérie de televisão, 2024, Stephen Frears & Jessica Hobbs
Criação: Will Tracy

O Regime: minissérie com Kate Winslet ganha novo teaser e data de estreia na HBO Max
A nova produção original, O Regime ganhou seu segundo teaser nesta quarta-feira (20); título estreia no catálogo da HBO Max em março de 2024Estrelada por Kate Winslet (de Titanic), a produção também ganhou data de estreia no catálogo do serviço de streaming: 3 de março de 2024.
O novo título original da HBO é dirigido por Stephen Frears (de Ligações Perigosas) e Jessica Hobbs (de Resposta à Bala). Criada por Will Tracy (de O Menu e Succession), a sátira política traz Winslet no papel de uma Chanceler que comanda um país fictício da Europa. A trama gira em torno de um regime autoritário no país, que faz com que os governantes percam seus poderes de maneira gradativa.

25/04/24
Xógun: A Gloriosa Saga do Japão, Shôgun, Minissérie de televisão, 2024, Frederick E.O. Toy &Jonathan van Tulleken

Série para inglês ver
XÓGUM entre altos e (muitos) baixos | Crítica da série