segunda-feira, 23 de maio de 2011

Loser

Carlos é um professor universitário em fim de carreira. Foi casado três vezes e teve alguns casos amorosos com algumas mulheres. Considera-se um perdedor na vida. Foi comunista orgânico, militante sindical e por um bom tempo lutou por uma concepção de universidade democrática, socialmente comprometida e competente. Porque perdedor? Perdedor porque o Brasil continua esta droga malhada de sempre, com seu eterno IDH na casa dos 70. E a universidade para ele representa, hoje, muito pouco do que lutou durante anos. Continua burocrática em todos os níveis, com dirigentes carreiristas e incompetentes, com a meta apocalíptica e colonizada do "publish or disappear".

Carlos se considera um perdedor, mas não um fracassado. Não fracassado em termos. Daqueles casos amorosos dois gostaria de esquecer. Apagar da memória.
Memória: com a palavra Umberto Eco no belo livro "A misteriosa chama da rainha Loana", Record, 2005.
Temos dois tipos de memória: uma se chama implícita e a outra explícita. A memória implícita nos permite executar sem esforço uma série de coisas que aprendemos como escovar os dentes e ligar o rádio. Quando a memória implícita nos ajuda, não temos nem consciência de que recordamos. Agimos automaticamente.

A memória explícita é aquela com a qual recordamos e sabemos que estamos recordando. Esta memória se divide em duas: a semântica e a episódica ou autobiográfica. A semântica é a memória coletiva, aquela através da qual se sabe que uma andorinha é um pássaro e que os pássaros voam e têm penas e que Napoleão morreu em 1821. Ela se forma quando criança. A criança aprende rapidamente a reconhecer uma máquina, ou um cão, e a formar esquemas gerais. Portanto se viu um pastor alemão uma vez ela dirá cachorro mesmo quando vir um labrador.

A memória episódica ou autobiográfica estabelece um nexo entre o que somos hoje e o que fomos, senão, quando disséssemos eu, estaríamos nos referindo apenas àquilo que sentimos agora, não ao que sentíamos antes.

Carlos gostaria de apagar algumas memórias episódicas.

O cinema já mostrou algumas experiências sobre desaparecer com memórias indesejadas ou necessárias. Cito dois filmes:
O pagamento(Paycheck) de John Woo / Philip K. Dick em que um engenheiro de software (Ben Affleck) permite que a cada serviço sua mente seja localmente apagada por motivos de sigilo industrial. É mais uma idéia genial de Philip K. Dick.
O outro filme: Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind) de Michel Gondry / Charlie Kaufman. Neste filme Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) formavam um casal que durante anos tentaram fazer com que o relacionamento entre ambos desse certo. Desiludida com o fracasso, Clementine decide esquecer Joel para sempre e, para tanto, aceita se submeter a um tratamento experimental, que retira de sua memória os momentos vividos com ele.

Carlos decidiu agir. Viajou para São Paulo com o fim de se submeter a um tratamento que apagasse algumas memórias indesejadas. Foi para a clínica de um neurocirurgião de nome Pedro Kaufman. Ele estudou com o neurocientista André Fenton da Universidade Estadual de Nova York. O tratamento consiste em injetar uma substância de nome ZIP que destrói entre os neurônios as conexões responsáveis por partes da memória.

Carlos pediu que apagassem de sua memória os dois casos amorosos que teve com as mulheres, os seus fracassos. E de sobra pediu também que apagasse os "arquivos" referentes às reuniões que participou em seu departamento na universidade onde trabalha. O tratamento foi realizado com êxito.

Depois do acontecido Carlos recebeu uma ligação no celular. Era uma mulher chamada Francisca.

- Ei, Carlos, tudo bem? É a Francisca. Que tempo, heim!

- Francisca? Respondeu Carlos

- Sim, Francisca. Lembra de mim não?

- Lembro não. Acho que nunca vi ou conheci uma mulher com este nome.

- Carlos, é a Quica que você carinhosamente me chamava. Tivemos aqueles dois anos de um belo e tórrido caso. Você quase não saia do meu apartamento.
Carlos não entendeu nada. Tórrido caso. Eu heim! Esta mulher é maluca, pensou.

- Francisca, não estou entendendo nada do que você está dizendo, desculpe.

Francisca já nervosa responde.

- Olha aqui seu babaca vai à merda. E desligou o telefone.

Carlos ficou revoltado com a grosseria daquela mulher.
Pô, não conheço e nem sei de onde veio e desliga o telefone na minha cara? Espera aí, tenho que dar o troco e rapidinho liga de volta.

- Francisca, estou sendo sincero contigo, quando digo que não te conheço e nunca te vi é verdade.
E Carlos teve a resposta final.

- Ô cara, vá para puta que te pariu.

Mas Carlos se vingou. Antes do... te pariu, desligou o celular.

E continuou sem entender coisa alguma da conversa.


"O passado é indestrutível. Mais cedo ou mais tarde as coisas retornam… e uma delas é o plano de destruir o passado" Jorge Luis Borges



Edson Pereira Cardoso

Setembro de 2010



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