Hoje o brasileiro começa a viver sob a égide de um governo o qual escolheu livre e democraticamente. Sobre o presidente empossado recai o ônus de fazer jus à função.
O movimento que culminou com esse resultado teve como bandeira o "fim da corrupção", grito de guerra que o brasileiro costuma bradar enquanto bate panelas e sonha em viver em Coconut Grove.
Dos descalabros de Olavo de Carvalho à indicação do juiz Moro para o Ministério da Justiça, passando pelos escândalos de desvios de verbas envolvendo o filho do presidente, o grito anticorrupção vai deixando seu rastro de efeitos paradoxais e surdez seletiva, mostrando que o discurso recém-eleito, de tão velho, se confunde com as origens do país.
A brutal invasão lusitana no continente americano —conhecida pelo eufemismo de "descobrimento do Brasil"— foi seguida da escravização e quase extermínio do povo indígena que já vivia aqui, da subsequente deportação de africanos em condições inenarráveis e da posterior migração de proletários europeus e asiáticos para trabalhar em lavouras e fábricas desumanas. Aqui a miscigenação se fez por vias violentas e oportunistas, que deram origem a um povo sobrevivente, que luta incessantemente contra sucessivas formas de escravidão, nunca inteiramente superadas.
Passados cinco séculos, a luta pelos direitos civis no Brasil mal começou a engrenar e já se vislumbra seu retrocesso em dois sentidos: da perda de direitos por força de leis nefastas, da perda de consciência social pelo apagamento da história. Há muito a fazer quanto a ambos, resistindo e insistindo, se quisermos estar à altura dos que nos antecederam.
No filme "Infiltrado na Klan" de Spike Lee, um personagem só se reconhece judeu a partir do contato com o discurso racista que ouve dos integrantes da Klu Klux Klan. Algumas declarações como "o quilombola de tão gordo não serve nem para procriar" ou "o índio não merece um centímetro de terra demarcada", de tão assustadoras e absurdas, podem servir também para nos lembrar quem somos.
Não é a toa que escolas têm sido alvo de perseguição, pois nelas se levantam questões sobre a identidade nacional e as causas estruturais da violência. No momento que se pretende tratar o tema à bala, ao invés de investir na diminuição da desigualdade que o fomenta, refletir sobre o país soa subversivo.
Aviso aos navegantes de naus tardias que insistem em aportar no Brasil: a truculência tem sido usada há séculos e só gerou mais instabilidade social. Haja vista a sucessão interminável de revoltas na história de nosso povo nada cordial, brilhantemente resgatadas nos textos de Lilia Schwarcz e demais autores de sua geração.
A pergunta que não quer calar hoje é se caberemos todos nesse país ou se continuaremos a sonhar com muros altos e carros blindados na esperança de evitar a violência que supomos vir de fora. Fomenta-se aquilo mesmo que se imputa ao povo, apelidado de "povinho", fingindo existir igualdade de condições entre cidadãos que vivem realidades gritantemente diversas.
A violência que aqui impera não é fruto de uma população pior, mas de condições pioradas de sobrevivência do cidadão comum. Sigamos o exemplo dado pela Livraria da Travessa, que sobrevivendo à assustadora crise do setor livreiro, abarrota suas vitrines com a Constituição Brasileira comentada. Nada mais oportuno, quando a dita Constituição parece mais e mais ameaçada a cada anúncio de um novo ministério. Insistamos.
Vera Iaconelli, 01/01/2019
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2019/01/sob-velha-direcao.shtml 01/01/2019
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