segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Brumadinho: crime anunciado


'Desastre de Brumadinho deve ser investigado como um crime', diz ONU
O rompimento da barragem de Brumadinho deve ser investigado como "um crime", afirmou à BBC News Brasil o relator especial das Nações Unidas para Direitos Humanos e Substâncias Tóxicas, Baskut Tuncak.
"Esse desastre exige que seja assumida responsabilidade pelo o que deveria ser investigado como um crime. O Brasil deveria ter implementado medidas para prevenir colapsos de barragens mortais e catastróficas após o desastre da Samarco de 2015", disse Tuncak, em referência à tragédia de Mariana.

Segundo o relator da ONU, as autoridades brasileiras deveriam ter aumentado o controle ambiental, mas foram "completamente pelo contrário", ignorando alertas da ONU e desrespeitaram os direitos humanos dos trabalhadores e moradores da comunidade local.
"Os esforços contínuos no Brasil para enfraquecer as proteções para comunidades e trabalhadores que lidam com substâncias e resíduos perigosos mostram um desrespeito insensível pelos direitos das comunidades e dos trabalhadores na linha de frente", disse o especialista.

Até o momento foram confirmadas 58 mortes, das quais 19 corpos foram identificados. Pelos menos 305 vítimas seguem desaparecidas.
Tuncak ponderou que a "investigação ainda está em andamento" e que por isso a ONU ainda não pode "comentar sobre as lacunas específicas de proteção" para apontar conclusivamente quais erros levaram à tragédia de Brumadinho, mas ressaltou que a postura brasileira é particularmente "preocupante".
"É particularmente preocupante que especialistas ambientais e membros da comunidade local tenham expressado preocupação sobre o potencial de rompimento do barragem de rejeitos" e que o Brasil tenha ignorado esses alertas, avaliou Tuncak.
"O Brasil deveria ter, muito antes, assegurado o monitoramento efetivo da barragem, incluindo registros robustos da toxicidade e outras propriedades do material sendo descartado, implementado sistemas de alerta precoce para evitar a perda de vida e contaminação no caso da barragem se romper", disse.
"Nem o governo nem a Vale parecem ter aprendido com seus erros e tomado as medidas preventivas necessárias após o desastre daSamarco", criticou.

Alerta sem resposta

De acordo com as Nações Unidas, em julho de 2018, cinco Relatores Especiais da ONU e um Grupo de Trabalho do Conselho de Direitos Humanos expressaram ao governo brasileiros preocupação com a situação ambiental da mineração no país.
Eles temiam que o Brasil não tivesse tomado medidas adequadas para fornecer uma solução eficaz ao descaso que resultou no desastre da Samarco – companhia que tem como donas a mesma Vale e a a anglo-australiana BHP.
Em resposta, o governo não indicou quais medidas práticas estavam sendo implementadas para evitar a recorrência de uma tragédia como a que atingiu Mariana naquele ano.
À BBC Brasil, a ONU informou que o governo brasileiro ignorou solicitações de visita feitas pelos relatores especiais. "O Sr. Tuncak solicitou repetidamente um convite do Brasil para visitar o país e Minas Gerais, em especial, para avaliar as medidas tomadas pelo governo e empresas para proteger os Direitos Humanos de tais desastres catastróficos. (…) Ele não recebeu sequer uma resposta às solicitações de convite."

As últimas cartas enviadas pelo relator foram protocoladas em 7 de agosto e 7 de dezembro de 2018. A tentativa derradeira foi enviada cerca de seis semanas antes da tragédia.
O relator também expressou preocupação com a situação enfrentada por defensores do meio ambiente, trabalhadores e comunidades que tentam defender seus direitos frente à indústria da mineração.
"Estou profundamente preocupado com relatos de que o governo estaria tentando deslegitimar os defensores ambientais como sendo uma suposta ameaça econômica, ou uma conspiração estrangeira", afirmou.
"O governo deveria proteger esses defensores e respeitar seu direito à liberdade de expressão e de associação, valorizando a contribuição essencial que eles fazem para promover o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos", reforçou.

Tragédia anunciada

Tuncak questionou a previsibilidade da tragédia, porque a instalação dos trabalhadores foi construída em um local evidentemente vulnerável. "É questionável porque onde a instalação para os trabalhadores foi construída estava abaixo da barragem de rejeitos, considerando a clara existência de tal risco (de rompimento)."
"Os números chocantes daqueles encontrados mortos e desaparecidos apontam que este é um dos piores desastres da indústria de mineração na história. O que é particularmente notório é a aparente falta de medidas preventivas tomadas pelo governo e pela empresa ao longo de três anos após o desastre da Samarco", disse.

Tuncak ressaltou que já em 2012 a ONU havia preparado um relatório sobre o tema da mineração e do risco das barragens de rejeitos, mas que a indústria da mineração parece insensível aos apelos por maior sustentabilidade.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que monitora globalmente acidentes de trabalho, "esse é o pior desastre de barragem de rejeito da década".

A organização não forneceu estatísticas específicas sobre as tragédias mais mortais, porém afirmou à BBC News Brasil que já houve no passado tragédias superiores à de Brumadinho.
Em 2004 o Brasil ratificou a convenção da OIT de 1995 para "segurança e saúde nas minas". Apesar da conformidade com os tratados internacionais, segundo Tuncak são "inúmeros" os casos de impunidade, "onde pouca ou nenhuma responsabilidade é encontrada", diz.

De acordo com o relator, os moradores das regiões exploradas raramente são beneficiados pela operação extrativista. "Os benefícios econômicos dessas indústrias dificilmente são compartilhados com as comunidades sujeitas a abusos de seus direitos, devido à poluição tóxica e outras formas de degradação ambiental."

"O setor de mineração tem uma longa história de abusos dos direitos humanos a partir dos riscos e conflitos inerentes que cria. O legado tóxico dos projetos de mineração em todo o mundo – incluindo o catastrófico colapso de barragens de rejeitos – impacta os direitos humanos à vida, à saúde, ao trabalho seguro, à água potável, aos alimentos, e a um ambiente saudável", resume.
Segundo ele, o Brasil precisa "garantir que suas leis, políticas e práticas" respeitem os direitos das comunidades e trabalhadores que enfrentam "riscos tão graves"."O Brasil não pode retroceder em sua obrigação de proteger os direitos dos trabalhadores e comunidades locais, que continuam a enfrentar riscos excessivos devido à mineração e outras indústrias extrativas" defendeu.

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/desastre-de-brumadinho-deve-ser-investigado-como-um-crime-diz-onu.shtml  28/01/2019

Cayahuari Yacu, the jungle Indians call this country, the land where God did not finish Creation. They believe only after man has disappeared will He return to finish His work. (do filme Fitzcarraldo, 1982)


'Temos uma bomba relógio nas mãos', alerta especialista em gestão de recursos hídricos

Malu Ribeiro ressalta que modo de construção de barragem de Brumadinho já não é mais usado em vários países e que novo Código de Mineração pode ser danoso ao meio ambiente
RIO — Especialista em gestão de recursos hídricos, Malu Ribeiro não descarta a possibilidade do rompimento de novas barreiras, como em Mariana, em 2015, e Brumadinho . Em entrevista ao GLOBO, a coordenadora do Programa Rede das Águas da SOS Mata Atlântica critica o novo Código de Mineração, que, segundo ela, pode fazer o país retroceder em décadas sua política de preservação ambiental no setor, e lembra que Minas Gerais, palco dos dois episódios, tem mais de 400 barragens e a nascente de alguns dos principais rios brasileiros — uma combinação explosiva, caso a lama atinja bacias hidrográficas e lençóis freáticos.

O que provocou o rompimento da barragem de Brumadinho?

É uma tragédia ligada a múltiplos fatores. Um deles é a defasagem dos relatórios da Agência Nacional de Águas (ANA). O mais recente, de 2017, não lista a barragem como uma estrutura de alto risco, mesmo diante de sua proximidade à Bacia do Rio Paraopeba, que abastece mais de 34 municípios. Outra razão foi o gradual desmonte da política ambiental, que começou ainda no governo Lula, quando Dilma Rousseff foi para a Casa Civil. Um dos serviços mais afetados foi o sistema de gerenciamento hídrico.  Depois, Temer enfraqueceu ainda mais a ANA.

Como o desgaste das barragens é tratado por Bolsonaro?

O presidente fez sua campanha prometendo flexibilizar a legislação ambiental, definindo licenciamentos como entraves onerosos. Prova disso é que o ministro do Meio Ambiente foi o último escolhido a ser escolhido e a pasta perdeu muitas atribuições, entre elas a gestão da ANA, que foi transferida para o novo Ministério do Desenvolvimento Regional, que é mais voltado a questões como saneamento básico e irrigação do que ao controle de barragens. Além disso, as multas são cada vez mais contestadas pelo próprio governo e perdem seu caráter corretivo.

Qual é a diferença entre este episódio e o rompimento da barragem de Mariana, em 2015?

Em Brumadinho, o volume de lama é menor do que em Mariana: são 14 milhões de metros cúbicos, e na tragédia anterior foram 49 milhões de metros cúbicos. Dessa vez, no entanto, a lama é mais sólida e densa, como uma lava vulcânica, aumentando o potencial de contaminação do ecossistema. Em Mariana foi um tsunami, em que os sedimentos se espalharam a até 100 km/h. Aqui, a velocidade não passa de 50 km/h, mas os lençóis freáticos logo serão atingidos, e isso vai piorar se chover.

Há, então, um risco de contaminação de nascentes?

Sim. É importante ressaltar que Minas Gerais tem 400 barragens e as nascentes das principais bacias hidrográficas do país, como o sistema Cantareira, o Rio Doce, o Paraíba do Sul. Qualquer prejuízo a esta região pode afetar quase 70% dos recursos hídricos do território brasileiro. O estado foi, por cinco anos, recordista de desmatamento, em levantamento da SOS Mata Atlântica, devido à atividade minerária, e todos sofreram com a queda de qualidade da água.

A Câmara dos Deputados está discutindo uma nova versão do Código de Mineração, que traria regras mais rígidas para as empresas que atuam no setor. A lei será capaz de evitar novas tragédias?

Devemos aproveitar a oportunidade para manter o texto engavetado. É um Código de Mineração feito por mineradores, que alegam que já pagam uma alta carga tributária e, por isso, devem ficar isentos do fornecimento de seguros e da reposição de danos a comunidades atingidas.
As barragens de Brumadinho e Mariana foram construídos com o método de alteamento a montante, em que cada novo "degrau" da estrutura é feito com rejeito arenosos e águas que estão presentes ali.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) chegou a considerá-lo como "não recomendável". Por que, então, ainda é usado?

Vários países do mundo não fazem mais esta operação. Usa-se material concreto, não úmido, garantindo a sustentação da barragem. Mas a indústria faz lobby para que o método de alteamento a montante continue valendo, porque é o mais barato.

Novas tragédias como Brumadinho e Mariana podem ocorrer?

Sim. Temos uma bomba relógio nas mãos. A boa notícia é que contamos com ferramentas técnicas e institucionais para desmontá-las. Para isso, deve-se evitar o enfraquecimento de órgãos ambientais. Já temos  uma legislação de Primeiro Mundo, mas que não é posta em prática. Pelo contrário, está sendo revista de uma maneira que, se for aprovada, vai nos jogar de volta aos anos 60. Não vamos inventar a roda. Só cobrar aquilo que já está escrito.

De onde virá a verba necessária para evitar o rompimento de outras estruturas?

Dá para fazer muita coisa com os recursos provenientes de multas aplicadas a empresas como Samarco e Vale. No entanto, prevalece uma sensação de impunidade. Já se passaram três anos desde Mariana e ninguém respondeu criminalmente pelo rompimento da barragem. Mais de 90% do Rio Doce está morto. As famílias atingidas não foram indenizadas.

Renato Grandelle, 28/01/2019 O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/temos-uma-bomba-relogio-nas-maos-alerta-especialista-em-gestao-de-recursos-hidricos-23409316       29/01/2019


terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Sob velha direção

Discurso recém-eleito (Jair Bolsonaro) se confunde com as origens do país

Hoje o brasileiro começa a viver sob a égide de um governo o qual escolheu livre e democraticamente. Sobre o presidente empossado recai o ônus de fazer jus à função.
O movimento que culminou com esse resultado teve como bandeira o "fim da corrupção", grito de guerra que o brasileiro costuma bradar enquanto bate panelas e sonha em viver em Coconut Grove.

Dos descalabros de Olavo de Carvalho à indicação do juiz Moro para o Ministério da Justiça, passando pelos escândalos de desvios de verbas envolvendo o filho do presidente, o grito anticorrupção vai deixando seu rastro de efeitos paradoxais e surdez seletiva, mostrando que o discurso recém-eleito, de tão velho, se confunde com as origens do país.

A brutal invasão lusitana no continente americano —conhecida pelo eufemismo de "descobrimento do Brasil"— foi seguida da escravização e quase extermínio do povo indígena que já vivia aqui, da subsequente deportação de africanos em condições inenarráveis e da posterior migração de proletários europeus e asiáticos para trabalhar em lavouras e fábricas desumanas. Aqui a miscigenação se fez por vias violentas e oportunistas, que deram origem a um povo sobrevivente, que luta incessantemente contra sucessivas formas de escravidão, nunca inteiramente superadas.

Passados cinco séculos, a luta pelos direitos civis no Brasil mal começou a engrenar e já se vislumbra seu retrocesso em dois sentidos: da perda de direitos por força de leis nefastas, da perda de consciência social pelo apagamento da história. Há muito a fazer quanto a ambos, resistindo e insistindo, se quisermos estar à altura dos que nos antecederam.

No filme "Infiltrado na Klan" de ​Spik​e Lee, um personagem só se reconhece judeu a partir do contato com o discurso racista que ouve dos integrantes da Klu Klux Klan. Algumas declarações como "o quilombola de tão gordo não serve nem para procriar" ou "o índio não merece um centímetro de terra demarcada", de tão assustadoras e absurdas, podem servir também para nos lembrar quem somos.

Não é a toa que escolas têm sido alvo de perseguição, pois nelas se levantam questões sobre a identidade nacional e as causas estruturais da violência. No momento que se pretende tratar o tema à bala, ao invés de investir na diminuição da desigualdade que o fomenta, refletir sobre o país soa subversivo.

Aviso aos navegantes de naus tardias que insistem em aportar no Brasil: a truculência tem sido usada há séculos e só gerou mais instabilidade social. Haja vista a sucessão interminável de revoltas na história de nosso povo nada cordial, brilhantemente resgatadas nos textos de Lilia Schwarcz e demais autores de sua geração.

A pergunta que não quer calar hoje é se caberemos todos nesse país ou se continuaremos a sonhar com muros altos e carros blindados na esperança de evitar a violência que supomos vir de fora. Fomenta-se aquilo mesmo que se imputa ao povo, apelidado de "povinho", fingindo existir igualdade de condições entre cidadãos que vivem realidades gritantemente diversas.

A violência que aqui impera não é fruto de uma população pior, mas de condições pioradas de sobrevivência do cidadão comum. Sigamos o exemplo dado pela Livraria da Travessa, que sobrevivendo à assustadora crise do setor livreiro, abarrota suas vitrines com a Constituição Brasileira comentada. Nada mais oportuno, quando a dita Constituição parece mais e mais ameaçada a cada anúncio de um novo ministério. Insistamos.

Vera Iaconelli, 01/01/2019
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2019/01/sob-velha-direcao.shtml 01/01/2019