Fábio Campos
“Today, tomorrow, and yesterday, too. The flowers are dyin’ like all things do” Bob Dylan
A pandemia do coronavírus nos deslocou repentinamente para um estado de choque e desterro típicos de guerra, em que o uso da palavra colapso passou a ser difundido de maneira deliberada. Poucas vezes na história recente, ou de nossas gerações, presenciamos algo com tamanha gravidade no sentido dos acontecimentos, daí o senso comum procurar significados no passado, sejam no espectro sanitário como a Peste Negra (1347-1353) e a Gripe Espanhola (1918-1920); sejam na economia e suas implicações sociopolíticas como na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou nas Crises de 1929, 1973 e 2008. Do ponto de vista pessoal, de uma hora para outra, nos vimos confinados em nossos lares diante de inúmeras incertezas, inclusive em relação à própria sobrevivência. Porém, em muitos meios educacionais buscam-se manter a normalidade na forma de ensino à distância implementado às pressas, quando um abismo existencial se abre abaixo de nossos pés. Em outros, tentam manter a engrenagem da produção e dos serviços por desumanas formas de transporte, home office e delivery. Ao embalarem-se por “ressignificações”, “simbolismos”, “subjetividades”, “novas narrativas”, “pós-isso ou pós-aquilo”, também os modismos do pensamento neoliberal denotam ainda o elevado nível de alienação que nos acomete diante das desventuras do capital.
Em sintonia com a diária contagem de cadáveres e do falecimento da produção e do consumo capitalista que impõe uma explosão planetária do desemprego e da precarização da vida dos mais miseráveis, estamos no Brasil sob a vigência de um governo que significa a última geração na gestão do neoliberalismo, ao desconhecer qualquer escrúpulo de representação democrática burguesa em nome da manutenção dos mais variados negócios das classes dominantes que o apoiam. Na pior crise sanitária do século, temos a mais atroz representação governamental brasileira da classe dominante, o que denota a intersecção de dois vetores da mesma realidade: os limites civilizacionais do modo de produção capitalista e sua expressão universal bárbara com a experiência brasileira.
Antes do vírus, no entanto, já havia a combinação de duas crises em nossa regressão civilizacional. Por de trás de duvidosas projeções de crescimento da economia e do comércio mundial, mesmo diante de uma massa de capital fictício que nem o solavanco de 2008 fez parar de crescer, ou da disputa sino-estadunidense pela hegemonia financeira, energética e militar, o capital estava e está sob o curso de uma estrutural crise. O Brasil se insere como parte dela apresentando suas dimensões idiossincráticas que dizem respeito, sobretudo, ao colapso de sua formação nacional definido por algumas décadas, cuja estagnação econômica de quase meio século reflete somente a face mais aparente do problema.
O arsenal de controle capitalista que sempre encontrou no Estado proteção monetária para casos extremos de fricções e crises, bem como impôs o policiamento regular de insurgentes via meios militares que se viabilizavam por enormes financiamentos, se vê confrontado por um vírus que desafia as vidas humanas espelhando os baixos investimentos em saúde pública, até mesmo nos mais cobiçados estilos de desenvolvimento do planeta. Simultaneamente se descortinam o desespero mundial por materiais médicos de toda complexidade para a sobrevivência de seus povos, que como numa guerra, cai o véu legalista burguês, exprimindo a disputa imperialista, agora, por exemplo, para interceptar o comércio de ventiladores respiratórios. Está a caminho a revelação capitalista eclipsada pelo pensamento mágico burguês: uma economia de abundância em bens supérfluos, como smartfones de última geração na casa dos bilhões de aparelhos consumidos no mundo, e a ausência de abastecimento regular de materiais hospitalares para enfrentar a crise sanitária.
No espaço neocolonial brasileiro, cuja rotina em breve estará mais próxima das sesmarias do século XVII, também o vírus evidenciou para os incautos qual é a genética de nossa classe dominante concebida no mando da escravaria. Em meio a uma tentativa precária e mal formulada de estratégia de isolamento social para conter a pandemia, setores da burguesia brasileira, desde o agropecuário, industrial, passando pelo comércio, financeiro, até os “milicianos-espirituais”, desafiam qualquer racionalidade que possa converter parte de nossa tragédia anunciada em algo menos penoso. Enquanto classe dominante de uma formação nacional destroçada na qual nem a economia, nem a política, pode apresentar móveis seguros de reprodução social, o gerenciamento da anomia se impõe pela necessidade de ampliação da alienação, violência e repressão, metamorfoseando política pública em projeto de holocausto. O foco genocida se volta para as camadas sociais mais vulneráveis que estão nas modernas senzalas das periferias brasileiras dos grandes centros, ou nas cercanias desassistidas de nossos sertões. Aqueles hereges que em maior ou menor intensidade porventura venham a denunciar tal calamidade, também poderão ser enquadrados como comunistas, aptos, dessa forma, a integrar o “grupo de risco” junto dos demais miseráveis infectados ou não.
Desse modo, a despeito do vírus ser biologicamente uma casualidade imperativa da natureza, sua compreensão enquanto pandemia social só pode ser dimensionada na linha histórica do tempo com suas contradições seculares. Mundialmente, o vírus se insere em uma crise particular que, de um comportamento cíclico de reprodução ampliada do capital que vinha desde o século XIX, intermediado por expansão e recessão, tornou-se, no último quartel do século XX até hoje permanente, estrutural. Do ponto de vista econômico, a despeito de alguns picos de crescimento do PIB, ou da especialização manufatureira chinesa na nova divisão internacional do trabalho, uma estagnação econômica se colocava de forma perene, em que as gigantescas capacidades ociosas das corporações se combinavam com a produção de mais-valor por meios inéditos e pretéritos de exploração da força de trabalho. Esse mais-valor garantia e garante a crescente apropriação, desde a simples remuneração de lucros, até à fetichizada seiva financeira de juros e dividendos que brota dos retornos líquidos do capital fictício. Diferente de antes, entretanto, em que havia um caráter cíclico de reciclagem econômica da crise, ou seja, queima e nova criação de capital, a partir dos anos 1970 ela se transmutou em uma crise regular, em que a produção e apropriação para assegurar, respectivamente, geração e circulação de mais-valor, dependem igualmente da destruição incessante do mercado da força de trabalho, da natureza e do gênero humano.
A crise do capital, portanto, não pode ser subnotificada, porque o nível de letalidade é de tal ordem que acomete as engrenagens econômicas e políticas do sistema diante de uma transnacionalização do capital que subordinou os sistemas econômicos nacionais ao seu império de retroalimentação. O modo de produção se converteu em modo de exportação da morte em todas as dimensões da existência: economia, política, cultura, arte, religião, direito, meio-digital, clima, natureza e genética. Do ponto de vista de sua superestrutura, a origem do pandemônio capitalista se forjou na mutação imperialista desde o fim do século XIX em que duas guerras mundiais no século XX pariram um poderoso complexo industrial militar lastreado no capital financeiro, sendo a corporação transnacional a plataforma dessa força. Nasceu desse marco uma contrarrevolução mundial que funcionaria como uma superestrutura de controle, cooptação e opressão, no exato momento que potencialmente o fim absoluto da humanidade seria decretado pela corrida nuclear. Tamanho choque à modernidade permitiu por um tempo exímio coexistir socialdemocracia nas economias centrais capitalistas, mesmo à custa das reservas coloniais e neocoloniais; por outro lado, concedeu um certo prazo de validade para o “socialismo real” que não passava de um burocratismo capitalista soviético; assim como cedeu para alguns países subdesenvolvidos a oportunidade de industrialização, ainda que sob dominação do capital internacional. A serviço da oligarquia do capital financeiro e das inovações tecnológicas desenvolvidas em teatros de guerra, a conversão do controle social do capital em uma racionalidade neoliberal nas economias centrais transformou o socialismo soviético em um gangsterismo capitalista, bem como transpôs alguns processos de industrialização periférica em reversão neocolonial.
Como não poderia deixar de ser, um país como o Brasil, secularmente doente por sua dependência externa e segregação, e, com ideias necrosadas pelo nosso desarmado e desdentado pensamento social, se insere nessa crise do capital contribuindo com sua própria variante: uma crise de formação como nação – num sentido mais básico que se possa entender, ou seja, o de preservar vidas em um território historicamente delimitado ante as pragas biológicas, bélicas, econômicas, tecnológicas e sociais que possam proliferar. Nessa crise estrutural do capital, em que se pronuncia a nossa crise de formação, faz com que o Brasil se integre globalmente pelo seu maior diferencial estratégico de barbárie: a herança escravocrata. Desde o momento em que se tentou e não conseguiu conciliar nos termos da domesticação capitalista: soberania, igualdade social e democracia com o Golpe de 1964, ficou clarividente que emancipação nacional e capitalismo não andam juntos por aqui.
Mesmo que a industrialização se mantivesse por um tempo com a ditadura, e a burguesia brasileira pudesse legitimar sua dominação política à custa de um crescimento econômico expressivo, a conexão da nossa estrutura econômica e social com o processo de transnacionalização estava sendo fecundada, pois parte da crise do capital já estava sendo precocemente assimilada em nossa vida econômica diante do elevado nível de subordinação ao capital internacional. Tão logo a indústria deixou de ser o principal negócio e passou a ser a inflação para o capital internacional e seus sócios nativos, a ditadura se converteu em democracia restrita; tanto a formação econômica do Brasil colapsou, quanto um aparelho contrarrevolucionário poderia subsistir sem a subcontratação militar, mantendo até um certo verniz de “cidadania” com a Constituição de 1988. Depois da violenta crise da dívida externa e sua reciclagem que fizeram do desenvolvimentismo um moribundo, nos anos 1990 em diante, foi quando o Brasil estava pronto para se submeter integralmente ao novo padrão mundial de acumulação nascido com a crise dos anos 1970. Adaptado, por assim dizer, para desindustrializar e reprimarizar sua economia, bem como impor uma regressão ocupacional do emprego formal, bem como praticar uma saturação do pacto federativo diante da disputa fiscal, ou ainda, catalisar a depredação ambiental em favor do complexo agromineral e pecuário. Sem falar, do aprisionamento do pensamento social a uma estrutura especializada e burocratizada, que aparece nos partidos, atravessa os sindicatos, e, acomete as universidades. Com isso, a contrarrevolução cumpriu por aqui seu desiderato: i) – uma formação econômica do país implodida diante de um controle imperialista maior; ii) – grande parte da população e da natureza submetida à destruição; iii) – e, a incapacidade coletiva de sequer imaginar uma transformação radical por meio da revolução brasileira.
Como representante local de interesses transnacionais que encarnam o capital nesta crise, nossa burguesia pode se inserir oferecendo o que há de mais avançado na extração de riquezas e repressão social que é o nosso passado, passado violento, mercantil, portanto, colonial, que nunca foi superado. Negócios internacionais poderão ser realizados aqui das formas mais espúrias, tanto na produção e circulação de mais-valor, assim como as relações de trabalho serão crescentemente estabelecidas por renovadas formas de escravidão, estando as camadas populares, supérfluas, famintas e indignadas, destinadas à morte com a ajuda da Covid-19. Nossa imunização só terá efeito duradouro se conseguirmos reabilitar a única vacina inventada pela humanidade contra a peste da opressão – hoje imposta pelo capital, que é a revolução; caso contrário, o vírus ajudará as duas crises interconectadas destruírem todas as flores que restam, tal como o poeta acima ilustra.
FÁBIO CAMPOS é professor e coordenador da pós graduação na área de História Econômica do Instituto de Economia da Unicamp e membro do IBEC.
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