segunda-feira, 31 de julho de 2017

Vontade de viver



A cena
Uma mulher (Anna), no Louvre, se aproxima de um quadro de Édouard Manet, Le Suicide. Senta ao lado de um estranho. Depois de um tempo, o diálogo:

O estranho: Você também gosta desse quadro?

Anna: Ele me dá vontade de viver

O quadro de Manet (1880) é mostrado abaixo.



O contexto

 A cena é a última do filme Frantz de François Ozon, 2016, http://www.imdb.com/title/tt5029608/  

São aquelas cenas finais de filmes em que resumem tudo sobre a estória narrada. Lembro de caso semelhante no filme Marcas da violência, David Cronenberg de 2005.

 O filme

A estória se passa em Quedlimburgo, 1919 (pós 1ª guerra) Alemanha. Anna (Paula Beer) encontra o jovem Adrien (Pierre Niney) frente ao túmulo de seu jovem noivo (Frantz) morto na guerra. Adrien se apresenta como amigo francês do noivo. A verdade aparece depois: o soldado Adrien matou o soldado Frantz numa batalha de guerra. O francês fora a Quedlimburgo devido a remorsos por ter causado a morte do alemão.
O ambiente era de feridas não cicatrizadas. Diálogo entre o pai de Frantz e Adrien:

Pai de Frantz: Todo francês é assassino do meu filho.  Então desapareça daqui.

Adrien: O senhor tem razão, doutor. Eu também era soldado e sou mesmo assassino.

O filme é antibélico e sem apelo sentimentalista trata das cicatrizes advindas dos horrores da guerra.

Adrien ao ser perguntado por Anna sobre as marcas no corpo, diz: “Minha única cicatriz é Frantz”. Nessa frase, há muito do termômetro do filme. Mesmo com uma trama recheada de reviravoltas, Ozon não cede em nome de um roteiro mais veloz. Frantz – e aqui está sua maior beleza – não é um filme sobre a ferida, mas sim sobre as cicatrizes (Diogo Guedes, uol.com.br).

Ponto de inflexão

Anna, a mãe e o pai de Frantz passam a ver Adrien com olhar diferente. A rejeição anterior dá lugar ao afeto.
Adrien volta a Paris. E depois de um tempo Anna resolve reencontrar Adrien. Vai até Paris e depois de procurar muito o encontra noivo com casamento marcado. Decepção. Anna apaixonada não se desaponta. Fica em Paris e um dia se veste de preto e vai até o Louvre ver o quadro de Manet.

Tudo se passa como Anna estivesse de luto novamente.

É o luto pela segunda perda.

Ele me dá vontade de viver diz ao estranho sobre o Le Suicide de Manet.






terça-feira, 25 de julho de 2017

Teamo


Já escrevi sobre Otávio, o homem só, pai de duas filhas e um filho, que é mais de ouvir que falar e convive bem com o silêncio.

Não falei da sua relação com o pai, já falecido. Passo agora a falar sobre.

O antes

Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado, com energia, ruído e cólera, e neste caso isso lhe parecia, além do mais, muito adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso.

A frase é de Kafka no livro "Carta ao meu pai". Uma confissão cheia de mágoa com 66 páginas que Otávio, na juventude, gostaria de ter escrito ao seu pai. Seria um desabafo que nunca teve coragem de dizer pessoalmente cara a cara, olho no olho. Otávio vê na influência do pai o sentimento de nulidade e baixa estima que carrega nas costas até hoje. "Você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa."
Pai e mãe não são seres encantados que nos embalam o tempo todo. Eles nos alimentam de sabedoria e ignorância, erros e acertos, virtudes e defeitos. Na hipotética carta de Otávio a tônica seria na ignorância, nos erros e defeitos do pai. Sabedoria, acertos e virtudes existiam? Sim, mas não eram visíveis já que a tirania do pai não permitiria sê-los.

O depois

Com a vinda do filho e filhas Otávio pai passa a representar a personagem que conhecia bem o que não gostaria de reproduzir. Tratar como foi criado jamais. Tinha, desde o nascimento dele e delas, a consciência de como ser amigo antes de pai. Como impedir a herança ruim e como incentivar a herança boa. Filha, dormirei tranquilo quando sentir que te ajudei a ser independente e com autonomia para seguir o caminho que escolhestes, disse um dia para a caçula. E ela seguiu o seu destino profissional e afetivo de acordo com sua formação sócio escolar e convivência familiar.

Otávio relembra de um corte temporal indelével na relação com o pai quando ele passou a ser pai também. Passaram a não ser invisíveis um para o outro. Conversavam sobre família, política, educação, culinária e outros assuntos. Mas o filho nunca chamava o pai de pai. Chamava de senhor. Para outras pessoas referia-se ao pai pelo nome ou apelido. Reverência? Não. Talvez a herança da hierarquia existente entre eles. Mas Otávio tinha uma vontade danada de chamar o pai de pai.

E um tempão conviveram assim. Filho e filhas adoravam o avô. A recíproca era verdadeira. O avô não era invisível para netos e netas. O avô mudou? Sim, e muito.

Réquiem

Agora outro corte inextinguível.

O pai de Otávio, já com 78 anos, tivera um infarto fulminante. Um desespero e uma tristeza imensa na família. O patriarca tinha um problemão de saúde e a sobrevivência em risco. Mas velho era forte e esteve um mês no hospital.

Otávio ia diariamente ver o pai no hospital. Num destes dias criou coragem. Sentou numa cadeira na cabeceira da cama e disse:

Pai, me ouves? Pai, está me ouvindo?
Acreditem, foi a primeira vez que Otávio chamou o pai de pai. Mas o mais surpreendente veio a seguir:

Pai eu te amo


A declaração do filho não afetou em nada a expressão facial do pai. Continuou impassível. Com olhos fixos no teto. É verdade que tinha dificuldade de falar devido ao infarto.

Naquele dia, Otávio saiu chocado do hospital. Não acreditou no acontecido. Chocado pela situação do pai. Mas não acreditando na coragem de ter quebrado uma geleira de mais de 50 anos de uma relação pai-filho. Tudo se passou como se a baixa estima fosse superada pela alta.

Dois dias depois Otávio no hospital repete a cena. Na cabeceira da cama muito próximo do pai

Tá me ouvindo pai?

Te amo, viu?
E a cena se repete. O pai indiferente ignora a declaração aflita do filho.

Este velho continua o mesmo, uma pedra como sempre, pensou Otávio.

Sempre solitário Otavio remoeu o passado. E resistiu. Dois dias após voltou a ver o pai que não estava bem. O estado clínico tinha piorado. E de novo

Pai, me ouves? Olha pra mim
Surpresa: pai olhou.

Eu te amo, disse Otávio.

Ricardo, é o nome do pai, virou-se para o filho e olho no olho disse

Eu também


Nesse dia Otávio saiu do hospital chorando. No outro Ricardo morreu.