Um olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo –após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970
O povo ressuscitou, cresceu e ganhou a aldeia global
Leão Serva
TARAUACÁ (AC)
O índio yawanawá Miró, também conhecido como Viná,
e seu adereço de cabeça adornado com bico de gavião-real
Na contramão do que se costuma ouvir sobre índios brasileiros, os yawanawás, habitantes da Terra Indígena Rio Gregório, no Acre, são hoje um exemplo de exuberância cultural e populacional.
Reduzidos a 120 indivíduos no auge da ditadura militar, no início da década de 1970, esquecidos de suas tradições e sofrendo com um altíssimo índice de alcoolismo e uma grave desagregação social, eles estavam virtualmente extintos.
Agora, meio século após a quase extinção, os yawanawás já estão reacostumados aos seus mais antigos rituais, falam a língua ancestral e, além disso, se conectam ao mundo contemporâneo usando smartphones e computadores por meio de uma antena de wi-fi instalada na aldeia.
A população atual, de cerca de 1.200 pessoas, é dez vezes a registrada nos anos 1970.
Um dos maiores sinais de sua degradação cultural era o desaparecimento da língua. Eles eram pressionados a não usá-la diante de não índios, principalmente por dois agentes externos que controlavam de forma férrea a região em que moram. Em primeiro lugar, os donos dos seringais, que dominaram as florestas do Acre desde o final do século 19. Eles empregavam os indígenas em condições de escravidão e não queriam que a língua pudesse revelar a existência de índios capazes de reivindicar a propriedade da terra.
Em segundo lugar, a missão evangélica que havia imposto ali o culto cristão e cujos religiosos atacavam os ritos indígenas tradicionais e os classificavam como demoníacos.
“Nossa língua foi proibida, só os velhos a conheciam, as crianças só aprendiam o português. Nossas crenças e tradições eram consideradas diabólicas pelos missionários, e muitos de nós acreditávamos nisso. Passamos a viver como escravos no trabalho e na cultura”, conta o cacique Biraci Yawanawá, o Bira, de 54 anos. A guinada começou nos anos 1980.
O cacique explica que no início dos anos 1990, quando vivia em Rio Branco, a capital do estado, foi chamado pelos líderes mais velhos para assumir a liderança do grupo.
Para voltar à aldeia e liderar a comunidade, Bira impôs condições que, aceitas, resultaram numa espécie de revolução cultural.
Ele expulsou a missão religiosa dali, restabeleceu o ensino da língua tradicional e passou a incentivar o estudo dos antigos mitos e histórias pelo grupo, como forma de religar as novas gerações aos conhecimentos e memórias dos ancestrais.
Vovó Alzira, da aldeia Mutum
Após mais de um quarto de século, os yawanawás são referência da força cultural que índios, quando controlam suas terras, podem conquistar ao combinar cultura tradicional e empreendedorismo.
Com terra demarcada, vento passa a soprar a favor da comunidade
No início dos anos 1970, quando a ditadura militar pregava a ocupação da Amazônia sob o slogan “Uma terra sem gente para gente sem terra”, os yawanawás, gente que habitava aquela terra, estavam quase extintos.
Eles mal resistiram a cerca de um século do ciclo da borracha, que resultou no domínio de seu território por seringais e fazendas, na submissão ao trabalho escravo e em uma epidemia de consumo de álcool. Apenas os mais velhos falavam o idioma yawanawá. A língua só era usada em ambiente doméstico.
Kanamashi, filha de Toata, da aldeia Amparo
Segundo Bira, os donos do seringal Kashinawá decidiram instalar sua sede no rio Gregório, na margem oposta à da aldeia de Antônio Luís. A empresa ficou ali até a demarcação da terra indígena, nos anos 1980. O destino passou a soprar a favor dos yawanawás desde que suas terras foram reconhecidas, em 1982, e os seringalistas foram desapropriados pelo governo federal.
O atual momento positivo não é apenas um dado de sorte: os índios tiveram uma visão de futuro, se prepararam para ser globais.
Grande parte desse movimento é atribuída à liderança de Raimundo Tuinkuru (1929-2010), filho de Antônio Luís, que conduziu os yawanawás durante a ditadura militar e o processo de recuperação cultural, a partir dos anos 1980.
Sogro do cacique Biraci, pai das pajés Hushahu e Putani (mulher de Biraci) e do líder Joaquim Tashka, Tuinkuru foi o responsável por enviar jovens à capital do Acre e ao exterior para que aprendessem a lidar com a cultura contemporânea.
Em 1982, Biraci foi morar em Rio Branco, de onde voltou dez anos depois como líder da Nova Esperança. Mais tarde, Joaquim foi estudar por cinco anos em Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos. Ao retornar, ele assumiu a liderança da aldeia Mutum.
Biraci conta que ao voltar da capital, em 1992, 99% de seus familiares eram protestantes. “As famílias não falavam mais nossa língua, os pastores tratavam nossos ritos tradicionais como diabólicos. Em um momento, com 18 anos, chamei os pastores da missão e disse: ‘Vocês têm 24 horas para sair daqui’”.
Ele exigiu também que todas as bíblias cristãs fossem queimadas e proibiu álcool nas aldeias. Depois, foram implantadas escolas com aulas na língua yawanawá para as crianças da comunidade.
“Chegamos ao fundo do poço em 1982. Comparado àquele momento, vivemos um renascimento cultural e espiritual”, diz Joaquim Tashka, líder da aldeia Mutum. “A população cresceu e 50% das pessoas falam a língua, o que é um salto grande. Hoje nos relacionamos com o mundo, sempre de olho em nossa tradição.”
Pakayuvá, da aldeia Nova Esperança
Em 2001, os líderes da comunidade fizeram um plano estratégico para as décadas seguintes.
“Foi uma grande reflexão sobre o que seria o nosso futuro e, neste momento, 18 anos depois, vemos que realizamos 80% do que sonhamos. Agora, estamos organizando o Plano de Vida Yawanawá, que vai projetar o futuro: como vamos fazer bom uso de nosso território? Como vamos usar as novas economias para não destruir o patrimônio? Nosso desafio agora é pensar como queremos avançar ainda mais para o futuro.”
Os planos incluem a criação de uma Universidade dos Saberes Tradicionais Yawanawá, com projeto do designer paulista Marcelo Rosenbaum, apaixonado pela cultura local, a ser desenvolvido na área da antiga comunidade Aldeia Sagrada.
YAWANAWÁ SIGNIFICA POVO DA QUEIXADA, ALUSÃO AO TEMIDO PORCO SELVAGEM
Olhando o mapa da Amazônia, se o observador traçar uma reta entre o rio Guaporé, no sul de Rondônia, e Tabatinga, no estado do Amazonas –onde o rio Solimões adentra o território brasileiro, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, no extremo oeste–, vai encontrar ao longo dessa linha diagonal de quase 1.500 quilômetros uma grande lista de povos de um mesmo tronco linguístico, chamado pano.
Com rosto pintado de jenipapo, a menina Naun, filha de Matsini, da aldeia Mutum
O tronco pano é comum em áreas do Amazonas, do Acre e de Rondônia – e também no Peru e na Bolívia.
Segundo os arqueólogos, data de quase dois milênios desde que os primeiros índios desse grupo migraram do rio Guaporé, em Rondônia, para o norte, chegando até os Andes e as margens do Solimões.
Como seus vizinhos ashaninkas, povos de língua pano devem ter mantido intercâmbio intenso com o império inca, o que explica referências, nas histórias dos yawanawás, a heróis denominados ”Inka” e a um tempo longínquo “em que viviam sob domínio do ”Inka”. Tais referências aparecem nas memórias de outras etnias de seu tronco linguístico, como a kashinawá e a marubo.
Esse corredor do tronco pano teve origem, provavelmente, no lugar em que hoje está o estado de Rondônia, de onde um ou alguns povos de língua similar começaram a migrar em direção ao norte, há pouco menos de 2.000 anos.
Eles se espalharam em torno dos rios Javari, Juruá e Purus, sendo que alguns grupos entraram na região do Ucaialy, no Peru, até as encostas dos Andes, como explica Philippe Erikson em “História dos Índios no Brasil” (1998).
Estudos arqueológicos mostram que esses índios foram os senhores dessa vasta planície úmida até em torno do século 9 d.C., quando um ou mais grupos de língua arawak (como os ashaninkas), vindos do norte e do oeste, conquistaram territórios entre o grupo pano, separando uns dos outros.
É provável que, quando foi rompida a unidade dos povos, se tenha iniciado a formação de dialetos e o desenvolvimento de línguas diferentes. Mesmo assim, há uma homogeneidade linguística.
Na língua pano, há duas palavras para “povo” ou “gente”: ”nawá” e ”bo”.
Por isso, as diversas etnias são geralmente conhecidas por esses dois sufixos em seus nomes: yawanawá, yaminawá e kaxinawá, por exemplo, ou marubo, korubo, shipibo, conibo.
Há até um mesmo nome, com terminação diferente, para dois grupos que moram em áreas distantes, os brasileiros kaxinawás, do Acre, e os cashibos, do Peru.
Os nomes pelos quais são conhecidos os povos do grupo pano são em geral aqueles que outros grupos lhes deram, frequentemente pejorativos.
É comum os índios não gostarem dos termos pelos quais são oficialmente conhecidos. ”Kaxi”, por exemplo, quer dizer “vampiro”. Os kaxinawás (“povo do vampiro”), recentemente, adotaram outro nome oficial: huni-kuin, que quer dizer “homens verdadeiros”, expressão usada por muitos povos do tronco pano para autodefinição. Yawanawá quer dizer “povo da queixada”, referência ao porco selvagem. Diferentemente de outros grupos, esses indígenas têm orgulho dessa designação: a queixada é um dos animais mais temidos da floresta por andar em bandos coesos e assim vencer seus predadores.
Segundo a enciclopédia digital “Povos Indígenas no Brasil”, do Instituto Socioambiental, os grupos pano designados como nawásformam um subgrupo dessa família por terem línguas e culturas muito próximas e por terem sido vizinhos durante um longo tempo.
Quem anda pela rua na cidade acriana de Cruzeiro do Sul, referência urbana para muitos índios do Acre e do oeste do estado do Amazonas, testemunha com facilidade conversas fluentes entre kaxinawás e marubos ou, com alguma dificuldade, com yawanawás.
Os idiomas são parecidos, o que torna um falante de língua pano o tradutor preferencial para os contatos com vários outros: os kaxinawás conversam com os marubos, que falam com os matsés, que se entendem com os matis, que compreendem os korubos…
Maria Clara, da aldeia Mutum
Diferentemente de outros grupos linguísticos, como o tupi, que inclui etnias muito dispersas e diferentes, as do grupo pano cultivam proximidade e intercâmbio cultural. Pessoas de diferentes grupos étnicos podem conversar entre si.
O cacique Bira conta, por exemplo, que os yawanawás têm recebido dos grupos de índios xipibos e konibos, do Peru, muitas informações sobre tradições agrícolas e espécies vegetais que haviam sido esquecidas por seu povo durante os anos de processo de quase extinção.
Gavião está no mito de origem dos índios do grupo pano
Segundo o mito narrado pelo cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, os povos panos nasceram das penas de um gavião-real. “De seu ninho no alto de uma sumaúma, o gavião saía a caçar para alimentar os filhotes. Quando faltaram presas na floresta, passou a capturar crianças índias. Um dia, um caboclo da aldeia construiu uma escada para chegar até o ninho. Ao alcançá-lo, matou a ave e tirou suas penas, guardando-as em um cesto. Desceu e foi para sua casa. À noite, ouviu um rebuliço. Abriu o cesto, não viu nada, só as penas. Isso se repetiu por vários dias, até que em uma manhã começaram a sair do cesto crianças pulando de alegria. Cada uma dizia seu nome: Shawãdawa, Yawanawá, Kaxinawá, Xaranawá, Duwanawá, Poyanawá etc. Eram os povos da língua pano.”
Projeto de Aldeia Sagrada mistura passado e futuro
Os yawanawás da comunidade Nova Esperança acalentam o plano de criação da Aldeia Sagrada, a ser erguida no local onde viviam seus antepassados até a implantação de um seringal onde, por décadas, os índios foram obrigados a trabalhar. O projeto é uma viagem ao passado e ao futuro; a pretensão é erguer no local construções inspiradas no estilo indígena tradicional, mas com recursos da arquitetura contemporânea. O responsável é o designer paulista Marcelo Rosenbaum, que pretende criar uma espécie de Minha Casa Minha Vida rural, com adaptação das regras do projeto estatal de habitação popular para as condições específicas da floresta e uso de materiais da região.
Miró, um dos especialistas em artes plumárias,
prepara cocar que será usado pelos líderes durante rituais na aldeia
Líderes ligam aldeia ao mundo contemporâneo
Joaquim Tashka Yawanawá é um exemplo da inserção dos yawanawás na globalização. O líder da comunidade Mutum é uma espécie de embaixador de seu povo desde que foi escolhido pelos líderes mais velhos para estudar nos Estados Unidos e adquirir conhecimento sobre o ambiente internacional.
“Nós temos que ter um novo diálogo no século 21, conversar ao mesmo tempo com o contemporâneo e o tradicional. É preciso falar a língua dos negócios do mundo atual, e o idioma não pode ser um empecilho”, diz. Neste ano, ele esteve no festival de cinema Sundance (EUA), onde apresentou o documentário ”Awavena” –sobre a xamã Hushahu–, no Fórum Econômico de Davos (Suíça) e em outros eventos internacionais. “Viajo o mundo todo, mas sempre conectado com meu povo. Isso atrai pessoas, que vêm contribuir, o que ajuda os yawanawás”.
https://www.youtube.com/watch?time_continue=412&v=mzDJukmAv6Q
Foi o empreendedorismo dos índios que os levou a criar há quase três décadas uma parceria com a empresa norte-americana de cosméticos Aveda, para quem vendem urucum (semente que produz uma tinta vermelha). Plantam açaí com financiamento agrícola do governo do Acre, para vender a clientes regionais.
Seus trabalhos com miçangas são cobiçados nas lojas de artesanato indígena no Brasil e no exterior.
O cacique Biraci Yawanawá, na maloca
cerimonial da futura Aldeia Sagrada, usa cocar feito com penas do gavião-real
Casais que não conseguem ter filhos costumam procurar essa comunidade. Quem quer acompanhar uma caçada de dois dias na floresta vai para a aldeia Amparo, enquanto Matrinxã se tornou referência para a comida tradicional dos yawanawás.
Essa especialização das comunidades é orientada por um projeto estratégico de aproveitamento das potencialidades “econômicas, culturais e espirituais” da terra indígena que o líder chama de Plano de Vida Yawanawá, uma espécie de Plano Diretor Estratégico.
O cacique Biraci conta que está em implantação um programa de produção intensiva de alimentos da floresta. Na previsão dele, os yawanawás chegarão a 2025 com 100 mil pés de açaí, além de pés de cacau, café, cupuaçu e banana. “Selecionamos 58 espécies de plantas que queremos ter conosco, para garantir nossa alimentação”, diz.
ÁREAS DE CONSERVAÇÃO NO ENTORNO PROTEGEM A RESERVA DOS YAWANAWÁS
A Terra Indígena Rio Gregório é habitada por índios das etnias yawanawá e katukina-pano. Na beira do rio, localizam-se sete comunidades, entre as quais Mutum e Nova Esperança, as maiores.
Identificada pela Funai em 1983, a área foi homologada e registrada como Patrimônio da União em 1991, com uma área de pouco mais de 90 mil hectares. Depois de 15 anos, os índios reivindicaram uma área adicional, que foi demarcada por iniciativa do governo estadual e declarada como parte integrante da terra indígena em 2007, dobrando a extensão original para os atuais 187 mil hectares. Uma área de 50 mil hectares está em processo de homologação para ser incorporada à terra indígena.
O pajé Tatá Txanu Natasheni, morto em 2016, aos 104 anos
Ele se refere ao quase anel formado pela Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade (a oeste), e às terras indígenas Praia do Carapanã e do Igarapé Primavera (a leste).
A saúde também não desperta maiores preocupações: equipes de atendimento da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) visitam as aldeias a cada 90 dias, e os yawanawás não têm dado trabalho a eles: entre 2017 e o primeiro trimestre de 2018, por exemplo, houve só um caso comprovado de malária, e nenhum de dengue, males comuns em outras áreas da Amazônia.
Os habitantes da Terra Indígena Rio Gregório são registrados como moradores do município de Tarauacá, cuja sede fica a cerca de 200 km dali. Com isso, a cidade é sua referência para relações com o Estado nacional: 70% dos eleitores votam naquela cidade, por exemplo.
Ali também buscam tratamentos de saúde mais sofisticados, fazem documentos e recebem aposentadoria ou Bolsa Família. Mas o deslocamento é um limitador. Só pelo rio, pode-se levar oito horas em canoas com motor (voadeiras); por terra, são vários dias de caminhada. Devido a essa dificuldade, há relatos de que beneficiários do Bolsa Família desistiram do programa, e a abstenção eleitoral também costuma ser alta.
RIO GREGÓRIO ERA MAIS CAUDALOSO E CHEIO DE ‘BICHOS GRANDES’
Embora a Terra Indígena Rio Gregório pertença ao município de Tarauacá, as milhares de pessoas que visitam o local anualmente desembarcam em Cruzeiro do Sul, cidade que tem um aeroporto maior e recebe voos de Brasília.
Como em outros destinos amazônicos, os aviões costumam chegar no início da madrugada. O viajante deve dormir pelo menos uma noite na cidade, o que, na época dos festivais yawanawás, deixa os hotéis lotados, com turistas do mundo todo.
O rio Gregório visto a partir do promontório
onde fica a aldeia Nova Esperança
O rio Gregório é um afluente do Juruá. No passado, era caudaloso. O cacique Biraci conta que, há 50 anos, barcos de 30 toneladas subiam o rio. Seu pai dizia que um homem podia ficar de pé no porão do barco. “No rio, tinha bicho grande, tartaruga, jacaré-açu, sucuri. Hoje, todos desapareceram, o rio assoreou.”
O Gregório cruza terras novas, em cujas margens não há estruturas de pedra. Em consequência, como ocorre também no Madeira, em Rondônia, as margens cedem à força das águas, que comem os barrancos e fazem o curso do rio mudar de tempos em tempos.
Em frente à comunidade Nova Esperança, o traçado do leito mudou recentemente; no último período de cheias, o rio “cortou caminho” por uma mata e, em vez de uma curva, ficou com um traçado mais reto.
Apresentador Ratinho, da TV, doa terra aos índios
O apresentador de TV Carlos Massa, o Ratinho, é acionista de uma empresa que tem 200 mil hectares no município de Tarauacá. Cerca de 10% superior à da Terra Indígena Rio Gregório, a propriedade é vizinha à área dos yawanawás, que reivindicam parte dessas terras. Em 2005, quando a empresa apresentou um projeto de exploração de madeira, veio à tona a participação de Ratinho no negócio. Desde então, a propriedade vinha sendo alvo de disputa entre a empresa e os índios. O apresentador acabou doando aos índios, em 2009, a área por eles reivindicada (cerca de 50 mil hectares). A empresa considerou que assim criaria uma “zona de silêncio” entre as comunidades indígenas e a atividade madeireira, explica o cacique Bira.
Janete, da aldeia Escondido, que usa pulseira
com desenhos geométricos feitos com miçangas e segura jijus pescados no rio
Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos
Duas mulheres fazem a fama dos yawanawás entre outros indígenas do mundo: as irmãs Putani e Hushahu. Elas são as primeiras, na história de seu povo, a se tornarem pajés.
Tradicionalmente, só os homens eram iniciados no conhecimento profundo das tradições religiosas. No começo dos anos 2000, restavam apenas três pajés entre os yawanawás, todos já idosos: Raimundo Tuinkuru e os irmãos Yawa Runi e Tatá Txanu Natasheni.
Foi nessa época que as duas filhas de Tuinkuru o procuraram para dizer que queriam receber a formação de pajé. O pai imediatamente recusou, por uma questão de gênero. Não havia a memória de mulheres pajés entre seu povo.
Marizete, ao centro, com sua nora Alice,
à esq., e sua filha Maria Adelaide, da Aldeia Nova Esperança
Putani conta que seu pai, então, preferiu que outro pajé decidisse. Tatá foi consultado e concluiu que não havia problemas.
“Mas, para provar que mulheres poderiam resistir às agruras da iniciação, os nossos sacrifícios deveriam ser ainda maiores”, continua Putani. “Meu pai disse ao Tatá: faça com elas o dobro do que faria com homens, para que ninguém duvide de que são corajosas.”
E assim, em 2004, as duas mulheres iniciaram a formação, que começa com um longo jejum. Por vários dias a pessoa só se alimenta com a batata de uma planta chamada mucá, considerada sagrada.
Quem está fazendo a iniciação para se tornar pajé fica acampado na floresta, longe da comunidade. Só pode ter a companhia de quem está preparando sua dieta.
Putani e Hushahu escolheram isolar-se no local onde seus antepassados viviam no tempo do contato com os primeiros seringueiros. É o lugar denominado Aldeia Sagrada. “Neste lugar está enterrado meu avô. Ele disse que, se a gente precisasse de sua ajuda, bastaria pedir”, conta.
Passados quase 15 anos daquela iniciação, o lugar agora está sendo preparado para receber uma nova comunidade. Os yawanawás vão voltar a ocupar o lugar de onde saíram no passado. À época, o local era uma área isolada na floresta.
“Nosso processo de conhecimento e cura é baseado em sonhos. Você sonha com as doenças que vai ter; o pajé sonha com as doenças que terá de curar nos outros. Por isso você precisa ficar isolado, ouvindo o silêncio. Não pode ouvir zoada. A ideia é que você ouça os passos das pessoas, o tom de sua voz. Tudo isso é revelador de como está a saúde delas, desde que você saiba ouvir os detalhes”, explica Raimunda Putani, seu nome completo.
A dieta evita carnes de animais associados a características consideradas inadequadas para um líder espiritual. “A anta é um bicho pesado. Por isso, quem está no mucá não pode comer sua carne, ela deixa a pessoa pesada. Já o macaco capelão é um bicho que canta, fará bem ao pajé. O jabuti, normalmente muito desejado, anda muito devagar, e sua carne deixa os pensamentos lentos. Já peixes e aves são rápidos”, explica Putani. Assim os alimentos são divididos entre os que podem ou não ser consumidos durante os vários meses de formação.
Maria, da Aldeia Nova Esperança
Desde então, ela diz fazer rituais usando essas técnicas: “É a cultura tradicional que vivemos. Porque, se você vive como seus ancestrais, a cultura nunca acaba”, diz.
Putani tinha 27 anos quando completou a formação de pajé, em 2005. Em 2006, ganhou o Prêmio Bertha Luz, concedido pelo Senado a mulheres que se destacam na luta por direitos femininos.
A história de sua irmã, Kátia Hushahu, é contada no documentário imersivo ”Awavena”, produzido em realidade virtual pela diretora australiana Lynette Wallworth. O filme estreou neste ano no festival Sundance e foi apresentado também no Fórum Econômico de Davos.
As pajés preencheram realmente o vazio que temiam: seu pai morreu em 2010, com 80 anos; Tatá morreu em dezembro de 2016, com 104 anos, e o também pajé Yawa Runi morreu em março deste ano, aos 106.
Etnia adota casamento entre primos cruzados
O sistema de parentesco adotado pelos yawanawás é chamado dravidiano, com casamentos entre primos cruzados: a pessoa se casa com os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe. Há casos de poligamia, cada vez mais raros, geralmente com um marido e uma ou mais irmãs (chamado sororato). O hábito determina que, após o casamento, o marido se mude para perto da casa da família da mulher (costume chamado de uxorilocalidade).
Bebês ganham nome escolhido pelo pai
Ao nascer, os bebês recebem um nome dado pelo pai e, às vezes, um outro, escolhido pela mãe. Ambos buscam repetir nomes de tios e tias da criança em homenagem aos parentes, por vezes já mortos. Assim, os nomes se repetem alternadamente a cada duas gerações. Hoje, os índios são registrados com um nome em português e, geralmente, os documentos oficiais incluem também o nome da etnia como se fosse o sobrenome.
Mito yawanawá explica a interdição do incesto
Os mitos servem para traduzir as grandes coisas -como a criação do mundo– e também as pequenas. O cacique Bira conta um cheio de moralidade para explicar que dois irmãos jamais podem namorar. “Um dia, uma menina reclamou à mãe que todas as noites alguém ia a sua cama no escuro para bulir e brincar com ela. A mãe recomendou à filha fazer uma tintura de jenipapo e passar no rosto todo para marcar o buliçoso. Então, no dia seguinte, o irmão da menina desapareceu. Quando o encontraram, ele estava pintado de jenipapo. Foi condenado à morte e teve a cabeça cortada. A cabeça rolou e correu em direção à mãe. Ali, no chão, a cabeça do índio pediu água. A mãe disse que não poderia ajudá-lo. O índio jurou então uma vingança: iria morar na Lua e, a partir daquele dia, a primeira relação de toda menina deveria ser com ele. As mulheres sangrariam sempre após essa primeira relação. Esse seria o sinal de que elas podiam namorar a partir daquele momento.”
Quem flerta com mulher grávida recebe castigo
Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: “O que você andou fazendo?”. Em seguida se volta aos demais e explica: “Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol”.
Keyá aplica a chamada ‘vacina’ do sapo em Marcílio
Festa e ayahuasca atraem turistas de todo o mundo
“Você já tomou a medicina?” A pergunta é repetida pelo jovem yawanawá, enquanto distribui a beberagem entre dezenas de pessoas que participam de um ritual de ayahuasca.
Diante da mesa lotada de jarras com a infusão e copinhos para pequenas doses, o rapaz, com um cocar de penas de gavião-real, se posiciona como um padre diante do altar.
O público se senta em bancos que formam um círculo em torno de um grande espaço aberto onde há uma fogueira no meio, o terreiro. Nesse templo, a nave é um vasto céu de anil, em uma noite em que a lua cheia ilumina a aldeia Nova Esperança.
A todos os que respondem “não” , o jovem diz: “Fique sempre tranquilo”, e em seguida entrega um pequeno copo parcialmente cheio.
Chamada “uni” pelos yawanawás e “Daime” em cultos religiosos não indígenas, a poção ritual que das matas do Acre se espalhou pelo planeta pode provocar poderosos enjoos. Por isso, recomenda-se que neófitos provem com cautela e não tenham medo da viagem. “Tudo que vem passa”, explica o líder Bira.
Keyá (esq.), da aldeia Mutum, e Miró
retiram secreção da rã-kambô, que é usada como remédio
Estudos revelaram a presença de ayahuasca em panelas encontradas em sítios arqueológicos de 5.000 anos. O nome revela seu uso por habitantes do antigo império inca, já que se trata de uma palavra quéchua, a língua dos incas: ”aya” significa espírito e ”huasca” quer dizer cipó.
Os yawanawás recebem anualmente milhares de turistas para festivais que celebram sua cultura e seus rituais, com ingressos entre US$ 2.000 (R$ 7.800) e US$ 5.000 (R$ 19.500), dependendo do tempo de estadia. Quando promovem festas, os hotéis de Cruzeiro do Sul ficam lotados, como os voos que ligam seu aeroporto aos grandes hubs internacionais do país.
Nesses festivais, pode-se encontrar gente de todos os cantos do planeta nos galpões construídos pelos índios para abrigar até 700 pessoas.
CANTORIA, INCENSO E FOGO AMPLIFICAM EFEITO INEBRIANTE DA BEBIDA
A cerimônia começa depois do jantar, em que se recomenda uma refeição leve. Por volta de 21h, as pessoas já estão sentadas no círculo em torno da fogueira. Quando o jovem de cocar se coloca à frente da mesa, logo se forma diante dele uma fila de cerca de 30 pessoas. Há mais índios do que convidados naquele encontro fora de temporada, no centro da aldeia Nova Esperança.
O primeiro efeito da ayahuasca é um certo enjoo. Algumas pessoas descrevem fortes ânsias de vômito logo após beber o “remédio”. Em seguida, é descrita uma sensação de alívio, em que a alma é tomada por visões. É a “miração”, termo do português popular que acabou consagrado pelos rituais religiosos associados ao Daime.
Tecnicamente, é uma alucinação, estado alterado da mente. A droga atua em centros ligados à visão. Durante essas visões, alguns dizem encontrar ancestrais, outros, que antecipam cenas de seu futuro. Há quem faça previsão de doenças e quem relate entender um conflito no futuro. Cada um tem sua própria miração.
A alteração da percepção fascina muitos e assusta outros. Não poucos sentem medo. É preciso ter calma para resistir às horas de “viagem”, que às vezes viram “bad trips”.
Logo depois que toda a fila toma a “medicina” começam os cantos, longos e repetitivos. Forma-se uma roda de dança no meio do espaço em que se desenvolve o ritual, do tamanho de uma quadra de vôlei.
As músicas, em ritmo repetitivo, funcionam como mantras. A harmonia, com apenas dois acordes, lembra a de outros hinos religiosos. O coro canta sempre em uníssono, reforçando a simplicidade.
Bira, Tênpu (ajoelhado), Tchanu e João queimam o Sepá,
resina de uma árvore usada para defumação ou benção, em ritual na Aldeia Sagrada
Depois de alguns minutos de cânticos, o jovem coordenador dos trabalhos se encaminha de volta à mesinha e serve nova rodada de ayahuasca. A adesão é quase total entre quem havia tomado uma primeira dose. Na terceira rodada, nem todos repetem. A adesão vai diminuindo. Depois das 23h ninguém mais busca a bebida e a mesinha é recolhida.
O efeito, no entanto, persiste. Muitas pessoas recebem passes do xamã(à época, fevereiro deste ano, Yawa Runi estava vivo), outras inalam rapé, e assim a comemoração vai até as 5h do dia seguinte.
Enquanto algumas pessoas dançam no centro do terreiro, o pajé cuida de outras, que se mantêm sentadas. Ele pergunta se há algo que as preocupa, um mal-estar, uma tristeza. Em seguida, faz orações e sopra sobre a pessoa a fumaça vinda da queima do incenso de breu branco, ou almecegueira, árvore aromática curativa. Os sopros são acompanhados de um som que se parece com ”ôsh”. O religioso percorre as costas, os ombros e a cabeça da pessoa. Ao terminar, passa ao próximo da fila, numa sequência demorada.
Entre os yawanawás, o consumo da ayahuasca é com frequência acompanhado da inalação de rapé. O pó cinza à base de tabaco é soprado pelo xamã para dentro do nariz da pessoa, que o recebe por meio de um instrumento em forma de “v”, de taquara, com cerca de 40 centímetros.
O pajé tem em sua mão um pequeno recipiente com rapé. Ele coloca um pouco do pó em uma ponta do canudo e direciona a outra para uma das narinas da pessoa; respira fundo e de repente dá um sopro muito forte. O que recebe o pó leva as mãos à narina, enquanto mantém os olhos cerrados.
O rapé irrita a mucosa do fundo das fossas nasais e ali é parcialmente absorvido; outro tanto desce para a boca, provocando um gosto amargo e o espessamento da saliva. O cuspe ganha uma cor acinzentada.
O rapé é a mistura de tabaco seco com cinzas da casca de ”txunu” (pau-pereira). Tudo é peneirado e pilado, resultando em um pó leve.
“A maior parte de nossa formação espiritual depende dos sonhos, por isso nós precisamos sonhar. O rapé abre o sonho, nos faz sonhar e lembrar”, explica o líder Biraci.
O efeito é um despertar, espécie de compensação para o torpor que a viagem da ayahuasca provoca. É como se a mente ganhasse clareza, e o corpo, energia extra para interagir.
Outra medicina pela qual os yawanawás são conhecidos é a “vacina do sapo” contra doenças físicas ou espirituais, como dizem. Na verdade é usada uma rã voadora, chamada ”kambô” (Phyllomedusa bicolor).
É feita uma leve incisão na pele, no braço ou na perna, com a ponta de uma vareta levada ao fogo. Em seguida, se inocula no local a secreção da pele da rã.
O veneno tem composição complexa, com alguns elementos semelhantes aos de um derivado do ópio, que reduz a dor, e outros que dão taquicardia. A pessoa também vomita e tem forte sensação de calor.
Tradicionalmente, a vacina do sapo era usada para melhorar a performance do índio na caça. “O sapo traz sorte, alegria, deixa a pessoa mais atenta”, explica Bira. Usa-se também o veneno em caso de doenças, para purificação. “A pessoa vomita, põe todos os problemas para fora”, diz o líder yawanawá.
DAIME NÃO VICIA E AJUDA A TRATAR DEPENDÊNCIA QUÍMICA, DIZ MÉDICO
A ayahuasca é um alucinógeno que não causa dependência, segundo Dartiu Xavier, 63, chefe do serviço de dependência química da Unifesp.
O psiquiatra, que foi consultor do Ministério da Saúde e da Justiça, integrou a comissão que discutiu a liberação da droga para cultos, entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000.
O grupo, que reunia técnicos e religiosos, concluiu que “o uso ritualístico, com fundamentação religiosa, não pode ser proibido”, como explica Xavier. “A comissão ajudou a sedimentar o conceito que em seguida foi adotado também nos EUA, quando a ayahuascachegou lá”, diz.
Para o especialista e pesquisador, a ayahuasca é um alucinógeno, do ponto de vista científico. “As pessoas têm usado a palavra ‘enteógeno’, mas ela só serve para tentar evitar o estigma associado à palavra ‘alucinógeno’”. Enteógeno é a tradução de um neologismo em inglês, derivado do grego, que remete à capacidade de induzir a pessoa à visão de deus.
Keyá durante o ritual Sepá
O departamento chefiado por Xavier na Unifesp foi, em parceria com a Universidade da Califórnia, o primeiro laboratório a estudar a ayahuasca. Chamou a atenção do professor e de seu departamento o fato de dependentes graves, como alcoólatras, relatarem o abandono do vício após a adoção de um rito religioso ligado ao daime.
Além de não causar dependência, o chá contribui, em muitos casos, para tratar a compulsão –“miraculosamente”, diz. “Não conseguimos concluir se isso se deve só ao efeito químico ou se é o rito, o fato de pertencer a uma comunidade acolhedora.”
FLORESTA É FARMÁCIA PARA TUDO
A futura Aldeia Sagrada, que deverá ser erguida no local onde aconteceu o primeiro contato entre yawanawás e seringueiros, é uma homenagem aos ancestrais ali enterrados e à floresta.
Além das moradias, está prevista a implantação de uma estrutura para cursos de cultura yawanawá. A construção vai seguir o estilo das malocas indígenas tradicionais, que eram compartilhadas por diversas famílias. “Nessas casas, todo mundo vive e come junto. Marido não bate em mulher, os filhos não passam fome”, diz o cacique Bira.
Em volta da futura aldeia, uma área de floresta com cerca de dez hectares foi usada para o cultivo de ervas medicinais usadas pela comunidade em ritos religiosos e de cura.
Bira conduz a reportagem a um passeio em que vai explicando os supostos poderes de cada uma daquelas espécies: “Você vê aquela planta com umas folhas grandes, que parecem uma bunda? Sabe quando você tem uma filha jovem, recém-casada, que não quer ficar em casa, que quando o marido sai para trabalhar ela também quer logo sair, ir ao vizinho e coisa e tal? Você pega uma folha grande daquelas, esquenta e faz ela sentar em cima. Logo ela acalma e fica mais caseira. O mesmo vale para o marido”.
Filipe (dir.) sopra rapé em Zezinho, na aldeia Matrinxã
Uma outra erva medicinal ajuda a mulher a engravidar: “Um advogado amigo nosso, do Rio de Janeiro, estava casado havia 12 anos. Eles queriam ter filhos, mas não conseguiam. Ele veio aqui e pediu para tomar o nosso remédio. Agora acabou de nascer o filho deles”.
Tem remédio para tudo, segundo Bira: ervas para bebês que choram muito, viagra natural e planta que causa o efeito contrário, outra que faz bem para epilepsia.
“Agora, você vê a responsabilidade de quem lida com esses poderes: se uma pessoa ambiciosa tem acesso a isso, o que será que ela pode querer fazer? É preciso guardar com rigor as coisas, e só dar acesso restrito a elas, para que só pessoas responsáveis e preparadas possam conhecer e usar”, afirma.
Os antigos yawanawás eram polígamos, uma prática que vem reduzindo, porque os casamentos com várias mulheres atribuem ao marido a multiplicação das obrigações; é preciso ter condições de sustentar a casa, os filhos e a mulher; se quiser ter duas mulheres, deve dar igual a ambas. E assim sucessivamente.
Bira conta um chiste didático, a história de um pajé mais velho, com várias mulheres. Quando alguém dizia que uma de suas mulheres estava flertando com outro homem, ele respondia: “Que bom, tem alguém me ajudando a cuidar da casa”. Se a pessoa insinuava que a mulher poderia engravidar, ele dizia: “Mas o filho será meu também”. Para um líder tribal, quanto mais filhos, maior é poder de influência e a acumulação de riquezas.
A riqueza das florestas traz também benefícios indiretos. Um deles é o de atrair peixes quando o rio sobe, no inverno amazônico. Nesse momento, as águas ultrapassam as margens, chegam ao chão da floresta e “puxam” as frutas caídas, chamando os peixes.
Os yawanawás têm uma explicação para isso. “Quando chega a hora da água subir, o espírito de um peixe vai até as frutas, come algumas e derruba outras. Nesse momento, ele sinaliza para o rio que chegou a hora da água subir.”
Árvore gigantesca é a sagrada ligação entre o céu e o chão
Por atingir até 70 metros de altura, a sumaúma (Ceiba pentandra) é, para os índios, a ligação entre chão e céu. E casa dos animais mais poderosos de cada plano: da sucuri, grande serpente do chão, que se esconde sob suas raízes; da onça, que dorme entre raízes e galhos mais baixos; do gavião-real, que habita sua copa. A árvore também sequestra pessoas. Na história dos índios, pai e filho dormiram perto de uma sumaúma. Quando o pai acordou, o filho tinha sido levado para o alto e ele ouviu sua voz: “Pai, pode ir embora, porque não há como subir ou descer daqui”. Devido a essa sacralidade, a sumaúma não pode ser usada em rituais.
Lainara, da Aldeia Nova Esperança, recebe pintura no rosto
Artesanato com miçanga importada faz sucesso
O artesanato dos índios yawanawás é marcado pela perfeição de seu acabamento. O fotógrafo Sebastião Salgado, que já visitou dezenas de culturas tribais em todos os cantos do planeta, destaca a beleza de sua arte plumária. Também os trabalhos com miçanga são referência entre os povos indígenas e têm destaque em lojas de grandes cidades brasileiras. As pequenas contas são muito usadas em peças de iluminação.
Outro elemento marcante, sempre explorado em artigos relacionados à moda e ao turismo, é a pintura corporal. Os índios produzem desenhos na pele usando urucum (vermelho) e jenipapo (preto); depois recobrem as pinturas com uma resina que as mantêm por mais tempo do que durariam apenas com a tintura natural.
Assim como a língua e a memória dos mitos e rituais, essas técnicas foram recuperadas ao longo das últimas décadas. Elas estavam restritas às pessoas mais velhas, que passaram a transmitir às novas gerações esses saberes tradicionais. Hoje, os cocares têm uso ritual e não fazem parte da vestimenta diária dos índios. Exatamente por isso são muito bem conservados.
Muitos adereços plumários dos líderes são feitos com penas de gavião-real, ave de rapina que, segundo a mitologia, deu origem a todos os índios de língua pano. Por isso as coroas de penas têm predominantemente as cores branca e cinza.
Lainara, da Aldeia Nova Esperança
Há muito tempo as miçangas industrializadas substituíram as sementes e os dentes de animais que eram usados como matéria-prima. Elas são importadas da República Tcheca, onde a produção das contas de vidro está concentrada na pequena cidade de Jablonec.
O líder Biraci Nixiwaká visitou Jablonec no ano passado para conhecer melhor o produtor de algo que se arraigou profundamente na cultura dos yawanawás e de outras etnias brasileiras: “Fiquei admirado. Eles me disseram que os povos indígenas respondem por 70% das vendas”. No Brasil, até mesmo grupos de pouco contato com não índios usam miçangas importadas.
Os yawanawás consomem muitos quilos de contas de vidro por ano. Em 2016, o consumo foi de uma tonelada, para atender à demanda de uma parceria com uma loja de decoração de São Paulo.
Falando da mudança das matérias-primas tradicionais para as contas industrializadas, Biraci ri e diz: “É um sinal dos tempos: as coisas estão aqui, ao nosso alcance. A gente não pode recusar a modernidade”.
Aos 80 anos, pianista João Donato tocou na aldeia com coral local
Nascido em Rio Branco, o pianista João Donato decidiu ir a seu estado natal em 2013, pouco antes de fazer 80 anos, e visitou a aldeia Nova Esperança. O episódio está na memória da tribo. Com um teclado, ele acompanhou um coral de crianças que cantavam histórias dos yawanawás. Em seguida, tocou composições suas. No ano seguinte, em agosto, convidou o músico Shaneihu Yawanawá para tocar no Rio de Janeiro, no show de comemoração de seu 80º aniversário.
Projeto ‘Amazônia’ documenta a floresta e seus habitantes tradicionais
A expedição do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado às terras dos yawanawás, no Acre, faz parte de um grande projeto de documentação da floresta amazônica e de seus habitantes tradicionais.
O resultado desse trabalho – “Amazônia”– deverá ser apresentado em livro e exposições no Brasil e no exterior a partir de 2021.
A Folha acompanha algumas dessas expedições desde o ano passado. Antes da atual edição, dedicada à comunidade dos yawanawás, foram publicados cadernos especiais sobre os índios korubos (17.dez.2017), os ashaninkas (20.mai.2018) e os suruwahas (2.set.2018).
Mineiro de Aimorés, 74 anos, o fotógrafo é conhecido no mundo por seus trabalhos de documentação construídos ao longo de anos, como “Trabalhadores”, ”Êxodos” e “Gênesis”, entre outros.
Economista de formação radicado na França durante a ditadura militar, Salgado começou a carreira nos anos 1970. Trabalhou em algumas grandes agências de imagens, como a prestigiosa Magnum, que foi fundada em 1947 por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson. Desde os anos 1990, ele mantém sua própria agência, a Amazonas Images, que tem sede em Paris.
Reconhecido como um dos principais talentos da fotografia internacional, o brasileiro acumula prêmios no currículo desde a década de 1980 e tem obras suas em coleções e museus de todo o mundo.
Desde dezembro de 2017, Salgado ocupa uma cadeira na Academia Francesa de Belas Artes, maior reconhecimento do governo e da comunidade artística francesa a um criador que atue no país. É o primeiro brasileiro a ocupar essa posição no Institut de France, que reúne as cinco grandes academias francesas.
http://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/yawanawa/o-povo-ressuscitou-cresceu-e-ganhou-a-aldeia-global/ 16/12/2018
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