domingo, 18 de março de 2018

Marielle

Não quero ser vilã ou mocinha, quero ser gente

Marielle foi executada porque, enquanto o mundo fala de direitos humanos, o Brasil ainda não consegue compreender que ser humano é todo mundo

POR STEPHANIE RIBEIRO*
17/03/2018 4:30  O Globo

RIO - Quando era mais nova, via muita novela e programa policial. Ambos me ensinaram que, quando uma pessoa morre, evidentemente merece, pois ela era má. A banalização da morte é reflexo dessa banalização dos sujeitos, entende-se que é possível dividir o mundo entre bom e mau. Bom é quem está comigo, e mau é o outro, aquele que se opõe ou que desconheço. Logo, não preciso compreender nem interagir com o outro, preciso me afastar, preciso das minhas cercas, muros, blindagens, preciso deixar claro que ele não é do mesmo mundo que o meu. Nos diferenciamos para mostrar nosso poder. Quanto mais nos afastamos, entendemos que tudo é problema individual. E não da sociedade, pois não quero ter que nos movimentar pela mudança. Muitos acreditam nessa divisão, e todos se enxergam como mocinhos dessa história.
Mas Marielle era mocinha ou vilã?


Marielle Franco (27/07/1979-14/03/2018), foto de Márcia Foletto / Agência O Globo, 16/03/2018

No contexto nacional, em que as pessoas compreendem tudo de forma unilateral e maniqueísta, depende do olhar de cada um. Quando Marielle foi assassinada brutalmente, muitos tentaram justificar dizendo: “Mas ela era defensora de bandido.” Marielle, para muitos, é vista como alguém “torto”, logo é a defensora do “vilão”, pois não seguia as regras dos “bons”. Afinal, supostamente, só defendia os “ruins”, a “escória da sociedade”. Mas, quando você deseja a morte de alguém, você é mocinho ou vilão?
Num mundo real fora da fantasia das novelas e dos programas de TV, todos somos HUMANOS. E olha que “todos somos todos humanos” é uma frase recorrentemente banalizada, que não pode ser aplicada para justificar os tais comentários sobre a morte de Marielle.
Me perguntaram hoje: “A que ponto chegamos nessa sociedade que estamos justificando mortes?” Só consigo responder: “A que ponto chegamos ou a que ponto não saímos?” A gente não está “voltando” a ser. Nunca fomos nada além de um país colonial. Escrevo este texto no dia 16 de março, e há exatos quatro anos Claudia Ferreira da Silva era arrastada por mais de 300 metros. Ela era mãe e mulher trabalhadora, mas era negra e pobre. Se sua vida realmente importasse, quem a matou de forma brutal estaria em qualquer lugar, menos no de capitão da polícia. Como de fato aconteceu.
Este não é um país de vilões e mocinhos, é um país em que seres humanos não são vistos como tais. Não quero ser vilã ou mocinha, quero ser gente! E Marielle também queria isso.
Nosso colonialismo nos impede de avançar coletivamente para um país igualitário de fato, como se propõe nas leis. Há a corrupção na base do país, e a “política” como algo hereditário, sendo passado de pai para filho e assim mantendo cargos e poderes. Há a mão de obra barata e explorada que ainda é marcada pela cor negra. Nós, Brasil, não somos nada além de um país colonial. Pensamos e agimos como tal, só que existem alguns que são como Marielle, que pensam à frente, que pensam que precisamos avançar coletivamente. Afinal, se não queremos mais tanta violência e corrupção, não faz sentido manter estruturas desiguais, racistas, sexistas e retrógradas.
Marielle desenhava o futuro mesmo para aqueles que insistem em acreditar que privilégio é viver no passado. No fundo, quando dizem das mais diversas formas que ela era “torta” por não “seguir o esperado”, realmente não sei se é errado pensarem isso. Marielle Franco era uma mulher, era negra, era da Favela da Maré, era lésbica, era a base da estrutura social, ela era um ser marginal, um ser visto como incompleto, um ser que não é visto como HUMANO. E provavelmente por essa somatória de fatores, Marielle se engajou na carreira política. Para dizer que ela, e os que eram como ela, eram HUMANOS e precisavam ser tratados como HUMANOS. E provavelmente também foi por essa série de fatores que ela não foi ameaçada, ela simplesmente foi executada. Executada sem meios-termos e firulas. Não tentaram maquiar fingindo um acidente ou assalto. Mataram. Mataram porque tanto quem mata quanto quem justifica sua morte pensam da mesma forma, não enxergam Marielle como pessoa. Eles a entendem como marginal, um ser que ainda não é sujeito.
Marielle queria mais do que isso, para si e para nós, que, como ela, somos marcados pelo que somos. Direitos humanos são sobre isso, não uma pauta partidária, não é loucura de maconheiro nem mimimi de defensor de bandido. É sobre garantir que todos sejamos tratados com igualdade, respeito e justiça dentro das nossas diferenças, pois não somos todos iguais. E as pessoas precisam aceitar que, mesmo com nossas diferenças, temos os mesmos direitos. Só que não aceitam, fazem de nós os vilões dessa novela. Dizem que nossas existências são ofensivas. Tentam até nos corrigir, usando o poder da violência.
Olha aquela puta que se acha com aquele vestidinho curto. Manda estuprar.
Olha aquele preto que quer andar nas ruas com Pinho Sol na mochila. Manda prender.
Olha aquele viado que anda rebolando. Manda lâmpada na cabeça dele.
Olha aquela mulher, negra, favelada, deputada que sempre denunciou o genocídio da população negra, as ações das milícias, a corrupção, o machismo, o racismo, a lgbtofobia, as violências estruturais. Manda executar para calar a boca dela e deixar bem claro o recado: lugar de preto é na senzala ou no caixão.
Não me surpreendi com a morte da Marielle, pois não consigo mais me surpreender vendo negros morrendo todo dia. Tem dia que é um primo seu, tem dia em que você acha que, se fizer universidade e “vencer na vida”, não será mais o próximo. E, pumba!, vem alguém e te lembra que, antes de ser gente, que antes do seu nome, a sua cor vai chegar primeiro. Há dias em que você se choca pela brutalidade como no caso de Claudia, que foi arrastada. Tem dias que você se choca, pois era só uma criança. Tem outros em que você se choca por serem 111 tiros. No fundo, a gente se choca pela forma que foi, mas não se surpreende mais. Nós, negros, estamos nos acostumando a fazer do cemitério nossa segunda casa, e as pessoas estão acostumadas a negar raça como um fator que determina a vida que levamos e como seremos tratados. Internacionalmente, como mulher negra, vejo a morte de Marielle deixando muito claro que, se um homem branco e uma mulher negra dizem a mesma coisa, ela será um alvo mais fácil. Sua vulnerabilidade é histórica e estrutural. Não precisa ameaçar o sujeito que já nasce vulnerável, a execução dela nos diz isso.
Por isso, não me surpreendi. Mas chorei, porque aqui dentro alguma coisa também morreu. Mesmo que me digam para não ter ódio, se fazem o luto ser nosso verbo, também fizeram o ódio ser nosso escudo. Não o ódio do outro, não o ódio do diferente, o ódio da estrutura que mantém tudo isso. Um país que, em 2018, ainda é colonial, que não aceita que uma vereadora eleita, mulher, negra, mãe, lésbica e favelada seja gente. Marielle foi executada. Marielle foi executada porque, enquanto o mundo fala de direitos humanos, o Brasil ainda não consegue compreender que ser humano é todo mundo, e não somente os homens bons da colônia.

*Arquiteta, urbanista e ativista


A arquiteta Stephanie Ribeiro - Adriana Lorete / Agência O Globo


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