segunda-feira, 6 de abril de 2020

Filmes parte 4

Diário de um cinéfilo

Aurora, 1927, F.W. Murnau
Crepúsculo de uma raça, Cheyenne Autumn, 1964, John Ford
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, 2011, Vinicius Coimbra
Arca russa, Russkiy kovcheg, 2002, Aleksandr Sokurov
7 Homens Sem Destino, 7 Men from Now, 1956, Budd Boetticher
Embrutecidos pela violência, Along the Great Divide, 1951, Raoul Walsh
Golpe de misericórdia, Colorado Territory, 1949, Raoul Walsh

1917, 2019, Sam Mendes

Moby Dick, 1956, John Huston
Nosferatu, 1922, F.W. Murnau
Sétimo selo, 1957, Det sjunde inseglet, Ingmar Bergman
O matador,  Dip huet seung hung, 1989, John Woo
As Duas Faces da Felicidade, Le bonheur, 1964, Agnès Varda
O homem do oeste, 1958, Man of the West, Anthony Mann


29/01/2020
Aurora, 1927, F.W. Murnau


Um homem pondera matar sua inocente esposa, mas é acometido pela culpa, e a mulher reage com terror quando suas intenções ficam claras. Enquanto isso, o marido que tenta levar adiante o plano é atormentado por uma sedutora mulher da cidade, que chega a assombrar os pensamentos do homem. O casal do interior acaba tendo suas vidas destruídas por causa dessa mulher que veio de fora.
"A partir de um excelente roteiro de Carl Mayer, Aurora, é a obra mais perfeita de Murnau. Apesar de realizada em Hollyood, permanece profundamente germânica. A mobilidade da câmera, que que domina a narrativa, é utilizada com tal maestria que quase não é percebida, numa sequência em que o jovem pescador espera a amante na neblina dos pântanos. (George Sadoul, Dicionário de Filmes, p.43, L&PM, 1993).

02/02/2020
Crepúsculo de uma raça, 1964, John Ford


Após o desrespeito do acordo de entrega de suprimentos à tribo indígena Cheyenne por parte do governo, mais de 300 índios decidem deixar sua reserva rumo ao Wyoming, terra onde sempre estiveram. O capitão da cavalaria americana Thomas Archer (Richard Widmark) é designado para a missão de contê-los e evitar sua viagem. No entanto, Archer muda de ideia quando encontra com os indígenas.
Seguindo a onda de seu tempo histórico e da indústria que representava os índios sempre como inimigos selvagens, demorou 47 anos para que o diretor (John Ford) assumidamente fizesse um “filme de redenção” para com os povos indígenas, filmando um projeto inicialmente apresentado a ele por Richard Widmark e prontamente rejeitado. Anos mais tarde, quando um argumento que escrevia ao lado de seu filho Patrick Ford precisou de maior impulso (até então, a base para o texto era o livro The Last Frontier, de Howard Fast), o material antes apresentado por Widmark veio à tona, pois estava relacionado ao grande êxodo Cheyenne, um dos temas do argumento. Neste momento da pré-produção foi que o livro Cheyenne Autumn de Mari Sandoz entrou em cena e deu o contorno dramático necessário para o roteiro que seria escrito por James R. Webb. (Luiz Santiago, Plano Crítico)

04/02/2020
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, 2011, Vinicius Coimbra


Augusto Matraga (João Miguel) é um fazendeiro orgulhoso, valente e mulherengo, que está à beira da falência. Sua esposa Dionóra (Vanessa Gerbelli) resolve abandoná-lo com a filha do casal, ao receber uma proposta feita por Ouvídio Moura (Werner Schunemann). A situação faz com que Augusto fique enfurecido e parta para a casa de Ouvídio, em busca de vingança. Lá ele é espancado pelos capangas de Consilva (Chico Anysio), que o marcam com ferro e o atiram em um precipício para morrer. À beira da morte, Augusto é encontrado por um casal, que cuida de sua recuperação. Cinco anos depois ele deixa o local, completamente mudado e agora temente a Deus.
O grande risco do longa é ser comparado ao clássico A Hora e Vez de Augusto Matraga (1966), obra absolutamente fabulosa dirigida por Roberto Santos e estrelada por Leonardo Villar e Jofre Soares. Restaurado recentemente, o filme conta com tomadas muito ousadas para sua época, sendo um dos grandes ícones do Cinema Novo.
A "sorte" do novo longa está no fato de que existe toda uma geração - na verdade, duas ou três - que não tem conhecimento da obra original, inspirado em conto homônimo de Guimarães Rosa. Sem a comparação, a nova produção ganha ainda mais força. A direção é de Vinícius Coimbra, em sua estreia em longas após uma carreira na TV.
Augusto Matraga (João Miguel) é um violento fazendeiro do sertão de Minas Gerais que descobre que sua esposa (Vanessa Gerbelli) foi levada por um rival da região (Werner Shunemann). Ele vai atrás de vingança e acaba batendo de frento com o Major Consilva (Chico Anysio). Matraga é cercado pelos capangas do major e acaba espancado e dado como morto. Mas é resgatado por um casal de idosos e tentará retomar sua vida sem a violência de antes.
O elenco conta ainda com as ótimas participações de José Wilker, José Dumont, Júlio Andrade e Irandhir Santos. Wilker e Anysio, que vieram a falecer antes do lançamento da produção, surgem em participações duras e bem desenvolvidas, mas o destaque da produção vai mesmo para João Miguel. O ator, que já havia brilhado em obras como Cinema, Aspirinas e Urubus, Estômago e outras, entrega uma performance marcante e muito complexa. Ele dá vida a um personagem perturbado pelo passado, com momentos de brutalidade e outros de espiritualidade.
A Hora e a Vez de Augusto Matraga conta com um vigor técnico impressionante. A direção de fotografia de Lula Carvalho, que contou com a assistência do pai Walter Carvalho, é primorosa, seja pela beleza das tomadas abertas ou pela sutileza dos planos-detalhe. Outro destaque é a utilização de uma fotografia mais granulada, que remete aos clássicos faroestes americanos. A direção de arte, o figurino e a maquiagem também merecem destaque, bem como a trilha sonora de Sasha Amback, que usa e abusa de temas de Tom Jobim, que caem como uma luva no cenário do filme. (Lucas Salgado, ADOROCINEMA)

03/02/2020
Arca russa, 2002, Aleksandr Sokurov


Arca Russa foi filmado em um único dia, pouco antes do solstício de inverno de 2001 e em um único e histórico plano-sequência de 96 minutos. Através dele, Aleksandr Sokúrov, que antes de ser cineasta é historiador, metaforiza a passagem bíblica do dilúvio e da Arca de Noé para nos fazer rememorar 300 anos de História da Rússia em um passeio pelo Museu Hermitage, o complexo monumental que inclui o famoso Palácio de Inverno dos Romanov e que serve como reflexão sobre a literatura, escultura, artes plásticas, música, arquitetura, teatro e, de maneira metalinguística e na ponta do iceberg, o cinema da “Grande Mãe” através dos tempos.
O filme é conhecido por seu pioneirismo técnico [notem que a ideia de plano-sequência não era inédita no cinema, mas nunca houvera sido feita com 96 minutos sem cortes com essa proposta narrativa — um filme de longo plano chamado Time Code, quase com a mesma duração, mas com proposta narrativa diferente, menor elenco e espaço, já tinha sido realizado dois anos antes], pela tremenda e admirável logística de filmagem pelo Museu, lidando com 2 mil atores, passando por 33 salas, filmando 3 orquestras em três diferentes ocasiões e, no plano conceitual, refletindo sobre a questão russa a partir da visão cultural e “disputa” com os medalhões europeus, tais como França, Itália, Alemanha, Áustria…
O filme é uma metáfora a duas arcas bíblicas, à já citada Arca de Noé, e também à Arca da Aliança, que era uma espécie de “museu ambulante” para o povo hebreu, carregando as coisas mais valiosas para sua identidade e prova dos milagres que Deus havia realizado para eles. Desse modo, o Hermitage tanto flutua sob as águas do dilúvio da História, arrastado pela memória, mas também mantido vivo por ela; quanto é simbolicamente carregado pelo povo russo, pois contém em seu interior algumas das mais valiosas realizações humanas, vindas de diferentes lugares e épocas.
Para aproveitar bem o filme, o espectador deve entender que Arca Russa é um exercício cinematográfico e histórico, uma viagem no tempo exposta de forma semidocumental e guiada por dois personagens, um cineasta do século XXI perdido no tempo (o próprio Sokúrov, cuja visão subjetiva é o foco da câmera) e Marquês de Custine, também chamado de O Estrangeiro e O Europeu. Desde a chegada de Sokúrov ao passado e o início de sua viagem temporal, onde cada grupo de salas representa décadas ou séculos diferentes (uma justaposição de tempos, pois o conteúdo artístico exposto nas salas é, na maioria das vezes, mais antigo do que o tempo histórico mimetizado nas cenas), vemos que um dilema é destacado: a europeização da Rússia, questão tão conhecida dos escritores nacionais no século XIX.
A partir da metade da obra, esse dilema vai aos poucos ganhando cores políticas e o diretor faz duras mas disfarçadas críticas ao comunismo e sua “arte para as massas” — talvez venha dessa interpretação o apontamento de que o filme seja reacionário e maneirista, o que evidentemente é uma bobagem — e fala sobre as mortes em massa no país, durante a invasão da Alemanha, na 2ª Guerra Mundial, e durante todo o período Stalinista (a sala dos caixões é um misto de terror e humor negro que traz isso à tona).
Os diálogos se dividem em pequenas frases, discussões ou acertos vistos de maneira solta, todos caraterísticos de sua época, a começar pelo Czar Pedro, o Grande (1672 – 1725), que é visto batendo em um General, logo no começo do filme, e terminando com o último baile dado no Palácio de Inverno (1913), quatro anos antes da Revolução Russa, evento que acabaria por depor e assassinar a família Romanov, da qual vemos um pequeno (e esteticamente belo) momento, logo antes do baile, quando se reúnem à mesa.
Entre esses dois extremos, o filme escorre por um ensaio de uma peça de teatro, assistido pela Czarina Catarina II, a Grande (1729 – 1796) e que mais à frente, já velha, vemos correr pelos jardins suspensos; à recepção do Embaixador da Pérsia feita pelo Czar Nicolau I (1796 – 1855), na Sala São Jorge do Hermitage, onde em 1906 se reuniria a Duma, no início da fragilidade da monarquia russa; a um momento com a família do Czar Nicolau II (1868 – 1918), onde também é destacada a mais travessa de suas filhas, a Princesa Anastásia; e, como um ponto histórico fora da curva, projetado para um “futuro próximo”, a citação ao Cerco de Leningrado (1941 – 1944).
É esse cenário histórico, sonhador, simbólico, metafórico, artístico e, por que não, caótico e confuso, que Sokúrov mergulha e manipula com maestria. Ele se desloca como um cineasta do século XXI (filmando Arca Russa em 2001) para o século XIX, sem saber aparentemente como, e retrocede para o século XVIII, avançando no tempo a partir daí, conhecendo personalidades históricas, encontrando-se com o Marquês de Custine e balbuciando, repetindo ou negando muitas das conclusões negativas que o Marquês faz sobre a Rússia.
A ambivalência narrativa aumenta e se torna mais deslocada — como em um verdadeiro exercício de memória, onde as coisas se confundem e as falas se tornam uma bagunça mista de lembrança e invenção — ao sabermos que as falas de Custine foram retiradas do conjunto de livros La Russie en 1839, escritos pelo Marquês após o período em que esteve na Rússia.
Passado, presente e perspectivas de futuro, sob diferentes pontos de vista, são pinçados no filme tendo obras de arte e salas do museu como motivadores críticos. Isto pode até afetar a experiência do público no início e travar um pouco a sessão no miolo da obra, que é menos incisiva do que o restante, mas se olharmos o filme como um fluxo físico da memória de uma nação, é natural que tenhamos, em trezentos anos, momentos vivos e momentos de bastidores; silenciosos e musicais; claros e escuros a serem considerados e representados.
A “Rússia de ontem” e a “Rússia de hoje” são espelhadas e geram perguntas, pessimismo e uma tomada de consciência sobre o que se é a necessidade de avançar na História, não parar no tempo, prosseguir. Isto é aplicado tanto ao contexto sociopolítico do filme quanto à maneira de fazer cinema de Sokúrov, com seu virtuosismo estético e o fato de aqui, optar filmar com câmera digital (em 2001, o formato metia medo na maioria dos diretores e havia a polêmica do “cinema pasteurizado” que o digital geraria), uma que ele mesmo mandou construir para poder suportar o armazenamento de material em disco rígido, tudo isso em um aparato que se ligava à steadicam diretor de fotografia Tilman Büttner, que baila pelo Hermitage contornando sombras, capturando diferentes nuances de luz natural e bem organizadas intervenções de luz da própria produção e fazendo de cada sala-e-época uma diferente experiência visual para o espectador.
Com um intenso trabalho de toda a equipe técnica e setores que precisaram fazer pesquisas diferentes para cada espaço visitado pela câmera (figurinos, cabelo e maquiagem, principalmente), Arca Russa termina com o limite do “futuro a ser descoberto“, como o mar cheio de monstros que os navegadores do final do século XV um dia enfrentaram. Amedrontador e cercando todo o Museu, o mar é a própria encarnação do tempo, isolando o passado em um [quase] inacessível lugar para o qual retornar é impossível, a não ser através da lembrança. Arca Russa é a máxima exposição dessa lembrança. Filmada em um único fôlego, fluindo como o tempo, a película se sagra não apenas como um memorável tour de force técnico, mas também como uma reflexão sobre a História da Arte durante um certo período da História da Rússia. Inegavelmente uma obra dirigida por um historiador. Um dos filmes mais interessantes do início do século XXI. (Plano Crítico, 17/08/2016)

09/02/2020
7 Homens Sem Destino, 1956, Budd Boetticher

Minha admiração por Sete homens sem destino não me levará a concluir que Budd Boetticher é o maior diretor de western. Mas somente que seu filme talvez seja o melhor western que já vi depois a guerra. Com certeza é mesmo difícil discernir entre as qualidades desse filme excepcional, as que vêm especificamente da mise-en-scène, e as que devem ser atribuidas ao roteiro e a um diálogo fascinante, sem falar, é claro, das virtudes anônimas da tradição que só pedem para se expandir quando as condições de produção não as contrariam. (André Bazin, O que é o cinema? p.257, Cosacnaify, 2014).

12/02/2020
Embrutecidos pela violência, 1951, Raoul Walsh

 Embrutecidos pela violência, 1951, Raoul Walsh
O jovem oficial federal Len Merrick (Kirk Douglas) vive atormentado por se sentir responsável pela morte do pai. Ele encontra uma chance de se redimir ao salvar Timothy Keith (Walter Brennan), que foi acusado pelo assassinato de um jovem, de um linchamento iminente e o leva a uma outra cidade para que possa ter um julgamento justo. Apesar de condenado por esse crime, Tim contará com a ajuda de Merrick para encontrar o verdadeiro assassino e poder provar sua inocência.

13/02/2020
Golpe de misericórdia, 1949, Raoul Walsh


Walsh, tal como Ford, tinha predileção por seu grupo de atores e teve sorte de ter Henry Hull com ele em diversos papéis de caracterização (Um punhado de bravos, O Xerife do Queixo Quebrado). Malone, quase irreconhecível, vive a moça pura e sonhadora em contraste com a mais agressiva personagem vivida por Mayo. E de início já se constrói uma dúvida para o espectador: com qual das duas o mocinho ficará? Se a história, sobretudo em sua primeira metade, não chega a ser das mais atrativas, sua elaboração visual – planos longos e fotografia em p&b impecável – é bem mais convidativa. A extravagante Colorado de Mayo parece ecoar o tom over da Pearl de Jennifer Jones em Duelo ao Sol, mas pelo excesso com que é composta visualmente que propriamente por suas atitudes ou falas. A sequência do assalto ao trem é um verdadeiro primor da descrição da ação, com detalhes, guardadas as devidas proporções, dignos de um Melville ou Bresson. Como não é nada incomum no ethos do western (que o diga o clássico No Tempo das Diligências) as aparências enganam, e a sonhadora pura mostra seus dentes e olhos de traição ao final, enquanto a agressiva Colorado demonstra toda a fidelidade e apoio ao seu homem na hora mais difícil. Quando se observa a situação idílica demasiado antecipada logo se imagina que o casal não concretizará o seu enlace amoroso ao final, pois caberá a Wes ser punido por ter praticado o “último crime” antes da planejada regeneração, embora não o tenha feito exatamente por mal, mas por sinal de fidelidade ao mandante da ação, a quem, inclusive, assassinará depois. Se ao western é permitido ocasionalmente essas licenças de ambiguidade ao herói, é no filme de gangster dos idos da década anterior que imperará a identificação atravessada com o herói-bandido, tornando-se, por conta disso, o primeiro filme norte-americano a ser censurado na Alemanha Ocidental. Necessário é, nesse sentido, o processo de polimento que transforma Colorado de mulher de um mau caráter algo por inércia e McQueen, astuto e frio assassino quando é necessário sê-lo, em figuras com as quais se se possa identificar. Algumas imagens são simplesmente demasiado óbvias, em suas associações, como a que McQueen observa aves de rapina próximas de si, imagina que este será o seu futuro imediato e automaticamente antecipamos que um esqueleto humano será apresentado próximo. Ou a já esperada cusparada de repulsa da “honra dos feridos” que Colorado lança à proposta de dividir a recompensa pela captura de McQueen. Refilmagem de Seu Último Refúgio, dirigido pelo próprio Walsh oito anos antes, com Humphrey Bogart e Ida Lupino nos papéis principais. A cena decisiva final, com tiroteio trágico em meio aos despenhadeiros, também encerra o já referido Duelo ao Sol. Warner Bros. (Magia do real)

16/02/2020


A guerra em primeira pessoa por Barbara Demerov

Os cabos Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman) são jovens soldados britânicos durante a Primeira Guerra Mundial. Quando eles são encarregados de uma missão aparentemente impossível, os dois precisam atravessar território inimigo, lutando contra o tempo, para entregar uma mensagem que pode salvar cerca de 1600 colegas de batalhão.
São muitos os filmes que abordam a guerra num panorama que abrange diversos horizontes e pontos de vista, dando prioridade a consequências impressionantes que podem acontecer no ar, na terra ou no mar. Mas há outro tipo de olhar em filmes do gênero – um olhar que não vê a necessidade de começar pelo grandioso para, só então, chegar a algo realmente particular dentro deste universo. Não que armas, uniformes, trincheiras, destruição e morte sejam características limitadas em 1917, mas todo e qualquer elemento é inserido em medidas mais ínfimas se comparadas com o nível de humanidade exposto na jornada dos cabos Will Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman).

O grande foco do diretor Sam Mendes é contar uma história sobre o homem e não sobre a guerra em si. Com tal abordagem, 1917 nos faz refletir sobre o que pode levá-lo mais adiante: a vontade de voltar para casa ou o senso de responsabilidade para com sua pátria. E, dessa forma, o diretor transforma seu filme numa jornada repleta de emoção e altos e baixos. É uma experiência definitivamente imersiva e muito intensa – e o fato de Mendes ter estabelecido uma narrativa no formato de um falso plano-sequência é o que amplia as sensações que o público receberá sem qualquer resistência.
Assim, 1917 transcende o gênero "guerra" para atingir um valor humanitário e altruísta dentro de sua linguagem cinematográfica. Seus dois protagonistas (com a atenção mais voltada a Schofield) são bastante verossímeis e garantem a atenção do espectador não só por serem dois jovens adultos no meio de uma batalha desoladora, mas também por serem jovens inseridos brutalmente numa experiência muito particular: eles estão descobrindo um novo mundo, se conhecendo melhor perante ações e pensamentos enquanto soldados e indivíduos, e também embarcando num terreno incerto, que cobra muito mais (em certas ocasiões, em questão de segundos) do que cada um pode assimilar.

Por acompanharmos toda a história através de seus olhos e sua inocência, tudo o que os dois jovens adultos sentem é elevado a máxima potência para nós, espectadores. A câmera que os segue pelas costas em locais abandonados é a mesma que registra momentos de tensão em silêncio ou de um leve respiro entre uma surpresa e outra. Há apenas um único respiro que soa afastado demais da veracidade exibida 99% do longa, ainda que esta seja uma pausa necessária para compor um personagem.

Aliado ao excelente trabalho de fotografia de Roger Deakins (que aqui se faz tão presente quanto o trabalho de direção, pois tudo o que está nos cenários conta a história por si só), Mendes garante pulso firme do início ao fim. Tanto diretor quanto diretor de fotografia alimentam a história com elementos que ora nos fazem ver resquícios de esperança, ora nos fazem sentir a dor da guerra como ela é. Cavalos e soldados mortos que servem de escudo ou esconderijo chocam-se com a beleza de folhas de uma cerejeira no rio.

São essas nuances que permeiam a obra e é exatamente isso o que a torna diferente de filmes épicos de guerra como O Resgate do Soldado Ryan e Apocalipse Now; neste caso, elas se aproximam de obras como Platoon e O Franco-Atirador, pois tais histórias também ganham traços dedicados a expor o que a guerra faz com o homem enquanto indivíduo, e não só como as guerras são capazes de movimentar o mundo por completo.

Dedicado a deixar o espetáculo em segundo plano (com exceção da sequência em que Schofield corre no meio da primeira linha de soldados em meio a um ataque iminente, que é de tirar o fôlego), Mendes insere toda sua atenção ao fato de que esta é uma história que se desenrola ao longo de apenas um dia. O cenário é desolador, mas nem por isso ele nos impacta somente pela tristeza. Graças ao olhar do diretor para com seus atores, há esperança na melancolia e na urgência pelo sucesso da missão. Acima de ser uma grande experiência cinematográfica, 1917 também é uma prova de humanidade – e de como cada pequeno passo, seja numa caminhada ou numa corrida desenfreada, importa. (Adorocinema)

Em tempo: a primeira hora do filme é eletrizante.

21/02/2020
Moby Dick, 1956, John Huston


Houve um tempo em que o cinema se propôs a contar histórias. Histórias como contam tios e avôs às crianças da família, impressionando-as a ponto de arregalarem os olhos, aquietando os agitados, e fazendo com que a experiência permaneça pelo resto da vida. Para isso, os espectadores deixavam suas casas rumo a um lugar especial. A luz diminuía e o escuro isolava o apático cotidiano das pessoas do lado de fora, como se as defendendo do presente. Ao aumentar gradualmente, o silêncio eram as trombetas a anunciar o único recomeço possível. Como em A Rosa Púrpura do Cairo (1985), o delicado filme de Woody Allen, o cinema ocupava o espaço dos sonhos, possivelmente onde guardamos o melhor de nós.
John Huston foi um dos pilares desse momento mágico. A volúpia incontida por grandes histórias o fez levar à tela Moby Dick (1956), adaptação irretocável do clássico de Herman Melville. A história de Melville é a de Ismael, um homem à procura de aventuras que deem gosto e cor à existência. A busca o leva a embarcar no The Pequod, navio comandado pelo capitão Ahab. Homem de gênio complicado, entre as muitas peculiaridades do capitão está a obsessão com a baleia Moby Dick.
O trabalho de Huston para o seu Moby Dick é espantoso. Ainda que a comparação entre original e recriação seja sempre problemática – na maioria dos casos, um equívoco –, o diretor conseguiu igualar no cinema os méritos da obra literária. Narrado em primeira pessoa, o longa conta com Richard Basehart no papel de Ismael e o grande Gregory Peck como Ahab.
A sequência de abertura do filme, em que a narração em off, em primeira pessoa, nos apresenta o protagonista e os motivos para a viagem que empreenderá - e que, no fundo, sentimos estar empreendendo conjuntamente – é uma antecipação da escolha pela fidelidade literária. Assinado pelo diretor em dupla com o escritor Rad Bradbury, o roteiro equilibra as linguagens do cinema e da literatura em cenas antológicas, como a do sermão de Jonas e a baleia.
No início, o travelling nos leva à Igreja na qual podemos conferir uma série de inscrições alertando sobre os perigos do mar. Em seguida, o discurso impactante realizado por um Orson Welles pastor toma conta do filme. A sequência intercala os rostos amedrontados dos fiéis, entre eles o protagonista. Colocada pouco antes do início da aventura, a situação reforça a grandiosidade da empreitada em que estamos prestes a embarcar, assim como ressalta a possibilidade de não voltarmos vivos.
Reconhecidamente um realizador de épicos, Huston constrói Moby Dick apoiando-o sobre três ferramentas: as narrativas contundentes, as cenas grandiosas e a trilha sonora arrebatadora. Tal composição recria de maneira impressionante a atmosfera do gênero e os perigos em alto-mar. Tudo isso em sem deixar de lado o humor ácido característico do diretor, que encontra na figura da Igreja o alvo do momento.
Movido pela obsessão a um animal que amputara sua perna, Ahab é o personagem ideal paraJohn Huston. Atento às histórias em que os homens lutam contra fraquezas e inclinações, configurando batalhas psicológicas dificilmente passíveis de conciliação, Huston fez de Mody Dick o filme considerado impossível para muitos literatos. Da mesma forma, coroou a própria filmografia com uma obra retumbante. (Willian Silveira,)

24/02/2020
Nosferatu, 1922, F.W. Murnau


Nosferatu é um filme clássico do expressionismo alemão. Produzido em 1922, suas imagens de horror ainda conseguem nos surpreender. Foi baseado em Drácula, de Bram Stoker (1897). O diretor F. W. Murnau não conseguindo os direitos autorais com a viúva de Stoker, acabou produzindo uma versão independente, cuja narrativa preserva o enredo original de Stoker (uma das versões de Nosferatu apresenta o nome de cada personagem com seu equivalente no romance de Stoker).

Ao invés de Conde Drácula, Nosferatu é Conde Orlok, uma das mais fiéis representações filmicas do vampiro. Alto, esguio, esquálido, com orelhas, nariz e dentes pontiagudos, Murnau consegue representar com sucesso a figura do personagem macabro de Stoker. Na verdade, o horror se transfigura em Nosferatu. É a própria representação (e expressão imagética) do Mal e do estranhamento sugerido pela figura mítica do vampiro. O conteúdo do Mal se exprime com vigor na forma de apresentação do personagem. De fato, nunca o cinema de horror conseguiu expressar com tanta fidelidade a dimensão macabra da lenda do vampiro como em Nosferatu, de F.W. Murnau. O Conde Orlock, é, em si, uma figura estranha e aterrorizante. Como salientamos acima, sua imagem expressa o próprio conteúdo do seu ser maligno. Não existe em Nosferatu a dissimulação/ocultação da natureza maligna do vampiro. O horror se expressa em-si e para-si. O mal está entre nós e assim se apresenta em corpo, espírito e verdade. De certo modo, o vampiro de Murnau conseguiu ser a síntese estética do Horror que iria se abater sobre a civilização do Capital na década seguinte - nos anos de 1930 ocorreria a a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha, pre-anunciando o horror da II Guerra Mundial. É o que Arendt considerou a “banalização do Mal”. Nosferatu poderia ser considerado a própria expressão da “banalização do Mal”. Como Mr. Hyde, o personagem de Robert Louis Stevenson em O Médico e o Monstro (de 1886), Nosferatu consegue ser a expressão em imagem da essência do Mal. Como diz a abertura do filme, “Nosferatu é a palavra que se parece com o som do pássaro da morte da meia-noite”.   .... (Giovanni Alves,)

07/03/2020
Sétimo selo, 1957, Ingmar Bergman


'O Sétimo Selo' segue atual como antídoto à intolerância religiosa
Para o bem e para o mal, "O Sétimo Selo" ficou marcado na história do cinema pela imagem da partida de xadrez entre o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow) e a Morte (Bengt Ekerot). Por um lado, tratava-se de uma metáfora fácil de codificar, que ajudou a ampliar o público de Bergman. Por outro, a alegoria foi tão imitada por diretores menos talentosos que se banalizou. Na revisão do filme em uma cópia tinindo de nova, tudo fica mais nítido: as cenas de xadrez têm mais nuances e mais humor do que a memória do crítico conseguia guardar. Aliás, o filme retorna como um espetáculo menos sisudo, menos pomposo, distante da impressão de autoimportância que marcou a visão anterior. Claro, ainda estão lá os densos questionamentos religiosos e existenciais de Block quando ele retorna das Cruzadas para uma Suécia devastada pela peste negra e dominada pela Inquisição. Mas há também muita leveza, até alguma picardia, nas sequências dos artistas mambembes com que Block cruza. Bergman alterna os dois tons com elegância, sem sobressaltos, para criar uma obra que instiga e entretém.
A revisão ainda coloca em xeque o senso comum de que se trata de um cineasta teatral. A contenção das atuações, a inteligência dos enquadramentos e a fluidez da câmera negam essa hipótese. Por fim, é preciso reforçar que "O Sétimo Selo" continua bastante atual na sua defesa da arte como antídoto à intolerância religiosa em tempos apocalípticos –sejam os da peste negra na Idade Média, os da Guerra Fria na época de lançamento do filme ou os de iminente catástrofe ambiental no presente.
Se a resistência ao tempo é o atestado da relevância de um filme, então não há discussão: "O Sétimo Selo" merece seu status de obra-prima.
Ricardo Calil, FSP, 23/07/2015

10/03/2020
O matador, 1989, John Woo


Um assassino (Chow Yun-Fat) aceita um último trabalho para juntar a quantia que falta para o pagamento da cirurgia oftalmológica de sua namorada Jennie (Sally Yeh), que ele cegou acidentalmente em uma missão. Traído por seu contatante, ele acaba tendo de juntar forças com o inspetor (Danny Lee) designado para prendê-lo. Nasce aí uma sangrenta parceria.

Em tempo: um filme com a marca John Woo. Perfeito.

12/03/2020
As Duas Faces da Felicidade, 1964, Agnès Varda


A vida de François, um jovem carpinteiro, não poderia ser melhor. O sol brilha constantemente, os pássaros sempre estão a cantar, ele ama sua esposa e ela o ama de volta e seus dois filhos são belos e alegres. No entanto, um simples encontro quebrará o equilíbrio da vida de François e quando o carpinteiro percebe o problema, já está apaixonado por Emilie, apesar de ainda amar sua esposa.
O filme abre com um close de um girassol. Alternam-se tomadas em close do girassol com tomadas em plano geral de um grupo de girassóis em primeiro plano e, lá ao fundo, num gramado, fora de foco, um casal e duas pequenas crianças. François e Thèrese (na foto), jovem e belo casal, está passando um domingo de sol, de verão, num grande bosque, com seus dois filhinhos, Gisou e Pierrot. Os dois são jovens, belos e felizes, se amam e amam os filhos, e no domingo fazem piquenique no bosque... François, o carpinteiro criado por Agnès Varda, homem simples, bom, honesto, marido feliz que ama a mulher e os filhos, acredita que pode ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades. (Sergio Vaz )

Em tempo: um filme com marcas impressionistas de Agnès Varda.

15/03/2020
O homem do oeste, 1958, Anthony Mann

Link Jones (Gary Cooper) vai até a fronteira entre o Texas e o México para buscar uma professora. Quando o trem em que viaja é assaltado, Jones acaba abandonado em um local inóspito junto com uma cantora de cabaré (Julie London) e um trapaceiro (Arthur O'Connell). Ele decide então pedir ajuda a alguns de seus velhos amigos da região, que obviamente exigem algo em troca.
Anthony Mann, um dos maiores realizadores de westerns. Depois dele, Mann ainda faria a refilmagem Cimarron (1960), e em seguida lançaria duas grandes superproduções, El Cid (1961) e A Queda do Império Romano (1964), e terminaria a carreira gloriosa com um filme de guerra, Os Heróis de Telemark (1965), e um de espionagem, O Espião de Dois Mundos (1968).
O homem do Oeste do título é interpretado por Gary Cooper, e a segunda personagem mais importante da história foi feita por Julie London, a atriz e cantora de presença e voz sensualíssima que seduziu gerações inteiras.
Não foi muito bem recebido na época nos próprios Estados Unidos. Consta que o então jovem crítico Jean-Luc Godard, um adorador do cinema dos grandes realizadores de Hollywood, saudou L’Homme de l’Ouest como o melhor filme do ano, e aí os críticos americanos passaram a fazer uma revisão de seu julgamento inicial. Com o tempo, passou a ser respeitadíssimo; está, por exemplo, nos livros 1001 Filmes Para Você Ver Antes de Morrer e 501 Must-See Movies...
















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