Entrevista com Paulo Nakatani.
Professor titular do Departamento de Economia
da UFES, Paulo Nakatani comenta, na entrevista a seguir, sobre os
desdobramentos socioeconômicos da crise da sociedade capitalista, acelerada
pela pandemia do COVID-19. Em especial, o professor chama a atenção, por um
lado, para as medidas “draconianas”, que já estavam em curso e serão
intensificadas, de piora das condições de trabalho, da redução dos salários e
do flagelo do desemprego. Por outro,
para o papel do Estado que atua para salvar a acumulação de capital,
explicitando sua “unidade orgânica” com esse último.
1. À luz das contradições do capitalismo
contemporâneo gostaríamos que você analisasse a relação entre a pandemia de
Covid-19 e a profunda crise econômica mundial que ela inaugura.
Essa pandemia surgiu em um contexto em que o
capitalismo contemporâneo se encontra mundializado, em um estágio de
superacumulação de capital que se concentra na esfera financeira e
acumulando-se principalmente em diferentes formas fictícias. Além disso, a
concentração da riqueza e da renda em escala mundial, e particularmente no
Brasil, chegou a um estágio extremamente elevado, constituindo sociedades nas
quais uma parcela importante de suas populações são desnecessárias, supérfluas,
para a reprodução do capital, tanto como força de trabalho quanto como mercado
consumidor. Temos, então, como consequência, a enorme pressão ao aumento da
taxa de exploração da força de trabalho, pela desregulação das relações de
trabalho, sua precarização e a destruição das instituições, das políticas e
programas sociais.
A crise de 2007-2008 apareceu como se fosse
uma crise financeira, com a desvalorização maciça do capital monetário portador
de juros em suas diferentes formas fictícias. Mas, a rigor, teve seu fundamento
no mercado imobiliário (construção e venda de novos imóveis) dos Estados
Unidos, quando as famílias mais pobres não conseguiram mais manter o pagamento
das prestações dos financiamentos que haviam contratado, devido ao aumento da
taxa de juros. A resposta à crise foi uma brutal intervenção do Estado através
dos bancos centrais, o Federal Reserve nos EUA, o Banco Central Europeu, o
Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, que se destacaram pela política de
facilidades monetárias (quantitative easing) com a maciça criação monetária
para o resgate de capitais particulares, bancos e empresas diversas e a redução
das taxas básicas de juros, geralmente negativas em termos reais. Essa
intervenção possibilitou a retomada de atividades produtivas e a recuperação
das formas fictícias do capital monetário portador de juros, em poucos anos. Um
dos resultados foi a conversão de parcelas do capital fictício na forma da
dívida pública. Os impactos dessa crise espalharam-se por todo o mundo e se
estenderam no tempo, e algumas economias se mantiveram, em média, relativamente
estagnadas, até este ano de 2020. Sem contar que, nos países mais avançados, a
reprodução do capital em geral estava necessitando de uma nova rodada de
desvalorização, que vinha sendo anunciada por
muitos estudiosos.
A eclosão da pandemia de Covid-19 surgiu nesse
contexto de uma nova crise potencial que ainda estava latente, adicionando
novas variáveis.
A primeira variável foi a busca de manutenção
da legitimidade dos governos que deviam, ou deveriam, atender às necessidades
sanitárias e de saúde da população, pois, em termos concretos, se refere à
própria possibilidade de morte de centenas e milhares de pessoas. Para tanto,
os diferentes governos, em diferentes momentos, decretaram o confinamento mais
ou menos maciço da população, e alguns mais outros menos, o controle e o
bloqueio de viagens, tanto internas quanto internacionais. Em primeiro lugar,
esta medida interrompeu o fluxo e o movimento do capital nas atividades de
comércio, de serviços não essenciais e parte da produção material. Em segundo,
bloqueou a circulação do capital em suas formas autonomizadas de capital
comercial, capital monetário e capital produtivo. Este bloqueio, tem como
consequência a suspensão de atividades de produção de valor e mais valia, de
realização, ou venda, das mercadorias produzidas e o desemprego em massa dos
trabalhadores.
A segunda variável foi a demonstração efetiva
de que as sociedades submetidas ao modo de produção capitalista não têm como
objetivo as necessidades humanas, mas a própria reprodução do capital. Se
aceitamos que as determinações de confinamento são mais adequadas à redução das
mortes, uma parcela daqueles que são contrários estão se manifestando por todas
as partes. O retorno dos trabalhadores para a produção de valor e mais valia é
mais importante do que a vida de uma parte da população.
2. Diante do colapso da produção e dos
mercados financeiros pelo mundo afora, criou-se um pretenso consenso em torno
da necessidade da intervenção do Estado, com vistas a minimizar os efeitos da
crise e reduzir sua duração. Como você avalia o sentido geral das medidas
estatais que estão sendo implementadas? Com base na experiência histórica
recente é possível especular sobre seus efeitos de curto e médio prazo?
O debate a favor ou contrário à intervenção do
Estado na economia refere-se ao campo da economia burguesa, entre ortodoxos e
heterodoxos. Seu fundamento é a separação entre a esfera da economia e da
política ou do público e privado. Para os marxistas, Estado e Capital
constituem uma unidade orgânica e não tem sentido discutir se a intervenção é
necessária ou não, a não ser ao nível da aparência. A gênese das diferentes
formações econômico-sociais capitalistas a formação do Estado capitalista e o
desenvolvimento das relações capitalistas de produção e das classes sociais
fundamentais ocorreram ao mesmo tempo.
As ações estatais sobre as unidades
particulares de capital, no curso das crises, foram sendo desenvolvidas
historicamente, com teorias, modelos e instrumentos, em particular a partir da
grande depressão dos anos 1930. Assim, as medidas de política econômica
resolvem em parte as contradições próprias ao capital em geral através de
medidas voltadas a certas unidades particulares do capital, mas engendram novas
contradições. Dessa maneira, no período entre o final da Segunda Guerra Mundial
e a década de 1970, conhecido como os anos dourados, o sistema mundial foi relativamente
regulado e controlado pelo Estado. Foi um período também chamado de economia
mista, em que aparentemente as crises haviam sido superadas. Entretanto, o
capitalismo não deixou de funcionar de forma cíclica, e as elevadas taxas de
crescimento deveram-se fundamentalmente à reconstrução dos capitais após a
maciça destruição física dos capitais e da riqueza acumulada antes da guerra,
principalmente da Europa e Japão, e à gigantesca destruição da força de
trabalho.
As medidas de política econômica adotas na
crise atual são condicionadas pelas condições atuais da acumulação capitalista,
além dela estar sendo diagnosticada como uma crise sanitária. Por um lado,
observamos novamente a ação estatal voltada para o sistema de crédito, em
particular a criação de moeda, o quantitative easing, para reduzir a destruição
do capital em suas formas fictícias, o mercado acionário e de dívidas privadas,
e para preencher os espaços na circulação dos capitais particulares, através do
crédito a taxas de juros reduzidas ou subsidiadas e da manutenção de uma parte
da renda dos trabalhadores. Por outro lado, a caracterização da crise como uma
crise sanitária, traz como fator de legitimação a suposta ajuda aos pobres.
No curto prazo, as medidas de política
econômica deverão amenizar o impacto da crise do capital. Deve reduzir a
destruição das unidades particulares de capital e amenizar os efeitos dos
bloqueios e supressão de parte das cadeias produtivas. No longo prazo, tanto a
concentração do capital anteriormente existente, quanto as desigualdades na
distribuição da riqueza e da renda não serão reduzidas, ao contrário pode
tornar-se ainda mais aguda. Isso porque a gigantescas unidades particulares de
capital, as grandes corporações, têm recursos acumulados que não só permitem
que se mantenham como tendem a receber mais benefícios das políticas
econômicas. Mas, as micro, pequenas e médias unidades de capital deverão sofrer
mais intensamente os impactos da crise, muitas destas unidades deverão
desaparecer ou passar por um novo processo de centralização.
3. O que essas medidas estatais revelam sobre
a relação entre Estado e economia?
Elas revelam a unidade orgânica entre Estado e
Capital. Revelam, igualmente, que a gestão do capital e da força de trabalho são
realizadas por grupos e instituições estatais que não têm conhecimento das
determinações fundamentais do modo capitalista de produção. Mas essas
determinações fundamentais aparecem mediadas pelo processo histórico que
produziu em cada sociedade uma relação conjuntural de forças entre as classes
sociais e pelas diferentes formas de comportamento, sejam elas solidárias ou
egoístas. Esses comportamentos aparecem, tanto no tratamento médico imediato da
parcela da população infectada pelo vírus, quanto nas mais diversas ações de
apoio e distribuição de doações aos mais necessitados. Aparecem, também, no
comportamento da parcela que defende seu capital particular, suas rendas
individuais e as formas e padrões de vida mais sofisticados da sociedade de
consumo capitalista.
4. Você considera que estamos diante do
colapso do neoliberalismo? E, nesse caso, parece plausível uma espécie de
revitalização do keynesianismo e do Estado de bem-estar social?
O neoliberalismo como ideologia e política
econômica não deverá entrar em colapso. Isso porque respondem às necessidades
do capital no estágio atual do capitalismo. O neoliberalismo não significa uma
oposição à chamada intervenção estatal, sempre que necessário, há intervenção
estatal para salvar capitais particulares em momentos de crise. O
neoliberalismo significa que a forma e os instrumentos de intervenção foram
modificados. As desregulamentações, chamadas de três D (desregulamentação,
desintermediação e descompartimentalização) exigiram uma profunda e feroz
intervenção estatal, que não serão revertidas, pois significariam amarras e
limites à exploração capitalista.
O keynesianismo e o Estado de bem-estar social
foram desenvolvidos em um momento particular da história, a reconstrução do
pós-guerra na segunda metade do século XX. Por um lado, pelas necessidades da
própria acumulação de capital e por outro, pela aguda luta de classes no
pós-guerra, combinada com a necessidade de recuperação da força de trabalho
destruída durante a guerra. Ao contrário do que foi muito disseminado, os
sucessos dos anos dourados do pós-guerra não foi, a rigor, resultado de
políticas econômicas keynesianas, mas à retomada da acumulação de capital
determinado pelas condições concretas da reconstrução no período.
Para o capital, o bem-estar das classes
trabalhadoras não tem nenhuma importância, salvo quando, no plano concreto, as
condições de vida destas classes possam leva-las até uma situação de
desobediência civil e insurreição. No momento atual, as frações de classe mais
extremadas defendem condições para acabar com o bem-estar das classes
trabalhadoras, isso quando não defendem políticas para exterminá-las.
A ideia de uma revitalização do keynesianismo
encontra muitos problemas. É comum atribuir esse adjetivo à uma política de
gastos públicos, com déficits orçamentários, que trariam benefícios à classe
trabalhadora. Considero que esse ponto de vista é um equívoco. Os diferentes
governos, nas condições atuais da crise do capital, aguçada pelo novo
coronavírus, estão efetuando gastos públicos para atender à conjuntura
particular da disseminação do vírus. Muitos poderão desmontar o sistema criado
especialmente para atender aos imperativos da acelerada infecção de enormes
massas populacionais em busca de uma legitimidade, mesmo que não tenham nenhuma
noção desta busca. Ademais, o keynesianismo, de Keynes, nunca avançou no
sentido de realmente superar as condições subalternas da classe trabalhadora.
Keynes esperava que o mercado, comandado pelos capitais, atingisse um estágio
do que poderíamos chamar de capitalismo bonzinho, que reduzisse a jornada de
trabalho e criasse um tempo livre para as pessoas. Não tinha ideia do que isso
era para os trabalhadores, pois exemplifica com as madames de seu círculo
pessoal.
5. Estaríamos, ao contrário, diante de limites
intransponíveis do próprio capitalismo? Nesse caso, quais as perspectivas que
se abrem?
Não estamos em limites intransponíveis para o
capitalismo. A unidade Estado e Capital deverão propiciar as condições de
reprodução ampliada do capital, em particular em suas formas fictícias e
acentuar a exploração da força de trabalho. É a maior parte da sociedade que
deve estabelecer os limites ao capital. Infelizmente não é o que se observa no
momento. Do ponto de vista da sociedade e da maioria da população mundial, o
capitalismo já atingiu seus limites há décadas e deveria ser superado por uma
nova forma de organização social.
Infelizmente, considero que as perspectivas
que se abrem não são muito animadoras, se acompanhamos análises e
interpretações sobre a crise atual. Uma parte importante de analistas e
intelectuais não estão colocando a questão da superação do capitalismo. Aliás,
esta questão não é necessariamente aquela que responde aos interesses das
grandes massas de trabalhadores. Além disso, massas gigantescas de
trabalhadores estão se defrontando com o desemprego e desaparição das
possibilidades de obtenção de alguma forma de renda em todas as atividades
chamadas ou de informais ou eufemisticamente de empreendedorismo.
Em termos do capitalismo, é mais um momento de
uma crise extremamente grave no movimento cíclico do capital. Mas não
representa, necessariamente uma situação intransponível para o capital. Os
diferentes governos estão atuando, não só com respostas à crise sanitária, mas
com ações para a recuperação e reconstituição do capital em geral e das
principais unidades particulares. Esta crise está permitindo que, para a
reprodução do capital, mais medidas draconianas de repressão aos trabalhadores,
de redução de suas condições de vida e a supressão de muitas décadas de
vitórias nas relações trabalhistas estejam sendo efetivamente pulverizadas em
curtíssimo prazo.
Grupo de Conjuntura da UFES / PAINEL DE CONVIDADOS
Publicado em 6 de maio de 2020 por Luiz.C.Jesus
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