sábado, 7 de setembro de 2019

O Narciso de Caravaggio

O meme do Caravaggio
Tela em museu próximo à capital alemã faz jogo de espelhos com museu italiano — e interpela o nosso narcisismo de celular


Narciso (1597-9), pintura de Caravaggio

Nos últimos meses, o Narciso de Caravaggio e seu espectro têm flutuado em pôsteres nas estações de trem em Berlim. Nas plataformas, diante da reprodução da pintura que guarda um duplo de si mesma, sempre há alguém de pé encarando o celular, colocando entre si e o mundo um outro tipo de espelho. 

Emprestado até outubro pela Galeria Nacional de Arte Antiga, sediada no Palácio Barberini, em Roma, o quadro é o carro-chefe da exposição Caminhos do Barroco, no Museu Barberini — o Barberini local. Cópia opaca, baseada num modelo em bronze do palácio romano de mesmo nome, o Barberini de Potsdam é um enclave de arquitetura italiana à beira do Havel. Construído no século 18 por Frederico, o Grande, e bombardeado nos estertores da Segunda Guerra Mundial, foi reerguido entre 2013 e 2016 para abrigar a coleção privada do proprietário da multinacional de software sap, Hasso Plattner.

O site do instituto com o nome de Plattner tem cinco fotos suas e um vídeo estrelado por si próprio, um altruísta que gosta de holofotes. A outro mecenas dado a erguer palácios com obras de arte é reservado semelhante destaque no primeiro andar do museu, onde vemos o papa Barberini posar na tradição francesa dos enormes retratos oficiais a óleo. Ao longo dos séculos, monarcas, papas e, hoje, capitalistas grisalhos mantêm a pretensão de se imortalizar ao abrir fundações, atuar como curadores e construir (ou copiar, ou reformar) palácios.

A sala onde está o Narciso não é a central e tampouco das maiores; estas estão ocupadas com uma seleção de discípulos e imitadores de Caravaggio, obras também vindas do Museu Barberini original em Roma. Trata-se de evidente espelhamento: o destaque da exposição é um quadro sobre um reflexo, os outros quadros são todos de reprodutores de Caravaggio e o próprio prédio é a cópia do principal museu que os abriga. O labirinto barroco e seu jogo de espelhos, máscaras e simulacros é representado pela própria estrutura que recebe a exposição.

Pintado entre 1597 e 1599, o Narciso é do início da carreira de Caravaggio em Roma, e só foi redescoberto  no século 20, pelo historiador Roberto Longhi em 1916 — apenas dois anos após o ensaio de Freud “Sobre o narcisismo”, que define o conceito psicanalítico como organizador do ego. Freud ou Longhi seriam incapazes de prever tamanha popularização do conceito — e muito menos o sofisticado aparato que carregaríamos no bolso para projetar versões de nós mesmos um século depois.

Teatro

O chiaroscuro é luz de teatro e aqui vemos o Narciso iluminado por um refletor de palco que apenas mostra o que devemos ver — o resto é um bloco negro sobre as costas do personagem, refletido mais abaixo em tons lavados. Caravaggio retrata o jovem agachado com as mãos na beira d’água numa composição que o aprisiona numa dança consigo mesmo: o braço esquerdo, imerso na água até o pulso, se prolonga no reflexo. Igualmente, a mão direita encontra o seu duplo na superfície da água — ele então parece um oroboro humano, uma figura antropomórfica presa num círculo.

Narcotizado de si mesmo, o personagem inclina a cabeça para baixo num movimento em direção ao próprio reflexo. Pelos músculos do pescoço e do braço direito, vemos que Narciso faz um esforço descendente e gradual. Um dos aspectos mais impressionantes é esse movimento: quando nos distraímos e voltamos a ele, a impressão é de que Narciso está um pouco mais perto do espelho. Quanto aos olhos, talvez seja o esforço, talvez o êxtase, mas ele os fecha em dois traços negros. A imagem no reflexo, de traços expressionistas, monstruosos, remete a um Goya das Pinturas negras (1819-23), lapso pré-moderno que ultrapassa os séculos nas águas turvas de Caravaggio.

Ao mesmo tempo que o Narciso de Caravaggio é um daqueles memes que atraem milhões de turistas, o termo originado pelo personagem mitológico atravessou o tempo de Ovídio e Pausânias, passando por Dante e Petrarca, até os dias de hoje. Já nos anos 1970, sociólogos começaram a tratar nossa era como narcísica e, desde então, à medida que escalamos as últimas fases do capitalismo tardio, o tal ethos só se fez mais presente. O cardápio é infinito: individualismo, consumismo, autopromoção, busca por fama, cocaína, cirurgias plásticas, obsessão pelo corpo, reality shows, redes sociais.

A depender, psicanalistas normatizam a condição — ou a tratam como epidemia no consultório. Se a presença de traços de caráter narcisista é aceita como um denominador comum entre os seres humanos, os extremos do espectro são classificados como distúrbio de personalidade pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (APA).

Não se trata simplesmente de vaidade desmedida ou de um Instagram cheio de selfies. Grosso modo, uma pessoa com distúrbio de personalidade narcisista é definida pela necessidade parasitária de se alimentar dos outros ao mesmo tempo que possui um senso de autoimportância desproporcional. Ao contrário do que poderia acontecer com narcisistas menos patológicos, sua necessidade de admiração não acompanha empatia alguma a sentimentos alheios e tampouco algo que psicólogos chamam de constância de objeto.

Muitos dos adultos que guardam o mecanismo de defesa de uma criança abandonada podem virar abusadores tóxicos, envolvendo familiares e parceiros em jogos de manipulação, controle via dissonância cognitiva e ciclos de sedução, desvalorização e descarte.

O que faz do Narciso de Caravaggio em Potsdam mais trágico do que belo em 2019 é pensar que tal processo pode ser coletivo. Sociedades que elegem narcisistas patológicos como Trump ou Bolsonaro se tornam perversas — ou vice-versa, uma vez que eles são espelhos perfeitos do éthos narcisista. Projetos de poder baseados em onipotentes sonhos de grandeza e em falta de empatia são gerados por traumas coletivos mal resolvidos (pense na escravidão ou na Lei de Anistia) e criadores de traumas ainda piores no futuro.

Quando o passado jamais se transforma em História, parecemos fadados a repeti-la — como um reflexo.

J. P. Cuenca
01 setembro 2019


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