quarta-feira, 16 de agosto de 2017
Feliz dia dos pais, João
A paternidade continua um privilégio de quem consegue receber e um favor de quem consegue exercer
Ana Paula Lisboa, O Globo – 16/08/2017
Minha mãe é filha de um homem mestiço português, e vem daí esse meu sobrenome da capital lusitana que muitos aqui em Luanda acreditam ser meu nome artístico.
Quando meu avô conheceu minha avó, ela era bem jovem, e ele, já um homem velho e casado com uma senhora branca, mas com muitas mulheres e, consequentemente, muitos filhos espalhados no mundo. Minha mãe era a única dos filhos fora do casamento que fora registrada por ele. Segundo meu avô, essa era a maior prova de amor que ele poderia dar à minha avó: acreditar que aquela filha era dele e dar a ela o seu sobrenome.
Minha avó faleceu, infelizmente, antes dos 50 anos, de um derrame cerebral. No dia do seu enterro, já há anos deixado por ela e cheio de recalque, meu avô soltou a seguinte pérola: “Filho de minhas filhas, meus netos são, de minhas noras serão, ou não?” Eu demorei anos pra entender o que esse ditado complexo significava, mas sabia que era algo muito ruim, porque minha mãe desde então cortou relações com meu avô e, mesmo depois de sua morte, nunca mais voltamos a Magalhães Bastos. A última notícia que tenho é de uma herança que minha mãe faz questão de não receber.
Eu sei que ela vai me matar quando ler essa coluna, mas eu precisava contar toda essa história íntima da minha família para dizer que ainda existem homens como o meu avô e filhas como a minha mãe. E que minha maior curiosidade está nos tios e primos que tenho pelo mundo e não conheço.
Sim, porque dados do Conselho Nacional de Justiça de 2011 dizem que mais de um quarto da população brasileira não tem na certidão de nascimento o nome do pai. O Estado do Rio lidera o ranking, com quase 700 mil crianças com “pai desconhecido”. A esses meus tios e tias foi privado o direito à personalidade e à identidade, a ter uma história de família para contar.
Nesse quase um mês fora do Rio, o que tem me guiado é pensar que “se você não sabe para onde está indo, saiba pelo menos de onde veio”.
Repararam no último domingo que, diferente do Dia das Mães, em que as redes sociais ficam repletas de amor, de agradecimento e de saudades, o Dia dos Pais traz uma enxurrada de ressentimento, de relações interrompidas ou que começaram tardiamente, de relatos de abandono e de tristeza? Parece até que pai se tornou aquilo que a gente nunca viu, nem comeu, só ouviu falar e admira nas fotos dos outros.
Porque é claro que há também as declarações de amor, de orgulho, de saudades, há os almoços, os churrascos, há a música do Fábio Júnior e a da Legião Urbana, há o perdão. Mas mesmo para essas pessoas, ter um bom pai parece ser um privilégio.
Por aqui o domingo foi normal, já que a data — Dia do Pai — é comemorada em 19 de março, dia de São José, o pai “adotivo” de Jesus. E mesmo o cristianismo não sendo uma referência atual pra mim, pareceu-me bem mais coerente que no Brasil, onde a data foi pensada por um publicitário.
A referência contemporânea mais antiga é que no início do seculo XX Sonora Luise resolveu homenagear seu pai, um veterano de guerra nos Estados Unidos, que foi pai solo de seis filhos depois que a esposa faleceu. No dia do aniversário dele, ela espalhou cartazes por toda a cidade com os seus feitos e emocionou todo o país.
Sem saber do feito de Sonora, eu fiz um post na semana passada pedindo para que pessoas usassem um tempinho do seu dia e ligassem para o meu pai, que fez aniversário do último dia 6 e que por não possuir nenhuma rede social, não havia recebido nenhuma declaração minha. Mais de 20 pessoas se disponibilizaram e ligaram para o meu pai, não sei se isso quer dizer alguma coisa, mas desses, só dois eram homens. E o presente no fim não foi pra mim ou para ele, foi para essas pessoas, que me devolveram emocionadas frases como “por um tempinho eu tive pai”.
Não é por acaso que Sonora tenha resolvido homenagear o pai depois de ouvir um sermão sobre as mães. Segundo a história, ela percebeu o quanto toda a abnegação feminina estava presente nos feitos do pai, e desde então pouca coisa mudou.
A paternidade continua um privilégio de quem consegue receber e um favor de quem consegue exercer. Enquanto a maternidade se entende como um dom natural.
Não é só sobre pagar pensão ou dar o seu nome, tem a ver com “romper com esse padrão histórico e compulsório do abandono, do desapego e do descompromisso com a paternidade frente a questões da reprodução da vida, do amor e da criação das pessoas”.
Tem a ver com expectativa social que se cria sobre o que é ser pai e, consequentemente, sobre o que é ser mãe, porque é realmente impossível descolar uma coisa da outra. Tem a ver com homens que formam outros homens.
Tem a ver especialmente com João, meu mais jovem afilhado, que nasceu bem no dia do aniversário do meu pai. Porque João tem um desses “pais desconhecidos” que todo mundo conhece. Porque João tem irmão, tem avô, tem primos e talvez João nunca os conheça. Eu fico pensando se João fará uma postagem de rancor no Dia dos Pais.
Não, João fará posts de quem nessas datas agradece à vida pela mãe, pela avó, pelas madrinhas e se orgulha por romper esse ciclo e ser um homem diferente.
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