segunda-feira, 29 de abril de 2019

Abraço da serpente

(El abrazo de la serpiente) O abraço da serpente, 2015

https://www.imdb.com/title/tt4285496/


Logo de início, o preto e branco salta aos olhos. Não apenas pelo inusitado que é ver a floresta amazônica completamente sem cores, mas também pela beleza trazida pela proposta estética implementada pelo diretor Ciro Guerra e o diretor de fotografia David Gallegos. Este, no fim das contas, é um dos grandes trunfos entregues por esta produção colombiana, a primeira do país a conseguir uma vaga entre os indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
De fundo científico, O Abraço da Serpente é baseado nos diários de dois exploradores europeus, que vagaram pela Amazônia decididos a desvendar seus segredos nos primórdios do século XX. Cada um deles estrela uma ponta desta história, que tem no xamã Karamakate o elo de ligação. É ele quem conduz Théo (Jan Bijvoet) em sua jornada febril em busca de uma planta milagrosa, que pode salvá-lo da doença, e também quem, 40 anos depois, é procurado por Evan (Brionne Davis), que deseja seguir os passos de seu antecessor. Ao longo da jornada, é interessante notar a mudança de postura de Karamakate nestes dois momentos, revelada aos poucos.

Com a narrativa vagueando sem parar entre o passado e o presente, O Abraço da Serpentepor vezes confunde o espectador pela ausência de elementos que difereciem cada época. A floresta, incólume na sua ausência de cores, também auxilia nesta dificuldade de percepção, já que a passagem do tempo é perceptível apenas em padrões humanos - os índios e brancos que por lá passeiam são apenas residentes temporários, enquanto a floresta permanece sempre.
Diante desta proposta de valorização da natureza e dos povos que vivem dela, o longa-metragem logo se torna um imenso estudo antropológico, como poucas vezes o cinema já produziu. Questões relevantes como a influência das missões jesuítas são apresentadas com uma crueza impressionante, sem se ter à versão oficial promulgada pela Igreja. Da mesma forma, o preconceito latente do homem branco perante os índios - e até mesmo entre as diferentes tribos - é ampliado à medida que a loucura da selva toma conta dos forasteiros. Isto sem deixar de lado os costumes indígenas, seja através de Karamakate ou de personagens menores que povoam a história.

Visualmente impressionante, O Abraço da Serpente demonstra força ao trazer uma jornada que explore também crenças e descobertas, sejam estas físicas ou de espírito. Se em certos momentos apresenta-se confuso, isto é também pela proposta narrativa fora do convencional e, de certa forma, ousada.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236295/criticas-adorocinema/  25/04/2019

Considerações sobre

Primeiro

Cayahuari Yacu, the jungle Indians call this country, the land where God did not finish Creation. They believe only after man has disappeared will He return to finish His work. 
(do filme Fitzcarraldo), Terra inacabada

Esta citação do filme Fitzcarraldo, 1982, de Werner Herzog, tem a ver com o tema do filme "Abraço da Serpente". Novamente os conflitos entre o estrangeiro, o estranho no mundo dos povos originários, na época provocados, também, pelo ciclo da borracha na floresta amazônica. Além da intervenção deletéria dos jesuítas. A personagem principal: a natureza. Questão ainda presente na década de 2010, infelizmente.

Segundo

Outra semelhança: “Coração das trevas” (Heart of Darkness) de Joseph Conrad (1857 – 1924). Muda o espaço, mas o tempo é o mesmo. Congo, África, colônia da Bélgica, início do século XXI. Sai a borracha, entra o marfim. Os conflitos? Parecidos. Na floresta amazônica do “Abraço da serpente” tem a personagem insana El Mesias (Nicolás Cancino) que, por sinal, fala em português / brasileiro. No “Coração das trevas” tem Kurtz. El Mesias e Kurtz são feitos um para o outro.

Terceiro

“Abraço da serpente” é um filme obrigatório

sábado, 27 de abril de 2019

LULA


Lula fala sobre prisão, Moro, Bolsonaro e STF; veja versão completa de entrevista.

Na cadeia, ex-presidente diz que Supremo já demonstrou coragem e fala em discutir questão ética sobre sítio

Mônica Bérgamo, 27 abril, 2019
CURITIBA

Ex-presidente Lula falou com exclusividade nesta sexta-feira (26) à Folha e ao jornal El País em sua primeira entrevista desde que foi preso, em abril de 2018.
Em duas horas e dez minutos de conversa —veja aqui a íntegra do vídeo com a entrevista—, o ex-presidente falou da vida na prisão, da morte do neto, do governo de Jair Bolsonaro (PSL), das acusações de corrupção contra ele e da possibilidade de nunca mais sair da prisão, dentre outros temas.
Lula disse ter "obsessão de desmascarar" o agora ministro da Justiça, Sergio Moro, que enquanto juiz da Operação Lava Jato o condenou pelo caso do tríplex em Guarujá (SP). Também afirmou estar determinado a provar sua inocência.
Na entrevista, o ex-presidente faz um aceno ao Supremo Tribunal Federal. "Ela [corte] já demonstrou que teve coragem e se comportou", em referência a votações anteriores para temas polêmicos. "No meu caso a única coisa que eu quero é que votem com relação aos autos do processo", afirma.
Após uma batalha judicial na qual a entrevista chegou a ser censurada pelo STF, decisão revista na semana passada pelo presidente da corte, Dias Toffoli,  o petista recebeu os dois veículos em uma sala preparada pela Polícia Federal na sede do órgão em Curitiba, onde está preso.
Lula foi preso em abril de 2018 após ter sido condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a segunda instância da Justiça Federal, por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex.
Na terça-feira (23), em decisão unânime, a Quinta Turma do STJ reduziu a pena do ex-presidente e abriu caminho para ele saia do regime fechado ainda neste ano. O tribunal manteve a condenação do petista, mas baixou a pena de 12 anos e 1 mês de prisão para 8 anos, 10 meses e 20 dias.
O petista já foi condenado também no caso do sítio de Atibaia (SP) —a 12 anos e 11 meses, na primeira instância, por lavagem de dinheiro e corrupção. O caso, porém, ainda passará pela análise do TRF-4.
"Então, se eu cometi o erro de ir num sítio em que alguém pediu e a Odebrecht reformou, vamos discutir a questão ética. Aí é outra questão", afirma Lula na entrevista, cuja versão completa segue abaixo.

A gente queria começar falando sobre a prisão do senhor. O que passou por sua cabeça quando estava sendo preso?

Durante todo o processo, eu sempre tive certeza, [pelos] discursos da Lava Jato, de que [a operação] tinha um objetivo central, que era chegar em mim. Aliás uma jornalista importante, amiga nossa, escreveu um artigo em que dizia: o que eles querem é o Lula. E isso foi ficando patente em todos os depoimentos.
A imprensa retratava: prenderam fulano. Vai chegar no Lula. Prenderam fulano. Vai chegar no Lula. E muita gente que era presa, a primeira pergunta que faziam [para a pessoa] era: "Você é amigo do Lula? Você conhece o Lula?".
A imprensa retratava, as pessoas contavam, advogado conversava com advogado. E foi ficando patente que o objetivo era chegar em mim. Tinha companheiros no PT que não gostava quando eu dizia isso. "Eles vão chegar em mim e depois vão caminhar para criminalizar o PT."
Muita gente achava que eu deveria sair do Brasil, ir para uma embaixada, que eu deveria fugir. E eu tomei como decisão que o meu lugar é aqui [no Brasil].
Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o [ex-juiz e ministro Sergio] Moro, de desmascarar o [procurador Deltan] Dallagnol e a sua turma, e desmascarar aqueles que me condenaram, que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade.
Eu quero provar a farsa montada. Montada aqui dentro, montada no Departamento de Justiça dos EUA, com depoimento de procuradores, com filme gravado, e agora mais agravado com a criação da fundação criança esperança do Dallagnol, pegando R$ 2,5 bilhões da Petrobras para criar uma fundação para ele.
Eu tenho uma obsessão. Você sabe que eu não tenho ódio, não guardo mágoa porque, na minha idade, quando a gente fica com ódio a gente morre antes.
Então como eu quero viver até os 120 anos, porque eu acho que sou um ser humano que nasceu para ir até 120 [anos], eu vou trabalhar muito para provar a minha inocência e a farsa que foi montada.
Por isso eu vim para cá com muita tranquilidade. Havia uma briga no sindicato aquele dia [da prisão, em abril de 2018], entre os que queriam que eu viesse e os que queriam que eu não viesse [para a prisão].
E eu tomei a decisão. Eu falei "olha, eu vou". Eu vou lá. Eu não vou esperar que eles venham até mim. Eu vou até eles porque eu quero ficar preso perto do Moro. O Moro saiu daqui [de Curitiba]. Mas eu quero ficar preso. Porque eu tenho que provar a minha inocência.

O senhor, concretamente, é um fato, pode ser que fique aqui para sempre. O senhor mesmo assim acha que tomou a decisão correta? 

Tomaria outra vez.

O senhor já pensou que pode ficar aqui para sempre?

Não tem problema. Eu tenho certeza que eu durmo todo dia com a minha consciência tranquila. Eu tenho certeza que o Dallagnol não dorme, que o Moro não dorme. E aqueles juízes do TRF-4 (Tribunal Regional Federal), que nem leram a sentença? Fizeram um acordo lá [entre eles]. Era melhor que um só tivesse lido e falado "olha, todo mundo aqui vota igual".
Então, sinceramente, quem tem 73 anos de idade, quem construiu a vida que eu construí nesse país, quem estabeleceu as relações que eu estabeleci nesse país, quem fez o governo que eu fiz nesse país, quem recuperou a auto estima e o orgulho do povo brasileiro como eu e vocês fizemos no meu período de governo, não vou me entregar.
Então eles sabem que eles têm aqui um pernambucano teimoso. É o que eu digo sempre. Quem nasceu em Pernambuco e não morreu de fome até os 5 anos de idade, não se curva mais a nada.
Você pensa que eu não gostaria de estar em casa? Adoraria estar em casa com a minha mulher, com os meus filhos, os meus netos, os meus companheiros. Mas não faço nenhuma questão. Porque eu quero sair daqui com a cabeça erguida como eu entrei. Inocente. E eu só posso fazer isso se eu tiver coragem e lutar por isso.

Com a decisão da Justiça de que a OAS devolva o dinheiro do apartamento de dona Marisa, o senhor acredita em sua absolvição?

Por incrível que pareça, eu acredito. Eu ainda continuo com a cabeça de Lulinha paz e amor. Eu acredito na construção de um mundo melhor, de um mundo de Justiça.
Eu penso que haverá um dia em que as pessoas que irão me julgar estarão preocupadas com os autos do processo, com as provas, e não com a manchete do Jornal Nacional, com a capa das revistas, com fake news.
As pessoas se comportarão como juízes supremos, de uma corte [o STF] [da qual] não podemos recorrer. E que já tomou decisões muito importantes.
Essa corte, por exemplo, votou [a liberação de pesquisas com] células-tronco contra uma boa parte da Igreja Católica. Já votou a questão [da demarcação da área indígena de] Raposa Serra do Sol contra os poderosos do arroz no estado de Roraima. Essa mesma corte votou a união civil [de homossexuais] contra todo o preconceito evangélico. Essa corte votou as cotas para que os negros pudessem entrar [nas universidades]. Ela já demonstrou que teve coragem e se comportou.
Ora, no meu caso a única coisa que eu quero é que votem com relação aos autos do processo. Eu não peço favor de ninguém, eu não quero favor de ninguém. Eu só quero que as pessoas, pelo amor de Deus, julguem em função das provas.
Porque eu tenho certeza, o Moro tem certeza [de sua inocência]. Se as pessoas não confessarem agora, no dia da extrema-unção vão confessar. Ele tem certeza que eu sou inocente. Esse Dallagnol tem certeza de que ele é mentiroso. E mentiu a meu respeito. Então eu tô aqui, meu caro, para procurar justiça, para provar inocência. Mas estou muito mais preocupado com o que está acontecendo com o povo brasileiro. Porque eu posso brigar e o povo nem sempre pode.

O senhor, durante esse um ano, passou por dois momentos de muita tristeza, que foi a morte do seu irmão e depois a morte do seu neto Artur. O que, para o senhor, depois de viver isso, fica da vida? 

Esses dois momentos foram os mais graves. Eu poderia incluir a perda de um companheiro como o [ex-deputado] Sigmaringa Seixas, que era meu companheiro de dezenas e dezenas de anos. A morte do meu irmão Vavá... O Vavá era como se fosse um pai da família toda. E a morte do meu neto é uma coisa que efetivamente não, não... [chora].
Eu às vezes penso que seria tão mais fácil que eu tivesse morrido. Eu já vivi 73 anos, poderia morrer e deixar o meu neto viver. Mas não são apenas esses momentos que deixam a gente triste.
Eu tento ser alegre e trabalhar muito a questão do ódio. Eu trabalho muito para vencer a questão do ódio. A questão da mágoa profunda.
Quando eu vejo essa gente que me condenou na televisão, sabendo que são mentirosos, sabendo que forjaram uma história... Aquela história do power point do Dallagnol, nem o bisneto dele vai acreditar naquilo. Nesse messianismo ignorante.
Então eu tenho muitos momentos de tristeza aqui. Mas o que me mantém vivo, e é isso o que eles têm que saber, eu tenho compromisso com esse país.
Eu tenho compromisso com esse povo. E eu estou vendo a obsessão que está acontecendo agora. De destruir a soberania nacional. De destruir empregos. De juntar R$ 1 trilhão, para que? Às custas dos aposentados?
Se eles lessem alguma coisa, se eles conversassem, eles saberiam que esse cidadão aqui, analfabeto, com um curso de torneiro mecânico, juntou R$ 370 bilhões e dólares de reservas, que a R$ 4 o dólar dá mais de R$ 1,2 trilhão, sem causar nenhum prejuízo a nenhum brasileiro.
Então, se eles querem economizar R$ 1 trilhão tem uma fórmula secreta: coloque o povo no orçamento da União. Gere emprego. Gere crédito para as pessoas.
Ah, o povo tá devendo? Tire todo o penduricalho da dívida do povo e ele paga apenas o principal no banco e você vai perceber que as pessoas voltam a comprar. Um país que não gera emprego, não gera salário, não gera consumo, não gera renda, quer pegar do aposentado e do velhinho R$ 1 trilhão? O Guedes precisava criar vergonha.
Onde ele fez esse curso de economia dele? Se ele quiser me visitar aqui, eu discuto com ele esse problema dos pobres sem causar prejuízo aos pobres. Por que ele não mostra os privilegiados [de quem] eles falam que vão acabar com os privilégios? Coloca a lista no jornal de dez privilegiados. Coloca o nome, CPF. Não.
É o coitado que vai ter que trabalhar até 65 anos, que vai ter que contribuir 40 anos [para se aposentar]. Ele não percebe que muita gente morre sem chegar a essa idade. Lamento profundamente o desastre que está acontecendo nesse país. E é por isso que eu me mantenho em pé.
No dia em que eu sair daqui, eles sabem, eu estarei com o pé na estrada. Para, junto com esse povo, levantar a cabeça e não deixar entregar o Brasil aos americanos. Para acabar com esse complexo de vira-lata.
Eu nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana [como fez Bolsonaro]. Eu nunca vi um presidente ficar dizendo "eu amo os EUA, eu amo". Ama a sua mãe, ama o seu país! Que ama os Estados Unidos! Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil?
Americano pensa em americano em primeiro lugar, pensa em americano em segundo lugar, pensa em americano em terceiro lugar, pensa em americano em quinto e se sobrar tempo pensa em americano.
E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós somos nós. A solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil.

Como é a rotina na prisão? O sr. passa muito tempo sozinho? Eu passo o tempo inteiro sozinho. 

Eu leio, eu vejo pendrive que o pessoal me manda, assisto a filmes, muitos filmes. Muita série, muito discurso, muita aula. Eu por exemplo fiz, na minha cela... Que eu não trato de cela, eu trato de sala porque é melhor. Eu fiz um curso sobre Canudos no canal Paz e Bem [na internet], recuperando a história e mostrando as mentiras que Euclides da Cunha contou sobre Canudos [no livro "Os Sertões"].Ou seja, a história não é aquela. Então eu fiz um curso de oito aulas. Agora eu sugeri a eles que façam um curso, Retratos do Brasil. Sobre todas as lutas sociais no Brasil. E agora acho que toda segunda-feira tem uma aula [no canal].Eu espero juntar umas quatro ou cinco, recebo um pendrive, vou assistindo e vou me aprimorando. Quando sair daqui, sairei doutor.

Mas o sr. lava a sua própria roupa, lava suas coisas? E a prisão mudou o sr. em alguma coisa?

É engraçado porque eu sempre tive vontade de morar sozinho. Quando eu fiquei viúvo a primeira vez, em 1971, eu fiquei bravo com a minha mãe [dona Lindu] porque meu sonho era alugar uma quitinete e morar sozinho. A minha mãe morava com a minha irmã, a minha mãe abandonou a minha irmã, foi na minha casa e exigiu que eu alugasse uma casa para morar comigo. E eu morei com a minha mãe durante três anos e meio. Sabe aquele sonho de jogar a cueca para qualquer lado a meia para qualquer lado, a camiseta, não ter que prestar contas, não ter ninguém atrás de mim, "recolhe, põe no chuveiro"?Hoje, eu faço isso. Mas eu preencho o meu tempo vendo muita coisa.

O sr. lava suas roupas?

Não. Eu mando para o meu pessoal lavar. Mas eu curto a solidão tentando aprender, mentalizar a minha espiritualidade, tentando gostar mais do ser humano, tentar ficar um pouco mais humano. Eu acho que eu vou sair daqui melhor do que eu entrei. Com menos raiva das pessoas. Eu vou sair um cidadão bom daqui. Bom e motivado para brigar. Estou doido para fazer uma caravana.

Um grupo perto da prisão diz "boa noite" e "boa tarde todos os dias para o senhor.

Eu escuto todo santo dia. Quando tem atividade, eu escuto discurso das 9h às 21h. É música, é canto. Eu sinceramente não sei como um dia eu vou poder agradecer a essa gente. Tem gente que está aqui [numa vigília em frente à PF] desde o dia em que eu cheguei aqui. Vai para casa, lava a roupa e volta para cá. Eu serei eternamente grato, não sei se isso já aconteceu alguma vez na história com alguém. Mas eu sinceramente não sei como fazer para agradecer. Eu já disse para todo o mundo aqui. Mas quando eu sair daqui, quero sair daqui a pé e quero ir lá no meio deles. A primeira cachaça eu quero tomar com eles. E brindar.

O seu partido perdeu a eleição e a extrema direita chegou ao poder com muitos votos que eram do PT. Como o senhor avalia essa guinada?

Vamos só relativizar tudo isso. Uma das condições que fez com que eu viesse para cá era porque não havia nenhum advogado naquele instante que não garantisse que eu disputaria as eleições sub-judice. Mesmo condenado, eu poderia concorrer.
E eu estava com um orgulho muito grande de ganhar as eleições de dentro da cadeia. É importante lembrar que eu cresci 16 pontos aqui dentro [da prisão]. Sem poder falar.
Aí quando o ministro [do STF e do TSE, Luís Roberto Barroso] fez aquela loucura [foi decidido que Lula não poderia se candidatar], eu tive que assinar uma carta dizendo para o [Fernando Haddad] ser candidato.
Ali eu senti que nós estaríamos correndo risco. A transferência de votos não é simples, automática. Leva tempo.
Eu tinha certeza de que o Haddad poderia representar muito bem a candidatura, como representou.
Nós tivemos uma eleição atípica no Brasil. O papel do fake news na campanha, a quantidade de mentira, foi uma coisa maluca. E depois [teve] a falta de sensibilidade dos setores de esquerda de não se unirem.
A coisa foi tão maluca que a Marina [Silva, da Rede], que quase foi presidente da República em 2014, teve 1% dos votos.
Eu respeito o voto do povo. O povo não é bom só quando vota em mim. Mas a verdade é que eu nunca tinha visto o povo com tanto ódio nas ruas.
Eu já fui muito a estádio de futebol. Eu sou corintiano. Eu ia com palmeirense, com são-paulino, com santista. A gente brincava, brigava. Mas, agora, era loucura. É ódio. E eu tenho acompanhado por leitura. Está no mundo inteiro assim.
A política está efetivamente demonizada. E vai se levar um tempo muito grande para a gente tratar a política com mais seriedade. Veja o caso do Brasil. O que você tem visto nesses quatro meses? Eu não esperava que o Bolsonaro fosse resolver o problema do Brasil em quatro meses.
Quem acha que em cem dias pode apresentar alguma coisa, realmente não aprendeu a sentar a bunda na cadeira. E, depois, com a família que ele tem. Com a loucura que tem. Quem é o primeiro inimigo que ele tem? É o vice [general Hamilton Mourão]. Ele [Bolsonaro] passa a agredir os deputados, depois tenta agradar os deputados. Diz que está fazendo a nova política e a política que ele faz é a mesma porque ele é um velho político.
Ou seja, o país está desgovernado. Ele [Bolsonaro] não sabe até agora o que fazer e quem dita regras é o Paulo Guedes. O homem de R$ 1 trilhão [que o ministro afirma que será economizado com a reforma da Previdência]. A única coisa que o povo sabe é do R$ 1 trilhão.
Eu vejo jornal das 7, das 8, das 11, do meio-dia, em todos os canais. Nunca vi tanto jornal na vida. É tudo a mesma coisa. Parece as sentenças que dão contra mim.
Fez a reforma da Previdência, acabou o teu problema. Acabou o problema do Brasil. Todo mundo vai ficar maravilhosamente bem. E eu acho que todo mundo vai se lascar se for aprovada a Previdência tal como ele [Guedes] quer.
Se a Previdência precisava de reforma, senta com os trabalhadores, com os empresários, com os aposentados, os políticos, e encontra uma solução para arrumar onde tem que arrumar.

Dá para culpar muitos pela derrota. Mas vocês ficaram muito tempo no poder. Houve corrupção de fato, comprovada. Que autocrítica que o senhor faz? E como fica o PT agora, sem o senhor?

Obviamente que reconhecemos que perdemos as eleições. Mas é importante lembrar a força do PT. Porque só eu pessoalmente tenho mais de 80 capas de revistas contra mim. Quando eu fui preso, eu tinha 80 horas de Jornal Nacional contra mim. Mais 80 horas da Record, mais 80 horas do SBT, mais 80 horas de um monte de coisas. E eles não conseguiram me destruir. Isso significa que o PT tem uma força muito grande.
O PT não foi destruído. O PT perdeu a eleição. Provou que é o único partido que existe nesse país. O resto é sigla de interesses eleitorais em momentos certos. Quem acabou foi o PSDB. Esse acabou. Esse foi dizimado.
Então o PT perdeu as eleições. Deve ter cometido erros durante os nossos governos. O Ayrton Senna cometeu erros, um só, e morreu.

E a corrupção?

Ela pode ter havido. Agora, que se faça prova. Teve corrupção, a polícia investiga, faz acusação, prova, está condenado. Fomos nós do PT que criamos os melhores mecanismos para apurar a corrupção. Não foi o Moro, não foi ninguém. Combater a corrupção é uma marca do PT.
Se alguém do PT cometeu um erro, tem que pagar. A única coisa que queremos é que se apure, que se investigue.
Eu falo por mim. Eu desafio Moro, Dallagnol, 209 milhões de pessoas – inclusive você –a provar a minha culpa.

Na questão do sítio, houve de fato uma reforma, comprovada, e o senhor usufruiu dessa reforma. A Justiça decidirá se houve crime. Mas não houve um erro?

Eu poderia ter aceito e nunca ter ido naquele sítio. Então eu cometi o erro de ter ido no sítio. Eu disse que está provado que eu fiquei sabendo daquele maldito sítio dia 15 de janeiro de 2011. E o sítio tinha dono, dono, pré-dono, e bidono. O Jacó Bittar era meu amigo de 40 anos, comprou o sítio no nome do filho dele, com cheque dado pela Caixa Econômica Federal, e a polícia sabe disso, a polícia investigou.
Nós tivemos policiais e procuradores visitando casa de trabalhador rural [do sítio], casa de pedreiro, casa do caseiro, perguntando até para as galinhas: “Você conhece o Lula? O Lula é o dono?” Nem as galinhas falaram. Porque se eu quisesse eu podia comprar.
Então, se eu cometi o erro de ir num sítio em que alguém pediu e a Odebrecht reformou, vamos discutir a questão ética. Aí é outra questão.
Acontece que o impeachment da Dilma [Rousseff], o golpe, não fecharia com o Lula em liberdade.
Qual é o meu incômodo? Se eu tivesse aqui preso e o salário mínimo tivesse dobrado, [pensaria] “o Lula realmente é um desgraçado, prendeu e melhorou [a vida do] povo”. Mas não.
Acabaram agora com o aumento real do salário mínimo. Inventaram uma carteira de trabalho verde e amarela [com menos direitos, para quem estiver entrando no mercado de trabalho]. Nenhum empresário vai contratar um trabalhador que não esteja com carteira verde e amarela.
Essa gente pensa que o povo é imbecil para ficar mentido o tempo inteiro para o povo.
Quando falam em autocrítica, eu acho que nós devemos ter muitos erros. Eu, por exemplo, tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação.
É uma autocrítica que eu faço. Mas imagina se todo mundo nesse Brasil fizesse uma autocrítica. A elite brasileira deveria estar agora fazendo autocrítica: “Poxa vida, como a gente ganhou tanto dinheiro no governo do Lula, como é que o povo pobre vivia tão bem, como é que o povo pobre estava viajando para o Piauí, para Sergipe, para Garanhuns, de avião e agora nem de ônibus pode viajar?”.
Vamos fazer uma autocrítica por causa do que aconteceu em 2018 na eleição. Vamos fazer uma autocrítica geral nesse país. O que não pode é esse país estar governado por esse bando de maluco.

O senhor se sente injustiçado por empresários que cresceram em seu governo fazerem delações premiadas contra o PT e o senhor?

Eu não fico com raiva. Eu tenho desafiado os empresários a dizerem quem é que me deu cinco centavos.
O Léo [Pinheiro, ex-presidente da empreiteira OAS que delatou Lula no caso do triplex] passou três anos dizendo uma coisa [que o ex-presidente não estava envolvido em irregularidades]. De pois mudou o discurso.
Meu advogado perguntou por que ele tinha mudado e ele disse que era orientação do advogado dele. Ele falou que o Lula sabia [da reforma no apartamento paga pela construtora].
Agora, o que está provado? A OAS gastou R$ 6 milhões para pagar funcionários dela para uniformizar o discurso dos funcionários na delação. Como eu posso levar a sério isso? Eu não posso levar a sério.
O que eu posso dizer é que haverá tempo suficiente para que a gente faça a investigação. Quem sabe um jornalista bem informado como você possa ir aos Estados Unidos saber qual é a intromissão do Departamento de Justiça americano nesse processo do Brasil. Qual é o interesse dos americanos na Petrobras.
Você sabe qual é, mas temos que investigar. Temos que ir atrás. Eles nunca engoliram o fato de eu dizer que a Petrobras era nossa, que o petróleo era nosso, que o petróleo seria o passaporte do futuro, que 75% dos royalties da Petrobras iria para cuidar da educação, e que a Petrobras teria 30%. Ou seja, quem quisesse entrar teria que pagar o que nós quiséssemos.
Aí o WikiLeaks [site que compartilha dados secretos na internet] vaza aquele documento do [senador José] Serra ligando para a Chevron [petrolífera dos EUA] dizendo "venha para cá [Brasil] que nós vamos dar um jeito [de mudar o modelo]. E deram um jeito.
Como esse país vai para a frente se não tiver gente que se respeita, que goste do país e que entenda que um país que tenha as riquezas minerais que o Brasil tem, a floresta, o potencial de água doce, de petróleo, quase 17 mil quilômetros de fronteira seca, 8 mil quilômetros de fronteira marítima, petróleo a 200 milhas... foi a gente anunciar o pré-sal que os americanos recuperaram a quarta frota que funcionou na Segunda Guerra Mundial.
Qual foi a resposta que dei para os americanos? Criei o Conselho Sul-Americano de Defesa para juntar e não ter intromissão dos Estados Unidos.
A coisa que mais acontece no Brasil é denúncia. E sou favorável que todas as denúncias feitas sejam apuradas. Investiga, investiga, apura, apura, faz o que quiser.
Eu estou achando estranho essa tal dessa milícia do Bolsonaro. Cadê aquele cidadão dos R$ 7 milhões [Fabrício Queiroz, ligado a Flávio Bolsonaro]? Cadê a imprensa que não está atrás do Queiroz? Então, é o seguinte, o Brasil tem dois pesos e duas medidas.
Eu, ex-presidente da República, sem nenhuma prova, foram na minha casa, recebi vários policiais. O seu Queiroz não atendeu a nenhum pedido [para depor no Ministério Público] e a Polícia Federal não foi buscar ele ainda.
Os policiais do Exército dão 80 tiros num carro, matam um negro. E vai [a imprensa] perguntar para o ministro da Justiça e ele fala: “Isso pode acontecer”. É por isso que eu não tenho o direito de baixar a cabeça, de ficar esmorecido, fraquejar. Eu estou mais tinhoso que nunca.

Como o senhor recebeu a notícia da morte de Alan Garcia [ex-presidente do Peru, que se matou quando ia ser preso por denúncias de corrupção]?

Eu nunca consegui entender a morte do Getúlio Vargas. O último filme que assisti do Getúlio Vargas foi esse com o Tony Ramos. É um bom filme.
Eu lembro que, em 2005, numa plenária com empresários no Palácio da Alvorada [quando era presidente], eu falei: “Eu quero que vocês saibam como eu sou. Não vou me matar porque eu não tenho vocação de Getúlio, não vou correr porque não tenho vocação de pedir asilo político. Se alguém quiser me pegar nesse país, vai me pegar na rua".
E comecei a ir pra rua. E por isso que ganhei em 2006 [quando foi reeleito presidente] e orgulhosamente terminei o meu mandato com 87% de bom e ótimo, 10% de regular, e 3% de péssimo, que deve ter sido lá no condomínio do Bolsonaro e na sede do PSDB.

E o Alan Garcia?

Ele teve uma reação psicológica que muita gente tem, como o reitor da UFSC [que se suicidou].
Não é todo mundo que aguenta. A Marisa [mulher de Lula] morreu por conta disso. Quem está falando é um homem de 73 anos de idade, perto de fazer 74 anos. A dona Marisa morreu por conta do que fizeram com ela e com os filhos dela.
A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saia mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso. Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio.
Aqui tem muito lugar para amor. O ódio eu vou colocando num cantinho bem escondido.
E o Alan Garcia não deve ter suportado. Eu não sei, não leio imprensa peruana, não sei qual era a acusação que se fazia contra ele. Mas o Alan Garcia era um homem que tinha saído muito mal do governo. O Peru tem uma coisa engraçada, é um país que cresce a 5% ao ano e todos os presidentes saem com 10%, 5% de aprovação.
É porque eles exportam tudo para os Estados Unidos. Eles crescem mas não têm distribuição de renda. O país cresce 5% e a miséria cresce a 10%. A miséria sempre vai na frente do crescimento.
Eu sinceramente não sei como ele se matou. Tem que ter muita decisão [para não se matar]. Eu sei o que eu passei. Eu sei o que passei. Você não tem noção do que é passar seis meses esperando todo santo dia que a Polícia chegue na tua casa? Todo santo dia. Não é um dia, não, são seis meses.
E, de repente, você vê a polícia chegar na tua casa, com uma desfaçatez, todo mundo [os policiais] com máquina fotográfica pendurada no peito para tirar fotografia.
Deveriam ter mostrado a quantidade de dólares que acharam, a quantidade de joias que acharam da dona Marisa. Deveriam ter tirado foto e colocado na TV Globo. Enfiaram o rabo no meio das pernas porque não encontraram nada. E a imprensa não fala "não encontraram nada na casa do Lula".
É duro. Não queira que isso aconteça com você. Eu conheço casos de pessoas [presas] que estavam em cadeira de rodas, pediam para ir no banheiro e diziam: "Se você não falar o nome do Lula, você não vai no banheiro". Como a história não é contada, essas coisas vão acontecendo. Então eu tenho muita motivação para estar vivo. Estar vivo e não fazer nenhuma loucura.
Foi a forma que eu encontrei de ajudar esse país a se reencontrar com a democracia, com o amor, com a paz. Esse povo tem o direito de ser feliz, de viver bem. Então é para isso que eu existo, meu caro. E para isso eu vou brigar até os últimos dias da minha vida.
Me diga o seguinte: Lula, você está livre, vai morar nas Bahamas, tem um lugar para você lá, vai ter água de coco todo dia de manhã. Mas o compromisso é não fazer política. Eu vou dizer o seguinte: “Eu vou ficar aqui, sem água de coco, sem Bahamas. Vou ficar na esperança de que eu vou andar por esse país levantando a cabeça do meu povo para a gente voltar a conquistar direitos”.
O povo tem que tomar café de manhã, almoçar e jantar todo dia, e se puder comer uma bolachinha às três horas da tarde com café com leite, e se puder fazer um lanchinho dez horas da noite, antes de dormir.
Quero que o povo vá ao teatro, ao cinema. A coisa mais fantástica é um pobre pegar um avião, não sabe nem como entra no banheiro, mas pega um avião e vai para a sua terra. É isso que eu quero é e por isso que vou brigar
E sei que tem muita gente que não gosta de mim, e é por isso que eu vivo, é por isso que eu tô de cabeça erguida. Não pense que eu estou aqui orgulhosamente, não. Eu estou aqui com orgulho de defender o povo. Mas gostaria de estar fora com meus netos e meus filhos.

O senhor falou que o PSDB acabou. Quem vê agora como principal adversário? O Bolsonaro? O Moro? Os militares, que passaram a ter protagonismo?

A vida inteira vocês gozaram de mim porque ele falava "menas laranja". O Moro falar “conje” [em vez de cônjuge] é uma vergonha. Sinceramente é uma vergonha. É o mínimo que ele deveria saber porque está escrito no Código Penal, há vários artigos que falam de cônjuge.
O Moro não sobrevive na política. E o Bolsonaro, ou ele constrói um partido político sólido ou do jeito que está também não perdura muito. Porque ali você tem uma quantidade difusa de interesses. Não sei como você é deputado 27 anos e diz que não gosta de política [referindo-se à carreira de Bolsonaro]. Como você faz um filho vereador, outro deputado federal, outro senador, e você não gosta de política.
Então, ele vai ter que ter muita capacidade de articulação, muita vontade, vai ter que gostar muito de política para poder dar certo. Porque a chance de ele dar certo é o Brasil dar certo. O povo tem paciência, mas não tem toda a paciência do mundo.

Pode dar certo?

Não sei. Do jeito que está fazendo não pode dar, querida. Não tem condições de dar. Você [o governo] diminuiu a renda per capita da sociedade, você diminuiu o salário mínimo, você diminuiu a possibilidade de oferta de emprego e você acha que tudo vai ser resolvido com R$ 1 trilhão para a Previdência, para o sistema financeiro? Vai dar certo onde?
Sabe o que dá certo? Dá certo se fizer como nós fizemos: legalizamos e formalizamos 6 milhões de microempreendedores individuais. Sabe porque a Previdência era superavitária no meu governo? Porque teve 20 milhões de pessoas trabalhando com carteira profissional assinada. Seis milhões de microempreendedores individuais se formalizaram. O Brasil quadruplicou as exportações.
Você está lembrada que eu criei uma coisa chamada primeiro emprego. Foi uma farsa aquilo, uma loucura. Eu achava que fazendo uma lei, criando o primeiro emprego, e dizendo para os empresários que eu ia pagar R$ 200, ia gerar emprego.
Nenhum empresário gera emprego porque eu estou dando R$ 200 para ele. O que vai gerar emprego são os puxadinhos da Caixa Econômica Federal. Fiz financiamento para construir um puxadinho. Surgiram no mesmo ano dez novas fábricas de cimento no Brasil.
Quando você faz a economia, o povo come um pãozinho a mais, toma um cafezinho a mais, uma cervejinha a mais, ganha um real a mais, compra um chinelo a mais.
Aí, você começa a gerar emprego no país. Agora você, do jeito que eles tão fazendo, inclusive brigando com os nossos maiores parceiros comerciais, desprezando a América do Sul... o nosso comércio com a Argentina é maior do que com todos os países da Europa.
Como vai desprezar o nosso comércio com a Argentina o Mercosul?
Esse cara [Bolsonaro] não entende de nada. Também, com o ministro que ele tem das relações exteriores [Ernesto Araújo], aquilo foi encomendado.
Saudades do Silverinha [Azeredo da Silveira, ex-chanceler] nos tempos do [ex-ditador Ernesto] Geisel, que teve coragem de reconhecer Angola. Esse cidadão que está aí [Araújo], sinceramente, como o Celso Amorim [ex-chanceler de Lula] deixou um cara desse na carreira do Itamaraty?

Como vê o protagonismo dos militares?

Quando sair daqui eu quero conversar com os militares. Tenho vontade de perguntar para o chefe da Marinha, da Aeronáutica, do Exército, qual presidente da República que fez mais para eles do que eu fiz.
Quero perguntar para eles qual a razão do ódio que eles têm do PT. Quando eu cheguei na Presidência, em 2003, soldado brasileiro saía [do trabalho] 11 horas porque não tinha dinheiro para almoçar. Recruta não ganhava salário mínimo. Além de pagar salário mínimo, dar almoço para eles, ainda criei o soldado cidadão para dar curso de formação.
Pergunta para o general o que era o batalhão de engenharia do exército brasileiro. As máquinas estavam todas quebradas, não tinha nem caminhão. Pergunta para eles o que eu fiz.
Pergunta para a Aeronáutica como era a situação quando eu cheguei na Presidência. O avião da presidência era chamado de "sucatão". Você ia viajar para a Europa e quando parava em Cabo Verde, nas Ilhas Canárias, tinham 18 mecânicos dentro do avião para catar parafuso que caía no aeroporto.
Eu quero perguntar para a Aeronáutica como era avião que eu emprestava para levar autoridade em casa. Quando levantava voo em Brasília, pegava fogo no avião. Tinha que descer rapidamente, senão explodia. O Celso Amorim perdeu uma pasta porque ela queimou dentro do avião.
Quando eu comprei o avião novo [para viagens presidenciais], é porque eu me respeito. Eu se pudesse ia de jegue para a Europa. Como eu não podia, tive a coragem de comprar um avião. Hoje eu me arrependo de não ter comprado um Airbus 140. Comprei o menor, devia ter comprado um grandão.
Peguei 15 ou 20 aviões da [empresa aérea] Rio-Sul, que não pagou o BNDES, e dei para a Aeronáutica. Deixei a Aeronáutica com cara de força aérea.
Pergunte para a Marinha. Eu fui visitar o [navio] Barão de Teffé na base brasileira na Antártida. Eu cheguei lá, [concluí que] um país grande não pode ter um navio de pesquisa daquele. Se o cara entrasse com a barriga, a bunda ficava para fora num lugar que tem que fazer pesquisa. Nós autorizamos o almirante a comprar um navio descente.
O governo não dava dinheiro para enriquecer urânio. Pergunta para ele quem garantiu R$ 30 milhões por mês para funcionar Caparaó. Eu não sou contra militar fazer política, não. Quer fazer política? Sai do Exército, vai para a reserva.
Aliás, é importante lembrar que a política no Brasil começou com o Marechal Deodoro da Fonseca. Eles fazem política no Brasil, só não tiveram participação no poder decisivo no governo do Fernando Henrique, no meu e no da Dilma [Rousseff]. No restante [dos governos brasileiros], eles tiveram.

Pode ser que eles não voltem para a caserna.

Se você tiver um militar tecnicamente competente e especialista numa coisa, não tem problema que ele vá para o governo. O que não pode é do jeito que tá. Não dá. Não dá. Eu não sei a qualificação das pessoas, que estão lá.
Agora mesmo eu vi no noticiário que o ministro do Meio Ambiente desmanchou não sei o que lá no Instituto Chico Mendes e colocou não sei quantos cabos, soldados, militares. Para cuidar de meio ambiente, você coloca gente especialista. Tem especialista da Polícia Federal, do Ministério Público, coloca técnico, coloca especialista, não tem que militarizar o governo.
Não sou contra eles participarem do governo, não. Mas militar tem que saber que eles têm um papel a cumprir pela Constituição. O militar tem que cuidar dos interesses desse país e da defesa da nossa sociedade contra os inimigos externos. Temos, entre fronteira seca e marítima, quase 22 milhões de quilômetros quadrados, é muita coisa para os militares cuidarem. A burocracia, vamos deixar para o burocrata.

O senhor tem acompanhado os movimentos do general Mourão?

Eu tenho. Eu não posso falar porque eu também não conheço o Mourão. Eu sou agradecido, por exemplo, por um gesto dele na morte do meu neto.
Ele foi um cara que disse que era uma questão humanitária visitar [ir ao velório do] meu neto. Diferentemente do filho do Bolsonaro, que postou uma série de asneiras no Twitter [dizendo que a morte do menino vitimaria o ex-presidente].
Eu estou vendo a briga [entre Mourão e a família de Bolsonaro]. Eu vou acompanhando. Ninguém nunca mais vai ter nesse país uma dupla harmônica como Lula e [o ex-vice-presidente] Zé Alencar. Um sindicalista e um empresário que fizeram esse país ter orgulho. Que fizeram esse país crescer.
Eu duvido que tenha um empresário nesse país tratado com mais respeito, em qualquer governo, do que por mim. Duvido. A diferença é que eu tratava ele bem, mas também tratava os sem-terra, os sem-casa, os moradores de rua bem. Tratava a sociedade brasileira.
Então, eu posso te dizer, esse povo é minha motivação. Quero que vocês saiam daqui e retratem que não conversaram com um cidadão alquebrado. Conversaram com um cidadão que tem todos os defeitos que um ser humano pode ter. Mas tem uma coisa que eu não abro mão, e isso eu aprendi com a dona Lindu [mãe do ex-presidente], que nasceu e morreu analfabeta: dignidade e caráter não têm em shopping, em supermercado e você não aprende na universidade. Vem do berço.
E isso eu tenho, demais. E não abro mão. Esse é meu patrimônio.

Como o senhor está vendo o quadro da esquerda brasileira? Imagino que o senhor saiba que o Cid Gomes e o Ciro têm o bordão "o Lula tá preso, babaca".

Isso não é bordão, isso é uma constatação.

Não ficou chateado?

Não. Só não precisava chamar os outros de babaca. Mas [dizer que] está preso é apenas constatar. É só ler o jornal e ver que eu estou preso.
Eu acredito que a esquerda brasileira está acumulando um conjunto de pessoas muito importante. Vamos pegar o PT. Apesar de algumas pessoas não gostarem, é um partido muito forte. Aliás eu posso dizer que é o único partido efetivamente organizado em todos os estados brasileiros. Com cabeça, tronco e membros.
Você tem o Ciro Gomes, que é uma figura importante no Brasil. Você tem o Flavio Dino, que é uma figura importante no Brasil. Tem alguns governadores importantes do PT, na Bahia, no Sergipe, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Alguns governadores importantes do PSB. Tem uma novidade política no Brasil, que não teve um bom desempenho eleitoral mas é um menino que vai crescer muito, que é o companheiro Boulos.

Do Haddad o senhor não fala.

Tem o Haddad. Eu falei do PT, não quis personalizar só nele. É uma figura importante. Embora não tenha saído vitorioso nas eleições, se notabilizou como uma figura muito importante.
Se o Bolsonaro tivesse aceitado apenas ou dois debates, efetivamente ele não tinha sustentação para debater. Ele nunca se importou em aprender. Eu fui obrigado a aprender um pouco de economia por conta da minha atividade sindical. Eu era obrigado a aprender para negociar. Depois, no PT, eu fazia reuniões com 30 dos mais renomados economistas deste país. Eu acho que o Bolsonaro não gosta disso.
Eu digo para o PT: não tem que apresentar proposta. Apresenta o programa do Haddad na campanha, faz um confronto de ideias para a sociedade perceber que é possível um novo Brasil.
Eu provei na prática que é possível construir um novo Brasil. Eu consegui provar, com a bênção de Deus e do povo brasileiro, que o povo não é problema, o povo é solução. Eu consegui provar isso.
Deixa eu dizer uma coisa: eu, pessoalmente, gosto do Ciro Gomes, tenho respeito pelo Ciro Gomes. Ele não causa mal ao PT. Ele causa mal a ele mesmo. O Ciro Gomes precisa aprender uma lição elementar: é preciso aprender a ouvir coisas de que você não gosta. Suportar os contrários. Conviver na diversidade. Ele precisa aprender essa lição mínima.
Quando foi governador do Ceará, ele não precisava disso. Quando foi prefeito de Fortaleza, não precisava disso. Mas, agora, para ser presidente do Brasil, ele precisa. E ninguém será presidente do Brasil se romper com o PT, o PC do B.
Com a direita, não sei se a direita aceitaria ele. Como eu gosto do Ciro, o dia em que ele pedir para me visitar, eu vou aceitar que ele me visite aqui, para ter uma conversa boa com ele. Porque eu gosto dele. Eu gosto do Flavio Dino.
Não sei se a Marina tem um dia propensão de voltar para os setores de esquerda. Porque a Marina acabou, né, coitada. Ter 1% no processo eleitoral depois de ser quase presidenta, foi muito pouco, não sei o que ela vai fazer. Mas penso que a esquerda pode construir um grande projeto para o Brasil e pode voltar ao poder.

Sem o PT na hegemonia?

Por que o PT, de vez em quando, aparece como hegemônico? Você acha que um partido que tem 30% de voto vai começar abrindo mão da sua candidatura? Não vai.
Como eu acho que o PT já teve presidente quatro vezes, em algum momento pode escolher um companheiro de outro partido político para ser candidato a presidente, e pode participar do governo, pode ter [candidato a] vice. Acho que tudo é possível.
O que você precisa é não exigir que o PT abra mão de apresentar uma proposta alternativa. Se você tem 10%, eu tenho 30%, no segundo turno sou melhor do que você.
Se você é melhor do que eu, por que você não ganha no primeiro turno? Eu lembro do [ex-governador e presidenciável Leonel] Brizola, em 1989 [nas eleições presidenciais, Brizola apoiou Lula no segundo turno, depois de ter sido derrotado por ele no segundo].
O Brizola é uma pessoa que faz falta no Brasil hoje. O [ex-governador de Pernambuco Miguel] Arraes faz falta. Sabedoria política: não tem mais isso.

E o Fernando Henrique Cardoso?

O Fernando Henrique Cardoso não tem jogado um papel que o nome dele deveria merecer. Ele fala muito sobre quase tudo desnecessariamente.
Eu sinceramente acho que ele poderia ter um papel de grandeza para quem já foi presidente da República, para quem já foi chamado de príncipe da sociologia. Ele poderia ter um papel mais respeitoso com ele mesmo, não comigo.
O problema do Fernando Henrique Cardoso é que ele nunca aceitou o meu sucesso. Ele me adorava no fracasso. Quando eu fui eleito, ele falou: bom, o Lulinha só vai durar quatro anos e aí eu vou voltar com pompa e tudo.
Ele me tratava bem. Eu chego a dizer que eu achava que ele queria que eu ganhasse ao invés do [então candidato tucano em 1989, José] Serra. Acho que ele pensava “o Lula vai ganhar, coitado, metalúrgico, não vai conseguir fazer nada, eu vou voltar depois cheio de moral. O Serra se ganhar vai me ferrar, então prefiro o Lula”.
Não deu certo, porque quem deu certo não fui eu, foi a paciência e a competência do povo brasileiro. Que me ajudou, que acreditou. Está lembrando quantas vezes eu dizia que o meu governo ia ser medido por quatro anos?
É igual jabuticaba. Você planta. Se não for enxertado, vai demorar 15 anos para dar. Se for enxertado, vai dar no primeiro ano. Mas tem que dar água, por no sol. O governo é isso. E eu tinha muito medo de não dar certo. Eu dizia: eu não posso dar errado. Eu tinha muito medo do [Lech] Walesa na Polônia. Olhava para o fracasso do Walesa, que na reeleição teve 0,5% dos votos, eu falava "Deus me livre, não quero ser isso.
E graças a Deus o povo brasileiro me fez. Até hoje tenho muito orgulho de ter sido considerado o melhor presidente da história do Brasil. Carrego isso com muito orgulho. Ninguém vai tirar isso do povo brasileiro, e quem quiser ganhar de mim, que faça mais [do que eu], não é me xingar.

Mas ganharam agora do senhor.

De mim, não. Eu não concorri. Se eu tivesse concorrido, certamente ganharia as eleições. A Folha de S.Paulo escreveu que eu só vou ser candidato [a presidente] em 2039. Eu sou um homem de muita crença. Eu vejo cientista falar que o homem que vai viver 120 anos já nasceu. E por que não ser eu?
A Igreja Católica ensinou que com 75 anos [a pessoa] se aposenta que é melhor. Eu acho que vai surgir muita gente boa nesse país e eu me contentarei em apoiar qualquer pessoa daqui para frente para ser candidato a presidente.
Agora, estou vendo nos Estados Unidos um monte de gente com 78, 79 anos, querendo ser candidato, e isso começa a me ouriçar, começa a me dar um chamuscão aqui no pé, uma coceira. Quem sabe eu ainda possa voltar? Com uma bengalinha na mão. Como é que fala a música do velhinho? “Bota o velhinho na parede, o velhinho tá de volta”. Quem sabe. Mas, se depender de mim, eu vou trabalhar para ter alguém mais novo, alguém com mais energia.

O seu ex-ministro Antonio Palocci virou agora delator. Ele disse inclusive que havia uma conta no exterior no nome do [empresário] Joesley [Batista, da JBS], onde era depositado dinheiro para o PT.

Ele disse também que as duas campanhas na Dilma para Presidência custaram R$ 1,4 bilhão de reais. Mas que não foi declarado à Justiça Eleitoral.

Por que o senhor acha que o seu ex-ministro estaria mentindo?

Primeiro, se ele disse que o Joesley tem uma conta no exterior, eu acho que o Joesley deve ter conta no exterior, em vários países, porque ele tem fábrica em vários países, não vejo nenhuma novidade.
Lembro de um tempo que saiu na imprensa, que o Joesley tinha aberto uma conta para mim no exterior, que era para o meu futuro. Depois ele disse que utilizou a conta para comprar a ilha que era do [apresentador Luciano] Huck lá em Angra dos Reis para dar de presente para a mulher dele, comprou um barco não sei pra quem.
Então, o dinheiro que ele disse que era meu, ele gastou. Quando eu sair daqui vou abrir um processo contra ele, para devolver o que era meu, segundo ele diz.
Eu era um cara que tinha profundo respeito pelo Palocci. Palocci era uma pessoa que, se não tivesse feito bobagem, poderia ter crescido na política brasileira. Eu comecei a perder a confiança no Palocci com aquela história do caseiro no meu primeiro mandato. Vocês estão lembrados que o Palocci saiu do governo em março de 2006. Eu vinha para o Paraná, tinha uma atividade aqui, e tinha lido na imprensa [sobre o escândalo em que o caseiro Francenildo dizia que Palocci participava de festas com mulheres numa mansão em Brasília].
Liguei para o Palocci. Falei "estou indo ao Paraná, eu vou voltar 3 horas da tarde. Se você não tiver resolvido o problema do caseiro, você não está mais no governo". Ainda falei pra ele: Palocci, não é possível um ministro da Fazenda não ganhar de um caseiro. Ou você explica a história do caseiro, ou cai fora. Quando eu voltei, liguei pra ele, não tinha explicação.
Eu comecei a achar que o Palocci não dizia a verdade porque nunca teve coragem de me dizer se ele ia ou não ia na casa. Se ele mentisse para a Polícia Federal, para o PMDB, para o Senado, era um problema dele. Mas para mim, que era o presidente dele, ele nunca disse –aliás, ele disse que não sabia de nada. E entre o Palocci que não ia na casa, e o caseiro que dizia que ele foi, eu acredito no caseiro.

Mas depois ele foi coordenador da campanha da Dilma.

Aí é outra história. Estou dizendo que ele saiu porque não respondeu pra mim a questão do caseiro. Foi depois eleito deputado federal, e três pessoas foram colocadas na campanha da Dilma: ele, José Eduardo Cardozo, e José Eduardo Dutra. Presidente do PT, secretário-geral do PT e o Palocci, que era remanescente da minha vitória e deputado federal que não ia concorrer mais. Ele foi coordenador da campanha junto com o Zé Eduardo Cardozo, Dutra e João Santana. Certamente a Dilma admirava o trabalho dos três porque fizeram ela ganhar as eleições.
Desde os anos 1970 você que tem no Brasil uma disputa entre o cara que foi preso e denunciou o companheiro que era traidor. Quem não denunciou é o herói. Eu nunca tratei assim. Eu acho que o ser humano tem um limite do suportável do ponto de vista psicológico, da dor que ele recebe.
Eu tenho pena do Palocci porque um homem da qualidade política dele não tinha o direito de joga a vida fora como ele jogou. Tenho um profundo respeito pela mãe do Palocci, que é fundadora do PT, que carrega barro até hoje pelo PT lá em Ribeirão Preto. Mas lamentavelmente eu tenho pena do Palocci. Ele não merecia fazer com ele o que ele está fazendo.

O Brasil passa por uma crise econômica. O que o senhor faria de diferente?

Não tem mágica: 50% dos problemas econômicos de um país são resolvidos quando quem está governando tem credibilidade interna e externa. As pessoas que levantam de manhã para trabalhar ou que estão lá fora pensando em fazer qualquer coisa no Brasil têm que saber se quem está falando por aquele país tem seriedade, tem credibilidade.
Se essa pessoa tiver credibilidade e seriedade, as pessoas passam a acreditar. Quando tomei posse em 2003, gastei parte da gordura política que eu tinha para fazer coisas que o PT não queria que eu fizesse. Eu aumentei o superávit primário para 3,45. Isso na esquerda do PT era para me matar.
Em três anos resolvemos a casa, colocamos em ordem. Zombaram muito de mim quando eu disse [que viveríamos] o espetáculo do crescimento. Em 2004, a economia cresceu 5,8%. Eu disse isso num comício dentro da Ford. E depois, a economia começou a andar. Mais devagar, mas ela foi andando. Eu tive muito apoio lá fora também.
Quando eu deixei o governo, a gente estava produzindo 4 milhões de automóveis. Era muita coisa que tava acontecendo nesse país.
Você quer ver uma coisa que acho que foi um erro do governo da Dilma e que eu não faria? Em 2009, quando veio a crise [internacional], eu criei uma política de desoneração, de R$ 4 e de R$ 7 milhões entre 2009 e 2010. E desoneração para mim sempre funcionava como se fosse uma comporta: eu abro quando eu quero produzir mais energia, e depois fecho.
De 2011 e 2014, entre desoneração e isenção fiscal eles [equipe da Dilma] fizeram [desonerações de] R$ 540 bilhões. Aí a Dilma percebeu que não dava mais para desonerar, porque você mandava para o Congresso [proposta] para desonerar fábrica de maçã e o [então presidente da Câmara dos Deputados] Eduardo Cunha colocava maçã, pera, melancia, abóbora, vinha 500 coisas de volta.
A Dilma tentou consertar e mandou para o Congresso uma medida provisória acabando com a desoneração. O Renan Calheiros [então presidente do Senado] mandou de volta, não aceitou a medida provisória. Nós exageramos na desoneração.

O senhor sempre fala que tem muito orgulho de ter saído do governo com 85% de aprovação. O senhor tem vergonha de ter eleito uma presidente que foi uma das mais mal avaliadas da história, perdendo apenas para Michel Temer?

[Batendo no coração]: Orgulho, tenho muito orgulho da Dilma.

Mas o povo brasileiro parece que não tinha.

Nem todo filho consegue ter o sucesso que você teve. O Pelé não teve nenhum jogador como ele, nem o filho dele.
É importante lembrar que em 2013 a Dilma tinha quase de 75% de preferência eleitoral. Depois do que aconteceu a partir de 2013 [com as manifestações de rua], eu acho que nem a imprensa avaliou direito, nem a esquerda, nem os cientistas políticos.
O que foi a primavera árabe? Aquela loucura. Eu fiquei muito feliz quando derrubaram o [Hosni] Mubarak [no Egito]. E quem está governando? Uma junta militar. E não tem mais manifestação na rua.
Invadiram a Líbia. Fazer o que fizeram com o [Muammar] Gaddafi [morto em 2011]. Eu achava ele muito parecido com o Cauby Peixoto. Ele tinha feito um implante de cabelo, utilizava muita base no rosto, aquelas panos de seda branco, tudo cheio de base. E ele não causava mal a ninguém. Aquela loucura de matar aquele cara, o que criaram na Líbia? Criaram uma guerrilha de verdade.
O Iraque, eu conversei muito com o Bush, “não tem armas químicas no Iraque”. Ele fez [invadiu o Iraque] porque ele precisava se reeleger. Eu sinceramente acho que o mundo está precisando de lideranças e nós não temos lideranças mundiais. Nós precisamos tentar, no campo da política, dizer o seguinte: quem vai resolver o problema do mundo é uma classe política séria, com partidos sérios, organizados seriamente, para poder consertar o país.
Não tem o gênio, não tem o gênio da universidade que vá dizer que vai governar. Se fosse fácil assim, você não teria problema em nenhum país. [A universidade de] Harvard teria presidente em todo o mundo.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/lula-fala-sobre-prisao-moro-bolsonaro-e-stf-veja-versao-completa-de-entrevista.shtml

Vídeos:

https://www.youtube.com/watch?v=xhhw1aCyIwQ 

https://www.youtube.com/watch?time_continue=4085&v=zCzco42kRAg


https://www.facebook.com/humbertocostapt/videos/684682811962882/?hc_location=ufi


A ENTREVISTA DE LULA 1:
A admirável resiliência de um condenado sem provas
Reinaldo Azevedo 28/04/2019

Goste-se ou não de Lula, o fato é que ele tem no sangue, nos gestos, no olhar, na linguagem, nos esgares, o prazer da política. Falar sobre o assunto, como se viu na entrevista concedida aos jornalistas Mônica Bergamo e Florestan Fernandes Jr., da Folha e do El País, respectivamente, o revigora. E, nesse particular, ele é o oposto de Jair Bolsonaro. Erre ou acerte, o petista, à diferença do atual presidente, é dono de uma fala caudalosa, que remete a vivências várias — dos palácios e das ruas —, articulando memórias, conectando-as com ideias que estão por aí, em trânsito e em choque. Faço um registro gramatical. Assisti à entrevista em busca de anacolutos, de expressões soltas, de expressões soltas, de palavras sem função sintática que atravancam o discurso. Nada! A fala é límpida — isso independe de o ouvinte, ou espectador aprovar ou reprovar o que ele diz. Louvem-se, assim, de saída, a sua resiliência e, à diferença do que afirmou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), a sua sanidade mental. Não se percebeu, em nenhum momento, sinal de confusão, de perda do fio, de palavras ao léu. Reitero: não estou entrando no mérito do que disse Lula. Em uma hora e 54 minutos de entrevista, por exemplo, não há sombra de autocrítica na sua fala — ou, vá lá, de crítica ao modo como o PT se conduziu no poder. Sim, compreendo a circunstância. Preso desde 7 de abril do ano passado, é a primeira vez que fala com liberdade. Fez um uso político do tempo. Não vou censurá-lo por isso. Ainda voltarei a esse tema. Quero me ater, por ora, à sua resistência. Poucos, caminhando para ninguém, suportariam com tanta dignidade o reverso da fortuna. Há pouco mais de oito anos, ele deixava o governo como o presidente mais bem-avaliado da história. Na sua passagem pelo poder, fez-se uma liderança mundialmente respeitada, reverenciada por governantes das mais variadas tendências e de todos os quadrantes do planeta. No front interno, governou praticamente sem oposição — excetuando-se o DEM e o PSDB. A elite brasileira que hoje lhe vira as costas praticamente se ajoelhava a seus pés. Este cronista que escreve agora era das poucas vozes dissonantes, o que levou o líder petista e pespegar em mim a pecha de "blogueiro falastrão" num encontro com petistas. Não era fácil enfrentar a patrulha organizada dos seus partidários e admiradores. Mas não vou me ater a isso não. Contrasto aquele que chegou a ser tratado quase como um imperador absolutista com o presidiário de agora, recolhido a uma cela — que ele prefere chamar "sala" —, em absoluta solidão, vendo o mundo pelo noticiário de TV, preenchendo as suas horas, como disse, com filmes que lhe passam em "pen drives", longe da verdadeira cachaça de que é dependente: não é a pinga, mas a política. Em dois anos, viu morrer a mulher, Marisa Letícia; o irmão de que era mais próximo, Vavá, e, supremo sofrimento, o neto Arthur, de apenas sete anos. Já vi gente se debulhar em lágrimas de autocomiseração por muito menos e por contrastes bem mais suaves, não conseguindo suportar com altivez revezes muito mais brandos. Lula, e qualquer especialista em saúde mental certamente poderá atestá-lo, está inteiro. E pediu aos jornalistas que não fizessem o registro de um homem alquebrado. Enfrentou com frieza a primeira e dura questão de Mônica Bérgamo: está preparado para não sair da cadeia? E, ainda que se mostre compreensivelmente obcecado por sua absolvição, a resposta inequívoca é "sim".

SEM PROVAS

Este é um post que tem o objetivo de fazer, sim, o elogio da resiliência demonstrada pelo ex-presidente. Tanto mais porque ele foi, com efeito, condenado sem provas. Já fiz este desafio aqui e o repito: que alguém aponte, então, na sentença de Sérgio Moro onde está a comprovação da denúncia feita pelo Ministério Público Federal, segundo quem o tal tríplex de Guarujá era propina decorrente de três contratos com a Petrobras celebrados por consórcio integrado pela OAS. Não existe nem sombra de evidência. E o próprio Sérgio Moro foi obrigado a reconhecer isso, deixando escrito, com todas as letras, que inexiste liame entre o imóvel e os tais contratos. O TRF-4 manteve a condenação e ampliou a pena sem enfrentar a questão. O STJ manteve a condenação e reduziu a pena sem enfrentar a questão. Agora a Justiça de São Paulo reconhece que Marisa Letícia efetivamente pagou à Bancoop por cotas de um apartamento e que desistiu da aquisição. Tanto é assim que a sentença determina que o dinheiro seja devolvido. Nunca se viu propina em que é o beneficiário — o corrupto passivo — a pagar mensalidades ao corruptor… Estou longe de ter a certeza que tem Lula de que vai deixar a cadeia. A forma como a Lava Jato e seus braços urdiram os processos não o autoriza a ter muitas esperanças. Mas ele tem um vício, lembram-se? É a política. Não entregar os pontos é a forma que encontrou de manter a sanidade mental e espiritual. E isso, por si, o torna uma pessoa admirável.

https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/04/28/a-entrevista-de-lula-1-a-admiravel-resiliencia-de-um-condenado-sem-provas/?fbclid=IwAR0V90G2EPbNgs2kslIQ1E5f6UeCK6whDlEMFxz9OJlPlX-GRhsOhjKPHL8  02/05/2019





domingo, 14 de abril de 2019

Paulo Freire

"Não há docência sem discência"

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo

Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Sérgio Haddad
[resumo] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Recife, 19/09/1921 - São Paulo, 02/05/1997

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.
“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.
Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.
A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.
O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.
Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.
“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares... Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular... Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.
E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.
No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.
Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores. Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.
Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.
A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.
Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.
Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.
Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.
Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.
Demitido antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta. O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.
Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses.

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.
Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”
Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.
Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela editora Todavia.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/04/por-que-o-brasil-de-olavo-e-bolsonaro-ve-em-paulo-freire-um-inimigo.shtml

sábado, 6 de abril de 2019

Filmes

Sou o que sou graças ao cinema e à literatura. Desde os quatorze anos vivo nesta dialética entre ficção e realidade. E daí a cultura, a arte e a vida.

Uma amostra desta vida.

The sun at midnight, 2016 de Kristen Carthew
Serenity (Calmaria), 2019, Steven Knight
Ash is Purest White  (Amor até as cinzas), 2018, Jia Zhangke
Shoplifters (Assunto de família), 2018, Hirokazu Kore-eda
Border (Fronteira), 2018, Ali Abbasi
A moment in the reeds, (Amor entre os juncos), 2018, Mikko Makela
The Shack (A Cabana), 2017, Stuart Hazeldine
Stan and Ollie, 2018, Jon S. Baird
Double Indemnity (Pacto de sangue), 1939, Billy Wilder
Capharnaum.2018, Nadine Labaki
Am zin (Jogo da vingança), 2002, Johnnie To
The Deadly Companions (O homem que eu devia odiar), 1961, Sam Peckinpah
The Osterman Weekend (O casal Osterman), 1983, Sam Peckinpah
The ABC murders, 2018, minissérie, Alex Gabassi
Azumi, 2003, Ryûhei Kitamura a partir de um mangá de Yû Koyama
Azumi 2: death or love, 2005, Director: Shûsuke Kaneko a partir de Yû Koyama (mangá)
Ying (Shadow), 2018,  Yimou Zhang
Mi obra maestra (Minha obra-prima), 2018, Gastón Duprat


14/02/19
The sun at midnight, 2016 de Kristen Carthew



Filmado no Círculo Polar Ártico, "The Sun at Midnight" conta a história de uma amizade inesperada entre um caçador obcecado em encontrar um rebanho de renas desaparecidos e um rebelde adolescente que se perde enquanto está em fuga.

Em pauta o ambiente e as populações nativas e suas contradições com o urbano.

19/02/19
Serenity (Calmaria), 2019, Steven Knight



Um protagonista com um passado que está cheio de buracos, uma ilha no meio do nada e um pequeno grupo de pessoas que está ali à deriva, como se estivesse esperando por algo que aparentemente nunca chegará. Este é o cerne de Calmaria, cujo título só faz ligação ao nome do barco de Baker Dill (Matthew McConaughey), pescador focado inteiramente em pescar um peixe considerado "imaginário" por muitos que vivem ao seu redor. Logo em sua primeira cena, o filme já dá um pequeno vislumbre (ou até mesmo uma dica) do que estamos prestes a acompanhar: um drama movido por uma sensação que mistura afastamento com observação. (adorocinema)
Sinopses e análises a seguir são de http://www.adorocinema.com/

Bom filme com Matthew McConaughey ; bem quando num bom roteiro.

11/03/19
Ash is Purest White  (Amor até as cinzas), 2018, Jia Zhangke



Os cinéfilos familiarizados com a obra de Jia Zhang-ke devem saber que, para o diretor chinês, uma história de amor nunca é apenas o encontro de duas pessoas, e sim um épico que atravessa vários anos, várias cidades, com direito a dezenas de personagens coadjuvantes, centenas de figurantes e uma infinidade de cenas. O cineasta gosta da amplitude do espaço e o tempo para falar de sentimentos íntimos.

10/03/19
Shoplifters (Assunto de família), 2018, Hirokazu Kore-eda




À primeira vista, eles parecem uma família tradicional. A avó, o pai, a mãe, os filhos. Mas não demora muito para descobrirmos que o núcleo familiar de Shoplifters foi composto pelo acaso: uma ex-prostituta se juntou com seu cliente, recolheu uma criança abandonada, roubou outra da casa onde sofria violência. Eles escondem alguns segredos ainda mais graves na origem dos laços que os conectam. Mas no dia a dia, se amam, se cuidam, fazem as refeições juntos.
Ao longo de toda a sua carreira, o diretor japonês Hirokazu Kore-eda se especializou em histórias de família, privilegiando os laços afetivos àqueles de sangue. De certo modo, o novo filme cristaliza essa noção, optando pela falta de julgamentos morais e demonstrando grande ternura por cada personagem. Eles roubam lojas para viver e se orgulham da própria esperteza, mas para a narrativa, o que importa é o afeto que são capazes de demonstrar um pelo outro. Sabemos que eventualmente a realidade terá que invadir este núcleo eletivo, mas os melhores momentos do filme se encontram no idílio do grupo. É quando a câmera se torna mais livre, a fotografia encontra seus melhores ângulos, efetuando melhor trabalho com luz natural, e quando o ambiente sonoro se torna mais complexo.

13/03/2019

Border (Fronteira), 2018, Ali Abbasi




Todo grande festival de cinema tem entre seus competidores algum filme estranhíssimo, inclassificável, do tipo que desperta amores ou rejeições, mas dificilmente deixa o espectador indiferente. Talvez o sueco Gräns (Border, em inglês) seja o exemplar em questão no 71º festival de Cannes. Mistura de drama, comédia, suspense e fantasia; fábula sobre o preconceito racial, sobre a degradação do ser humano e sobre a pluralidade sexual e de gênero, ele possui tantos temas e vertentes que chega a ser incrível a sua capacidade em equilibrá-los com tamanha maestria.
Parte considerável da força deste projeto se encontra num rosto, o de Tina, mulher de rosto singular. Com a testa protuberante, os olhos profundos, a pele marcada por cicatrizes e a arcada da boca sempre aberta, ela se encontra no meio termo entre a deficiência, a deformidade e uma noção mais ampla de monstruosidade. No entanto, apesar da aparência prejudicar a sua vida afetiva, ela possui um talento muito útil ao trabalho. Afinal, esta policial de um aeroporto possui um senso de odor extremamente refinado, podendo cheirar não apenas álcool e droga nas malas, mas também culpa, raiva, ressentimento dos passageiros. Quando você faz algo errado, Tina percebe pelo cheiro.
Esta personagem de aptidões excepcionais é tratada com respeito invejável pelo diretor de origem iraniana Ali Abbasi, e também pela excelente atriz Eva Melander, devidamente contida na intenção de evitar o grotesco. O mesmo ocorre com Vore (Eero Milonoff), homem encontrado por ela no aeroporto, e dotado de uma deformidade estranhamente parecida com a sua. Muitos roteiristas se contentariam em sugerir um romance entre ambos e garantir o final feliz, mas Gräns foge a soluções fáceis. No estranho relacionamento entre os dois humanos-monstros, o filme encontra espaço para detalhar o folclore nórdico, expor redes de pedofilia e encontrar representações alternativas para alienígenas e lobisomens.
 O projeto fascina pela originalidade radical, mesmo partindo de códigos tão conhecidos. Além disso, funciona como história de origem de uma super-heroína, no caso, esta mulher com capacidade sobre-humana de avaliação pelos cheiros. Cada detalhe é cuidadosamente abordado pela fotografia realista, pelos enquadramentos atentivos mas jamais óbvios, pela direção de arte precisa na decoração e nos figurinos. A fascinação de Tina e Vore por insetos, a conexão de ambos com a natureza de modo geral, são elementos muito bem trabalhados no decorrer da trama. Nenhum símbolo de estranhamento fica sem a devida utilização até o final.
Por sua mistura de gêneros e pela premissa quase cômica, Gräns pode ser um projeto difícil de apresentar ao público. Os fãs de terror verão um ritmo mais cadenciado do que a média do gênero, além de pouco sangue e violência, enquanto cinéfilos atentos aos dramas estrangeiros podem ficar chocados com as atitudes explícitas dos protagonistas. O diretor criou um filme para confundir, perturbar, como talvez sejam todos os grandes filmes. Resta saber se existe espaço para a entrega ao desconhecido no pragmático circuito distribuidor.
Bruno Carmelo,

13/03/19

A moment in the reeds, (Amor entre os juncos), 2018, Mikko Makela




Tendo se mudado para Paris para a universidade, Leevi retorna a sua terra natal, a Finlândia, para o verão, para ajudar seu pai a renovar a casa do lago da família para que ela possa ser vendida. Tareq, um solicitante de asilo recente da Síria, foi contratado para ajudar com o trabalho, e quando o pai de Leevi tem que retornar à cidade a negócios, os dois jovens estabelecem uma conexão e passam alguns dias se descobrindo durante o verão finlandês.

Filme da Finlândia que pode ser resumido numa palavra: sensibilidade.

18/03/19
The Shack (A Cabana), 2017, Stuart Hazeldine




Publicado pelo autor William P. Young em 2007, o livro A Cabana rapidamente se tornou um best-seller - já são ao menos 18 milhões de exemplares vendidos, até a conclusão deste texto. Não é difícil entender o porquê: sua história edificante e serena, apoiada em preceitos religiosos, serve como auto-ajuda em momentos de expiação, de dor e de culpa. Diante de tais características, e tamanho sucesso, chega a ser surpreendente que sua versão cinematográfica tenha levado uma década para enfim acontecer, até mesmo pela simplicidade de sua história e dos recursos necessários para que seja apresentada. Foi apenas com o recente boom de filmes cristãos em Hollywood, dos quais os expoentes maiores são os terríveis Deus Não Está Morto e O Céu é de Verdade, que a adaptação enfim foi autorizada.

18/03/19

Stan and Ollie, 2018, Jon S. Baird


Conta a história real de uma das maiores duplas de comediantes de todos os tempos, Laurel e Hardy. Os dois embarcaram em uma longa jornada em sua turnê pela Grã-Bretanha, em 1953, buscando colocar suas carreiras novamente nos holofotes, mesmo com o mundo ainda abalado pelos efeitos da Segunda Guerra Mundial.

O Gordo e o Magro já no fim de carreira. Bela homenagem.

20/03/19

Double Indemnity (Pacto de sangue), 1939, Billy Wilder





Walter Neff (Fred MacMurray), um vendedor de seguros, é seduzido e induzido por Phyllis Dietrickson (Barbara Stanwyck), uma sedutora e manipuladora mulher, a matar seu marido, mas de uma forma que pareça acidente para a polícia e também em condições específicas, que façam o seguro ser pago em dobro (no caso, 100 mil dólares).

Um clássico do filme noir. Imperdível. Já vi várias vezes.

26/03/19
Capharnaum.2018, Nadine Labaki



É fácil para o público se identificar com o personagem principal deste drama. Zain, doze anos de idade, vive num cortiço com a mãe, o pai e vários irmãos menores. É ele quem cuida das crianças pequenas, enquanto trabalha numa mercearia. Um dia, por oposição ao casamento forçado da irmã de onze anos de idade, abandona o lar e descobre um mundo ainda mais difícil, dormindo nas ruas, encontrando refugiados e cuidando sozinho do bebê dos outros. Capharnaum desenvolve a longa jornada de sobrevivência de um garoto de temperamento forte e maturidade inesperada para a idade.
Felizmente, o filme conta com protagonista excepcional. Zain Al Rafeea é uma criança de gestos fortes, grande desenvoltura diante das câmeras, capaz de interpretar planos ininterruptos com longos diálogos e conduzir momentos de explosão emocional com facilidade. Ele consegue falar tanto com sotaque libanês quando sírio. A diretora Nadine Labaki confia muito no ator, em quem aproxima a câmera durante a grande maioria das cenas. Como o mundo é visto pelos olhos da criança, precisamos confiar nas atitudes impulsivas de Zain. Al Rafeea não tem dificuldade em desempenhar esta tarefa. Os aspectos técnicos contribuem bastante ao resultado. A montagem, em especial, opta por planos curtos e muito bem entrelaçados, reforçando a dinâmica desta bagunça (significado da palavra “capharnaum”) e impedindo o melodrama intenso – ao menos durante boa parte da trama. Quando alguma notícia ruim chega ao pequeno Zain, a montagem corta imediatamente, busca os olhares das ruas, o barulho dos carros, de outras pessoas gritando, dos bebês chorando. O universo bruto é bem desenvolvido pelo ritmo ágil da câmera e pela fotografia bem desenhada, trabalhando os raios de sol enquanto a câmera na mão só treme exageradamente nos momentos de desespero (fuga, perseguição). Para inserir a pobreza de Zain num contexto mais amplo, drones se elevam às alturas, revelando que para todos os lados, o garoto encontrará as mesmas dificuldades.
 Diante de uma obra tão bem orquestrada tecnicamente e narrativamente, apenas a visão de mundo incomoda. Capharnaum é um ótimo drama de personagens, oferecendo uma eficaz constatação da miséria, no melhor estilo cinema-verdade. No entanto, limita-se à observação crua dos problemas. Em momento algum o filme busca entender de onde vêm os conflitos, com que esferas institucionais se relacionam, de que maneira poderiam se desenvolver. Os ricos não existem neste mundo de miseráveis, composto por crianças famintas, bebês abandonados, refugiados escapando da polícia e pequenos comerciantes praticando tráfico de pessoas. O olhar poderia ser taxado de conformista. Ele busca a evidente sensibilização do público, mas caso este realmente se engaje com as trajetórias humanas em tela, o que fazer com este sentimento de revolta?
A narrativa condensa seus conflitos num último terço fortemente sentimental. As lágrimas evitadas até então correm soltas no rosto da maior parte dos personagens, a trilha sonora de pianos e violinos invade as cenas, as câmeras lentas reforçam a dor de uma mãe no meio da rua, a promessa de tragédia se concretiza. Dentro do cinema, muitas pessoas estavam em lágrimas – e como não estar? Capharnaum apela aos sentimentos, à empatia humana, a uma espécie de olhar exótico a uma realidade distante do público médio do cinema, a quem o filme estende a mão. No final, o espectador tem a catarse prometida, sai de “alma lavada”, como diria o conhecimento popular, e com a consciência tranquila por ter compartilhado durante duas horas o drama daquelas pessoas. Enquanto projeto político, no entanto, o discurso é retórico: ele apela a bons sentimentos, à evidência da alteridade. Depois, fecha-se em si mesmo, não aponta horizonte algum. Bruno Carmelo 

Sobre o filme: irritantemente revoltante e belo.

28/03/19
Am zin (Jogo da vingança), 2002, Johnnie To




Inspetor de polícia e excelente negociador de reféns, Ho Sheung-Sang, encontra-se envolvido num jogo de 72 horas por um criminoso sofrendo de câncer numa a vingança sobre o crime organizado de Hong Kong Syndicates.

Johnnie To é um dos melhores em filmes de ação. Show de bola.

29/03/19
The Deadly Companions (O homem que eu devia odiar), 1961, Sam Peckinpah




Um ex-oficial do Exército acidentalmente mata o filho de uma mulher e tenta compensar isso acompanhando a procissão fúnebre através do perigoso território indiano.

Sam Peckinpah é uma referência. Não existe cinema sem Sam.

29/03/19
The Osterman Weekend (O casal Osterman), 1983, Sam Peckinpah 


Desde os tempos da faculdade, é uma tradição de John Tanner e mais três grandes amigos passar um fim de semana no campo. Entretanto, desta vez, antes do ínicio de evento, o agente da CIA Lawrence Fassett, procura Tanner para lhe contar que seus amigos são, na verdade, espiões que trabalham para o goverrno russo. John, apesar de confuso, pois  julgava conhecer muito bem seus companheiros,  é um grande adepto da democracia americana, e dispõe a ajudar o agente Lawrence Fassett.

Último filme de Sam Peckinpah. A invasão de privacidade e o controle “Big Brothers” vindo da TV. Profético.

30/03/19
The ABC murders, 2018, minissérie, Alex Gabassi




O icônico detetive criado por Agatha Christie, Hercule Poirot (John Malkovich), investiga um inimigo mais inteligente e desafiador do que ele jamais imaginou. Em uma Inglaterra da década de 1930 cada vez mais dividida, um assassino em série conhecido apenas como A.B.C. assola a população. Em cada cena do crime a única pista deixada é um guia de trens popular na Inglaterra de título "ABC".

John Malkovich na tela

01/04/19
Azumi, 2003, Ryûhei Kitamura a partir de um mangá de Yû Koyama




Uma guerra no Japão faz com que o país seja devastado. Desesperado em restaurar a paz, Tokugawa Shogun, líder de um clã, ordena o assassinato de um comandante inimigo. Para realizar a tarefa é selecionada Azumi (Aya Ueto), uma jovem e bonita mulher que foi selecionada ao nascer, juntamente com outros 9 órfãos, para se tornar uma assassina.

Azumi 2: death or love, 2005, Director: Shûsuke Kaneko a partir de Yû Koyama (mangá)



01/04/19
Ying (Shadow), 2018,  Yimou Zhang



Durante o período dos Três Reinos na China, um Rei, muito violento e ambicioso, se prepara para a batalha final. Perdê-la significa abdicar do seu trono, suas terras e seu povo, algo que ele e o General do seu exército não estão dispostos a entregar tão facilmente. Paralelamente, as mulheres do palácio percebem que este é momento ideal para reivindicarem posições de destaque em um mundo que parece não reconhecê-las.

Em destaque a estética Yimou Zhang

05/04/2019
Mi obra maestra (Minha obra-prima), 2018, Gastón Duprat




Pense naquele dia em que você se deparou com uma exposição de arte contemporânea onde não conhecia ninguém, não entendia o propósito da obra, não via valor algum naqueles quadros ou esculturas e ficou horrorizado com o valor extravagante de cada peça. O abismo que separa o mundo elitista da arte e o público médio constitui o alvo de Minha Obra-Prima, comédia sobre pintores fracassados, mecenas ignorantes, agentes sem escrúpulos, consumidores ricos e fúteis. Ninguém escapa ao humor corrosivo que satiriza tanto a direita vaidosa quanto à esquerda utópica.
No centro da trama se encontram dois produtores cínicos de arte: por um lado, o pintor Renzo Nervi (Luis Brandoni), que afirma fazer “algo inútil que não interessa a ninguém”, e por outro lado, o negociante Arturo Silva (Guillermo Francella), capaz de rasgar elogios a obras de que não gosta, mas que podem lhe render lucros. Um deles se encontra fora do circuito, por ter suas pinturas rejeitadas pela maior parte das galerias, enquanto o outro representa a adesão perfeita ao mainstream. Eles têm em comum o fato de serem personagens interpretando personagens: o artista nutre sua persona exótica e arrogante, como convém ao imaginário do pintor genial, enquanto o agente de vendas ostenta os trejeitos do homem de negócios, necessários para movimentar os milhões de dólares necessários.
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Esteticamente, Minha Obra-Prima revela uma confecção discreta, porém eficaz. O diretor transparece um cuidado evidente na hora de enquadrar obras de arte, ao passo que oferece uma movimentação de câmera mais livre nas cenas de briga. Exceto por estes momentos, rende-se à dinâmica dos atores principais e dos diálogos, em planos de conjunto simples. O discurso pode não produzir nenhum questionamento profundo sobre a produção de valores dentro do circuito artístico, mas serve para sublinhar as máscaras sociais até o limite do ridículo. Ao enxergar artistas como figuras cínicas, Duprat retira da criação sua aura romântica, aproximando-a do trabalho mesquinho e massificado de qualquer empresa com fins lucrativos. Somos convidados a nos identificar com pintores e mecenas não pelo que têm de melhor, mas pelo que carregam de pior.
Bruno C.