Thais, 36, é professora de matemática e leciona 34 horas semanais em
duas escolas, uma pública e outra privada, na cidade de São Paulo. Seu salário
é de R$ 1.700. Para complementar, vende cosméticos que lhe rende R$ 1.000 em
dez horas de trabalho por semana. Ela é casada com o João Carlos, 42,
funcionário de uma concessionária de automóveis. O casal tem dois filhos: João
de 7 anos e Carla de 5.
A rotina de Thais é infernal. Acorda às 5 horas, arruma o café da manhã
dos meninos que tomam o ônibus para a escola às 06h30min horas. As 7 sai de
casa para o trabalho docente nas duas escolas em que tem aulas. Tudo isso de
ônibus e metrô. Nas quartas e sábado vende cosméticos. No domingo descansa?
Negativo. Neste dia prepara aulas e corrige testes de seus alunos e alunas. E
João e Carla? Conversa com eles nos intervalos (no recreio) desta maratona. A
sorte deles é o pai que tem mais tempo livre.
Thais está entre os 266 mil docentes da educação básica do país que
possuem uma segunda ocupação, um “bico” fora do ensino segundo a Folha de São
Paulo de 07/11/2011. Este número representa 10,5% do magistério nacional,
índice bem acima da população brasileira (3,5% tem uma segunda ocupação).
João Carlos vive com Thais há dez anos. Ela sempre na maratona diária.
Ele, mais tranquilo, tem uma rotina apenas alterada no fim do mês: a maldita
meta de venda de automóveis da empresa.
Carla aniversaria dia no dia 28 de setembro. Naquele ano esta data, seu
6º niver, foi num sábado. Os pais
resolveram, junto com a filha, comemorar no McDonald. É a terceirização da
festa já que pelas atividades da mãe foi impossível sua organização no
condomínio onde moram. Foram convidadas as colegas, os colegas de escola, os
parentes e agregados, cerca de 30 convivas.
No convite para a meninada dizia início da festa às 18 horas. João
Carlos levou os filhos. E cadê Thais? Trabalhando. A turba convidada estava se
esbaldando no tobogã e nos outros brinquedos do McDonald. 19 horas e nada de
Thais. Às 20 horas o pai deliberou por cantar os parabéns e cortar o bolo. Às
20h05min chegou a esbaforida Thais no meio do parabém para você. Pode?
- Desculpe filha, mamãe saiu tarde do shopping de vendas. Meus parabéns,
disse Thais beijando e abraçando Carla.
- Problema não mãe, já estou acostumada, disse a resignada filha.
Denise Alvarez em seu ótimo livro (e um belo título) tem o diagnóstico
disto aí: “... fica clara esta mistura
entre tempo social e tempo profissional, pois não é mais a vida profissional
que interfere na vida social e sim o inverso, a vida social é que se infiltra
na vida profissional, “atrapalhando” seu desempenho. Daí a afirmação que os
aniversários – data única na vida de uma pessoa, que acontece uma vez por ano –
têm o hábito de se concentrar em datas inconvenientes. Exemplo claro da relação
entre temporalidade ergológica e tempo vivido nas relações sociais, pois não
temos dois corpos: um dedicado ao trabalho e outro à vida social. O que há é
uma fusão permanente entre valores que aí são tecidos e reelaborados. (Denise
Alvarez, Cimento não é concreto, tamborim
não é pandeiro, pensamento não é dinheiro! Para onde vai a produção acadêmica?
Myrrha, Rio de Janeiro, 2004). Thais faz parte daquelas pessoas infectadas pelo
trabalho.
Thais precisa do trabalho para
ajudar a pagar as contas da família? Sim. É a realidade da profissão professora
no contexto desta droga malhada chamada educação brasileira. Mas também conheço
pessoas que faz do trabalho uma fuga. Dizem: trabalho muito para não pensar em meus problemas pessoais. Nestes
casos só Freud mesmo para explicar. Não tenho dados para afirmar que seja o
caso de Thais. Mas relato a seguir o que aconteceu numa noite.
João Carlos chegou do trabalho mais tarde do que o normal. Encontrou os
filhos dormindo e Thais no computador preparando aula. Constrangido resolveu
confessar.
- Thais preciso te dizer uma coisa muito séria.
Thais na frente do computador.
- Será que você está prestando atenção?
E Thais continua no computador.
Já revoltado com a cena João Carlos finalmente disse:
- Hoje de noite fui para um motel com uma colega de trabalho.
Thais na frente do computador.
- E você não vai me dizer nada?
disse o marido.
Thais sem tirar os olhos da tela do computador respondeu:
- Tá bom João, agora vai dormir que preciso terminar minha aula.
João foi para a cama e Thais pensou: Deus sabe o que faz.
A vida continuou para os dois. Há coisas que não tem explicação, tem
existência.
Edson Pereira Cardoso, julho de 2012.
Este texto foi
inspirado por uma palestra de Denise Alvarez realizada na UFES.
Que maravilhoso Edson: Há coisas que não tem explicação, tem existência.
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