sábado, 28 de março de 2020

SÓ!

Machado de Assis

[GN. 6 jan. 1885.] Alonguei-me fugindo, e morei na soledade. Salm. LIV, 8.

BONIFÁCIO, depois de fechar a porta, guardou a chave, atravessou o jardim e meteu-se em casa. Estava só, finalmente só. A frente da casa dava para uma rua pouco freqüentada e quase sem moradores. A um dos lados da chácara corria outra rua. Creio que tudo isso era para os lados de Andaraí.

Um grande escritor, Edgard Poe, relata, em um de seus admiráveis contos, a corrida noturna de um desconhecido pelas ruas de Londres, à medida que se despovoam, com o visível intento de nunca ficar só. “Esse homem, conclui ele, é o tipo e o gênio do crime profundo; é o homem das multidões.” Bonifácio não era capaz de crimes, nem ia agora atrás de lugares povoados, tanto que vinha recolher-se a uma casa vazia. Posto que os seus quarenta e cinco anos não fossem tais que tornassem inverossímil uma fantasia de mulher, não era amor que o trazia à reclusão. Vamos à verdade: ele queria descansar da companhia dos outros. Quem lhe meteu isso na cabeça — sem o querer nem saber — foi um esquisitão desse tempo, dizem que filósofo, um tal Tobias que morava para os lados do Jardim Botânico. Filósofo ou não, era homem de cara seca e comprida, nariz grande e óculos de tartaruga. Paulista de nascimento, estudara em Coimbra, no tempo do rei e vivera muitos anos na Europa, gastando o que possuía, até que, não tendo mais que alguns restos, arrepiou carreira. Veio para o Rio de Janeiro, com o plano de passar a S. Paulo; mas foi ficando e aqui morreu. Costumava ele desaparecer da cidade durante um ou dous meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada. Esta circunstância fê-lo crer maluco, e tal era a opinião entre os rapazes; não faltava, porém, quem lhe atribuísse grande instrução e rara inteligência, ambas inutilizadas por um ceticismo sem remédio. Bonifácio, um dos seus poucos familiares, perguntou-lhe um dia que prazer achava naquelas reclusões tão longas e absolutas; Tobias respondeu, que era o maior regalo do mundo.
— Mas, sozinho! tanto tempo assim, metido entre quatro paredes, sem ninguém!
— Sem ninguém, não.
— Ora, um escravo, que nem sequer lhe pode tomar a bênção!
— Não, senhor. Trago um certo número de idéias; e, logo que fico só, divirto-me em conversar com elas. Algumas vêm já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez, vinte e todo esse povo salta, brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com outras, ferem-se e algumas morrem; e quando dou acordo de mim, lá se vão muitas semanas. Foi pouco depois dessa conversação que vagou uma casa de Bonifácio. Ele, que andava aborrecido e cansado da vida social, quis imitar o velho Tobias; disse em casa, na loja do Bernardo e a alguns amigos, que ia estar uns dias em Iguaçu, e recolheu-se a Andaraí. Uma vez que a variedade enfarava, era possível achar sabor da monotonia. Viver só, duas semanas inteiras, no mesmo espaço, com as mesmas cousas, sem andar de casa em casa e de rua em rua, não seria um deleite novo e raro? Em verdade, pouca gente gostará da música monótona; Bonaparte, entretanto, lambia-se por ela, e sacava dali uma teoria curiosa, a saber, que as impressões que se repetem são as únicas que verdadeiramente se apossam de nós. Na chácara de Andaraí a impressão era uma e única.
Vimo-lo entrar. Vamos vê-lo percorrer tudo, salas e alcovas, jardim e chácara. A primeira impressão dele, quando ali se achou, espécie de Robinson, foi um pouco estranha, mas agradável. Em todo o resto da tarde não foi mais que proprietário; examinou tudo, com paciência minuciosidade, paredes, tetos, portas, vidraças, árvores, o tanque, a cerca de espinhos. Notou que os degraus que iam da cozinha para a chácara, estavam lascados, aparecendo o tijolo. O fogão tinha grandes estragos. Das janelas da cozinha, que eram duas, só uma fechava bem; a outra era atada com um pedaço de corda. Buracos de rato, rasgões no papel da parede, pregos deixados, golpes de canivete no peitoril de algumas janelas, tudo descobriu, e contra tudo tempestuou com uma certa cólera postiça e eficaz na ocasião.
A tarde passou depressa. Só reparou bem que estava só, quando lhe entraram em casa as ave-marias, com o seu ar de viúvas recentes; foi a primeira vez na vida que ele sentiu a melancolia de tais hóspedes. Essa hora eloqüente e profunda, que ninguém mais cantará como o divino Dante, ele só a conhecia pelo gás do jantar, pelo aspecto das viandas, ao tinir dos pratos, ao reluzir dos copos, ao burburinho da conversação, se jantava com outras pessoas, ou pensando nelas, se jantava só. Era a primeira vez que lhe sentia prestígio, e não há dúvida que ficou acabrunhado. Correu a acender luzes e cuidou de jantar.
Jantou menos mal, ainda que sem sopa; tomou café, preparado por ele mesmo, na máquina que levara, e encheu o resto da noite como pôde. Às oito horas, indo dar corda ao relógio, resolveu deixá-lo parar, a fim de tornar mais completa a solidão; leu algumas páginas de uma novela, bocejou, fumou e dormiu.
De manhã, ao voltar do tanque e tomado o café, procurou os jornais do dia, e só então advertiu que, de propósito, os não mandara vir. Estava tão acostumado a lê-los, entre o café e o almoço, que não pôde achar compensação em nada.
— Pateta! exclamou. Que tinha que os jornais viessem?
Para matar o tempo, foi abrir e examinar as gavetas da mesa — uma velha mesa, que lhe não servia há muito, e estava ao canto do gabinete, na outra casa. Achou bilhetes de amigos, notas, flores, cartas de jogar, pedaços de barbante, de lacre, penas, contas antigas, etc. Releu os bilhetes e as notas. Algumas destas falavam de cousas e pessoas dispersas ou extintas: “Lembrar ao cabeleireiro para ir à casa de D. Amélia”. — “Comprar um cavalinho de pau para o filho do Vasconcelos”. — “Cumprimentar o ministro da Marinha”. — “Não esquecer de copiar as charadas que D. Antônia me pediu”. — “Ver o número da casa dos suspensórios”. — “Pedir ao secretário da Câmara um bilhete de tribuna para o dia da interpelação”. E assim outras algumas tão concisas, que ele mesmo não chegava a entender, como estas, por exemplo: — “Soares, prendas, a cavalo”. — “Ouro e pé de mesa”.
No fundo da gaveta, deu com uma caixinha de tartaruga, e dentro um molhozinho de cabelos, e este papel: “Cortados ontem, 5 de novembro, de manhã”. Bonifácio estremeceu…
— Carlota! exclamou.
Compreende-se a comoção. As outras notas eram pedaços da vida social. Solteiro, e sem parentes, Bonifácio fez da sociedade uma família. Contava numerosas relações, e não poucas íntimas. Vivia da convivência, era o elemento obrigado de todas as funções, parceiro infalível, confidente discreto e cordial servidor, principalmente de senhoras. Nas confidências, como era pacífico e sem opinião, adotava os sentimentos de cada um, e tratava sinceramente de os combinar, de restaurar os edifícios que, ou o tempo, ou as tempestades da vida, iam gastando. Foi uma dessas confidências, que o levou ao amor expresso naquele molhozinho de cabelos, cortados ontem, 5 de novembro; e esse amor foi a grande data memorável da vida dele.
— Carlota! repetiu ainda.
Reclinado na cadeira, contemplava os cabelos, como se fossem a própria pessoa; releu o bilhete, depois fechou os olhos, para recordar melhor. Pode-se dizer que ficou um pouco triste, mas de uma tristeza que a fatuidade tingia de alguns tons alegres. Reviveu o amor e a carruagem — a carruagem dela —, os ombros soberbos e as jóias magníficas — os dedos e os anéis, a ternura da amada e a admiração pública…
— Carlota!
Nem almoçando, perdeu a preocupação. E, contudo, o almoço era o melhor que se podia desejar em tais circunstâncias, mormente se contarmos o excelente Borgonha que o acompanhou, presente de um diplomata; mas nem assim.
Fenômeno interessante: — almoçado, e acendendo um charuto, Bonifácio pensou na boa fortuna, que seria, se ela lhe aparecesse, ainda agora, a despeito dos quarenta e quatro anos. Podia ser; morava para os lados da Tijuca. Uma vez que isto lhe pareceu possível, Bonifácio abriu as janelas todas da frente e desceu à chácara, para ir até à cerca que dava para a outra rua. Tinha esse gênero de imaginação que a esperança dá a todos os homens; figurou na cabeça a passagem de Carlota, a entrada, o assombro e o reconhecimento. Supôs até que lhe ouvia a voz; mas era o que lhe acontecia desde manhã, a respeito de outras. De quando em quando, chegavam-lhe ao ouvido uns retalhos de frases:
— Mas, sr. Bonifácio…
— Jogue; a vaza é minha…
— Jantou com o desembargador?
Eram ecos da memória. A voz da dona dos cabelos era também um eco. A diferença é que esta lhe pareceu mais perto, e ele cuidou que, realmente, ia ver a pessoa. Chegou a crer que o fato extraordinário da reclusão se prendesse ao encontro com a dama, único modo de a explicar. Como? Segredo do destino. Pela cerca, espiou disfarçadamente para a rua, como se quisesse embaçar a si mesmo, e não viu nem ouviu nada mais que uns cinco ou seis cães que perseguiam a outro, latindo em coro. Começou a chuviscar; apertando a chuva, correu a meter-se em casa; entrando, ouviu distintamente dizer:
— Meu bem!
Estremeceu; mas era ilusão. Chegou à janela, para ver a chuva, e lembrou-se que um de seus prazeres, em tais ocasiões, era estar à porta do Bernardo ou do Farani, vendo passar a gente, uns para baixo, outros para cima, numa contradança de guarda-chuvas… A impressão do silêncio, principalmente, afligia mais que a da solidão. Ouvia alguns pios de passarinho, cigarras — às vezes um rodar de carro, ao longe —, alguma voz humana, ralhos, cantigas, uma risada, tudo fraco, vago e remoto, e como que destinado só a agravar o silêncio. Quis ler e não pôde; foi reler as cartas e examinar as contas velhas. Estava impaciente, zangado, nervoso. A chuva, posto que não forte, prometia durar muitas horas, e talvez dias. Outra cainçada aos fundos, e desta vez trouxe-lhe à memória um dito do velho Tobias. Estava em casa dele, ambos à janela, e viram passar na rua um cão, fugindo de dous, que ladravam; outros cães, porém, saindo das lojas e das esquinas, entravam a ladrar também, com igual ardor e raiva, e todos corriam atrás do perseguido. Entre eles ia o do próprio Tobias, um que o dono supunha ser descendente de algum cão feudal, companheiro das antigas castelãs. Bonifácio riu-se, e perguntou-lhe se um animal tão nobre era para andar nos tumultos de rua.
— Você fala assim, respondeu Tobias, porque não conhece a máxima social dos cães. Viu que nenhum deles perguntou aos outros o que é que o perseguido tinha feito; todos entraram no coro e perseguiram também, levados desta máxima universal entre eles: — Quem persegue ou morde, tem sempre razão — ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do perseguido. Já reparou? Repare e verá.
Não se lembrava do resto, e, aliás, a idéia do Tobias pareceu-lhe ininteligível, ou, quando menos, obscura. Os cães tinham cessado de latir. Só continuava a chuva. Bonifácio andou, voltou, foi de um lado para outro, começava a achar-se ridículo. Que horas seriam? Não lhe restava o recurso de calcular o tempo pelo sol. Sabia que era segunda-feira, dia em que costumava jantar na Rua dos Beneditinos, com um comissário de café. Pensou nisso; pensou na reunião do conselheiro ***, que conhecera em Petrópolis; pensou em Petrópolis, no whist; era mais feliz no whist que ao voltarete, e ainda agora recordava todas as circunstâncias de uma certa mão, em que ele pedira licença, com quatro trunfos, rei, manilha, basto, dama… E reproduzia tudo, as cartas dele com as de cada um dos parceiros, as cartas compradas, a ordem e a composição das vazas.
Era assim que as lembranças de fora, cousas e pessoas, vinham de tropel agitando-se em volta dele, falando, rindo, fazendo-lhe companhia. Bonifácio recompunha toda a vida exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas, uma conversação, um enredo, um boato. Cansou, e tentou ler; a princípio, o espírito saltava fora da página, atrás de uma notícia qualquer, um projeto de casamento; depois caiu numa sonolência teimosa. Espertava, lia cinco ou seis linhas, e dormia. Afinal, levantou-se, deixou o livro e chegou à janela para ver a chuva, que era a mesma, sem parar nem crescer, nem diminuir, sempre a mesma cortina d’água despenhando-se de um céu amontoado de nuvens grossas e eternas.
Jantou mal, e, para consolar-se, bebeu muito Borgonha. De noite, fumado o segundo charuto, lembrou-se das cartas, foi a elas, baralhou-as e sentou-se a jogar a paciência. Era um recurso: pôde assim escapar às recordações que o afligiam, se eram más, ou que o empuxavam para fora, se eram boas. Dormiu ao som da chuva, e teve um pesadelo. Sonhou que subia à presença de Deus, e que lhe ouvia a resolução de fazer chover, por todos os séculos restantes do mundo.
— Quantos mais? perguntou ele.
— A cabeça humana é inferior às matemáticas divinas, respondeu o Senhor; mas posso dar-te uma idéia remota e vaga: — multiplica as estrelas do céu por todos os grãos de areia do mar, e terás uma partícula dos séculos…
— Onde irá tanta água, Senhor?
— Não choverá só água, mas também Borgonha e cabelos de mulheres bonitas…
Bonifácio agradeceu este favor. Olhando para o ar, viu que efetivamente chovia muito cabelo e muito vinho, além da água, que se acumulava no fundo de um abismo. Inclinou-se e descobriu embaixo, lutando com a água e os tufões, a deliciosa Carlota; e querendo descer para salvá-la, levantou os olhos e fitou o Senhor. Já o não viu então, mas somente a figura do Tobias, olhando por cima dos óculos, com um fino sorriso sardônico e as mãos nas algibeiras. Bonifácio soltou um grito e acordou.
De manhã, ao levantar-se, viu que continuava a chover. Nada de jornais: parecia-lhe já um século que estava separado da cidade. Podia ter-lhe morrido algum amigo, ter caído o ministério, ele não sabia de nada. O almoço foi ainda pior que o jantar da véspera. A chuva continuava, farfalhando nas árvores, nem mais nem menos. Vento nenhum. Qualquer bafagem, movendo as folhas, quebraria um pouco a uniformidade da chuva; mas tudo estava calado e quieto, só a chuva caía sem interrupção nem alteração, de maneira que, ao cabo de algum tempo, dava ela própria a sensação da imobilidade, e não sei até se a do silêncio.
As horas eram cada vez mais intermináveis. Nem havia horas; o tempo ia sem as divisões que lhe dá o relógio, como um livro sem capítulos. Bonifácio lutou ainda, fumando e jogando; lembrou-se até de escrever algumas cartas, mas apenas pôde acabar uma. Não podia ler, não podia estar, ia de um lado para outro, sonolento, cansado, resmungando um trecho de ópera: Di quella pira… Ou então: In mia mano alfin tu sei… Planeava outras obras na casa, agitava-se e não dominava nada. A solidão, como paredes de um cárcere misterioso, ia-se-lhe apertando em derredor, e não tardaria a esmagá-lo. Já o amor-próprio o não retinha; ele desdobrava-se em dous homens, um dos quais provava ao outro que estava fazendo uma tolice.
Eram três horas da tarde, quando ele resolveu deixar o refúgio. Que alegria, quando chegou à Rua do Ouvidor! Era tão insólita que fez desconfiar algumas pessoas; ele, porém, não contou nada a ninguém, e explicou Iguaçu como pôde.
No dia seguinte foi à casa do Tobias, mas não lhe pôde falar; achou-o justamente recluso. Só duas semanas depois, indo a entrar na barca de Niterói, viu adiante de si a grande estatura do esquisitão, e reconheceu-o pela sobrecasaca cor de rapé, comprida e larga. Na barca, falou-lhe:
— O senhor pregou-me um logro…
— Eu? perguntou Tobias, sentando-se ao lado dele.
— Sem querer, é verdade, mas sempre fiquei logrado.
Contou-lhe tudo; confessou-lhe que, por estar um pouco fatigado dos amigos, tivera a idéia de recolher-se por alguns dias, mas não conseguiu ir além de dous, e, ainda assim, com dificuldade. Tobias ouviu-o calado, com muita atenção; depois, interrogou-o minuciosamente, pediu-lhe todas as sensações, ainda as mais íntimas, e o outro não lhe negou nenhuma, nem as que teve com os cabelos achados na gaveta. No fim, olhando por cima dos óculos, tal qual como no pesadelo, disse-lhe com um sorriso copiado do diabo:
— Quer saber? Você esqueceu-se de levar o principal da matalotagem, que são justamente as idéias…
Bonifácio achou-lhe graça, e riu.
Tobias, rindo também, deu-lhe um piparote na testa. Em seguida, pediu-lhe notícias, e o outro deu-lhas de vária espécie, grandes e pequenas, fatos e boatos, isto e aquilo, que o velho Tobias ouviu, com olhos meio cerrados, pensando em outra cousa.

Fonte: Machado de Assis, Obra Completa, Vol. II, p. 1.044, Editora José Agullar Ltda, 1962

quinta-feira, 26 de março de 2020

Quem fará a ruptura no Brasil?


Por Milton Pinheiro, Blog da Boi Tempo, 26/03/2020

O aprofundamento da crise brasileira, iniciada pelas contendas entre as frações da burguesia interna quando do afastamento da presidente Dilma, fugiu ao controle desses segmentos e autonomizou-se com a chegada ao governo do nefasto agitador fascista, Jair Bolsonaro. A incapacidade politico-administrativa do militar-presidente tem acelerado o quadro de condensação de crises no qual o Brasil, com o advento do coronavírus, está desenvolvendo.

A grave crise sistêmica da ordem do capital tem operado mudanças drásticas no capitalismo, desvelando seu caráter corrosivo, modificando o papel do Estado na relação com o processo de acumulação da burguesia. Nessa nova dinâmica, o Estado capitalista foi capturado para esse patamar de uma reiterada tentativa de encontrar formas extremas no processo de revalorização do capital e, sendo assim, avançar na espoliação de forma agressiva. Aproveitando-se desse controle, a ordem do capital estabeleceu uma plataforma ideológica cuja dominação alterou consistentemente a subjetividade do proletariado e impôs o individualismo como conduta política para a lógica cotidiana do senso comum.

Afirma-se, portanto, uma permanente crise sistêmica que se alimentou dos passos incontornáveis que a crise de 2008 trilhou, sendo importante registrar que ela já manifestava sinais anteriores a esse epifenômeno. Porém, ao examinar a crise a partir de datas cíclicas a vulgata econômica (posição neoclássica) não consegue responder ao debate em curso e apresenta uma análise de elevador, apenas justificando o que sobe e o que desce em sua constante fuga da história.

Na ordem sócio-metabólica do sistema do capital a estagnação capitalista e a dívida das empresas com bancos privados têm sido a dupla farsa do jogo de aparências para executar uma grotesca expropriação de mais-valia. Ao lado dessa operação, o imperialismo reacendeu a sua formatação binária: crise e guerra, o que possibilitou à pandemia do coronavírus desvelar a face oculta do capitalismo: a extração de mais-valia.

A crise em curso tem demonstrado que o neoliberalismo está cada mais exposto, suas características primordiais que são as contrarreformas na ordem/forma do Estado capitalista apresentam-se comprovadamente como falsa solução. A cena política tende a ser desvelada e a correlação de forças pode modificar de forma célere em escala global.
O governo de extrema direita do fascista Jair Bolsonaro colocou o Brasil no laboratório do Caos Controlado. A visão spenceriana (política pública de desarticulação do acompanhamento social aos pobres) no comando da lógica do mercado cria um sentido para que se projete um caos na vida social. Esse projeto tem destruído a educação básica e superior, a ciência e a pesquisa, ao tempo em que ataca de forma sem precedente a saúde, portanto, colocando em risco de morte a população mais carente no Brasil.

A política do Caos Controlado permitiu que o governo ampliasse, através das redes de contágios (as várias redes virtuais), a agitação fascista através do militar-presidente e implementasse pautas obscurantistas na ordem dos costumes, contrariando o mínimo de progresso que existia nas relações da superestrutura.

Do ponto de vista do projeto de governo, Bolsonaro tem consolidado um grupo palaciano formado por militares que são contra a soberania do Brasil e que, apesar de não integrar a burguesia, grosso modo opera o Estado brasileiro na perspectiva de facilitar ações para o pleno exercício econômico daquelas frações da burguesia que conformam o bloco no poder, em especial, aquelas que agem a partir do capital financeiro e do pequeno círculo monopolista do varejo.

A área econômica do governo, comandada pelo operador de fundos de pensão, Paulo Guedes, já demonstrou desconhecimento macroeconômico e completa incapacidade para atuar no setor público. O Caos Controlado está fugindo do controle do governo do ponto de vista econômico, direcionando-se para aventuras imprevisíveis no cenário da política econômica, cujo primeiro sinal é a estagnação e a queda sem limite da projeção do PIB. A recente queda das bolsas, inclusive no Brasil, estimulada pelo avanço do vírus, está sendo colocada como elemento central da crise. Contudo, a crise sistêmica já havia encapsulado o governo do militar-presidente, diante da sua incapacidade, e se estabelecido de forma sustentável.

O governo do militar-bonapartista Jair Bolsonaro tem privilegiado o capital financeiro, atacado o setor público e beneficiado o capital monopolista e suas empresas. Contudo, apesar das tradicionais frações da burguesia não terem, até este momento, aprimorado o duelo entre elas, avançou a pequena política de balcão com o estímulo do Palácio do Planalto para o imediato sequestro do fundo público.

O caos político tem estimulado projeções e começam a iluminar a luta de classes. Com o provável acirramento da condensação de crises existe uma consistente possibilidade das frações burguesas que, até aqui, restringiram seus confrontos ao ambiente do balcão, alimentarem o confronto entre elas e o imponderável entrar em cena, com escolhas políticas mais abruptas.

O governo da repetição monetarista tem usado as reservas cambiais para conter o dólar, ao lado disso sinaliza com um provável aporte para permitir que os bancos continuem na zona de conforto; o farol da escolha acendeu uma opção pela fração financeira dentro do bloco no poder. Mas, a lógica da insensatez é a marca registrada do governo. Apesar da imensa subordinação à geopolítica estadunidense, e, em particular, aos ditames do despachante da Casa Branca, Donald Trump, o governo do agitador fascista provavelmente se manterá ainda mais distante da defesa da economia global e procurará saídas dentro da lógica da pequena política numa configuração retórica antiglobalista e de conteúdo fascista para afirmar o projeto da extrema direita.

A lógica do caos controlado está fugindo ao controle do chefe fascista no Brasil. A convocação para que a sua base de apoio fosse às ruas contra o STF, o Congresso Nacional e a esquerda, em momento de forte manifestação da crise econômica, abriu algumas possibilidades para a constituição de um novo cenário. Todavia, existe uma questão, a pauta do capital monopolista no Brasil será efetivada na infraestrutura e na superestrutura com a visível condensação da instabilidade?

Essa condensação de crises, causada pela expansão do vírus e da crise econômica, tem levado Bolsonaro a jogar sua liderança na aposta pelo isolamento político e na histérica defesa do capital financeiro e do varejo. Ao afirmar que o vírus, no Brasil, será uma gripe sem maior importância, ele garante, se isso ocorrer, uma confortável presença entre as massas e pode avançar no seu projeto bonapartista. Contudo, se houver a confirmação dos especialistas de que o vírus será letal em nosso país, Bolsonaro recorrerá ao que ainda tem: expressivos segmentos neopentecostais, hordas de policiais (militares e civis), setores das Forças Armadas e seguranças privados, bem como extratos racistas da pequena burguesia (classe média), latifundiários e assaltantes de terras para operar o mesmo projeto: a ruptura da ordem institucional.

Nesse quadro de possibilidades, dentro do novo cenário, percebe-se que a correlação de forças na luta de classes tem se alterado. Existe presença de massa para o fora Bolsonaro, contudo, precisamos ir mais longe. A emergência da crise sistêmica, o ataque imperialista no mundo, a lógica do ataque aos trabalhadores, a escassez em tempos de abundância, a tentativa de destruir as diversas identidades que são desrespeitadas no capitalismo em curso, nos permite analisar que só o proletariado com seu freio histórico conterá a barbárie, o golpe da extrema direita e o fascismo em curso. Abriu-se uma disjuntiva com força na luta de classes: ou a classe trabalhadora derruba Bolsonaro ou o militar-presidente, na sua lógica bonapartista, fará a ruptura no Brasil.

***
Milton Pinheiro é Cientista Político e professor Titular de História Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Autor/Organizador de vários livros, entres eles, Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, São Paulo, 2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Tatiana Leskova

Os 90 anos de dona Tânia, a mestra ‘durona’ do balé

Tatiana Leskova  / Agência O GLOBO 

Às vésperas de completar 90 anos, dia 6 de dezembro, Tatiana Leskova não combina com a imagem de uma senhora serena, inativa, avessa à tecnologia. Enquanto conversa com o repórter, pega seu iPad, faz uma ligação por Skype para o editor Joel Gehlen e confirma a data de lançamento da fotobiografia “Tatiana Leskova, imagens de uma bailarina solta no mundo”, que já pode ser comprada pela internet, no endereço www.letradagua.com.br: 30 de outubro, na Livraria Argumento. Em seguida, ela lê o e-mail do editor britânico que vai lançar até o Natal, na Inglaterra, “Tatiana Leskova, uma bailarina solta no mundo”, caprichada biografia escrita pela jornalista Suzana Braga. Elétrica, Tatiana — conhecida como dona Tânia no meio da dança — mantém a forma que sempre lhe rendeu elogios com três sessões semanais de pilates e duas de gyrotonic. E serenidade é uma palavra distante de seu vocabulário.
— Continuo boa de briga. Digo o que penso — afirma ela, que já foi chamada de “linha dura”, “intransigente”, “ferina”, “autoritária”, “ditatorial”, “perfeccionista”. — Passei fome na infância, enfrentei muita coisa na vida, por isso sou durona.

Ela manteve uma academia que teve como alunos Márcia Haydée, Nora Esteves, Roberta Marquez, Márcia Milhazes, Dani Lima, Deborah Colker, Marília Pêra, Betty Faria, Fernanda Torres e Claudia Raia. Quem estudou com ela não esquece a severidade da mestra.
— Ela sempre foi muito exigente. Mas a exigência e a pouca tolerância com os erros são absolutamente necessários para o balé clássico — diz Ana Botafogo, que, apesar de não ter se formado com ela, foi aluna “itinerante”. — E depois, quando ela foi diretora do balé do Municipal, no fim dos anos 1980, me deu grandes oportunidades e me fez crescer muito como artista.
— Havia gente que chorava, desistia. Eu às vezes ficava muito brava. Mas pensava: “Vou batalhar e mostrar que consigo.” E por trás dos rompantes havia muito amor. Ela é a maior referência de dança do país. Costuma falar: “O dia em que você achar que está boa já tá na hora de parar” — diz Laura Prochet, solista do Municipal.

Tatiana admite o rigor.
— Mas nunca bati em ninguém com uma vara. Batia no chão, para o pianista e os alunos manterem o ritmo — pondera.
Esse gênio fortíssimo se deve em parte ao pai, que a criou sozinho após a morte de sua mãe, quando ela tinha 9 anos. Naturalizada brasileira, ela nasceu na França, filha de imigrantes aristocratas russos, refugiados da Revolução de 1917, que perderam suas riquezas e privilégios.
— Meu pai dizia: “Você não pode mentir, tem que ser honesta consigo mesma.” Na Rússia, você era obrigado a fazer serviço militar. Então ele tinha essa mentalidade.
Dele Tatiana também herdou sua curiosidade e seu vasto conhecimento.
— Em vez de contos de fadas, ele lia para mim a mitologia grega e romana, e eu tinha que saber cada deus — diz ela, que no momento lê os cinco livros escritos por seu bisavô, Nikolai Leskov, lançados pela Editora 34.

Sobre Tatiana, escreve o crítico Antônio José Faro em seu “A dança no Brasil e seus construtores”, publicado em 1988: “Sem ela é possível que nossa dança estivesse ainda engatinhando, lutando para ser reconhecida, e nossos bailarinos mendigando espetáculos. A dança clássica no Brasil só pode ser avaliada antes e depois de Tatiana.” Na biografia, Suzana diz: “Com Tatiana a dança brasileira pulou do mero adestramento para o patamar artístico e profissional.” A trajetória da bailarina e coreógrafa se confunde em parte com a do Teatro Municipal, onde dirigiu o corpo de baile em três gestões: 1950/64, 1970/80 e 1987/1990. Foi uma relação de amor e ódio mútuo, em que se misturam grandes produções de balé com carência de verbas, falta de continuidade, brigas com bailarinos, greves, salários atrasados, burocracia. Ela reclama que os diretores davam ouvidos demais à comissão de bailarinos e que sua autoridade era desrespeitada.

— Tatiana é uma pessoa admirável, que tem carisma artístico e uma liderança indiscutível — diz José Carlos Barboza, que foi presidente da Fundação Teatro Municipal no período final de Tatiana no teatro. — Só que ela tem uma visão autoritária e imperial de que o diretor artístico pode tudo. É a escola a que estava acostumada, tinha formação dos corpos de baile antigos, mas não havia mais clima para isso no Municipal. Estávamos virando fundação, com criação de plano de cargos e salários, tudo isso exige muita conversa e cooperação com os bailarinos.

Ao fazer o balanço, ela sintetiza:
— O Municipal é minha casa.
Tatiana começou a estudar dança aos 10 anos com Lubov Egorova (“Minha segunda mãe”) e, aos 16, ingressou no prestigioso Original Ballet Russo.

Correu o mundo e teve grandes performances. Em 1943, em Buenos Aires, conheceu um brasileiro culto e sedutor, Luiz Reis, por quem viria a se apaixonar e a largar a companhia em 1944, instalando-se no Rio. Ele era casado, mas isso não impediu que vivessem uma caso que durou 40 anos — “20 de paixão e 20 de amizade” —, até a morte dele, em 1986.
— Luiz era um casanova, me enganava, mas era um gentleman, meu melhor amigo, minha única e última paixão — diz.
Tatiana nunca quis nada dele, e quando Luiz morreu não recebeu um centavo.
— Dele só tenho um canivete suíço que a governanta me deu. E a memória, que é a coisa mais importante.

Na sala de seu apartamento, em Ipanema, há fotos de Luiz, dos pais de Tatiana, de seus avós maternos, de um bisavô, da madrinha.
— A empregada me disse: “A senhora só tem foto de gente morta. Parece um cemitério.” Respondi: “Não, é minha família.”

Curiosamente, a viúva de Luiz, a francesa Giselle, tornou-se amiga de Tatiana.
— Ela dizia: “Você é a única mulher honesta que Luiz encontrou na vida.”
Tanto que, ao morrer, Giselle deixou uma herança para ela. Foi graças a esse dinheiro que pôde comprar o apartamento, algo impossível com sua aposentadoria de cerca de R$ 2.500.

— Eu fazia de tudo no Municipal: dava aula, ensaiava, coreografava, remontava. E ganhava uma ninharia. Se não fosse Giselle eu acabaria no Retiro dos Artistas — diz ela, que não teve filhos e mora com seu cão basset Toddy. — Não dava tempo, tinha que trabalhar, sustentar a família. E o Luiz era casado.

Por trabalhar, entende-se conviver com nomes como o coreógrafo George Balanchine, os compositores Stravinsky e Rachmaninoff, a bailarina Alicia Alonso. Com o amigo Rudolf Nureyev trabalhou algumas vezes, como quando ele, diretor da Ópera de Paris, chamou-a para remontar “Les présages”, de Léonide Massine, coreógrafo de quem Tatiana havia sido intérprete de várias obras. Foi um sucesso, e por mais de uma década ela remontou balés de Massine.
Há alguns anos, fazia muitas remontagens de balés pelo mundo. A última — justamente de “Les présages” — foi em 2008, em Londres. De vez em quando dá master classes. Na quarta, vai para Santos, integrar o júri do concurso Youth American Grand Prix. De lá, segue para São Paulo, onde faz o último ensaio da coreografia do grand pas de deux de “O Quebra-nozes”, que remontou para a São Paulo Companhia de Dança. As apresentações são dia 10 e 11. A academia em Copacabana fechou as portas em 2002.
— O número de alunos caiu muito depois que saí do Municipal. E vi que não tinha muitos talentos. Não dava para dar aula por dar. Ou faço bem feito ou não faço — diz ela, que distribuía bolsas de estudos a alunos sem condições.

Tatiana observa que os alunos de hoje acham que sabem tudo e não escutam os professores.
— Eles veem vídeos, DVDs, olham na internet. Você já era — ironiza, referindo-se aos professores. — Mas, para ser bailarino, é preciso trabalho, suor, lágrimas, dedicação, disciplina e fé. E um artista tem que ter alma de artista. O pessoal bota malha e pensa que dança. Eugenia Feodorova (outra grande mestra, russa, que veio para o Brasil) dizia: “Tem muito bailarino que gosta da dança, mas a dança gosta de poucos.” Todo mundo tem sonho. Mas a gente tem que trabalhar duro, subir a escada degrau por degrau. Não é porque quer. Eu gostaria de cantar, mas como poderia com essa voz rachada?

Sua voz era “muito fina, francesa”. No quinto dia após assumir o corpo de baile do Municipal, perdeu “a voz”, que ficou rouca e grave.
— Eu tinha que gritar numa sala muito grande, com bailarinos conversando, barulho de rua, querendo me impor, com 27 anos. Operei as cordas vocais, fiz empostação, não adiantou nada. Mas acho que agora tenho uma voz sexy.
Antes de se despedir, ela brinca mais uma vez:
— Não me pinte muito mal, mostre-me como sou, verdadeira, honesta com os outros e comigo. Eu sou como eu sou, me aceitem ou não.

Mauro Ventura
22/09/2012


segunda-feira, 16 de março de 2020

Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil


Por Esther Dweck, 15/03/2020

As reformas liberais, como o “teto dos gastos”, não entregaram o resultado prometido e sucatearam ainda mais os serviços públicos voltados à saúde, ciência e educação. Para reverter esse cenário de desmonte e enfrentar a pandemia precisamos derrubá-las.

Após a milésima morte na Itália, o colapso financeiro das bolsas de valores que fizeram o mercado lembrar a crise de 2008 e os Estados europeus decretarem o fechamento de fronteiras e quarentenas em algumas cidade, as autoridades brasileiras começaram a implementar medidas mais efetivas para evitar o contágio acelerado do novo coronavírus. Do ponto de vista das medidas mais diretamente ligadas à área da saúde, algumas entrevistas do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pareceram sensatas e até surpreenderam positivamente. No entanto, na área econômica, a situação é diametralmente oposta. As falas do Ministro da Economia, Paulo Guedes, foram questionadas, inclusive, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, notório defensor do liberalismo e das reformas propostas pelo governo. É possível dizer, então, que o impacto do coronavírus será maior devido às reformas liberais já implementadas e que estão sendo propostas?

Para responder a essa questão, é preciso compreender, em linhas gerais, o processo de estagnação econômica que já se verificava anteriormente aos efeitos da pandemia na economia internacional e das medidas restritivas contra o coronavírus que ainda estão por vir. O governo Bolsonaro, desde seu início, acentuou o receituário liberal, o que apenas agravou o quadro econômico e social. Apesar das medidas pontuais, como liberar o FGTS, o governo não conseguiu evitar que o crescimento de 2019 ficasse abaixo dos últimos 2 anos anteriores, com 1,1%. Para piorar o cenário, os resultados de dezembro de 2019 confirmaram a desaceleração econômica.

O baixo crescimento econômico com retomada lenta do emprego, predominantemente do emprego informal, que atinge 41,1% da mão de obra (38,4 milhões de pessoas), era conveniente ao governo até então. Pois, este cenário permitia manter os trabalhadores desorganizados, ao mesmo tempo em que sustentava o discurso de que era preciso mais uma reforma para consolidar a recuperação.

Discurso liberal e aumento da desigualdade

Desde o golpe do impeachment, que apeou a presidenta Dilma Rousseff do poder, a mídia hegemônica e os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro sustentam uma agenda ultra-liberal apoiados em um discurso de que a “próxima” reforma irá consolidar a retomada da atividade econômica. O discurso retórico não é, no entanto, nenhuma novidade: foi assim com o impeachment, a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 (“Teto dos gastos”), a reforma trabalhista, a reforma da previdência, também com as três PECs enviadas ao Congresso em novembro de 2019 e, agora, com a reforma administrativa.

Trata-se, na verdade, do desmonte do Estado brasileiro, como apontei em detalhes no texto Brasil em queda livre. Essa estratégia tem minado a recuperação econômica que, além de lenta, está ampliando as desigualdades. O mais absurdo é que, mesmo diante das evidencias concretas, Guedes continua com o discurso medíocre de que as reformas liberais irão nos “salvar”. Mas as reformas já aprovadas nos deixaram ainda mais vulneráveis para enfrentar os desafios permanentes do desenvolvimento com melhoria do bem estar social ou emergências como a que estamos vivendo agora com pandemia COV-19. Seu aprofundamento tenderá a agravar um quadro que já é crítico.

A começar pelo Emenda Constitucional do “Teto dos Gastos”, aprovada em 2016, são nítidos os estragos e retrocessos em áreas-chave como saúde, ciência e tecnologia, educação, assistência social, previdência, entre outras. Na área da saúde, a EC 95/2016 alterou o cálculo do mínimo constitucional e deixou de ser um percentual da receita para ser um valor corrigido apenas pela inflação. Com essa mudança, em 2019, o valor mínimo que deveria ser de R$ 131,3 bilhões, pela regra antiga, foi de apenas R$ 117,3 e, na realidade, o governo efetivamente gastou R$ 122,3 bilhões. Portanto, foram R$ 9 bilhões que fizeram muita falta na atenção básica e em outras áreas da saúde fundamentais para atender a população. Não surpreende, então, o fechamento de clínicas da família e a volta de doenças previamente erradicadas, tal como sarampo. Para 2020, o limite mínimo é de apenas R$ 121,2 bilhões, o que significa que poderíamos ter menos recursos do que o executado em 2019.

Além da redução dos mínimos constitucionais de saúde e educação, o que é mais perverso na EC 95/2016 é a disputa por recursos entre áreas totalmente meritórias. O teto declinante para as despesas tem levado a corte sucessivos em diversas áreas. E, se o governo decidir ampliar os recursos para área da saúde, respeitando os limites do teto, como foi apontado, isso significa cortar recursos de outras áreas que já vem perdendo recursos. Como exemplo, as despesas sujeitas ao Decreto de Contingenciamento, em 2016, ano anterior à vigência da EC 95/2016, passaram de R$ 307,5 bilhões (a preços de 2020) para uma dotação aprovada no orçamento de 2020 de R$ 269,6 bilhões. Em outras palavras, isso significa que a EC 95/2016 não foi capaz de garantir a atualização do valor real dessas despesas. Mesmo esse montante reduzido não possui garantia de que será executado, pois, ainda temos uma regra de resultado primário que, diante da redução da expectativa de crescimento da economia, irá levar a novos cortes de despesa, que devem ser anunciados já no dia 22 de março, caso a meta de resultado primário não seja modificada.

Austericídio

Outra área essencial ao enfrentamento de novas doenças como o coronavírus, a ciência e tecnologia, encontra-se subfinanciada e com orçamentos declinantes em decorrência do teto de gastos. Dentre as despesas discricionárias – isto é, as despesas que o governo pode ou não executar -, de acordo com os dados do Resultado do Tesouro Nacional, um dos maiores cortes foi na área de Ciência e Tecnologia, que apresentou uma queda real de 38% do volume efetivamente executado de 2016 para 2019, complementado por um corte de 31% na educação no mesmo período. Para o orçamento de 2020, pelos dados do “Siga Brasil”, só o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), dois instrumentos centrais de fomento da ciência e tecnologia no Brasil, já partem de um limite 18% inferior ao executado em 2019. Se olharmos o orçamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a redução do orçamento de 2020 é de 32,8% em relação ao executado em 2019.

Muitos argumentam que o corte das despesas discricionárias é fruto de uma despesa obrigatória crescente. No entanto, como já discutido no livro Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil e no estudo Austeridade e Retrocesso, o cenário de queda no financiamento de todas as áreas do governo federal permanece, mesmo com a aprovação da reforma da Previdência e mudanças em outras regras de despesas obrigatórias. Assim, a medida proposta pelo governo de “quebrar o piso”, ou seja, reduzir os limites mínimos previstos para gastos sociais na Constituição, só tende a agravar o caos na provisão de serviços públicos. Será possível, então, retirar garantias mínimas de direitos e executar cortes ainda mais acentuados para áreas essenciais.

Além do teto de gastos, outro efeito perverso das reformas já aprovadas está associado às mudanças na legislação trabalhista e o enfraquecimento dos sindicatos e do poder de barganha trabalhadores em geral. Como foi apontado por Dawn Foster, para conter o rápido contágio do vírus, é preciso que as pessoas possam ficar em casa, trabalhando à distância ou sem trabalhar. Mas como garantir isso em um mercado de trabalho precarizado, no qual a maioria dos trabalhadores se encontra em relações informais ou de trabalho intermitente? Os trabalhadores do Uber, Rappi e de outros aplicativos poderão ficar em casa? Não há, aqui, qualquer garantia de estabilidade ou mesmo de que esses trabalhadores terão como pagar suas despesas durante o período em que estão fora do trabalho. O filme recente do Ken Loach “Você não estava aqui” retrata com maestria essa situação, mesmo muito antes de pensarmos as consequências do coronavírus.

Revertendo a pandemia e a crise

O enfrentamento aos efeitos do surto do coronavírus tem múltiplas dimensões e muitas delas terão implicações para a economia, exigindo dos governos nacionais respostas à altura. Diversos países já anunciaram pacotes para tentar conter o impacto econômico que está por vir. O Diretor e o Subdiretor do Departamento de Finanças Públicas do FMI, Vítor Gaspar e Paolo Mauro, publicaram um texto no dia 9 de março em que apontam Políticas fiscais para proteger as pessoas durante o surto de coronavírus.

No texto, os autores enumeram as medidas que devem ser feitas imediatamente e que já estão sendo adotadas por governos em alguns países: (a) gastar para prevenir, detectar, controlar, tratar e conter o vírus, bem como para oferecer serviços básicos às pessoas que precisem ser postas em quarentena e às empresas afetadas; (b) fornecer ajuda temporária, direcionada e oportuna para apoiar o fluxo de caixa das pessoas e empresas mais afetadas por meio de subsídios salariais a pessoas e empresas para ajudar a conter o contágio; por meio de transferências, tanto em dinheiro como em espécie, sobretudo para os grupos vulneráveis; e por meio de desonerações fiscais a pessoas e empresas que não têm condições de pagar seus impostos. No Brasil, assim como em outros países periféricos, temos condições estruturais agravantes e as medidas apontadas pelo FMI não serão suficientes para enfrentar a complexidade das escolhas que estão por vir. Isso ficou claro na decisão do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ao suspender as aulas nas escolas públicas, mantendo o almoço para as crianças. Desde que as reformas liberais se aprofundaram, a partir de 2016, ocorre o crescimento do contingente da população em situação de extrema pobreza, com ampliação de filas desumanas do Bolsa Família. Neste país, há uma enorme população vulnerável, muitos sem moradia, com imunidade baixa e sem condições de lavar as mãos ao menos uma vez ao dia, como reforçou Arísia Barros.

A crise do coronavírus evidencia a importância de se ter um Sistema Único – e Universal – de Saúde (SUS). O subfinanciamento, agravado pelo teto dos gastos, precisa ser revertido para evitar o sucateamento da rede pública de saúde. Porém é preciso ir além.

O enfrentamento do coronavírus guarda semelhanças com uma economia de guerra e está levando, em determinados países, a uma pequena “Grande Transformação”, como descrita por Karl Polanyi. A China demonstrou para o mundo a sua capacidade de enfrentar essa situação construindo um hospital em 10 dias. Estados Unidos, Inglaterra e França anunciaram pacotes de expansão fiscal para conter os efeitos da crise. Por aqui, estamos esperando, mais uma vez que a “fada da confiança” ou a “mão invisível do mercado” venha nos salvar.

Em um cenário de estagnação econômica, já era imprudente e irresponsável impor reformas que inviabilizam o Estado de garantir os direitos básicos dos cidadãos conforme descrito no artigo 6o da Constituição. Estamos novamente diante dos desafios apontados por William Beveridge nos seu relatório que marcou a constituição dos Sistemas de Bem-Estar Social: a miséria, a enfermidade, a ignorância, a questão sanitária e o desemprego.

Para enfrentar esses desafios, além das medidas emergenciais apontadas pelo FMI, é preciso ter em vista que no Brasil temos um problema estrutural de um sistema gerador de desigualdades. Todas as medidas necessárias neste momento são incompatíveis com as regras fiscais brasileiras, seja pela forma como as regras foram concebidas ou pela forma como foram interpretadas. O crédito extraordinário para saúde de R$ 5 bilhões, anunciado pelo governo federal, foi feito com a anulação de dotação orçamentária para outros fins – o que, na prática, significa que não houve qualquer aumento efetivo de recursos. Também a medida de antecipar o 13o da Previdência não traz qualquer recurso novo.

A política monetária, como nova redução de juros, pode ajudar na sustentação do sistema de crédito, mas não contribui para o crescimento econômico e encontra-se muito próxima de um limite inferior, diante da maior saída de dólares dos últimos 38 anos. Será necessário adotar uma política fiscal ativa para garantir a sustentação da renda dos desempregados e da demanda agregada da economia. O governo central deverá ajudar os governos estaduais que terão gastos adicionais e perda de arrecadação no processo de combate ao vírus.

Como afirmou Ester Sabino, uma das coordenadoras do grupo brasileiro responsável pelo sequenciamento genético do coronavírus: “ciência não se faz sem recursos”. Portanto, é preciso valer-se desta crise e revogar a EC 95/2016 que impôs, de forma antidemocrática, uma redução do tamanho do Estado, gerando o subfinanciamento de áreas fundamentais. Além disso, é preciso alterar a regra de resultado primário por uma regra anticíclica, que permita enfrentar períodos de baixo crescimento e de calamidade como o atual com políticas de expansão da despesa pública. Será necessário também barrar os retrocessos que estão sendo impostos pelo “Plano Guedes”, como subordinar os direitos sociais ao equilíbrio fiscal intertemporal e o sucateamento do serviço público.

A reforma tributária, que está em pauta, deve ser ampliada para resolver as distorções de um sistema que onera demasiadamente os mais pobres e faz com que a isenção fiscal seja maior quanto maior a renda. Uma mudança de atitude é fundamental para salvar a vida das pessoas. Não se combate uma pandemia, com desdobramentos econômicos monumentais, insistindo em estratégias que já se mostraram sem efetividade. 

SOBRE A AUTORA
Esther Dweck é professora associada do Instituto de Economia da UFRJ.



quarta-feira, 4 de março de 2020

MISSA DO GALO


Um conto erótico de Machado de Assis

NUNCA PUDE entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos,
contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas.

A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez,
ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas
ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
— Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do
Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
— Ainda não foi? perguntou ela.
— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava de fronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
— Não! qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer Já disse que ela era boa, muito boa.

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu a Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.
E logo alto:
— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você,
perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já tenho feito isso.
— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja,
hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o que, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na
Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco
e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
— Mais baixo! mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dous, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não
pegava no sono.
— Eu também sou assim.
— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
— Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
— Mais baixo, mais baixo. . .

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho - me. Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos, disse eu.
— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens,
duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo"

— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir
acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já serão horas? perguntei.
— Naturalmente
— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

Fonte:
Machado de Assis, Obra Completa, Volume II, p. 605, Editora José Aguillar, 1962

NB: Sobre os contos do Machado ler Adriano Schwartz, "O Cálculo de Inércia", Caderno MAIS, Folha de São Paulo, 1998.