sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Ofélia

Meu problema são os homens. Digo que não cairei, mas então ouço violões suaves sob as estrelas. Tento a sorte outra vez.

Ofélia disse essa pérola para Oscar numa praça de Roda D’Água, bairro de Cariacica.

Mas a danada estava representando.

E o texto não era dela. Deve ter visto várias vezes o filme Madrugada da traição (The naked dawn) de Edgar G. Ulmer, 1955. É de lá que tirou que seu problema eram os homens até ouvir violões suaves. No filme o texto é de uma música cantada por Charlita, atriz e cantora.

E não sabemos o quanto de verdade existe nos violões suaves. Mas pergunte para Ofélia o que é verdade. Vai responder assim: não sei!

Orson Welles já disse que somos todos atores neste mundo. Conversar é representar. O homem como animal social é um ator. Tudo o que fazemos envolve uma espécie de representação. Já li declarações de diretores, atores e atrizes de cinema em que se surpreendem com a atuação de atores e atrizes não profissionais. Confirmam Orson.

Ofélia é professora profissional do ensino médio. Uma atividade que representamos. Sala de aula seria um palco? Para Ofélia, sim.

Da confissão de Ofélia à nossa estória.

Ela estava, no momento, recém-saída do terceiro casamento de quatro anos.

Às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem.

Oscar pensou com ele mesmo: representando de novo Ofélia? Além de cinéfilo ele conhecia tudo de Clarice Lispector e o abismo da desordem está na crônica Legião estrangeira. Ele é professor de literatura.

Pelo visto os dois são contaminados pelo cinema e Clarice.

Essa contaminação foi o suficiente para rolar um clima de sedução entre Ofélia e Oscar. Sai violões suaves entre as estrelas e no lugar entra cinema e Clarice.

Depois de um tempo resolveram juntar os cacos. Vejam o que Oscar disse a Ofélia uma semana antes de decidirem pelos cacos comuns.

Se você quisesse a lua eu tentaria pegá-la, mas prefiro que aceite o meu coração.

Oscar não é de muito representar, mas esta declaração de amor é do filme Ao mestre com carinho (To Sir with love) de James Clavell, 1967. Da música com o mesmo título do filme interpretada por Lulu, cantora e atriz.

Ofélia e Oscar moram numa casa que fica no sopé de um morro em Roda D’Agua.

Ofélia continua representando, mas há algum tempo não ouve violões suaves.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A casa-grande surta quando a senzala vira médica


Negra, pobre e da rede pública passa em primeiro lugar em Medicina da USP

por Redação RBA publicado 06/02/2017 12h00

Revista Fórum - Saímos de uma semana triste e especialmente desoladora para a, medicina quando alguns médicos sujaram profissão tão nobre tripudiando da doença de Dona Marisa chegando até a sugerir a sua morte. Mas hoje voltamos a festejar o futuro: "A casa-grande surta quando a senzala vira médica". Esta é a frase que abre a conta do Facebook de Bruna Sena, primeira colocada em  medicina na Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, a vaga mais concorrida da Fuvest 2017, o vestibular mais concorrido do país.

Negra, pobre, tímida, estudante de escola pública, Bruna será a primeira da família a interromper o ciclo de ausência de formação superior em suas gerações. Fez em grande estilo, passando em uma das melhores faculdades médicas do país.

O apelo da mãe, entre a felicidade e o espanto, é ainda mais dramático: "Por favor, coloque no jornal que tenho medo dos racistas. Ela vai ser o 1% negro e pobre no meio dos brancos e ricos da faculdade". Abandonada pelo marido, Dinália Sena sustenta a menina Bruna desde que ela tinha 9 anos, com um salário de R$ 1.400 como operadora de caixa de supermercado.

Bruna acredita que será bem recebida pelos colegas e tem na ponta da língua a defesa de sua raça, de cotas sociais e da necessidade de mais oportunidades para os negros no Brasil. "Claro que a ascensão social do negro incomoda, assim como incomoda quando o filho da empregada melhora de vida, passa na Fuvest. Não posso dizer que já sofri racismo até porque não tinha maturidade e conhecimento para reconhecer atitudes racistas", diz a caloura.

"Alguns se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os negros. Os programas de cota são paliativos, mas precisam existir. Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidades de vida iguais."
 
Para enfrentar a concorrência de 75,58 candidatos do vaga, Bruna fez o básico: se preparou muito, ao longo de toda sua vida escolar. "Ela só tirava notas 9 ou 10. Uma vez, tirou um 7 e fui até a escola para saber o que tinha acontecido. Não dava para acreditar. Falei com o diretor e ele descobriu que tinham trocado a nota dela com um menino chamado Bruno", orgulha-se a mãe.
George Orwell, autor do clássico "A Revolução dos Bichos", fábula que conta a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos, está entre os favoritos da garota, que também gosta de romance e comédia e é fã da série americana "Grey’s Anatomy", um drama médico.
No último ano do ensino médio, que cursou pela manhã na escola estadual Santos Dumont, conseguiu uma bolsa de estudos em um cursinho popular tocado por estudantes da própria USP, para onde ia à noite. "Minha escola era boa, mas, infelizmente, tinha todas as dificuldades da educação pública, que não prepara o aluno para o vestibular. Falta conteúdo, preparo de alguns professores. Sem o cursinho, não iria conseguir."
 
Segundo Bruna, que mora em um conjunto habitacional na periferia de Ribeirão Preto, vários de seus colegas de escolas nem "nem sabem que a USP é pública e que existe vestibular para passar".

Com ajuda financeira de amigos e parentes, Bruna fazia kumon de matemática, mas o dinheiro não deu para seguir com o curso de inglês. "Tudo na nossa vida foi com muita luta, desde que ela nasceu, prematura de sete meses, e teve de ficar internada por 28 dias. Não tenho nenhum luxo, não faço minhas unhas, não arrumo meu cabelo. Tudo é para a educação dela", declara a mãe.

Ainda segundo Dinália, "alguns conhecidos ajudaram. Uma amiga minha sempre dava livros para ela. Uma vez, essa amiga colocou R$ 10 dentro de um livro para comprarmos comida e escreveu: ‘Bruna, vence a vida, não deixe que ela te vença, estude'".
A opção pela medicina aconteceu há cerca de um ano, por influência de professores do cursinho popular que frequentou o CPM, ligado à própria Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão. "Claro que não sei ainda qual especialidade pretendo seguir, mas sei que quero atender pessoas de baixa renda, que precisam de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade", declara.
Engajada na defesa de causas sociais como o feminismo, o movimento negro   e a liberdade de gênero, a adolescente orgulha-se do cabelo crespo e de sua origem, mas é restrita nas palavras sobre o pai, que não paga pensão e não a vê há anos. "Minha mãe ralou muito para que eu tivesse esse resultado e preciso honrar isso. Sou grata também a minha escola, ao cursinho. Do meu pai, nunca entendi o desprezo, me incomoda um pouco, mas agora é hora de comemorar e ser feliz."





 
Existem dez mil choupanas para um palácio. Existe probabilidade a que a inteligência, as virtudes, se instalem mais nas choupanas do que nos castelos. (Denis Diderot, 1713 - 1784)