terça-feira, 29 de julho de 2014

Tortura

 
Encolerizados porque o sangue do guerrilheiro respingara em suas roupas, os carrascos espancaram-no com mais ódio. Ao fim do corredor polonês em que lhe entorpeceram com sopapos, atiraram-no a um canto da sala do pau de arara. Com os joelhos dobrados sobre a barra e o tronco despencado, Celso (Celso Horta) viu um corte na testa do companheiro. Virgílio (Virgílio Gomes da Silva) estava "exausto, ofegante como um carcará ferido", o camarada nunca mais esqueceria. Sem murmurarem uma sílaba, seus olhares se cruzaram para nunca mais. Antes de ser retirado, Celso ouviu o grito de quem manteria a altivez até o suspiro derradeiro: "Filhos da puta! Vocês estão matando um patriota!"...

O parágrafo acima é do livro Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo de Mário Magalhães, Companhia das Letras, 2012, p. 522. Na biografia de Carlos Marighella são narradas passagens de horror nas antessalas do inferno durante a ditadura de 1964. Virgílio Gomes da Silva, da ALN (Ação Libertadora Nacional) foi um dos lideres do sequestro do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick em 04 de setembro de 1969. Foi brutalmente assassinado na sede da famigerada Operação Bandeirante, em 29 de setembro de 1969.

O que Sade tem a ver com as antessalas do inferno existentes, ainda hoje, nas polícias e nas penitenciárias brasileiras? A tortura é um ato sádico?

Anarquia do poder

"Não há nada tão glorificante como o mal" disse o Magistrado no filme Salò, ou Os 120 dias de Sodoma (Itália, 1975) de Pier Paolo Pasolini (1). O filme é baseado no livro Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem, do Marquês de Sade e mostra a brutalidade desconcertante capaz de abalar a fé que qualquer um possa ter no ser humano. Pasolini adaptou a trama, originalmente situada na França pré-revolução de 1792, para a Itália fascista, onde ele próprio viveu. Assim, ao invés de apenas narrar os horrores causados pelos quatro libertinos, devassos e cruéis conhecidos como "os amigos", deu um passo além, encaixando a narrativa num dos momentos mais críticos da história humana, a Segunda Guerra Mundial e o nazi-fascismo na Itália (2).

No filme há estupro, tortura, crueldade, abuso, depravação, assassinato, orgias, escatologia e sodomia. Há muito sexo, mas todo ele é vazio, e mesmo os libertinos parecem não tirar prazer algum de tudo isso. Os corpos não valem nada, e mesmo as vítimas assistem a tudo como se nada estivesse acontecendo, sem reagir.

"Suas criaturas fracas! Ralé, destinada ao nosso prazer. Não esperem aqui a liberdade garantida lá fora. Vocês aqui estão além de qualquer lei. Ninguém sabe que estão aqui. Pelo que importa ao mundo, já estão mortos." Foi a recepção do Duque aos garotos e garotas obrigadas a participarem dos 120 dias infernais em Salò.

De Pier Paolo, sobre o filme: Todo o sexo de Sade, o sadomasoquismo, tem uma função específica, clara: o efeito do que o poder faz ao corpo humano. A redução do corpo humano a uma mercadoria. O cancelamento da personalidade do outro. Não é apenas um filme sobre o poder, mas o que eu chamo de anarquia do poder. Porque nada é mais anárquico que o poder. O poder faz o que quer. E o que o poder pode querer é completamente arbitrário ou imposto por necessidades econômicas que escapam à lógica comum. Mas além de ser sobre a anarquia do poder o filme é também sobre a inexistência da história. Quer dizer, da história vista por uma cultura eurocêntrica. Racionalismo e empirismo ocidentais de um lado e marxismo na outra, que o filme quer mostrar como inexistente (3).

Pasolini, comunista e gay, foi brutalmente assassinado em 2 de novembro de 1975, logo após realizar o filme Salò.

No inferno

... Daí em diante, do martírio de Jonas (Virgílio) restaram vestígios no laudo do exame necroscópico que a ditadura ocultou. Hematomas, escoriações e equimoses escureceram rosto, braços, mãos, joelhos, tórax, abdome, o corpo inteiro. As depressões nos pulsos, típicas de dependurados no pau de arara, mediram um centímetro. O "hematoma intenso" na "polpa escrotal" era compatível com eletrochoques no órgão. Com bicos de calçados, tora de madeira ou pedaço de ferro, fraturaram-lhe três costelas. Na parte superior do crânio, produziram um "hematoma irregularmente distribuído". Fraturam e afundaram o osso frontal do crânio. A autópsia concluiu que Virgílio "veio a falecer em consequência de traumatismo cranioencefálico (fratura de crânio)", provocado por "instrumento contundente". Uma fotografia mostrou o lado esquerdo da cabeça mais afundado que o direito. O tormento e a agonia do brasileiro que mataram na Oban se arrastaram até a noite, por quase doze horas. No dia seguinte, Paulo de Tarso Venceslau deu entrada no recinto. Os torturadores se gabaram de que os resíduos grudados na parede constituíam massa encefálica de Jonas. Maria Aparecida dos Santos padecia ali, onde havia "sangue nas paredes, e eles faziam questão de falar que era de Virgílio". Um capitão ameaçava: "Você está vendo este sangue? É de um ‘patriota’. Você quer ser ‘patriota’?". Um delegado revelou assombrado que "os olhos de Virgílio tinham saltado como dois ovos de galinha" e seu pênis "estava no joelho, de tanto pisarem em cima dele". Os presos políticos acusaram doze algozes de Jonas, entre eles o major Waldyr Coelho, os capitães Benome de Arruda Albernaz e Maurício Lopes Lima e o delegado Octávio Gonçalves Moreira Junior.

Considerazioni finali

Não conheço os perfis dos algozes da ditadura. Aos torturadores de Virgílio acrescente-se a figura nefasta de Sérgio Fernando Paranhos Fleury que comandava as antessalas do inferno no DOPS de São Paulo. Recentemente conhecemos a personagem da época chamado Paulo Malhães, tenente-coronel, militante anticomunista e torturador confesso que admitiu publicamente ter perdido a conta do número de dissidentes políticos que assassinou a serviço da ditadura. E sem o menor arrependimento. Foi assassinado no dia 24 de abril de 2014 com a suspeita de queima de arquivos (Carta Capital, maio de 2014).

Mas a crueldade (como nos torturadores) e devassidão estão nas figuras sadianas do Duque, o Presidente Curval, o Bispo e Durcet (4). Aristocratas, muito ricos, do período pré-revolução francesa têm perfis esclarecedores. Sobre Duque escreveu Sade: "Duque nascera falso, implacável, imperioso, bárbaro, egoísta tão pródigo para seus prazeres quanto avarento quando havia de ser útil, mentiroso, guloso, beberrão, covarde, sodomita, incestuoso, assassino, incendiário, ladrão, sem que virtude alguma compensasse tantos vícios. E digo mais: não apenas não venerava nenhuma delas, como abominava todas; era comum ouvi-lo dizer que, para ser verdadeiramente feliz nesse mundo, um homem somente havia de se entregar a todos os vícios, sem nunca permitir virtude alguma, pois não se tratava apenas de fazer o mal, como também de nunca fazer o bem". Curval, o Bispo e Durcet têm perfis semelhantes ao do Duque. São da mesma laia.

A tortura é universal e atemporal. No Brasil, impune. Fodam-se torturadores!

Referências

(1) Salò ou 120 dias de Sodoma, 1975, DVD vídeo, CinemaX.

O cineasta e escritor Pasolini teve a criatividade de apresentar nos créditos iniciais do filme, a "bibliografia essencial" sobre o tema.
 

(2) http://bocadoinferno.com.br/criticas/2013/06/salo-ou-120-dias-de-sodoma-1975/ em 25/07/2014.

(3) Pier Paolo Pasolini, O evangelho segundo São Mateus, 1964, edição definitiva, DVD vídeo, Versátil. No disco 2 deste DVD consta o documentário Pier Paolo Pasolini dirigido por Ivo Barnabo Micheli, essencial para entender o pensamento de Pier Paolo.

(4) Marques de Sade, Os 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem, Iluminuras, 2013.
 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O cinema versus IA


Prólogo


Antes de qualquer coisa uma explicação. O que é IA (Inteligência Artificial)?

Algumas definições na literatura sobre:

"IA é a parte da ciência da computação que se preocupa em desenvolver sistemas computacionais inteligentes, isto é, sistemas que exibem características, as quais nós associamos com a inteligência no comportamento humano - por exemplo, compreensão da linguagem, aprendizado, raciocínio, resolução de problemas, etc." Barr & Feigenbaum (1981)

"Inteligência Artificial é o estudo das computações que tornam possível perceber, raciocinar e agir." Winston (1992)

"IA é a arte de criar máquinas que executam funções que requerem inteligência quando executadas por pessoas." Kurzweil (1990)

Estas definições estão em "Fundamentos da inteligência artificial", Paulo Santos, 2006 (fei.edu. br/~psantos/slidesIA/CAP1_intro.ppt) 10/07/2014


IA no cinema


Vamos restringir a conversa a dois filmes: 2001 uma odisseia no espaço de 1968 e Transcendence – a revolução de 2014.

Stanley Kubrick e Arthur C. Clark são os responsáveis pelo filme 2001 uma odisseia no espaço de 1968. Estão lá temas como exploração do espaço, inteligência artificial, naves e estações interplanetárias e a existência ou não de outros seres na via láctea. E, importante, a interferência das tecnologias na evolução dos seres humanos.
Kubrick tem uma obra cinematográfica com marcas no antibélico e no pessimismo em relação à humanidade e seu futuro. Os 20 minutos iniciais do filme mostram a evolução de uma comunidade de macacos desde seu início como herbívoros até os hábitos carnívoros e a descoberta das armas (ossos de animais abatidos) que utilizam em defesa de seus territórios. A cena clássica do filme consiste num macaco lançando no espaço um osso que se transforma numa nave interplanetária.

A nave é controlada por um computador de nome Hal (Heuristically programmed ALgorithmic computer). Os astronautas dialogam em viva voz com Hal o tempo todo. Num certo momento da estória tem início os conflitos da tripulação com a máquina. Hal é desligado após a morte de um astronauta devido a sua influência. A máquina nasce, vive e morre como os seres vivos.
HAL é o computador consciente, eficiente, brilhante, dedicado, solidário, paranoico e assassino. Para Kubrick, é a culminação e o emblema de toda a época da tecnologia humana e suas falhas são as de seus criadores (James Berger, Helen Keller: a história da minha vida, Jose Olympio, 2008).

O vilão do filme é Hal, se é que se pode falar em vilão nos filmes de Kubrick. Será profecia? Pelo sim pelo não o belo e clássico filme de Kubrick deixa a interrogação: o que será, no futuro, a relação homem - máquina?

Transcendence, a revolução de Wally Pfister, 2014 é um filme com um bom argumento, mas tem um desenvolvimento (roteiro) a desejar.

A estória: Will Caster (Johnny Depp) é um pesquisador de IA que trabalha na construção de uma máquina consciente onde informações sobre conteúdo e emoção humana se correlacionam. Will com a palavra numa conferência:
O intelecto combinado dos neurocientistas, engenheiros, matemáticos e hackers desse auditório estão muito longe da mais básica IA. Quando funcionar, a máquina em questão irá rapidamente superar os limites da biologia. E em pouco tempo, seu poder analítico será maior que a inteligência coletiva de cada pessoa nascida na história do mundo. Agora imaginem tal entidade com toda gama da emoção humana, até com a autoconsciência. A jornada para a construção de tal superinteligência requer que desvendemos os segredos mais fundamentais do universo. Qual é a natureza da consciência? A alma existe? Se sim, onde reside?
Alguém da plateia pergunta:

Professor? Então você quer criar um Deus? O seu próprio Deus?
A resposta de Will: É uma ótima pergunta. Não é isso o que o homem sempre tem feito?

No dia da conferência acontecem vários atentados e alguns centros de pesquisa em IA são destruídos. A autoria destes atentados é de responsabilidade de um grupo neo-ludita liderados por Bree Nevins (Kate Mara) ex-aluna de ciência da computação, em 2010, do instituto de pesquisa onde trabalha Will.

Em tempo: o ludismo foi um movimento (anarquista) contra a mecanização do trabalho proporcionada pelo advento da revolução industrial no inicio dos 1800. Não à substituição da mão de obra humana pelas máquinas. Os luditas são lembrados como "quebradores de máquinas". Para o historiador Eric J. Hobsbawn o ludismo "era uma mera técnica de sindicalismo de operários no período que precedeu a revolução industrial e a organização operária". O neo-ludita (neo-Luddite), hoje, seria um combatente contra a disseminação exacerbada das novas tecnologias, principalmente a telemática. Militância anti-tecnologia.

De volta ao filme. Will Caster sofre um atentado mortal. E quem é o autor dos tiros a queima-roupa? O perguntador na conferência (Professor? Então você quer criar um Deus?). Antes de morrer Will pede à dedicada esposa Evelyn Carter (Rebeca Hall), também pesquisadora em IA, que transfira o que ele tem no cérebro para um computador. Ela faz o transplante com sucesso. Ai o bicho pega. O Will Carter virtual torna-se o Deus e o Diabo na terra ianque. A partir daí o filme fica roliúde como o Diabo gosta. Para acabar com o Will virtual até a união dos neo-luditas com o FBI e exército estadunidenses acontece.


Resumo da ópera


O cinema e IA não se bicam. E o primeiro tem posições conservadoras em relação à segunda? Si, pero no mucho. A questão é: a quem serve as pesquisas em IA? A quem serve as novas tecnologias? Para fabricar os drones do Obama e lançar bombas que assassinam civis (inclusive crianças) no Afeganistão? Para fabricar mísseis inteligentes israelenses que assassinam civis (inclusive crianças) na faixa de Gaza? Se for só para isto, pontos para os neo-luditas.

Mas não é assim. A visão maniqueísta não serve neste caso. Roliúde procura sempre o vilão e o mocinho. Evelyn Carter antes de ser abduzida pelo marido virtual disse na conferência acima citada: A efetividade de desenvolver uma inteligência artificial levou a um avanço significativo no campo da neuroengenharia, assim como no estudo do cérebro humano. Embora alguns foquem no ainda distante sonho de um computador pensante, eu acredito que a jornada é mais importante que o destino final. Minha prioridade é usar as percepções acidentais de meus colegas para criar novos métodos de descoberta precoce do câncer, e desenvolvermos uma cura para Alzheimer. Resumindo, para salvar vidas. Um novo modo de pensamento é essencial, se humanidade quer sobreviver e avançar a níveis superiores. Albert Einstein disse isso há mais de 50 anos. E não poderia ser mais relevante do que é hoje. Máquinas inteligentes nos permitirão em breve conquistar os nossos desafios mais difíceis.

Tudo bem IA pode servir a que a mocinha Evelyn se propunha na época. Ela citou Einstein. Ele participou do projeto Manhattan da bomba atômica que dizimou mais de 200 mil japoneses.

Estou mais com o pessimismo de Kubrick.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O nazi horror

 
Uma dúvida provisória: o porquê do ódio exacerbado aos judeus durante nazismo na Alemanha nos 1930 e 1940?


Ontem

O filme Arquitetura da destruição (Undergångens arkitektur) de Peter Cohen, DVD Versátil, 1989, ajuda a pensar sobre.

Além da estética nazista nas artes e arquitetura o filme descreve e analisa as bases de uma ideologia absurda que ajudou a transformar a sociedade alemã em uma realidade infernal. Em 1941 cerca de 70 mil doentes mentais foram assassinados. A eutanásia tornou-se a menina dos olhos da medicina nazista. O embelezamento do mundo é um dos princípios do nazismo. Dizia Hitler: muito tempo atrás o mundo era lindo, mas a miscigenação e degeneração poluíram o mundo.

Outra pérola do pensamento nazista. Ele via os judeus como um câncer que se alastrava. Como os judeus preservaram sua pureza racial eram eles os maiores rivais dos arianos na dominação do mundo. Na imaginação de Hitler, estava em um combate feroz contra seu mais forte e perigoso inimigo. Continuar na guerra sem lutar contra esse inimigo era incogitável para Hitler. Mais importante se tornava o extermínio. Para Hitler, perder a guerra não significava o fim do nazismo. A queda da Alemanha iria inspirar as futuras gerações. O extermínio dos judeus enfraqueceria a Alemanha, mas ela se ergueria, mais uma vez, das ruínas.

Outro filme importante sobre o nazi horror é o documentário dirigido por Alain Resnais "Noite e neblina" (Nuit et brouillard), DVD vídeo, 1955.


Hoje



Deu no portal Terra (http://www.terra.com.br/) em 03/07/2014: Bebê 'ariano ideal' em capa de revista nazista era judeu.

O bebê "ariano ideal" que aparece na capa de uma revista da propaganda nazista, em 1935, era, na verdade, judeu. A revelação foi feita pela própria pessoa na foto, Hessy Taft, hoje com 80 anos.

 

 

A mulher doou uma cópia da revista ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, como parte da campanha Recolhendo Fragmentos, lançada em 2011 para estimular pessoas a doarem materiais ligados ao holocausto para que sejam protegidos pela posteridade. Hessy Taft, cujo sobrenome de solteira é Levinson, nasceu em Berlim em 1934, filha de pais judeus originários da Letônia. Ambos músicos, eles haviam chegado à Alemanha em 1928 para trabalhar como cantores de ópera.

A fotografia havia sido escolhida em um concurso promovido pelo Departamento de Propaganda Nazista, chefiado por Joseph Goebbels. A melhor entre cem imagens clicadas pelos melhores fotógrafos alemães representaria o "bebê alemão ariano ideal" e seria capa da revista.
 
 

Hessy Taft, hoje com 80 anos

Quando perguntada o que diria para o fotógrafo hoje, Hessy respondeu: "Eu diria: 'Que bom você teve coragem'".
 

A dúvida provisória continua?