segunda-feira, 6 de junho de 2011

Os dinossauros

Certa vez, há muito tempo, fui a um jantar na casa de uma amiga chamada Clarice. Lá, entremeados por um vinho e conversa fiada disse a ela sobre o que tinha lido no jornal da época.

Um grupo de cientistas australianos da Universidade de Melbourne, em 2008, tinha conseguido pela primeira vez "ressuscitar" um segmento de DNA de um animal extinto. Conseguiram extrair um gene de um tilaciano, mais conhecido como tigre-da-tasmânia, extinto desde 1936, e inseri-lo num embrião de camundongo. No caso usado no estudo o DNA foi tirado de um exemplar morto há mais de cem anos que estava preservado em álcool. O trecho de DNA escolhido pelos pesquisadores - o gene Col2A1, que atuava no desenvolvimento do tecido cartilaginoso do animal - tornou-se ativo no roedor. (Folha de São Paulo, 22/05/2008)

Aí eu disse

- Já pensou no que isto pode dar Clarice? Poderão ressuscitar dinossauros. É a vida imitando a arte. Lembra do filme Jurassic Park?

De pronto ela disse

- Olha amigo, fico muito preocupada com estas maluquices da ciência. Podem recriar estes monstros para nos atacar e destruir tudo que aparecer.

- Clarice pára com isto. Dinossauro há 150 milhões de anos era um bicho como todo bicho é.

Era o amigo discordando.

Penso num dos culpados pela reação de Clarice: Steven Spielberg. Foi um bom diretor, estadunidense de cinema, mas teve umas idéias meio atravessadas (ou até reacionárias) sobre o mundo animal. Ele fez dois filmes emblemáticos que reforçam minhas suspeitas: Tubarão, de 1975 e Jurassic Park, de 1993.

O filme Tubarão é baseado no livro homônimo de Michael Crichton e é classificado no gênero terror e suspense. Vejam só, um filme em que a personagem principal é um tubarão, o vilão da estória. Uma garota é encontrada morta na praia, possivelmente por um ataque de tubarão. Aí a trama toda transcorre na caça a um tubarão branco. Ao contrário do que mostra o filme o tubarão branco não caça gente para comer. Ele gosta mesmo é de gordura, que é abundante nas focas, leões e elefantes marinhos. Claro que ele não vai desprezar um humano de 150 kg viciado em refrigerante, pizza e sorvete. Caiu no mar é peixe. É um equívoco imaginar que tubarões são agressivos com os humanos. Das cerca de 400 espécies, apenas 30 estão envolvidas em ataques a pessoas.

Jurassic Park, que também tem a origem num livro de Michael Crichton, conta a visita de paleontólogos a um parque temático com dinossauros ressuscitados por clonagem através de mosquitos fossilizados em âmbar. Este parque situa-se na Costa Rica. Coisas estranhas só acontecem na América Central, o quintal da América USA. Até parece que os dinossauros não passaram pelos Estados Unidos. Durante a visita um espião industrial desliga todo o parque a fim de roubar embriões de dinossauros. Com os bichos soltos a ilha se torna uma Babel infernal. Os dinosauros que aparecem no filme são: Velociraptor, Braquiossauro, Cearadactilo, Dilofossauro, Euplocéfulo, Hadrossauro, Hipsilofodonte, Maiassauro, Microceratus, Othinielia, Procompsógnato, Tiranossauro, Estegossauro, Estiracossauro, Tricerátopo, Apatossauro. Destas 16 espécies, 10 eram herbívoros. Existem predadores entre eles e todos lutam pela manutenção de seus territórios como todos os bichos, inclusive os humanos carnívoros. O que o filme mostra são dinossauros, "monstros raivosos", em luta permanente com as pessoas da ilha. Em momento algum é dito o porquê da raiva. Imaginem um animal deste enclausurado como num zoológico.

Nestes dois filmes, Tubarão e Jurassic Park, os animais são vistos como inimigos dos humanos "inocentes". Não são vistos como parte da natureza e que lutam pela sobrevivência. O cinema é pródigo em mostrar os bichos como seres violentos e cruéis.

Estamos em 2040.

Passados 30 anos daquele jantar, Clarice está com 85 anos e mora no segundo andar de um prédio situado na Rua Imperatriz, na Praça Maciel Pinheiro, em Recife. Fica próxima da Livraria Imperatriz que a amiga frequenta regularmente. Onde tem livro Clarice está. Sempre uma leitora voraz. Para ela o livro é tratado como amante. Sempre foi e sempre é.

Sábado de manhãzinha, Clarice recebe a visita da Martinha.

- Oi filhinha, tudo bem? Que bom te ver. Você tá feliz hoje né?

A "filhinha" da Clarice é uma braquiossauro de 15 metros de altura, 20 metros de comprimento, um pescoço de 10 metros e pesa cerca de 80 toneladas. A conversa entre as duas sempre acontece na varanda do apartamento.

- Já sei, veio para o café da manhã.

E fez um cafuné na cabecinha da Martinha.

- Hoje tem algo especial pra ti. Além da samambaia tem um tempero que você vai gostar: manjericão e alecrim. Penso em fazer macarrão no almoço e por isso aproveitei para inovar em seu café. Pelo olho a "filhinha" gostou da novidade e pediu mais. Clarice mudou. As maluquices da ciência não a revoltam mais. Martinha que o diga.

Martinha passa pela Rua Imperatriz duas vezes por semana. As varandas dos apartamentos mais baixos dos prédios da rua têm samambaias gigantes para o desjejum da amiga do pessoal. No lugar da decoração luminosa na época do Natal vemos a saudável vista das "ham ã’bae" que em tupi significa aquele que se torce em espiral.

Uma curiosidade pertinente: como um bicho deste tamanho anda no asfalto? Mole. Os ressuscitadores da Martinha, pensando nisto, conceberam um "sapato" especial para andar neste tipo de piso.

Clarice tem o costume de ver filmes antigos num canal de TV a cabo. Daqueles que gosta de rever tem: Tudo sobre minha mãe de Almodóvar, Casablanca de Michael Curtiz, Imitação da Vida de Douglas Sirk, Kill Bill v.2 de Tarantino, Estômago de Marcos Jorge e outros.

Um dia reviu Jurassic Park. E pensou: meu Deus! O cinema já fez muito bem para mim, mas como pode ter feito tantas besteiras!


 
Edson Pereira Cardoso, Junho de 2010


NB: fiz este texto lembrando de Clarice Lispector.

Em tempo

Steven Spielberg arrependido em 2022

"Em seu extemporâneo mea culpa, o cineasta se ateve ao “danoso” estímulo que seu thriller deu à pesca do tubarão como atividade esportiva. Por sorte, o tubarão do filme era fake, um artefato mecânico, como a Moby Dick de John Huston, não um bicho de verdade, como os golfinhos Flipper e Winter. Do contrário, Spielberg teria de prestar contas aos órgãos que desde 1938 monitoram o tratamento dado a animais em produções cinematográficas." Gatos, tubarões e cães no caminho de papas, cineastas e presidentes

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