terça-feira, 2 de setembro de 2025

Flmes parte 55

Keoma, Enzo G. Castellari, 1976

Viva: a vida é uma festa, Coco, Lee Unkrich & Adrian Molina, 2017

Sergio Leone - O Italiano que inventou a América, Sergio Leone - L'italiano che inventò l'America, 
Francesco Zippel, 2022

Era uma vez na América, Once upon a time in America, 1984, Sergio Leone

A lei do revólver, Stranger at my door, William Witney, 1956

Do inferno, From hell, Albert Hughes&Allen Hughes, 2001

Fuga mortal, Joshua Tree, 1993, Vic Armstrong

Beekeeper - rede de vingança, The Beekeeper, David Ayer, 2024 (HBO max)

Melhor é impossível, As good as It gets, James L. Brooks, 1997 (HBO max)

O show de Truman: O show da vida, The Truman Show, Peter Weir, 1998

E Deus disse a Caim, E Dio disse a Caino...Antonio Margheriti, 1970

Palavra e utopia, Manoel de Oliveira, 2000

Um estranho no ninho, One flew over the cuckoo's nest, Milos Forman, 1975

Os deuses malditos, La caduta degli dei, Luchino Visconti, 1969

Cidade de Deus: A luta não para, Série de TV, Bruno Costa&Aly Muritiba, 2024 (HBO max)

Fúria primitiva, Monkey man, Dev Patel, 2024 (HBO max)

O Corte, Le couperet, Costa-Gavras, 2005

Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente, Minissérie TV, Marcelo Gomes&Carol Minêm,2025 (HBO max)

Réquiem para matar, Requiescant [descanse em paz], Carlo Lizzani, 1967

 


03/08/25
Keoma, Enzo G. Castellari, 1976

No iutubi aqui 

Keoma: A história do índio que simboliza o final do movimento Western Spaghetti

Crítica, Destaques, Filmes4 de dezembro de 2023, por Filipe Pereira

Keoma é um filme dramático e melancólico, possivelmente o mais triste do panteão do Western Spaghetti. Sua história narra a jornada de um descendente de nativos-americanos que decide retornar a sua terra natal, depois que o lugar tem problemas com uma praga.

Lançado em 1976, é comumente chamado de o filme que fechou o ciclo dos Bangue-Bangue à Italiana, embora obviamente não tenha sido o último exemplar do gênero.

Essa alcunha geralmente é dada graças a sua temática mais melancólica e triste, mirando a vivência de um personagem de cuja ascendência é dos povos originários, que por sua vez acerta as contas com cowboys brancos e racistas do lugarejo onde viveu.

A obra tem direção do experiente e talentoso Enzo G. Castellari de Fuga do Bronx e Jonathan e o Urso, é lembrada também por ser estrelada por Franco Nero, o muso inspirador de obras como Django, Vamos a Matar, Companheiros, e Tempo de Massacre, além de obras diversas, como o policial Confissões de um Comissário de Polícia e Mussolini: Ascensão e Glória de um Ditador.

O nome do herói, Keoma é um termo nativo-americana que significa "longe". A palavra é erroneamente associada ao termo liberdade/freedom, mas essa é uma má interpretação do termo. Essa alcunha ajuda a explicar inclusive o fato do personagem de Nero estar distante da vila, até o momento presente do filme.

Ao redor do mundo o obra possui algumas variações de nomenclatura, como Caramba!. Apesar de não ter nada a ver com Django de Sérgio Corbucci, o longa possui títulos ligados a ele, como Django Part 2, Django Rides Again e Django's Great Return. Nos Estados Unidos também pode ser encontrado com o nome The Violent Breed, Desperado e Keoma: The Avenger.

Obviamente que na Itália o nome do longa-metragem é Keoma mesmo. Ele foi produzido e apresentado por Manolo Bolognini de Django, Adeus, Texas, O Pistoleiro de Ave Maria, A Colina dos Homens Maus e Chuck Mull, O Homem da Vingança. Foi filmado em oito semanas, entre três países, especialmente na Itália, filmou no Campo Imperatore, L'Aquila, Abruzzo e nos Elios Studios, Roma, Lazio, Itália. As cenas na Espanha foram em Almería, na Andalucía. Teve cenas também nos Estados Unidos

Os estúdios por trás foram feitos pela Uranos Cinematografica, distribuído pela Far International Films na Itália, Adria Filmverleih na Alemanha Ocidental, Intercontinental Film Distributors no Reino Unido.

Castellari afirmou que de todos os filmes que dirigiu, este é o seu favorito. Ele escreveu esse junto a Mino Roli (de A Qualquer Preço e Matá-lo), Nico Ducci de (Um Homem a Respeitar) e George Eastman (que assinava como Luigi Montefiori), que era ator (A Colina dos Homens Maus) e escritor de clássicos do horror, como O Antropófago e Mutação Maligna, Eastman também escreveu o argumento desse Keoma.

O enredo do filme foi em grande parte improvisado, enquanto rodavam o longa. O tratamento original da história foi escrito por Montefiori/Eastman e transformado em roteiro depois.

Castellari não gostou do que foi escrito, então ele e o ator Joshua Sinclair, que interpretou Sam Shannon, reescreveram o script, sempre mirando o que seriado rodado no dia seguinte, todas as noites após as filmagens.

Não à toa é o personagem de Sinclair que entre os irmãos de Keoma tem mais importância e tempo de tela.

Castellari também esteve aberto a sugestões do restante do elenco e da equipe técnica. Franco Nero afirmou que escreveu alguns de seus próprios diálogos.

A trama começa em um cenário enevoado, com um cavaleiro cheio de roupas de frio, passando por um ambiente de areia, sujeira e muito lixo. O sujeito mestiço, de cabelos enormes passeia pela devastação do lugar que ele um dia chamou de lar.

A aldeia onde sua mãe e seus parentes viveram não é nada mais que o lar da destruição, solidão e desolação. Isso é registrado de maneira poética, indiscutivelmente, Castellari dá vazão a uma versão do Velho Oeste que revisita o massacre aos nativos americanos, aos verdadeiros residentes do continente conhecido como Mundo Novo.

Keoma não tem receio de falar a verdade, afirma que esse mundo é podre. Os filmes de velho oeste europeus eram mais sujos, mais violentos e mais escrachados que os do Estados Unidos, no entanto, não eram melancólicos, não tão melancólicos quanto esse se apresenta.

Esse é, há quem chame ele de uma obra que valoriza a depressão, fato que se vê inclusive no tema musical do personagem-título, que tem uma letra, cantada de maneira triste e melodiosa por Sybil & Guy.

A trilha original de Guido & Maurizio De Angelis, conhecidos por O Vingador Anônimo e Zorro (75), possui músicas pontuais, que ajudam a demarcar os sentimentos de tristeza com um instrumental diferenciado. As canções têm personalidade própria, mas são muitas vezes cortadas pelo tema principal.

O personagem-título é um alguém singular, um cowboy de cabelos desgrenhados, que deixa clara sua origem que mistura o branco e o "índio". É bem notório que Nero está utilizando uma peruca, mas isso não incomoda, já que sua atuação é sempre taciturna, calada.

É curioso como ele sempre fazia heróis diferentes. Ele poderia ser calado como Django, mais vocal como nos Zapata Western de Corbucci, ou mais deprimido e entristecido como aqui. Mesmo sendo alguém considerado canastrão é inegável que ele era um ator versátil.

Sua caracterização é completada com o seu armamento único. Ele carrega pistolas em coldres, mas também possui uma espingarda de cano serrado, que consegue lançar quatro projéteis de uma vez.

Quando ele acerta um rival faz um estrago grande, pois fere uma grande área, abrindo múltiplos buracos se acertada em cheio.

No caminho para sua terra, ele acaba salvando Liza Farrow, personagem de Olga Karlatos, atriz grega bastante experiente no cinema italiano - fez Pelo Prazer de Matar, Meus Caros Amigos, Zumbi 2 e Era Uma Vez na América - e aqui faz uma recém viúva, de um homem que estava condenado a peste, mas que morreu de maneira cruel, assassinado pelos bandidos de Caldwell.

Keoma é benevolente, liberta os cativos, fazendo justiça a pessoas que foram exploradas como ele e sua família foram anos antes. Castellari abusa dos closes sensacionalistas, varia muito entre esses e os planos detalhes das armas dos bandidos e do mocinho.

Ainda assim, não supervaloriza o personagem, não o coloca em um pedestal, tampouco glamouriza seu personagem central, mostra ele sujo, repleto de pelos, descamisado, com seu agasalho cheio de lama. Fica a dúvida se ele se insere melhor no papel de anti-herói ou de herói clássico.

Logo chega George, personagem de Woody Strode, que é uma espécie de mentor para Keoma. Ele é um exímio arqueiro e ensinou o protagonista quando ele era novo, se aproxima da estalagem onde o personagem-título está e afirma que não era chamado por seu nome há muito tempo. Provavelmente era apenas xingado, quando muito, chamado por adjetivações ligadas a sua cor de pele.

Castellari disse que o papel de George foi escrito especificamente para Strode, que conseguiu participar graças a coincidência de estar em Roma na época que rodavam o filme. Aqui ele está mal, deprimido, quase choroso. Aparentemente todos os personagens não brancos sofrem nesse universo.

O vilão principal é o Capitão Caldwell (Donald O'Brian), um homem ruim, que permitiu que a cidade se afundasse na doença e na sujeira. Junto a ele estão os três irmãos de Keoma, os Shannon. Eles prestam serviços ao sujeito, funcionando, na prática, como capangas dele.

Os três são Butch, feito por Orso Maria Guerrini, Sam, feito pelo já citado John Loffredo/Sinclair e Lenny de Antonio Marsina.

Ao passar por suas antigas terras, ele encontra William H. Shannon, seu velho pai, interpretado por William Berger. Quando o encontra, se assusta, como se visse um fantasma. Mas fica feliz ao perceber que o parente ainda vive.

Os três irmãos passeiam pela cidade, avisam ao pai que não mataram Keoma ainda em respeito a ele. O roteiro trata de relembrar as rivalidades fraternas e as brigas deles quando crianças, com o trio maltratando o protagonista.

É um bocado estranho quando a trama passa pela infância dos quatro, até meio trash. Os atores mirins estão todos caracterizados como as suas versões adultas, não parecem crianças comuns e sim atores fantasiados. Isso desconcentra um bocado.

A rivalidade entre eles parece existir para além até da condição de mocinho contra bandidos, tanto que se enfrentam algumas vezes ao longo do filme, algumas de forma bem agressiva, quase gerando mortes.

Nero estava em uma bela forma física. A maioria das cenas de ação ele fez sem auxílio de dublê. Participou de múltiplas formas de ataque, chegou até a lançar facas, em uma sequência de ataque à noite onde buscava ser silencioso.

Nos momentos de desespero, quando a morte chega perto, ele vê a figura de Gabriella Giacobbe, uma personagem idosa, que aparece especialmente no início e no final da história, sendo creditada como A Bruxa. É curioso como o roteiro trata a personagem, já que ela é quase uma entidade fantasmagórica.

Não há um patrono na cidade, o lugar se reergue basicamente com auxílio de seus próprios cidadãos, como o doutor (Leon Lenoir), que mesmo sem ser abastado, ajuda com doações.

Eles seguem juntos acreditando piamente na promessa de vida nova, com a possível chegada de um juiz federal, mesmo que não haja garantias disso.

Alguns aspectos diferenciam Keoma dos seus pares do Western Spaghetti. É comum que em algum ponto haja um uso de slow motion, mas Castellari pratica um grande exagero nas cenas de câmera lenta. Fica patente que há uma influência da parte do cinema do diretor Sam Peckinpah, de Meu Ódio Será sua Herança.

Também fica claro que Berger não tem idade para ser pai de nenhum dos quatro filhos, embora isso não comprometa a crença na trama. A maquiagem que o envelhece não funciona à contento, mas a atuação e dedicação do ator impressiona.

A sequência que resulta na morte do patriarca Shannon é emocionante e triste. Os capangas de Caldwell são desonrosos, acertam o pai do herói mesmo depois que ele se rende. É curioso como em seu rompante desesperado, o assassino não consegue atirar em Keoma, mesmo com ele desarmado. É como se algo sobrenatural protegesse ele, ou a bruxa ou seus antepassados, ou mesmo a terra, que não queria deixar que o herói caísse.

As humilhações pelas quais Keoma passa não importam, ser arrastado pela lama, ser amarrado em uma espécie de cruz improvisada não é nada, no máximo reforça sua função messiânica, já que ele é amaldiçoado pela morte de cruz, tal qual Jesus Cristo.

Para ele, ser humilhado não era nada, afinal, o mais triste já havia ocorrido consigo, já que ele perdeu a única pessoa que importava.

Até os três irmãos se revoltam com Caldwell, eliminam ele e seus homens e assumem a chefia dos vilões. Entre eles, fica clara a liderança de Sam. Butch o acompanha, promete aos beberrões que a cidade vai crescer e virar uma grande metrópole. Até Lenny, que era tímido de início, adere ao discurso do irmão.

O confronto entre Keoma e os Shannon é meio anticlimático, em uma cabana escura, à noite. Os cowboys se desvencilham fazendo muito uso de estratégia. Sabendo da capacidade do irmão mestiço, os três fraternos subestimaram a capacidade do protagonista de uma forma tão impressionante que não faz muito sentido, mas combina bem com toda a empáfia branca levantada aqui.

O filho de Farrow nasce, mas Keoma não o leva, deixa a criança com a idosa bruxa, que aqui, parece apenas uma senhora comum. Esse final é uma sequência bastante confusa, Castellari torna o desfecho na coisa mais onírica de seu filme, que já apelava para o lúdico em boa parte, mas nos últimos instantes, faz uma sequência bem literal.

Keoma é sensacional, encerra bem o ciclo virtuoso do western spaghetti, conseguindo atingir as expectativas de violência sanguinolenta, de poesia aventuresca e de reflexão sobre sentimentos de vingança e justiçamento aos excluídos.

É uma obra seminal, feita não só para os fãs do gênero, mas do cinema no geral, embora não faça sentido em boa parte de suas curvas dramáticas, conta com uma música bonita, atuações dedicadas e claro, imagens maravilhosas. É uma pérola da exploração do Velho Oeste.

... 

Review by Ian West [tradução livre]

Ele não pode morrer. E sabe por quê? Porque ele é livre. E um homem livre nunca morre.”

Abordando questões de racismo e espiritualidade com explosões de violência por meio de armas, Keoma é uma paisagem sonora assombrosamente alucinante em meio a uma névoa atmosférica de almofadas surrealistas... um prato saboroso de macarrão misturado com a quantidade certa de alucinógenos e vibrações sombrias para se diferenciar de outros spaghetti westerns, além de Franco Nero sendo o maldito Franco Nero com algumas das melhores sequências de ação em câmera lenta para enfeitar a tela.

Violento e sombrio, com algumas escolhas de som/edição muito interessantes, sinceramente, eu não gostaria que meu Castellari fosse diferente, especialmente porque Keoma é um espetáculo visualmente deslumbrante, com cenas de violência cruel habilmente elaboradas — cheias de emoção. O melhor de Castellari, 

Keoma é uma obra-prima operística.

Preciso descobrir quem sou... para dar uma razão às minhas ações mais simples. Sei que estar neste mundo tem algum significado, mas temo que, quando descobrir o que é, será tarde demais. Enquanto isso, sou um vagabundo. Continuo viajando. Mesmo quando a terra dorme, continuo viajando... perseguindo sombras.” Letterboxd 

04/08/25

Viva: a vida é uma festa, Coco, Lee Unkrich & Adrian Molina, 2017

Crítica | Viva: A Vida é Uma Festa por Gabriel Carvalho 7 de janeiro de 2018

A Pixar já nos emocionou muitas vezes, abordando temáticas complexas, criando jornadas espetaculares, com uma sinceridade e suavidade admiráveis. É um estúdio, acima de tudo, humano, que sabe relacionar seus personagens exóticos com sentimentos verdadeiros, os quais são sentidos tanto por homens quanto por brinquedos, peixes, insetos, carros, monstros, robôs, ratos e por que não sentimentos sentidos pelos próprios sentimentos? Em uma comparação com a companhia do camundongo falante, a Disney está tão próxima à magia quanto a Pixar está próxima à verdade. Uma verdade otimista, de fato, longe de uma sobriedade que pode afastar tanto crianças quanto adultos deste tipo de substância cinematográfica, mas uma verdade tão honesta quanto a recriada em trabalhos cinzentos que lidam com a realidade de forma mais crua. O décimo-nono filme deste fabuloso estúdio de animação pode não ser categorizado como a sua melhor produção, mas definitivamente sabe tocar no coração de cada um de nós.

A começar a análise de Viva: a vida é uma festa pela jornada que move a trama, temos aquela narrativa tradicional, sem muitas novidades. Uma fórmula que deu certo na maioria das vezes, mas que por outro lado, funcionaria mais se não caísse demasiadamente em alguns clichês que já estamos acostumados a assistir. Por exemplo, não será dessa vez que não veremos aquela solução de problemática encontrada no último segundo; cenas inteiras que criam perguntas, criam tensões, que já sabemos previamente a resposta que nos aguarda. No entanto, trazer inovações no roteiro, subversões completas de narrativa, não é um requisito pedido por nós; não é algo profundamente fundamental. Uma história com um objetivo forte, um discurso poderoso, pode ser aliada a um esqueleto comum sem perder o encanto, ainda mais quando trabalha alguns elementos cruciais, como personagens, apego emocional, envolvimento dramático, a simples e velha boa comédia, universo rico de detalhes, entre outras características. Não entendam erroneamente, este não é um filme totalmente previsível, há coisa inesperadas e soluções que, embora passíveis de premeditação, são muito bem construídas. Mas definitivamente estaremos muito mais envolvidos com esses outros elementos citados do que com o storytelling em si.

Em paráfrase a Banksy, anônimo artista britânico, ou qualquer que tenha sido o verdadeiro emissor dessa frase, dizem que morremos duas vezes. A primeira, quando paramos de respirar, e a segunda, quando nosso nome é falado pela última vez. A ideia por detrás dessa citação é a que move excepcionalmente a mais nova produção da Pixar Animation Studios. Sim, a perspectiva da morte, assunto sempre delicado, é retomada novamente, como outras obras anteriores já a tomaram. Porém, se Up: Altas Aventuras e as demais tratavam da temática de maneira solene, sem muito estardalhaço, aqui a morte é abraçada como se fosse uma velha amiga, a qual acompanha-nos antes mesmo de nosso nascimento. A cereja do bolo é a visitação que a animação faz à cultura mexicana, visto que o Día de Muertos é uma das festividades mais adequadas para se tratar da questão abertamente. Outras obras já fizeram isso antes, mas nenhuma com tanto carisma quanto essa. As coisas vão além da mera diversão gratuita paralelizada a uma estética diferente. A Pixar faz um ode a toda a grandiosidade e riqueza cultural do México, e não meramente se apossa dela para construir sua história. Há muito respeito nessa produção, a qual, acertadamente, conta com um elenco de vozes composto inteiramente por latinos ou descendente de latinos. Não é por menos que Viva já é a produção mais vista da história do México, tendo sido especialmente lançada lá cerca de um mês antes do que nos Estados Unidos.

Indo agora para uma visualização superficial – em uma tentativa de evitar ao máximo spoilers – do plot do longa-metragem, Miguel (Anthony Gonzalez) é um jovem garoto amante de música, que vive, contudo, em uma família que enxerga essa arte como uma terrível maldição, um pensamento que se originou décadas atrás, quando o tataravô do menino deixou sua esposa e a sua filha Coco (Ana Ofelia Murguía, na tradução brasileira chamada de Inês) para perseguir seu sonho. Seguindo uma estrutura comum destes filmes, nos quais conflitos do tipo seguem caminhos inicias que já estamos acostumados a assistir, Miguel acaba se vendo diante de um mundo muito maior do que ele mesmo, a Terra dos Mortos, onde ele acabará acidentalmente encontrando seus ancestrais mortos e sairá em busca da bênção de Ernesto de la Cruz (Benjamin Bratt), o maior músico da história do México.

Coco (título original da obra, muito mais condizente com o espírito e a essência do longa do que o brasileiro, bobo e prepotente – subestimando a inteligência do público) também é, como a premissa sugere, um filme bastante musical, refinado por composições belíssimas. Enquanto Un Poco Loco tem uma melodia espirituosa, super divertida, Remember Me, música central para a narrativa, composta por Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez, é riquíssima em significado para a história, efetivando vínculos emocionais do público com a própria obra. A performance desta por Hector (Gael García Bernal), companheiro de viagem de Miguel na Terra dos Mortos, embala uma sequência com uma carga dramática fortíssima, apresentada a nós por meio de um flashback vital para a história, o qual fortalece monstruosamente os laços que criamos com os personagens. É o melhor flashback da história da Pixar, isso se não consideramos a sequência inicial de Up como um também. No mais, é notável a qualidade técnica desta animação. A apresentação a Terra dos Mortos é um espetáculo visual de alto nível; a ponte de pétalas douradas é assombrosamente bem animada, assim como as centenas de rugas que incorporam a fisionomia da Mamá Coco. Também deve-se comentar o visual dos mortos, esqueletos que trazem em seus crânios lembranças dos costumes mexicanos em pintá-los durante a celebração feita aos que se foram.

Outrossim, Hector é um coadjuvante de peso, que cresce como personagem a medida que o filme progride. Viva nos surpreende nesse ponto, dando a alguns personagens que cruzam ocasionalmente com o protagonista em sua jornada, importâncias que não esperávamos que tivessem. A própria Coco, por exemplo, só tem sua vitalidade para a narrativa revelada devido o título da própria obra (outra coisa que se perde na tradução brasileira, ao mesmo tempo que se ganha, dado o fator imprevisibilidade; fiquei confuso agora, estou eu falando um ponto positivo do título original não ser Coco?). Dos trabalhos de voz, além de Gael García Bernal, Allana Ubach, interpretando Amelia Rivera, também merece um destaque. Sua personagem é uma das mais fortes mulheres das animações da Pixar, sendo a líder de uma família inteira (a visão de família é outra das abordagens feitas muito bem pelo filme), decidida de seus pensamentos e protagonista de seus rumos, como revelado em seu background. A relação dela com um outro personagem, porém, não é algo muito bem resolvido, caindo no campo que presumimos que ia acabar caindo, mas sem uma construção bem feita até lá. Em outro caso, o roteiro traz uma conclusão tirada pelo personagem Miguel em relação a Ernesto e Hector muito forçada.

O longa-metragem da dupla Lee Unkrich e Adrian Molina, roteiristas e diretores do filme, fala muito sobre lembranças, manejando-as incrivelmente bem para que tenham significados muito importantes para o público. A forma como a cultura mexicana acaba sendo impulsionada a todos, independente da relação do espectador com ela, é extraordinária. Não se preocupem se vocês não sabem nada sobre o Día de Muertos, as informações relevantes para nós entendermos e acreditarmos neste novo mundo são expostas de forma entrelaçada com os diálogos, sem interrompê-los. É irônico que a exposição mais disfuncional seja exatamente a que não fala sobre os mortos, mas a que fala sobre o passado. O background que comporta o ódio da família de Miguel pela música – o abandono de seu tataravô – podia ser um item revelado ao longo do enredo, e não em seus primeiríssimos minutos, apesar do visual remetente à cultura do México. Ademais, muito provavelmente o filme mudará, nem que seja um pouco, conceitos que temos sobre vida, morte, memória e saudade. Para aqueles que perderam alguém, definitivamente Viva os fará lembrar deles. Tal feito é, portanto, uma forma de nos fazer acessar um pedaço da riqueza mexicana, entender um pouco mais a maneira como um povo encara temáticas tão complexas e subjetivas. Uma maneira, aliás, muito bela de se ver o inevitável, de se ver os que foram não como corpos em decomposição, mas como boas memórias, as quais mantém-os vivos de alguma forma, seja no nosso coração ou na Terra dos Mortos.

05/08/25

Sergio Leone - O Italiano que inventou a América, Sergio Leone - L'italiano che inventò l'America, Francesco Zippel, 2022


Documentário revisita carreira e legado de Sergio Leone - Pílulas 34 - 32 ler aqui 

Sergio Leone – O Italiano que inventou a América, Eduardo Kaneco, 28/06/2023

Após o excelente documentário Ennio, o Maestro (Ennio, 2021), somos brindados com este. Sergio Leone – O Italiano que inventou a América (Sergio Leone – L’italiano che inventò l’America), lançado um ano depois internacionalmente, chega agora ao Brasil dentro da programação da mostra 8½ Festa do Cinema Italiano 2023. A relação entre os retratados é concreta. Os patrícios trabalharam juntos, em obras-primas como Era uma vez no oeste (C’era una volta il West, 1968) e Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1984). São exemplos perfeitos de como essa colaboração elevou o patamar do resultado final. Não é à toa que Morricone seja um dos entrevistados deste filme de Francesco Zippel. Mas os ventos sopraram a favor para que isso acontecesse, pois o compositor viria a falecer em 6 de julho de 2020.

Outros colaboradores também prestam seus depoimentos, ajudando a elucidar o processo criativo deste cineasta que completou apenas oito longas em sua carreira. Filho do ator e diretor Roberto Roberti, Sergio Leone quis fazer filmes grandiosos. Por isso, começou nos épicos, e levou essa característica para os seus spaguetti westerns, gênero que com ele deixou de significar cópia barata de Hollywood. Após o último dos seus cinco faroestes, Quando explode a vingança (Giù la testa, 1971), Leone se dedicou (ou ficou bloqueado como parte do documentário induz) com sua obra-testamento, Era uma vez na América, cujo lançamento só viria a ocorrer em 1984.

Depoimentos ricos

Sergio Leone – O Italiano que Inventou a América é rico em depoimentos, inclusive de material antigo do próprio Leone, morto em 1989. Quanto aos atores que trabalharam com ele, destacam-se os fatos engraçados relatados por Clint Eastwood e Eli Wallach. E, também, as recordações emocionadas de Jennifer Connelly, que tinha apenas doze anos quando Leone a dirigiu. Entre os vários pares, dois diretores apresentam pequenas análises sobre o cinema de Sergio Leone. São eles: Quentin Tarantino e Martin Scorsese (aliás, como muitos poderiam já antecipar). Por fim, para completar o retrato multidimensional, o filme traz também depoimentos das filhas Francesca e Raffaella e do filho Andrea.

Ao término da projeção, saímos da sala admirando ainda mais Sergio Leone. Um cineasta de poucos filmes, mas todos únicos, nunca cópias.

07/08/25

Era uma vez na América, Once upon a time in America, 1984, Sergio Leone

Era uma vez na América por Eduardo Kaneco, 15/01/2021

Com quase quatro horas de duração, Era Uma Vez na América é o monstruoso épico de Sergio Leone que acompanha a saga de David “Noodles” Aaronson, um gangster judeu em Nova York.

E esse relato é contado através de uma narrativa intrincada. Além de alternar diferentes momentos da vida de Noodles (Scott Tiler/Robert De Niro), o filme prefere não entregar explicações objetivas. Pelo contrário, o lacônico personagem principal abre a possibilidade de várias interpretações para a história. Por esse motivo, os primeiros 15 minutos do filme praticamente não possuem diálogos.

A história em ordem cronológica

Cronologicamente, a primeira fase da vida de Noodles retratada em Era Uma Vez na América relata sua adolescência. Assim, acompanhamos como ele é criado nas ruas, um dos líderes de um bando de cinco garotos que praticam pequenos crimes. Logo, começam a ganhar mais dinheiro ao se envolverem com traficantes de bebidas na época da Lei Seca. Em paralelo, testemunhamos sua paixão incontrolável por Deborah (Jennifer Connelly/Elizabeth McGovern), que o despreza. Eventualmente, uma tragédia resulta na prisão de Noodles por assassinato.

Então, a fase seguinte, na linha de tempo do protagonista, trata da época em que Noodles sai da penitenciária, após cumprir sua pena. Já estamos no início dos anos 1930, e o bando está progredindo, sob o comando de Max (Rusty Jacobs/James Woods). E um novo tipo de serviço sujo surge para eles: agir como milícia de sindicatos. Porém, com o fim da Lei Seca, um ousado plano levará a uma nova tragédia. Logo depois, Noodles busca um pouco de alívio numa casa de ópio. Em paralelo, Noodles violenta Deborah ao saber que ela se mudará para Hollywood. Por fim, ele descobre que o dinheiro que o bando havia guardado foi roubado. Então, ele decide esquecer tudo e sumir.

Finalmente, já na casa dos 50 anos, Noodles recebe uma maleta cheia de dinheiro como pagamento adiantado de um misterioso trabalho. E descobrirá o que aconteceu com Deborah e Max.

Faroeste

Apesar de trabalhar em outro gênero de filme em Era uma vez na América, Sergio Leone carrega algumas características do faroeste que marcou sua carreira. Logo no início, encontramos evidências disso na violência empregada por gangsters contratados para vingar o delator Noodles. Primeiro, eles assassinam a sangue frio a namorada dele. Depois, torturam o seu amigo Moe. Por fim, a cena com Noodles dando um tiro na cabeça de um desses pistoleiros é, definitivamente, uma prova da influência do western, pela forma como foi filmada. Aliás, o próprio personagem principal guarda características do herói do Velho Oeste. Ou seja, quieto e friamente letal.

Adicionalmente, a marcante trilha sonora de Ennio Morricone também remete ao faroeste. Afinal, o compositor foi parceiro de Sergio Leone em vários filmes do gênero. Por exemplo:  Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a mais (1965) e Três homens em conflito (1966), bem como em Era uma vez no oeste (1968).  

Noodles

Notoriamente, Sergio Leone prioriza a construção dos personagens, sobretudo do protagonista Noodles. Por exemplo, fica nítida a mudança dele após passar anos na prisão. Antes, ele era um adolescente confiante, ousado e falador. Depois de cumprir sua pena, Noodles está calado e cauteloso, incomodado em continuar na carreira criminosa. Por fim, na maturidade, ele já não dá importância ao dinheiro. E, durante toda sua vida, sempre esteve fascinado por Deborah, um amor que ele nunca alcançou.

Atenção! Spoilers adiante!

Aliás, na própria análise de Noodles, seu melhor amigo Max e seu grande amor Deborah eram muito parecidos. De fato, essa observação se amarra perfeitamente com a parte final, quando os dois estão já casados, unidos não pelo amor, mas pela ambição. Nesse sentido, Era Uma Vez na América permite ser compreendido como uma versão do tema de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. Afinal, nesses dois épicos, temos a analogia crítica dos Estados Unidos. Em outras palavras, a América capitalista que se apresenta como a terra da oportunidade é terreno fértil para a evolução da ambição materialista a qualquer custo. Dessa forma, Max e Deborah representam essa ambição.

Então, Noodles se sente frustrado porque ele só conseguiria conquistar Deborah se ele fosse materialista como Max. Afinal, ela quer crescer na vida, e não se sujeitaria a ficar amarrada a um homem que não fosse rico e que não a apoiasse em sua carreira de atriz. A fim de enfatizar essa relação, o filme reduz o ritmo das cenas com Noodles e Deborah. Notoriamente, em dois trechos. Quando ele a espia por vários minutos treinando balé, quando adolescentes. E, depois, na chocante cena do estupro, quando Noodles perde o controle ao perceber que nunca conquistará o coração de sua amada.

Max

Por outro lado, perto da velhice Max reconhece que seus ideais materialistas não valeram a pena. Primeiro, tenta restituir o dinheiro que roubou dos amigos, pagando Noodles para matá-lo, o que evitaria também o agora senador a ser preso pelas falcatruas que cometeu. Em seguida, quando cancela a ordem de matar Noodles. Por isso, o caminhão de lixo com os assassinos que o aguardava se afasta sem fazer nada.

Cena final

Finalmente, a última cena, com o close-up de Noodles sorrindo após a primeira tragada na casa de ópio, permite várias interpretações. Antes de mais nada, isso acontece depois que ele testemunha os corpos de seus dois amigos e, provavelmente, o de Max, mortos pela polícia. Na verdade, sua delação visava apenas a prisão deles, para que todos não fossem mortos durante o insano plano de Max de roubar o Banco Central dos EUA. Então, seu sorriso talvez espelhe sua possibilidade de ficar com todo o dinheiro do bando que está guardado na estação de trem.

Porém, essa interpretação não se encaixaria com o personagem que foi construído durante o filme. Nesse sentido, o mais coerente é considerar que ele percebeu que o corpo carbonizado não era o de Max. E, consequentemente, seu sorriso é de ironia, ao descobrir que o amigo o enganou. Afinal, assim ele confirma sua visão de que a ambição materialista não leva a nada.

Enfim, fica a sensação de que o filme mantém algumas interpretações livres demais. Nesse sentido, algumas definições poderiam torná-lo ainda melhor. Fora isso, alguns cenários construídos em estúdio parecem artificiais e podem incomodar alguns espectadores. Além disso, a entrada dos personagens interpretados por Joe Pesci e Danny Aiello criam expectativa, mas eles praticamente não retornam ao filme.

De qualquer forma, Era uma vez na América é um filme cativante. Principalmente por apresentar personagens fortes, em especial Noodles com suas várias camadas que o tornam tão humano. Juntamente com O Poderoso Chefão, representa uma visão crítica da ambição materialista a qualquer preço.

09/08/25

A lei do revólver, Stranger at my door, William Witney, 1956

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A Lei do Revólver: entre balas e Bíblias por Giovanni Comodo, 4 de março de 2021

Muitos creditam William Witney como um dos criadores do cinema de ação moderno. Entre balas e Bíblias, ação não falta em A lei do revólver. Corrupção e incoerências com promessas de esperança, num ensaio de Giovanni Comodo.

A vidraça de um banco explode na tela. Bandidos armados tomam a rua, disparando suas pistolas. Pessoas gritam e fogem para todos os lados. Cavalos correm de um estábulo para todas as direções. Os assaltantes incendeiam as vias e a porta do xerife. Tudo é caos e som alto. Este é o primeiro minuto de “A Lei do Revólver” (“Stranger at my door”). Estamos em um faroeste de 1956, um exemplar da série B de Hollywood — o qual, seguindo a necessidade de manter as pessoas em seus assentos após o filme principal, já começa em alta octanagem.

Entretanto, nem tudo é caótico de fato para o espectador. Neste um minuto, já sabemos o que ocorreu (um assalto), por quem (a gangue de Clay Anderson, diziam os gritos), somos apresentados à figura do xerife (Louis Jean Heydt) e vimos um cavalo dos criminosos tropeçar antes de continuar sua fuga, o que dará origem à trama do filme. Em um minuto, narrativa, clareza, emoção. Um universo.

O responsável por tamanha economia é um diretor ainda hoje pouco conhecido, um mestre quase secreto do cinema americano: William Witney (1915-2002).

Witney é um destes grandes trabalhadores anônimos do cinema americano. Fez seriados, aventuras, westerns, suspenses de delinquência juvenil e black exploitations, para cinema e televisão. Começou no chão dos estúdios mais simples de Hollywood, localizados na chamada Poverty Row, em funções como office boy e zelador até conquistar espaço na continuidade e supervisão do set e, finalmente, edição e direção de segunda unidade. Sua oportunidade para assumir a direção principal veio quando um diretor veterano da casa não estava em condições de filmar na locação (totalmente bêbado) e Witney, aos 21 anos, agarrou a chance. Foi o início de uma filmografia de quase 150 títulos em meio século de carreira, no ritmo febril e industrial dos estúdios de cinema dos anos 30 e 40 de cinco produções ao ano.

De suas observações em sets de filmagem, Witney tirou uma grande ideia. Ao ver como eram gravados os musicais de Busby Berkeley nos estúdios da Warner, com momentos menores dos passos de danças capturados por Berkeley para serem unidos na sala de edição, decidiu levar o mesmo princípio para as cenas de luta. Assim, as cenas de trocas de socos ganharam decupagem, agilidade, veracidade e potência — pois os atores e dublês podiam estar mais concentrados para cada trecho da luta, elaborada como se fosse uma coreografia, afinal. Também experimentava nas filmagens com diferentes ângulos para a câmera e velocidades de rodagem, a fim de poder acelerar os movimentos na edição e encontrar as melhores combinações na montagem. Por estas razões, muitos creditam Witney como um dos criadores do cinema de ação moderno.

E ação não falta em “A Lei do Revólver”, ainda que seja mais doméstico que muitos westerns do período. O líder do bando de assaltantes do banco (Clay Anderson, vivido por Skip Homeier) se vê obrigado a pedir abrigo em uma pequena fazenda, em razão do ferimento na pata de seu cavalo, sob nome falso. A fazenda pertence a uma pequena família composta por um pastor, Hollis Jarret (Macdonald Carey), sua jovem segunda esposa Peg (Patricia Medina, um assombro) e seu filho do primeiro casamento, Dodie, um garoto de sardas e orelhas de abano. O pastor está construindo sua capela de madeira no quintal e toda ajuda é bem-vinda. A casa simples e organizada, a beleza destas pessoas e dos animais em volta remetem às ilustrações de Norman Rockwell.

A chegada de Anderson acaba provocando enormes abalos na idílica ordem natural daquele lar. E, se tratando de um filme de menos de 90 minutos, em pouco tempo Jarret descobre a identidade real de Anderson, mas, movido por sua missão cristã, decide abrigar e, inclusive, lutar pela alma do criminoso. Até ali, observamos atritos nas fundações da família pela chegada do forasteiro: Dodie brinca de bandido ao saber do assalto, animado com a violência da história, Anderson questiona a fidelidade e escolhas de vida de Peg (“nesta fazenda no meio do nada”) e fareja a raiva acumulada sob a pregação em Jarret — cabe ressaltar a atuação de Homeier, um corpo estranho de olhos sem piscar nestes momentos, quase reptílico. É a possibilidade da transmutação da serpente em um Cristo que este pequeno western traz em seu centro, cercado por uma poderosa presença do mundo natural. Um filme de milagre.

11/08/25

Do inferno, From hell, Albert Hughes&Allen Hughes, 2001

Do inferno por Clenio  

Um dos personagens mais fascinantes da crônica policial universal - e que deu origem a livros, filmes, peças de teatro, estudos, teses e todo tipo de material possível e imaginável - não poderia deixar de ser retratado em uma das manifestações artísticas mais cultuadas do final do século XX, as graphic novels. Tendo Jack, o Estripador como personagem principal - e revelando sua identidade logo nas primeiras páginas, com base em uma teoria que muitos consideram incorreta e sem sentido - o livro "Do inferno", escrito e desenhado por Alan Moore e Eddie Campbell chegou às livrarias em 1991, com mais de 570 páginas recheadas de informações e detalhes históricos capazes de fazer salivar qualquer interessado no assunto, por mais cético que seja a respeito de suas conclusões. Centrando sua trama nos pensamentos de Jack e em suas razões para assassinar as prostitutas londrinas que frequentavam a zona pobre da Londres de 1888, o livro parecia um desafio a qualquer roteirista de cinema, que se veria em maus lençóis para adaptar ao gosto do público médio uma história tão sangrenta e, pior ainda, sem um herói para se torcer. No entanto, como a terra do cinema tem seus meios - e um tema assim não poderia passar em brancas nuvens pelos ambiciosos produtores - o Festival de Veneza de 2001 serviu de plataforma para o lançamento de sua versão cinematográfica, dirigida por dois irmãos afro-americanos (Albert e Allen Hughes) e estrelada por um dos atores mais populares do cinema americano, Johnny Depp. Não, Depp - queridinho das adolescentes desde que fazia a telessérie "Anjos da lei" - não interpretava Jack. Aliás, Jack nem era mais o protagonista da história. Na versão da 20th Century Fox quem dava as cartas era Frederick Abberline, um dos inspetores responsáveis pela caça ao serial killer. Coisas de Hollywood.

No filme dos Irmãos Hughes - estiloso, plasticamente estonteante e visceralmente violento, ainda que disfarce tal violência com uma fotografia apropriadamente escurecida - Abberline assume a protagonização da história, sendo promovido de sua função no livro e tendo sua personalidade alterada, uma vez que chamou para si características de outro personagem importante da narrativa literária (um vidente chamado Robert Lees que foi limado do roteiro final). Interpretado por Depp, o inspetor ganhou novas nuances (vício em ópio, por exemplo, o que cai como uma luva na mania do ator em sempre interpretar excêntricos ou drogados) e até uma insinuação de romance com a prostituta Mary Kelly (Heather Graham), que, a despeito da descrição de suas colegas feitas em todo e qualquer artigo escrito sobre o assunto, é bonita, limpa e jovem. Assumindo o papel que foi oferecido anteriormente a Daniel Day Lewis, Jude Law, Brad Pitt e até Sean Connery, Depp oferece ao filme o que a graphic novel não tinha - um herói com passado dramático com quem o público possa se identificar - mas tira do projeto o que ele poderia ter de melhor: personalidade.

Ao optar por um ritmo repleto de camadas que exploravam todas as linhas investigativas do caso de Jack, os autores da graphic novel criaram uma obra única e fascinante, mas os fãs do livro tiveram que contentar-se com uma adaptação narrativa nos moldes clássicos, ou seja, sem maiores ousadias ou surpresas. Na Londres de 1888, uma série de assassinatos mexe com a imaginação popular e com a segurança pública: prostitutas estão sendo violentamente mortas e mutiladas por um criminoso que parece ter conhecimento de anatomia humana e tem um sombrio senso de humor, deixando recados à polícia a respeito de seus feitos. Auto-intitulado Jack, o Estripador, ele acaba por tornar-se a missão do Inspetor Abberline (Depp) - cujos métodos pouco ortodoxos de investigação incluem visões promovidas pelo uso constante de ópio. Seguindo as pistas deixadas pelo psicopata, ele chega até Sir William Gull (Ian Holm), médico da família real e membro da comunidade maçônica londrina que aparenta saber muito mais do que deixa antever seu cuidado excessivo com o jovem príncipe Edward Albert (Mark Dexter) - que mantém uma misteriosa relação com uma jovem prostituta chamada Ann Crook (Joanna Page) e pode ser a chave do mistério.

Apesar de diluir todas as informações da obra original para que elas caibam em um filme de duas horas e de tirar dela sua essência, a versão para o cinema de "Do inferno" tem muitas qualidades, especialmente quando o assunto é visual. A fotografia de Peter Deming e a reconstituição de época que praticamente esfrega na cara do público a pobreza e a tristeza de um lado menos turístico de Londres são excepcionais, assim como a noção dos irmãos Hughes em explorar da melhor maneira possível os detalhes históricos da trama mesmo que seu desfecho não seja reconhecido como verdadeiro. Uma adaptação fiel seria genial, mas dentro do cinema comercial e suas exigências, é um filme policial clássico - com direito até mesmo a um final açucarado que quase põe tudo a perder e alguns exageros facilmente perdoáveis - capaz de agradar a quem tem paciência para produtos com ritmo menos alucinante. E nem Johnny Depp e seus excessos conseguem estragar o programa.

12/08/25

Fuga mortal, Joshua Tree, 1993, Vic Armstrong

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Fuga Mortal (Joshua Tree 1993), 10 de abril de 2014

Santee e seu amigo Eddie estão trafegando por uma rodovia quando são abordados por um policial e parece que a carga pode ter algo suspeito. Eddie pega uma arma e desce do caminhão para conversar com  o policial. Depois de tentar enrolar o policial ele fala que apenas parou eles por que tinha uma peça solta na roda do caminhão e aliviado Eddie vira de costa para dar uma olhada no pneu e deixa a mostra o revolver que trazia na cintura o policial lhe da um golpe que  o nocauteia e nisso Santee desce para ajuda-lo e mais um carro com policiais chega e acaba ocorrendo um tiroteio. No resultado final a brincadeira acaba com a morte de Eddie e do policial que os parou, Santee leva um tiro e ainda vai preso acusado da morte do policial. 

Seis meses depois Santee vai ser transferido de prisão mais os dois policiais que vão fazer sua escolta recebem a ordem de apagar Santee no caminho. Aproveitando um vacilo dos policiais ele consegue escapar dos dois se escondendo no meio do deserto. Mais tarde Santee vai até um posto de gasolina onde rouba um carro de uma mulher mas lá perto tinha alguns policiais e ela acaba levando a moça junto para não levar bala. A moça sequestrada se chama Rita, que é uma policial que acabou de terminar o seu relacionamento com um outro policial( é policia que não acaba mais), mais esconde isso de Santee e vai se envolvendo na historia dele para saber o que realmente esta acontecendo e quem ele realmente é. Agora a policia inteira da cidade esta na cola de nosso amigo fugitivo. O chefe da policia Franklin Severence tem um motivo "especial" para querer pegar Santee e por isso manda todos seus homens atrás dele. Mesmo nesta situação desconfortável Santee tem dividas para acertar ou melhor para receber principalmente por causa da morte de seu amigo Eddie e de seu envolvimento com trabalhos ilícitos. 

Um dos melhores filmes de Dolph Lundgren com muita ação e perseguições de carro.

Curiosidade: Esse filme demorou 20 anos para ter sua versão original liberada nos Estados Unidos.

14/08/25

Beekeeper - rede de vingança, The Beekeeper, David Ayer, 2024 (Max)

Crítica | Beekeeper: rede de vingança (2024) por Diogo Souza, 11 de janeiro de 2024

“Beekeeper: Rede de Vingança”, dirigido por David Ayer e estrelado por Jason Statham, Josh Hutcherson e Jeremy Irons, é uma adição notável ao gênero de ação e suspense. 

Em uma perigosa conspiração, Clay tem seu passado exposto para o mundo e, entre outros efeitos colaterais, acaba perdendo uma pessoa muito querida.

Tomado pela fúria, ele parte em uma busca frenética por vingança contra aqueles que revelaram seu maior segredo. No entanto, em sua busca para colocar um ponto final no sistema criminoso responsável por sua perda, suas ações acabam tomando proporções nacionais ao envolverem governos e as instituições mais influentes do mundo, colocando-o na mira de diferentes organizações.

Beekeeper, no início, segue o padrão de vários outros filmes do gênero de ação, inclusive parece muito com o primeiro John Wick (2014), o que não chega tão perto do que o filme prometeu em 2021. Quando estava na fase inicial de desenvolvimento.

“Longa com uma premissa não convencional para o estilo do gênero de ação” 

Ou seja, um um thriller inspirado na mitologia da apicultura.

E realmente, ele não reinventa muita coisa. Porém, tem um enredo bem criativo e um texto relativamente simples, invocando o personagem de Statham quando ele sai da aposentadoria e o transformando em um anti-herói.

E foi inevitável notar que o maior problema dele foi tentar ser o que não é e acabar caindo em conveniências demais do roteiro, usando saídas fáceis e urgências que não necessariamente precisavam existir, logo, não são urgentes.

É interessante perceber que, quando o longa se deixa levar pelas suas próprias ideias, assim como foi prometido no começo da produção, ele começa a ficar imersivo, e muda ao trabalhar a sua própria mitologia.

15/08/25

Melhor é impossível, As good as It gets, James L. Brooks, 1997 (HBO max)

Sinopse: Melvin Udall é um novelista de romance best-seller misantrópico na cidade de Nova York , cujo transtorno obsessivo-compulsivo o faz evitar pisar nas rachaduras da calçada enquanto caminha pela cidade e tomar café da manhã na mesma mesa no mesmo restaurante todos os dias. Ele se interessa por sua garçonete, Carol Connelly, a única garçonete do restaurante que consegue tolerar seu comportamento rude.

Um dia, Simon Bishop, um artista gay que é vizinho de Melvin, é agredido e quase morto durante um assalto. Melvin é intimidado pelo agente de Simon, Frank Sachs, a cuidar do cachorro de Simon, Verdell, enquanto Simon está hospitalizado. Embora a princípio ele não goste de cuidar do cachorro, Melvin se apega emocionalmente a ele. Ele simultaneamente recebe mais atenção de Carol. Quando Simon recebe alta do hospital, Melvin não consegue lidar emocionalmente com a devolução do cachorro. A vida de Melvin é ainda mais alterada quando Carol decide trabalhar perto de sua casa no Brooklyn para que ela possa cuidar de seu asmático agudofilho Spencer. Incapaz de se ajustar a uma garçonete diferente, Melvin consegue, por meio de seu editor (cujo marido é médico), pagar as consideráveis ​​despesas médicas de seu filho, desde que Carol concorde em voltar ao trabalho. Ela está maravilhada, mas cética em relação à generosidade dele.

Enquanto isso, o ataque e a reabilitação de Simon, juntamente com a preferência de Verdell por Melvin, fazem com que Simon perca sua musa criativa e caia em depressão. Sem seguro médico, ele está à beira da falência devido às suas contas médicas. Frank o convence a ir a Baltimore para pedir dinheiro a seus pais afastados. Como Frank está muito ocupado para levar Simon ferido para Baltimore, Melvin relutantemente concorda em fazê-lo; Frank empresta a Melvin o uso de seu Saab 900 conversível para a viagem. Melvin convida Carol para acompanhá-los na viagem para diminuir o embaraço. Ela aceita o convite com relutância, e o relacionamento entre os três se desenvolve.

Uma vez em Baltimore, Carol convence Melvin a levá-la para jantar fora. Os comentários de Melvin durante o jantar lisonjeiam muito - e subsequentemente irritam - Carol, e ela sai abruptamente. Ao ver Carol, que está frustrada, Simon começa a desenhá-la, semi-nua, em seu quarto de hotel, o que reacende sua criatividade, e ele mais uma vez sente vontade de pintar. Ele se reconecta brevemente com seus pais, mas é capaz de dizer a eles que ficará bem.

Depois de voltar para Nova York, Carol diz a Melvin que não o quer mais em sua vida. Mais tarde, ela se arrepende de sua declaração e liga para se desculpar. A relação entre Melvin e Carol continua complicada, até que Simon (a quem Melvin permitiu que se mudasse com ele, já que ele teve que vender seu apartamento) convence Melvin a declarar seu amor por ela. Melvin vai ver Carol, que está hesitante, mas concorda em tentar estabelecer um relacionamento com ele. O filme termina com Melvin e Carol caminhando juntos. Ao abrir a porta de uma confeitaria matinal para Carol, ele percebe que pisou em uma rachadura na calçada, mas não parece se importar. Era uma vez o cinema 

16/08/25

O show de Truman: O show da vida, The Truman Show, Peter Weir, 1998

O show de Truman profético ler aqui 


Crítica | O Show de Truman: O Show da Vida, por Luiz Santiago 8 de dezembro de 2024

Tão real quanto fictício.

Em uma era de cultivo de reality shows e enorme força dos meios de comunicação de massa na sociedade, O Show de Truman, filme indicado a três Oscars e dirigido pelo australiano Peter Weir, https://www.planocritico.com/tag/peter-weir/aparece como uma reflexão cada vez mais atual, colocando o espectador em uma posição dialética — como aquele que vê, julga e sabe produzir o que está vendo — e mostrando temas transversais que vão do Mito da Caverna (Platão) e Utopia (Thomas More) até interpretações sociológicas que contemplam o poder e manipulação do cinema, rádio, televisão e mídias impressas sobre as pessoas.

Com roteiro escrito por Andrew Niccol, O Show de Truman nos conta a história de um reality show que tem como personagem principal um homem chamado Truman Burbank (Jim Carrey em boa interpretação, mais ou menos fora de sua zona de conforto), que desde criança tem sua vida observada por milhões de espectadores ao redor do mundo. Sendo o primeiro ser humano comprado por uma empresa e utilizado como matéria-prima para um programa de entretenimento, Truman vive uma vida praticamente perfeita, em uma cidade ideal que aparentemente está ali para fazê-lo feliz e se importar com ele, mas na verdade, todos estão interpretando um papel e ajudando um showrunner e seus investidores a ganhar muito dinheiro.

Utilizando-se da dinâmica básica da televisão em favor do filme, Peter Weir consegue grande agilidade na narrativa ainda em seus primeiros minutos e não deixa o roteiro de Niccol esgotar-se, apesar de algumas sequências e inserção de personagens do escritor não fazer assim tanto sentido ou ter grande valor para o andamento da história — percebam que aquelas duas entrevistas que aparecem no começo ou as interrupções de pessoas no programa são redundantes dentro do próprio texto, porque a presença de Christof (Ed Harris) e as diversas falhas de execução e transmissão do programa falam a mesma coisa com muito mais eficiência.

Ainda assim, a história não perde o seu gosto voyeur e obviamente joga nesse campo para atrair o público. A expectativa comum nos reality shows é estendida para o filme, onde as perguntas sobre o futuro de Truman ou como o espetáculo terminaria acabam sendo o mote de curiosidade que nos mantém atentos e isso demonstra uma grande criatividade de Andrew Niccol ao fazer uso de experiências externas (C. S. Lewis; Além da Imaginação) para dar corpo à história e competência de Peter Weir em usar honestamente as ácidas críticas do roteiro disfarçadas de entretenimento despreocupado, que, ironicamente — percebam o abismo dentro do abismo — acaba sendo a proposta do filme que vemos e do próprio mundo dele, posto que as críticas ao “Show de Truman” igualmente existem no “mundo de fora do programa”, dentro do filme.

O ótimo diretor de fotografia Peter Biziou soube trabalhar muito bem com diversos tipos de lente e projetores de imagens, seguindo a proposta geral da produção de que a dinâmica da TV não deveria se afastar da obra. Técnicas mais presentes no Primeiro Cinema como imagens em olho de peixe ou íris (angulando ou adicionando fades escuros nas bordas do quadro para destacar o centro) foram usadas na medida certa, assim como correções precisas de cores para a cidade fictícia de Truman e o mundo exterior a ela, que pouco vemos, a não ser pelos olhos dos espectadores.

Ao assistir O Show de Truman, percebemos que todos estão conectados ao personagem e ao show de alguma forma. Concordando ou não com os métodos de Christof, todos assistem ao programa, torcem pelo personagem (cada um com um interesse pessoal nele, que não deixa de ser um objeto semiótico de desejo), esperam dele alguma coisa. Percebam que a relação do espectador com as diversas mídias é apenas um aspecto da obra, uma vez que a mesma atitude pode ser observada no cotidiano, de pessoas que “assistem” às outras, cobram determinadas posturas dela, esperam que vençam provas, que sejam algo previamente organizado, escrito, acordado.

É como se Niccol e Weir transferisse o show para um cenário onde pessoas seguem uma vida que acreditam ser normal, obedecendo a regras que não foram convidadas para fazer e possibilitando o aumento de figurantes e agentes que darão continuidade e legitimidade a essas regras e posturas pré-estabelecidas. O Show de Truman acaba sendo a nossa própria vida, “assistida” de forma um pouco menos evidente (ou não?) pelas nossas instituições.

Com um enredo inteligente, apesar de não ser perfeito, e uma direção episódica (literal, simbólica e tematicamente), O Show de Truman tornou-se, merecidamente, um fenômeno cultural, com direito a estudos de diversas áreas acadêmicas, discussões acaloradas e um público que no mínimo se diverte muito durante sua exibição. Um show exibindo um show e criticando o show que as pessoas pagaram para ver, além de metaforizar a vida dessas pessoas também como parte de um show. Truman, nessa história toda, é tão real e tão fictício como qualquer um de nós. Nossa desvantagem é que raramente há trilha sonora emotiva e cameo de Philip Glass tocando um de nossos grandes encontros.

Obs: Crítica originalmente publicada em 30 de novembro de 2015. Republicada hoje como parte do especial em homenagem aos 80 anos de Peter Weir.

Uma das músicas do filme: Philip Glass - Opening 

18/08/25

E Deus disse a Caim, E Dio disse a Caino...Antonio Margheriti, 1970

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E Deus disse a Caim – Pedra, Sangue e Areia!, 15 mar 2019 / Bianca Zasso

Klaus Kinski comanda vingança macabra em E Deus Disse a Caim

Uma das características da chamada quarta fase do spaghetti western, iniciada por volta de 1970, é um humor pastelão com direito a acrobacias e tiroteios coreografados na medida para provocar gargalhadas. Quase como se Os Trapalhões fossem em turnê por Almería (um dos cenários clássicos abordados no documentário Desenterrando Sad Hill) e arredores. Porém, um exemplar poderoso e nada engraçadinho surgiu nas telonas neste período, e deve ter causado impacto em quem estava acostumado às piruetas de Trinity e companhia. E Deus Disse a Caim (E Dio disse a Caino, 1970) não pretende ser provocador apenas em seu título. E só consegue isso porque tem como comandante do espetáculo o versátil e inventivo diretor Antonio Margheriti (sim, o nome falso do personagem de Brad Pitt em Bastardos Inglórios é uma homenagem do cinéfilo Quentin Tarantino). 
Aqui ostentando o pseudônimo de Anthony M. Dawson, o italiano faz valer sua experiência com o gênero terror, e até com o sci-fi, para criar um spaghetti fantasmagórico, trágico e noturno. O espectador com medo de escuro deve aproveitar os minutos iniciais do longa, pois é dos poucos momentos onde o sol brilha e queima a pele dos prisioneiros condenados a quebrar pedras no meio do nada. É nessa prisão que encontra-se Gary Hamilton (um Klaus Kinski inspirado) que, como todo bom protagonista de tramas de vingança, é cercado de mistérios. Quando anunciam que sua pena foi revogada, ele junta suas tralhas em silêncio e parte em busca de Acombar (Peter Carsten) responsável por sua injusta prisão. Não temos nenhuma obra-prima de roteiro e nem é preciso. O texto assinado por Giovanni Addessi e Margheriti é apenas uma base para que o último faça dos detalhes aquilo que torna E Deus Disse a Caim inesquecível até para quem conhece pouco do faroeste italiano.

Com o apoio de uma trilha sonora anti-Morricone, com uma canção-tema melancólica intitulada “Rocks, Blood and Sand” e interpretada por Dan Powell, o diretor constrói um clima gótico dentro de um típico cenário de cidadezinha do oeste. Óbvio que a opção por cenas noturnas colabora para que tudo fique ainda mais fantasmagórico, mas Margheriti sabe que o terror italiano não é clichê e usa elementos que já podiam ser notados em seus filmes anteriores, como I lunghi capelli della morte, de 1965. Mas não podemos ser injustos com o elenco. Ninguém ali merece um prêmio, mas a câmera (em especial quando assume o “olhar” do lustre da casa de Acombar) torna as caras de bocas e os olhares caricatos de Carsen e também de Antonio Cantafora, que interpreta seu filho, Dick Acombar, parte da atmosfera trágica.

Só que é Klaus Kinski quem dá o toque final, aquilo que nos faz soltar um suspiro feliz após a última cena. A maldade de Gary Hamilton não é voltada para a pura carnificina. Fazer seus inimigos sofrerem é só o prato de entrada. Ele deixa pistas pelo caminho para que pouco precise puxar o gatilho e, mesmo assim, causar o maior dos estragos. Sua habilidade chega ao ponto de confundir Acombar, que dava como certo que Hamilton iria morrer na prisão. Na cabeça do personagem, mais que um vingador, seu inimigo é um demônio.

Demônio do oeste

Não fica claro em E Deus Disse a Caim se o protagonista é mesmo de outro mundo, seguindo a linha de filmes como Django, O Bastardo, de Sergio Garrone, e O Estranho Sem Nome, de Clint Eastwood. Porém, Margheriti não poupa o espectador do rosto singular de Kinski, que chega a emular o astro da fase muda do terror Lon Chaney e suas mil faces assustadoras em alguns takes.

O vento constante, que anuncia o tornado e faz a cidade se recolher mais cedo, vira quase um coadjuvante auxiliar de Hamilton. Se o lugarejo será varrido pela força da natureza, também vai conhecer o poder do ódio silencioso de um homem. Sem toques de romances ou duelos justos, encontramos um filme que prova que uma boa mistura não precisa ser uma colcha de retalhos como as tramadas por Tarantino. A aposta de Margheriti é na sutileza das referências e no seu próprio passado como realizador de filmes de terror. Algo estranho está no ar, e não termos a certeza do que é que prende nossos olhos na tela. Sustos baratos a cada minuto não é coisa de homem do oeste.

A lenda de que E Deus Disse a Caim seria uma refilmagem de O Pistoleiro de Paso Bravo, única experiência em direção do ator Anthony Steffen, serve mais para puxar assunto do que para ser discutida. Apenas os nomes dos personagens principais são iguais e o sabor é outro, um fast-food para tardes tediosas. Molho encorpado e aroma criativo de verdade a gente encontra no prato do Margheriti.

19/08/25

Palavra e utopia, Manoel de Oliveira, 2000

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Palavra e Utopia por Eduardo Kaneco, 07/01/2021

Palavra e Utopia apresenta o trabalho do padre português Antônio Vieira, famoso pelos seus sermões e pela sua luta solitária em defesa dos índios e negros no Brasil durante o século 17.

O eloquente pregador jesuíta sofreu punições da Santa Inquisição, principalmente após a morte do rei D. João IV, de quem era amigo. Apesar de proibido de falar pelo Tribunal do Santo Ofício, foi livrado da condenação pelo próprio Papa, movido pela boa reputação do padre. Por fim, com D. Pedro no trono, Antônio Vieira decide passar a última fase de sua vida no Brasil.

Palavras acima de imagens

Essencialmente, o filme privilegia mais as palavras do que as imagens. Ou seja, os textos escritos pelo Padre Antônio Vieira são recitados integralmente, ora somente com a narração, ora com a atuação dos atores. Aliás, o protagonista é interpretado por três atores. Na juventude, por Ricardo Trêpa, em idade madura por Luís Miguel Cintra, e, na velhice, por Lima Duarte. Nesse sentido, nos trechos narrados surgem na tela imagens do oceano, quadros ou outras, enquanto nas atuações, a câmera permanece fixa, com alguma variação de planos, enquanto o padre fala no púlpito, em reuniões, ou outros cenários.

Além disso, alguns dos acontecimentos na vida do padre são explicados através da forma escrita, em cartelas. Em suma, quanto ao visual, o destaque fica mesmo para a fotografia de Renato Berta. Nesse quesito, Palavra e Utopia transporta o espectador para o contexto das cenas, muitas delas acontecendo em antigas igrejas com paredes de pedra. Por outro lado, a sobriedade da maioria dos trechos, como a sequência do tribunal de Coimbra, contrasta com a ousadia do soft focus das primeiras cenas com a presença do ator Lima Duarte.

Acima de tudo, Palavra e Utopia é ferramenta para se apreciar o trabalho de Padre Antônio Vieira, principalmente seus sermões. Tal qual afirma o próprio diretor Manoel de Oliveira: “(…) não é um documentário, nem histórico, nem didático, mesmo seguindo uma ordem cronológica. É, antes de mais, uma ficção com todas as premissas que essa ordem pode permitir. Sem perder na precisão histórica, poderá haver um lado didático, na medida em que a ficção se afirma através da autenticidade de documentos que a orientaram, sem se afastar mais do que o rigor o consentiria.” (fonte: “Manoel de Oliveira”, Álvaro Andrade (org), Ed. Cosac Naif, 2005, página 229)

21/08/25

Um estranho no ninho, One flew over the cuckoo's nest, Milos Forman, 1975

50 anos de um verdadeiro clássico: “Um estranho no ninho” (1975)

Por Bruno Yashinishi, 28 de março de 2025

Clássico: “Que segue ou está de acordo com os cânones ou usos estabelecidos ou que é conforme com um ideal; tradicional. Que serve como modelo ou referência; exemplar. Abonado ou autorizado por autores tidos como paradigmas”.

Tais definições conceituais servem como uma luva a uma preciosidade da história do cinema que comemora os seus 50 anos em 2025: “Um Estranho no Ninho” (título original: “One flew over the Cuckoo’s nest”), lançado em 1975 sob a direção de Milos Forman e baseado no romance de Ken Kesey.

A história se passa em um hospital psiquiátrico no Oregon, e a trama vai muito além de um simples drama psicológico, sendo uma análise profunda das relações de poder, do controle e da luta pela liberdade. Randle McMurphy (Jack Nicholson), um criminoso que já cumpriu diversas penas, é transferido para a instituição após alegar estar mentalmente doente, com a esperança de escapar das duras condições de trabalho forçado na prisão. Condenado por um crime de estupro estatutário, McMurphy decide fingir um distúrbio mental para que sua sentença seja cumprida em um ambiente mais tranquilo. Porém, ao adentrar no hospital, ele logo percebe que a realidade ali é bem mais opressiva e perturbadora do que imaginava.

Logo, McMurphy se vê frente a frente com a imponente enfermeira Mildred Ratched (Louise Fletcher), uma figura autoritária e manipuladora que comanda a instituição com mão de ferro. Ratched é uma mulher que, por trás de sua postura fria e controladora, impõe uma rotina rígida e um ambiente de subordinação e repressão. Ela é, de certa forma, o oposto de McMurphy, cujas atitudes irreverentes e questionadoras começam a desafiar não apenas o seu domínio, mas a própria ordem do lugar. A convivência com outros pacientes, como o nervoso Billy Bibbit (Brad Dourif), o paranoico Dale Harding (William Redfield), o excêntrico Martini (Danny DeVito) e o misterioso “Chefe” Bromden (Will Sampson), leva McMurphy a perceber que a luta dele não é apenas contra Ratched, mas também contra as limitações psicológicas e emocionais de todos ali.

À medida que o filme se desenrola, McMurphy se torna um catalisador para a mudança, mostrando aos outros internos que é possível resistir e desafiar o sistema que os oprime. Um dos momentos mais marcantes ocorre quando ele organiza uma pescaria fora do hospital, levando alguns dos internos consigo. Este simples ato de rebeldia revela aos pacientes que eles não são totalmente impotentes diante da situação em que se encontram. No entanto, à medida que McMurphy se aprofunda em sua rebelião, as consequências tornam-se cada vez mais intensas. Quando ele descobre que sua sentença pode ser prorrogada indefinidamente, ele tenta escapar, organizando uma festa de Natal secreta dentro do hospital, subornando um guarda para garantir que tudo saia como planejado. No entanto, a festa acaba em tragédia quando Billy Bibbit, incentivado por McMurphy a superar suas inseguranças, comete suicídio após ser ameaçado pela enfermeira Ratched de contar a sua mãe sobre seu comportamento.

O clímax do filme é devastador: McMurphy, tomado pela dor e pela raiva pela morte de Billy, parte para um confronto físico com Ratched. Essa luta culmina em uma lobotomia, um procedimento que apaga a essência do personagem de Nicholson, anulando sua irreverência e sua força de vontade. Entretanto, é nesse momento de total derrota que Chefe Bromden, que ao longo do filme havia se mostrado surdo e mudo, decide se libertar e escapar. O seu ato de liberdade, simbolizando a vitória sobre o sistema que tenta silenciá-lo, é o ponto culminante da narrativa.

A cena final, profundamente tocante e cheia de simbolismo, transcende o simples desfecho de uma história cinematográfica. Ela é um tributo à força do cinema como arte, deixando uma marca inesquecível em todos que a assistem. Para aqueles que ainda não viram o filme, deixo o convite para que o façam; para os que já o conhecem, fica o incentivo para uma nova visita a esse clássico.

“Um Estranho no Ninho” é um dos poucos filmes vencedores do Oscar que permanece relevante e impactante após tantas décadas. Ganhador das cinco principais estatuetas na cerimônia de 1976, ou seja, Melhor Filme, Melhor Diretor para Milos Forman, Melhor Ator para Jack Nicholson, Melhor Atriz para Louise Fletcher e Melhor Roteiro Adaptado, o filme continua sendo uma das produções mais importantes da história do cinema. Cinquenta anos depois de sua estreia, permanece não apenas como uma obra indispensável, mas como um marco na evolução da narrativa cinematográfica.

23/08/25

Os deuses malditos, La caduta degli dei, Luchino Visconti, 1969

A ler as críticas sobre o filme em: Os deuses malditos: pacto entre nazismo e capitalismo aqui  e Deuses malditos - continuação aqui 

26/08/24

Cidade de Deus: A luta não para, Série de TV, Bruno Costa&Aly Muritiba, 2024 (HBO max)

A série “Cidade de Deus: A luta não para” chegou em 2024 com a árdua tarefa de revisitar um dos maiores marcos do cinema brasileiro.

Sabrina Santos  agosto 26, 2024

A série “Cidade de Deus: A Luta Não Para” chegou em 2024 com a árdua tarefa de revisitar um dos maiores marcos do cinema brasileiro. Disponível na plataforma Max, o drama policial dirigido por Aly Muritiba expande o universo do icônico filme de 2002, trazendo novos olhares sobre uma narrativa que continua impactante mesmo duas décadas depois.

Um Legado Respeitado e Renovado

Diferente de muitas sequências que se apoiam na nostalgia, “Cidade de Deus: A Luta Não Para” respeita o legado do filme original, mas não se prende a ele. A série utiliza a familiaridade do público com os personagens para explorar novas histórias, ampliando o escopo da trama e mergulhando em temas sociais ainda mais complexos. A direção de Aly Muritiba consegue manter a essência do original, ao mesmo tempo em que traz uma nova dimensão à história, especialmente ao focar nas consequências da violência e na vida cotidiana dos moradores da comunidade.

O primeiro episódio nos reintroduz ao mundo de Buscapé, agora um fotógrafo respeitado, mas ainda profundamente marcado pela violência que capturou ao longo dos anos. A trama se passa em 2004, duas décadas após os eventos do filme, mostrando um Rio de Janeiro ainda em guerra, mas com a ameaça das milícias crescendo ao lado do tráfico de drogas. Buscapé retorna à Cidade de Deus como um observador, buscando novas histórias, mas logo se vê envolvido no conflito entre Curió, o novo chefe do tráfico, e Bradock, recém-libertado da prisão.

A série surpreende ao evitar o caminho fácil da nostalgia. Em vez disso, aprofunda-se em temas como o impacto da violência nas vidas daqueles que tentam sobreviver em meio ao caos. A inclusão de novos personagens, especialmente femininos, oferece uma nova perspectiva sobre a comunidade, trazendo à tona vozes que estavam em segundo plano no filme original.

Um Visual que Reflete Maturidade

Visualmente, a série se destaca por sua fotografia mais sóbria e intimista, contrastando com a estética frenética do filme de 2002. Essa escolha reflete a maturidade dos personagens e da narrativa, permitindo uma exploração mais profunda das complexidades emocionais e sociais da comunidade. As cores e texturas da favela são capturadas com sensibilidade, contribuindo para a atmosfera densa e realista que permeia cada cena.

27/08/25

Fúria primitiva, Monkey man, Dev Patel, 2024 (HBO max)


Fúria primitiva por Eduardo Kaneco, 17/05/2024 (HBO max)

Em Fúria Primitiva, o ator de sucesso Dev Patel comete erros de estreante na direção de seu primeiro longa. Autor também da história, co-roteirista e protagonista, Patel quis colocar ideias demais dentro de um só filme.

Talvez como resposta a Danny Boyle, que o dirigiu em Quem Quer Ser um Milionário? (Slumdog Millionaire, 2008), Dev Patel aqui se apropria do estilo visual deste cineasta britânico. Ou seja, muita movimentação de câmera, montagem ágil, e uso de vários planos com diferentes ângulos. Na segunda parte, essa influência torna o filme emocionante, mas na primeira, muitas vezes cai no maneirismo meramente decorativo. Por exemplo, a sequência do furto da carteira, que passa rapidamente de mão em mão para despistar… ninguém! Faltou aí um plano, pelo menos, com uma pessoa correndo atrás do objeto que foi levado.

Ideias demais

Na trama, o personagem de Dev Patel viu sua mãe ser assassinada covardemente pelo delegado de polícia Rana, numa ação de desocupação violenta de uma área na mata, a mando do falso líder espiritual Baba Shakti. Agora, ele tenta se infiltrar no hotel de luxo da chefe do crime Queenie, para executar sua vingança. Enquanto isso, ganha a vida como Kong, um competidor mascarado que sempre entrega suas lutas, clandestinas, por dinheiro.

Da mesma forma, como efeito de ideias demais para um filme só, estão os simbolismos rasos. No hotel, o protagonista adota o nome Bobby (adotaremos esse nome neste texto), que é uma marca de alvejante. Esse produto, eficaz na limpeza, já tinha sido mencionado por ele quando fez seu pedido de emprego para Queenie. Na parte final do filme, Bobby lava sua máscara de macaco em alvejante, antes de iniciar seu inapelável processo de limpeza para se vingar da corja que levou sua mãe à morte.

Outra metáfora simplória é a água imunda do rio da cidade, onde ele cai após ser mortalmente ferido. Após um corte seco, entra a imagem de sua infância num riacho límpido na floresta onde vivia com a mãe até o delegado Rana tocar fogo nas suas casas para ali construir uma fábrica pertencente a Baba Shakti.

John Wick indiano

Por outro lado, Fúria Primitiva não esconde a influência de John Wick, que é até mencionado na trama. Mas Bobby só ganha a habilidade similar à de Wick na metade final da história, justamente quando o filme melhora. Na primeira parte, o protagonista não é nem um grande lutador nos ringues clandestinos, nem um adversário à altura para enfrentar o delegado Rana, quando consegue a oportunidade de se vingar.

O próprio diretor Patel tampouco está preparado para exercer sua função, nesta primeira parte. Como não pode mostrar um herói poderoso, os combates não empolgam. O roteiro também está perdido, dá voltas e voltas para desenrolar esse plano de vingança visivelmente capenga. Não fica claro se a overdose que leva o inimigo ao banheiro foi acidental ou se foi provocada pelo protagonista. E, ademais, deixa dúvidas sobre a participação do personagem Alphonso, o malando que, de forma não muito convincente, ajuda o herói por dinheiro, abrindo mão de seu trabalho para Queenie, que rende muito mais. Por fim, é inexplicável que Alphonso entre no seu carro durante a fuga de Bobby, desta forma assumindo sua participação no atentado.

A virada

Contudo, o espectador que resistir a essa primeira parte sairá recompensado do cinema. Isso porque o enredo melhora quando um grupo de pessoas trans, perseguidas pelos mesmos inimigos de Bobby, salva o herói da morte certa. E o processo de curas dá origem aos poderes aumentados do protagonista. É inteligente deixar a opção de acreditar numa solução espiritual ou racional. O herói inala um pó de uma árvore especial no templo onde o grupo está, e em seguida seu peito se abre e inicia uma sequência de fantasia, junto com imagens justapostas dele com ilustrações do deus macaco Hanuman. Mas, o filme também mostra o treinamento de Bobby, que aprimora suas habilidades ao aprender a golpear com ritmo, acompanhando os tambores de um dos membros dessa comunidade – uma cena melhor imaginada do que realizada, mas ainda assim intrigante.

Após o treinamento, a coisa finalmente engrena. Bobby volta ao ringue, desta vez, não para entregar a luta, mas para derrotar o adversário habitual, e um lutador gigante, numa clara referência a Bruce Lee em Jogo da Morte (Game of Death, 1978). Então, chega o momento do grande embate final. Patel, como ator e diretor, pode finalmente se dar a liberdade de tornar o seu personagem tão letal quanto John Wick. Assim, Bobby invade o hotel de luxo liquidando todos os oponentes a rodo. As cenas de ação são emocionantes e com um visual caprichado. Especial destaque vai para os trechos com as silhuetas dos lutadores à frente de um fundo iluminado. Tem o senão da intervenção surpresa da prostituta que se afeiçoa a Bobby. Um relacionamento breve demais (eles nem chegam a fazer sexo, como costuma acontecer) para justificar esse ato.

Melhor no trailer

Fim da sessão, bate uma frustração porque Fúria Primitiva parecia melhor no trailer. O motivo é evidente: a primeira metade do filme realmente não empolga. Dev Patel não soube o que fazer com um herói em construção, sem poderes. E essa hora inicial parece interminável, deveria ser mais enxuta, o suficiente apenas para apresentar a situação atual do protagonista antes da transformação. Depois, ganha fôlego, quando cai na pancadaria bem realizada, originada no desejo de vingança. E, secundariamente, no clamor por mudanças políticas e sociais na Índia. Mas, no geral, é uma estreia promissora de Patel na direção – com um roteiro melhor, é provável que realize um filme superior.

30/08/25

O Corte, Le couperet, Costa-Gavras, 2005

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Crítica | O Corte (2005) por Frederico Franco 30 de maio de 2024

Eliminando concorrentes.

As primeiras cenas de O Corte lançam o espectador despreparado diretamente em uma sequência frenética de ações: um assassinato à sangue frio em uma chuvosa noite, seguido por uma gravação da confissão por parte do criminoso. Nesse ponto, ele não é ninguém, sequer se sabe seu nome; é, até aqui, apenas um assassino desprezível. Esse início sufocante é o que determina o ritmo geral do filme impresso pelas lentes implacáveis de Costa-Gavras. Tanto que, logo em seguida, voltando no tempo, somos rapidamente apresentados ao protagonista para além de seus crimes. Bruno Davert é um homem como qualquer outro: um marido, pai de duas crianças e funcionário exemplar da mesma empresa há quinze anos. Antes bandido, agora surge certa identificação em relação ao personagem principal – nesse momento, é muito difícil, inclusive, relacionar essa pacata figura ao crime cometido. E essa empatia sentida por Bruno não para por aí. Repentinamente, depois dos quinze anos de serviços prestados, sua empresa o dispensa, deixando-o à deriva, perdido, sem rumo profissional. Portanto, agora, mais proximidade: trata-se de um proletário, uma vítima do vil sistema capitalista. Então, a partir desse momento, Bruno cidadão pacato e Bruno assassino começam a ser aproximados um do outro. 

É consenso de que um dos pilares da manutenção da sociedade do capital é colocar o proletário contra o proletário, a fim de desviar a raiva e a violência do próprio sistema. Competição por vagas de trabalho, criar uma sensação de falsa positividade em relação ao capitalista e alimentar ataques a seus pares de classe social: pequenas ações criadas pela burguesia para a sedimentar com mais força suas principais arestas de controle da massa. O Corte, especificamente, trabalha com tais questões para além da esfera do discurso, explorando conflitos físicos, braçais, entre o proletariado. Tudo começa quando, em retrospecto, Bruno Davert, buscando uma nova entrada no mercado de trabalho, resolve assassinar concorrentes que, assim como ele, pleiteiam uma importante vaga – aqui os dois Brunos já podem ser enxergados com mais proximidade. Com os primeiros assassinatos, também segue o ritmo elétrico apresentado nas primeiras cenas. A é câmera inquieta, poucas vezes descansa ou se encontra parada, em um constante estado de paranoia, característica já vista em outros trabalhos de Costa-Gavras, como em Estado de Sítio e Z. As mortes são rápidas, rasteiras, sem floreios técnicos: tiros errantes, tortos. Bruno claramente não é um assassino treinado ou algo do gênero. Trata-se, aqui, de um civil com nenhuma experiência com armas de quaisquer tipos. José García, intérprete do protagonista, entrega, nessa altura do filme, um personagem inseguro, quase sufocado pela própria decisão de cometer os crimes – mãos trêmulas, fala errante, hiperventilando. Enquanto se mantém esse modus operandi errante, amador, O Corte é um deleite dramático e, sobretudo, de tons cômicos. 

Por mais que exista esse princípio de comicidade no amadorismo de Bruno Davert, não se pode deixar de lado que o cinismo com o qual os crimes são filmados traz ao final das cenas uma espécie de melancolia. Traz tristeza reparar que toda a energia disposta pelo protagonista para cometer os assassinatos é em vão. Matar seus pares não faz dele mais forte que o sistema, muito pelo contrário: é isso que o faz ser vítima do sistema. O que Bruno faz com seus concorrentes, alguém fará com Bruno. É disso que se alimenta o capitalismo, é assim que ele age. Direciona-se essa vontade de potência para o lado errado. O proletariado é visto, pelos olhos do sistema, como objetos, máquinas, corpos inanimados, coisas descartáveis. Existe, nessa dinâmica, um certo desprezo pela vida humana que é diretamente refletido pela câmera distante de Costa-Gavras; pouco se vêem os corpos e sua imagem depois de mortos não é evocada. A própria participação da polícia no filme parece ser protocolar, haja visto que os oficiais pouco parecem fazer força para solucionar o enigma de quem estaria matando concorrentes a uma vaga de emprego.

Passada a primeira hora do filme, percebe-se uma mudança razoavelmente drástica no comportamento de Bruno. Some a figura amadora, inquieta, dando espaço para uma maior sobriedade do personagem. É como se uma chave interna fosse girada fazendo com que toda sua personalidade tenha mudado. Essa transição, de certa forma, é até radical demais, parecendo algo aleatório, muito repentino. Parece uma transição à Walter White, mas sem tanta cautela narrativa: apenas acontece sem nenhum incidente incitante muito claro. É nessa maré, contudo, em que é expressa mais um pouco da melancolia presente na dinâmica entre Bruno e suas vítimas. Ao interpelar um de seus alvos, surge um diálogo franco, honesto – e, de certa forma, comovente – entre o protagonista e outro concorrente à tão sonhada vaga de trabalho. É aqui, então, que há uma hesitação por parte do protagonista. Ao entrar em contato com a extrema vulnerabilidade do outro, reencontramos aquele Bruno de antes dos assassinatos, aquele que, no princípio, surgiu como elemento de identificação para com o público. No final das contas, o mais interessante é compreender o personagem de José García através de um olhar dialético, fugindo da dicotomia e aceitando suas contradições internas. Talvez exista apenas um Bruno que consiga internamente abarcar características diametralmente opostas. É o mesmo protagonista que mata e que, ao mesmo tempo, é um proletário como qualquer outro.

É verdade que, com a tomada da faceta mais sóbria de Bruno, cai o ritmo de O Corte. Aquela eletricidade presente na primeira hora do filme é deixada de lado. Os ataques deixam de possuir um caráter impensado ou aleatório, sendo cada vez mais programados, mudando, inclusive, a arma do crime a cada assassinato. Então, a eletricidade imposta por Costa-Gavras e por seu personagem amador some. Os crimes, antes, davam ao cotidiano de Bruno um algo a mais, um drama que ateava fogo em sua alma; depois disso, seus atos criminosos parecem mais eventos protocolares, um trabalho. Anteriormente, toda essa novidade causava uma grande excitação, mas agora o protagonista age com programação e rigor de um robô. Por mais que a queda do ritmo tenha justificativa na transformação de Bruno, não se pode deixar de dizer que o modo errático de Bruno, além de mais elétrico, também funcionava como elemento dramático mais potente.

Afinal, os fins justificam os meios? pergunta ao fim da obra um dos filhos de Bruno. É óbvio que, ao longo do filme, essa indagação inevitavelmente permeia o imaginário do espectador – é algo quase implícito à totalidade do filme, mas parece que Costa-Gavras gostaria de deixar esse embate ético claro e cristalino para o público. Justificam ou não? Dentro da atuação capitalista apresentada pelo diretor, provavelmente não. Bruno segue o mesmo proletário do início do filme. As regras do jogo seguem a mesma, apenas certas peças foram alteradas. E mesmo assim, não foram tão alteradas a ponto de surtirem grandes mudanças. Ao final de O Corte, vence o capitalismo ao conseguir manter proletário contra proletário.

31/08/25
Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente, Minissérie TV, Marcelo Gomes&Carol Minêm,2025 (HBO max)


Ler Pílulas 34, 12- Sapatão aqui 

'Máscaras de Oxigênio' é a homenagem que o Brasil devia às vítimas da Aids
Minissérie da HBO Max com Johnny Massaro mergulha no final dos anos 80 para relembrar o descaso do governo com a epidemia

Thiago Stivaletti, F5 Folha, 1º setembro 2025

Estamos em um período de ouro para as minisséries brasileiras. Depois de "Pssica" na Netflix, a HBO Max estreou no último domingo "Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente", história comovente dos comissários de bordo que traficaram AZT ao Brasil para ajudar as vítimas na Aids no final dos anos 80, quando o governo não esboçava nem um rascunho de política pública para a epidemia. A minissérie estrelada por Johnny Massaro é imperdível —e não merece ser vista apenas pela comunidade LGBTQIA+.

Massaro é Fernando, chefe de cabine de uma companhia aérea fictícia, a Fly Brasil, que logo no primeiro episódio descobre ser portador do HIV. Com a ajuda de sua médica (Hermila Guedes), ele articula um esquema para trazer AZT, o remédio mais eficaz da época para tratar a doença, em larga escala para ajudar a quem precisasse. O AZT chegou aos EUA em 1987, mas só foi autorizado pelo Ministério da Saúde no Brasil quatro anos depois – um intervalo imenso que matou milhares de vidas por aqui.
Fernando faz isso com a ajuda de sua melhor amiga, a aeromoça Léa (Bruna Linzmeyer), e outra colega, Yara (Eli Ferreira). Em paralelo, vemos Raul (Ícaro Silva), um dos administradores da boate Paradise, grande point de gays e transexuais em Copacabana, local que vê a pandemia chegar com força entre seus membros.

TÚNEL DO TEMPO MUSICAL

Por que ver a série dirigida por Carol Minêm e Marcelo Gomes (do filme cult "Cinema, Aspirinas e Urubus")? Primeiro, porque ela surpreende no tom: em vez de ser um drama pesado sobre um momento terrível, especialmente para a comunidade LGBTQIA+, a história em cinco episódios é uma grande ode à vida e ao que melhor se produziu de música na época – o espectador mergulha em grandes hits de Cazuza, Gretchen, Marina Lima e outros ídolos da época.

Mas há outros motivos. "Máscaras" não deixa de mostrar que os gays, queers e transexuais foram os mais afetados pela epidemia nos anos 80 e 90 – epidemia agravada pela campanha de desinformação do Ministério da Saúde do governo Sarney, com anúncios pavorosos em plena TV aberta. Em março de 1990, Collor assumiu o governo e não mudou muito no tratamento da Aids.

Os roteiristas Patricia Corso e Leonardo Moreira costuram com habilidade outros personagens que mostram as diversas vítimas da época, do adolescente que contrai o vírus em transfusão de sangue à dona de casa religiosa que nem desconfiava da vida extraconjugal do marido. Andréia Horta faz uma pequena participação relembrando Sandra Bréa, atriz que brilhou em novelas como "O Bem-Amado" (1973) e "Ti-Ti-Ti" (1985) e morreu em decorrência do vírus em 2000.

O quinto e último episódio é focado na luta política da comunidade gay pelo reconhecimento do governo e a implementação de políticas públicas. A coisa mais comovente de ver essa história recontada 35 anos depois é perceber que essa luta não foi em vão. Em 1996, o governo de Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei que estipulou acesso gratuito aos antirretrovirais no Brasil. Hoje o SUS oferece testagem, tratamento, PREP e PEP gratuitamente. Uma conquista da qual não se pode abrir mão.

PRESENÇA RARA NA TV

"Máscaras de Oxigênio" preenche uma grande lacuna na nossa TV, já que foram pouquíssimas as produções a abordarem o tema da Aids. Em 1991, a Globo lançou "O Portador", série em oito episódios que tinha como protagonista um homem hétero, Léo (Jayme Peryard), que contraía o vírus numa transfusão de sangue. O efeito da epidemia na comunidade gay aparecia só lateralmente, por um personagem coadjuvante, Aurélio (Edwin Luisi), cujo namorado estava em fase terminal da doença.
Em 2000, a sétima temporada de "Malhação" botou em cena uma de suas personagens mais memoráveis, Érica (Samara Felippo), jovem de vinte e poucos anos que descobria ter HIV. Não foi pouca coisa ver o tema tratado com clareza ao público jovem em plena faixa das cinco horas da TV aberta.

E para quem gostar da minissérie da HBO Max, deixo minhas últimas indicações: veja também "Os Primeiros Soldados" (2022), belíssimo filme de Rodrigo de Oliveira sobre o início da Aids, também estrelado por Johnny Massaro, no Globoplay Premium/Canal Brasil; e o francês "120 Batimentos por Minuto", sobre o Act Up, movimento político por apoio no combate à Aids naquela mesma época, disponível gratuitamente no Sesc Digital.

01/09/25

Réquiem para matar, Requiescant [descanse em paz], Carlo Lizzani, 1967

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Artistas: Lou Castel  & Mark Damon  & Pier Paolo Pasolini 

Requiescant (Lou Castle) é um menino mexicano que vê seus pais serem assassinados em um massacre feito pelo sanguinário George Bellow Ferguson (Mark Damon). Depois de ficar órfão, o menino é adotado por um pastor católico que o educa desde pequeno no uso de armas. À medida que Requiescant se torna adulto, ele tentará reconquistar sua irmã adotiva, que foi tirada dele quando seus pais morreram. O destino vai querer que sua irmã vá parar nas mãos de Ferguson, provocando nele um desejo de vingança que ele jamais imaginou. Adorocinema 












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