sábado, 25 de abril de 2020

Uma república profanada

Detalhe de brasão antigo da República sem limpeza no Palácio Rio Negro 
Imagem: Ricardo Borges/UOL

A necropolítica. No campo, na floresta, na periferia. Em nome da família, crimes são cometidos. Os coveiros de nossa política externa também já fizeram o seu trabalho, enterrando as pontes construídas em cada gesto.

Saúde? Sem pânico, nem dinheiro, nem quarentena e nem pandemia. Vai passar. De pessoa a pessoa.

Na Educação, nem pensar.

Justiça? Com limites. Abusos? Diariamente e sob os olhares de Deus.

Caçarolas, panelas, frigideiras e outros utensílios de cozinhas se fazem ouvir. Seria algum rito para espantar ecos de um passado?

Cúmplices abandonam as naus em chamas, e não hesitam em continuar a explorar a ignorância alheia até mesmo quando batem a porta. 

Não é apenas o gabinete que é de ódio. O discurso é repleto de morticínio. Morte de uma república profanada. Morte de poderes vulgarizados. Uma imagem destruída, ridicularizada. Um futuro sequestrado numa sucessão de sonhos afogados.

Como não pensar em Flávio Rangel e Millôr Fernandes que, em Liberdade Liberdade, reproduzem uma cena em que o discurso da morte se confronta com uma alma inconformada de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca.

Seu universo e sua universidade tinham sido tomados por falangistas. Transcrevo com os nomes dos atores o trecho da peça teatral que, em 1966, seria alvo da censura do governo militar, o mesmo regime aplaudido e reverenciado pelo atual presidente brasileiro:

"No Dia da Raça, uma cerimônia reuniu as mais importantes figuras do poder fascista. E o general Milan Astray, fundador com Franco, da Legião Estrangeira, discursava:

O militar, na voz do ator Oduvaldo Vianna Filho:

O fascismo vai restaurar a saúde de Espanha! Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
(Fazendo a saudação fascista.) Viva a morte!

VIANNA
Espanha!

CORO
Unida!

VIANNA
Espanha!

CORO
Forte!

VIANNA
Espanha!

CORO
Grande!

VIANNA
Viva la muerte!

CORO
Viva!

Caberia a Paulo Autran assumir o papel de Unamuno.

AUTRAN
Senhores!

Senhores! Meu nome é Miguel de Unamuno. Todos me conhecem. Sabeis que sou incapaz de me calar. Há momentos que calar é mentir. Desejo comentar o discurso - se é possível empregar esse termo - do general Milan Astray, aqui presente. Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato: "viva a morte". E eu que passei minha vida dando forma a paradoxos, devo declarar-vos, aos setenta e dois anos, que um tal paradoxo me é repulsivo.

O General Milan Astray é um aleijado. (Reação do coro.)

Não há nesta afirmativa o menor sentido pejorativo. Ele é um inválido de guerra; Cervantes também o era. Infelizmente há na Espanha neste momento um número muito grande de aleijados, e em breve haverá um número muito maior, se Deus não vier em nosso auxílio. Causa-me dó pensar que o general Milan Astray esteja formando a psicologia da massa. Um aleijado destituído da grandeza espiritual de um Cervantes tende a procurar alívio causando mutilações em torno de si.

VIANNA
Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
Viva!

VIANNA
Viva a morte!

CORO
Viva!

AUTRAN
Senhores! Este é o templo da inteligência! E eu sou seu sacerdote mais alto. Profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque tendes a força bruta. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário possuir o que vos falta: razão e direito em vossa luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito.

VIANNA
(Com ar triunfante)
Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
Viva a morte!

VIANNA
Viva a morte!

CORO
Viva!

 Jamil Chade
UOL, 25/04/2020

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