sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Como nossos pais - o filme

Como nossos pais, 2017, de Laíz Bodanzky, é o filme da hora.


É a estória de Rosa (Maria Ribeiro) e seus conflitos familiares. Um marido, Dado (Paulo Vilhena), negligente à rotina estafante da esposa e a mãe, Clarisse (Clarice Abujamra, como sempre, impecável). Rosa, frustrada com suas atividades profissionais múltiplas, escreve uma peça de teatro e procura pessoas do meio para sua montagem. O tema da peça tem a ver com a estória de Rosa: inicia com o fim da peça Casa de bonecas de Ibsen, 1879,  depois que a personagem Nora rompe com o marido e sai de casa. O que Nora fará depois do rompimento?

O filme deixa no ar o final do casamento Rosa / Dado.

A cena final da peça (em três atos) de Ibsen é antológica. A reprodução desta cena está no final deste post. Também uma entrevista da Maria Ribeiro à Carta Capital.
 
Brasil em Cena COMO NOSSOS PAIS - Entrevista com Maria Ribeiro

Maria Ribeiro está em praticamente todas as cenas de Como nossos pais, quarto longa metragem dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, que estreia nesta semana no Brasil. O filme conta a história de Rosa, mulher de 38 anos que se desdobra para ser profissional, mãe e esposa, lidando com conflitos familiares, desejos e frustrações pessoais.
Poucos dias antes da estreia nacional, Maria recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado por esta atuação. “É impressionante o número de mulheres que vem me dizer o quanto se identificaram com Rosa, e eu acho que ela é mesmo um símbolo da mulher do século 21”, diz Maria nesta entrevista exclusiva ao Cinema em Cena.

Cinema em Cena: Como nossos pais é um autêntico estudo de personagem no qual Rosa, que você interpreta, está praticamente em todas as cenas, e sempre em conflitos. Como foi o processo de composição dessa personagem?

Maria Ribeiro: A Rosa é uma personagem muito maravilhosa. Quando eu recebi o roteiro, a personagem já era muito rica, e eu sempre quis falar dessas questões. É um tema que me é muito caro, eu tenho prazer nesse cinema de comportamento: Domingos de Oliveira, Woody Allen, a própria Lais, um cinema meio dentro de casa, que tem momentos supostamente não tão grandiosos, mas que são grandiosos para quem está vivendo. Rosa é muito próxima de mim, das minhas amigas, ela traz temas que a gente está o tempo inteiro falando: como é que a gente vai dar conta de tudo, como é que você vai evoluir a sua relação com a sua mãe quando ela envelhecer. E, também, como não repetir com os seus filhos o que você recebeu dos seus pais e não concorda. Então, foi realmente um mergulho absoluto. Conversei com todas as pessoas que eu pude, as que tinham relações mais de conflito com a mãe. O tempo inteiro, eu sabia que ter esse personagem era como ter uma joia na mão e que, se eu não atrapalhasse, seria legal! 

Cinema em Cena: Os diálogos nesse filme transmitem muita naturalidade. Houve algum tipo de criação coletiva nos ensaios, ou já durante o set, que tenha sido incorporado ao roteiro ou ele já era exatamente o que a gente vê na tela?

Maria Ribeiro: Nunca é, né? A gente sempre coloca na nossa boca, dá uma adaptada. Mas o roteiro já era muito bom. Há uma cena, na praia, na qual Rosa e Pedro (Felipe Rocha) estão falando sobre hábitos machistas, e eu achei que ela poderia citar um exemplo, como o de que o homem sempre quer dirigir, quando está com uma mulher. Aquilo brotou na hora, fazia sentido e incorporamos. Mas o diálogo já era certeiro, tinha uma construção de naturalidade muito grande, que está evidente na tela.

Cinema em Cena: Você acha que a Rosa, é a mulher do século 21, por excelência? Ela define esse comportamento da mulher?

Maria Ribeiro: Eu acho que sim, porque é impressionante o número de mulheres que vêm falar comigo e diz: “a Rosa, sou eu, sou eu!” Estou até querendo criar a hashtag #somostodosRosa, porque realmente é impressionante a identificação das mulheres com essa personagem (risos).

Cinema em Cena: Por outro lado, você acha que os homens vão ter algum tipo de reserva com essa história, não querendo se identificar com o Dado, marido da Rosa, vivido pelo Paulo Vilhena, justamente por ele ser mais passivo?

Maria Ribeiro: Eu acho que não, porque o Paulo defende muito bem o personagem dele. O Dado não é um cara do mal, é alguém que tem uma postura de “eu tô tentando”. Ele tem um passivo, uma questão cultural que, afinal, não é culpa dele. Até agora, a experiência que eu tenho tido, tanto na Europa, quanto no Brasil, como durante o Festival de Gramado, é dos homens gostarem muito do filme e agradecerem. Um filme desses, com essa história, contada de uma maneira tão verdadeira, não é para machucar, a gente só quer equilibrar um pouco mais para tirar um pouco o peso de cima das mulheres.

Cinema em cena: É uma percepção correta entender que, como a personagem Nora, da peça de Ibsen, citada no filme, Rosa também tem um final aberto?

Maria Ribeiro: Eu acho que sim, e eu gosto de um cinema que faz perguntas, mais do que dá respostas. O espectador pode pensar o que quiser, e eu acho isso incrível. Eu acho que é generoso e conta com a inteligência do espectador, para não ficar aquela coisa mastigada.


CENA XV, 3º ato, Casa das bonecas, Henrik Ibsen.
Tradução: Karl Erik Schollhammer e Aderbal Freire-Filho

(Torvald dá umas voltas perto da porta.) Ah, como nossa casa é bonita, quente... Aqui você está abrigada. E eu vou cuidar de você como uma pomba que eu salvei das garras do falcão. Vou acalmar seu pobre coração palpitante. Pouco a pouco vai passar, Nora, acredite em mim. Amanhã você vai ver tudo isso com outros olhos. Logo tudo vai ser como antes. Não vou mais precisar repetir que eu lhe perdoei. Você mesma vai sentir. Como você pode pensar que me passe pela cabeça rejeitar você ou mesmo lhe censurar? Ah, você não conhece os verdadeiros sentimentos de um homem, Nora. Nada é tão doce e prazeiroso para o homem quanto saber que lá dentro dele perdoou sua esposa...e que perdoou de todo coração, sinceramente. Porque ai ela se torna sua propriedade duplamente. É como se ele a trouxesse ao mundo de novo, e alguma maneira ela passa a ser tanto sua mulher como sua filha. Assim será você de agora em diante para mim, minha criaturinha indefesa e perdida. Não tenha medo de nada, Nora. Seja apenas franca comigo e eu serei sua vontade e sua consciência... O que é isso? Não vai dormir? Você trocou de roupa?
NORA- (Vestida em sua roupa normal.) É, Torvald, troquei de roupa.
HELMER – Mas, Nora, querida...
NORA- (Olhando seu relógio.) Não é tão tarde. Sente aqui, Torvald. Nós dois precisamos muito conversar. (Ela se senta de um lado da mesa.)
HELMER – Nora, o que é isso? Essa expressão dura?
NORA – Sente-se, vai demorar. Tenho muitas coisas a lhe dizer.
HELMER – (Senta-se à mesa diante dela.) Você me assusta, Nora. Eu não lhe entendo.
NORA – É isso mesmo. Você não me entende. E eu também nunca lhe entendi, até hoje à noite. Não, não me interrompa, apenas escute o que vou dizer. Isso é um acerto de contas Torvald.
HELMER – O que você quer dizer com isso?
NORA- (Após um breve silêncio.) Estamos sentados frente a frente. Isso não chama sua atenção?
HELMER – Por que chamaria?
HELMER – Estamos casados há oito anos. Não se dá conta que é a primeira vez que nós dois, você e eu, marido e mulher, conversamos seriamente?
HELMER – Seriamente...O que quer dizer?
NORA- Em todos esses oito anos... sim, até mais...desde o nosso primeiro encontro, nunca trocamos uma palavra séria sobre coisas sérias.
HELMER – Você acha que eu deveria envolver você nas minhas
preocupações, e ainda mais sabendo que você não podia fazer nada?
NORA – Eu não falo das suas preocupações. O que eu digo é que nunca
falamos a sério, procurando chegar juntos ao fundo das coisas.
HELMER – Mas, Nora, meu amor, que importância isso teria pra você?
NORA- É essa a questão. Você nunca me entendeu. Fui tratada tiranicamente Torvald. Primeiro por papai, e depois por você.
HELMER – Por nós dois...? Os dois que lhe amaram mais do que ninguém no mundo?
NORA – (Ela nega com a cabeça.) Vocês nunca me amaram, apenas achavam divertido namorar comigo.
HELMER – Nora, o que você está dizendo?
NORA- A pura verdade, Torvald. Quando eu estava na casa de papai, ele me dizia todas as suas opiniões e então essas eram as minhas opiniões. E se tivesse outras eu escondia, porque ele não ia gostar. Ele me chamava de sua criança boneca e brincava comigo, como eu brincava com as minhas bonecas. Depois vim morar na sua casa...
HELMER – Que palavras você usa para falar do nosso casamento!
NORA – (Imperturbável.) Quero dizer que passei das mãos do papai para as suas. Você arrumou tudo segundo seu gosto e eu passei a ter o mesmo gosto que o seu, ou fingi que tinha, não sei bem... Acho que era um pouco as duas coisas, ora uma, ora outra. Quando eu olho agora, me parece que vivi aqui como vive um pobre...que, de seu, mal tem a roupa do corpo. Eu vivi das gracinhas que fazia para você, Torvald. Era o que você queria. Você e papai cometeram um grande pecado contra mim. É de vocês a culpa de que eu nunca tenha sido alguém.
HELMER – Nora, como você é injusta e ingrata! Não foi feliz aqui?
NORA - Não, nunca fui. Eu achava que era, mas nunca fui.
HELMER – Não foi? Não foi feliz? Nunca?
NORA – Não, eu era alegre, só isso. E você sempre foi muito gentil comigo. Mas nosso...lar nunca foi mais do que um quarto de brinquedos. Aqui fui sua esposa boneca, assim como era a criança boneca na casa do papai. E nossos filhos também foram minhas bonecas. Eu achava divertido quando você brincava comigo, assim como eles achavam divertido quando eu brincava com eles. Esse é o nosso casamento, Torvald.
HELMER – Não deixa de ter alguma verdade no que você diz, apesar dos exageros. Mas daqui por diante tudo vai mudar. Acabou-se o tempo da brincadeira, agora vem o tempo da educação.
NORA- Educação de quem? A minha ou das crianças?
HELMER – Tanto a sua quanto a das crianças, Nora, querida.
NORA – Ah, Torvald, você não é o homem indicado para me ensinar a ser uma esposa verdadeira.
HELMER – E é você quem diz isso?
NORA- E eu, como ia educar meus filhos sem estar preparada?
HELMER – Nora!
NORA- Você não me disse isso ainda há pouco? Que não se atrevia a me confiar essa tarefa?
HELMER – Disse isso num momento de exaltação, não leve à sério.
NORA- Mas você tinha toda a razão. Eu não sou capaz dessa tarefa. Há umaoutra tarefa que precisa ser cumprida antes. Tenho que educar a mim mesma. E você não é o homem indicado para me ajudar. Tenho que fazer isso sozinha. E por isso... eu vou lhe deixar.
HELMER – (Levanta-se num salto.) O que foi que você disse?
NORA – Preciso estar só para poder me conhecer e conhecer tudo que me rodeia. Por isso não posso mais continuar com você.
HELMER – Nora! Nora!
NORA – Quero sair daqui agora. Posso passar esta noite na casa de Cristina.
HELMER – Você está louca! Não vou deixar, eu lhe proíbo.
NORA – De agora em diante você não pode me proibir nada. Levo o que é meu. Não quero nada seu, nem agora, nem depois.
HELMER – Que loucura é essa?
NORA- Amanhã viajo para minha casa... Quero dizer, para o lugar de onde vim. Lá será mais fácil para mim achar algum trabalho.
HELMER – Cega! Cega e inexperiente.
NORA – Quero ganhar experiência, Torvald.
HELMER – Abandonando seu lar, seu marido e seus filhos. Não pensa no que as pessoas vão dizer?
NORA – Não quero me importar com isso. Só quero saber do que é
importante para mim.
HELMER – Ah, é revoltante. Como pode trair seus deveres mais sagrados?
NORA – Quais são os meus deveres mais sagrados?
HELMER – E sou eu quem precisa lhe dizer? Não serão os seus deveres para com o seu marido e seus filhos?
NORA- Eu tenho outros deveres tão sagrados como esse.
HELMER – Não, não tem. Que deveres?
NORA – Os deveres para comigo mesma.
HELMER – Você é, em primeiro lugar, esposa e mãe.
NORA – Já não acredito nisso. Em primeiro lugar eu sou um ser humano, assim como você... Ou pelo menos vou fazer um esforço para ser. Sei que a maioria lhe dará razão, Torvald. E sei que essas coisas estão escritas nos livros. Mas eu não posso mais me satisfazer com o que a maioria diz e com o que está escrito nos livros. Eu preciso pensar por mim mesma sobre as coisas e tentar compreendê-las.
HELMER – Você não pode descobrir quem é no seu próprio lar? Você já não tem um guia infalível nessas questões? Você não tem a religião?
NORA – Ah, Torvald, eu já nem sei bem o que é a religião.
HELMER – Como não sabe?
NORA – Só sei aquilo que o pastor Hansen me ensinou quando me preparei para a crisma. Ele dizia que a religião “é isso”, a religião “é aquilo”. Quando estiver longe de tudo e estiver só, quero pensar sobre esse assunto também. Quero saber se o que o Pastor Hansen disse é verdade ou, pelo menos se é verdade para mim.
HELMER – Ah, é inacreditável, uma mulher tão jovem como você... Mas se a religião não serve para lhe orientar, deixe-me pelo menos sacudir sua consciência... Pelo menos algum senso moral você tem? Ou não? Diga, também não tem?
NORA – Talvez seja melhor nem responder, Torvald. Nem saberia. Estou totalmente confusa com essas coisas. Só sei que tenho uma opinião sobre isso completamente diferente da sua. Também fiquei sabendo agora que as leis são diferentes do que eu pensava. E que essas leis sejam justas, não entra na minha cabeça de jeito nenhum. Uma mulher não tem o direito de poupar seu velho pai morrendo, nem de salvar a vida do seu marido? Não posso acreditar.
HELMER – Parece uma criança falando. Você não entende a sociedade em que vive.
NORA – Não, eu não entendo. Mas agora quero procurar entender. Preciso saber quem tem razão: a sociedade ou eu.
HELMER – Você está doente, Nora. Você está com febre. Eu acho que você está quase perdendo o juízo.
NORA – Nunca me senti tão lúcida e segura como esta noite.
HELMER – E lúcida e segura você abandona seu marido e seus filhos?
NORA – É o que vou fazer.
HELMER – Então só há uma explicação.
NORA – Qual?
HELMER – Você não me ama mais.
NORA – Sim, é exatamente isso.
HELMER – Nora! Como você pode dizer isso?
NORA – Ah, eu lamento muito, Torvald, porque você sempre foi muito bom para mim. Mas eu não posso fazer nada contra isso. Eu não o amo mais.
HELMER – (Esforçando-se para manter-se calmo.) Isso também é uma convicção lúcida e segura?
NORA- Sim, totalmente lúcida e segura. Por isso não quero mais continuar aqui.
HELMER – E você pode me explicar como eu perdi seu amor?
NORA- Posso. Foi esta noite, quando o prodígio não aconteceu. Aí eu vi que você não era o homem que eu imaginava.
HELMER – Explique melhor, não estou entendendo.
NORA- Oito anos eu esperei, com tanta paciência! Porque eu sabia que um prodígio não aparece assim no dia a dia. E de repente o prodígio ia acontecer. Enquanto a carta de Krogstad estava lá fora... Nunca pensei, nem um só momento, que
você pudesse ceder às condições desse homem. Tinha certeza absoluta que você ia dizer a ele: “vá, espalhe esse caso para todo mundo”. E quando isso acontecesse...
HELMER – O que? Queria que eu tivesse condenado minha própria esposa à vergonha e à desonra...
NORA- ...quando isso acontecesse eu tinha certeza absoluta que você
HELMER – Nora!
NORA- Você vai me dizer que eu nunca aceitaria que fizesse um sacrifício assim. Não, é claro. Mas de que valeriam as minhas palavras diante das suas? No meio do meu pavor, foi esse o prodígio que eu esperei tanto que acontecesse. E para evitar isso foi que eu quis acabar com a minha vida.
HELMER – Nora, por você eu seria capaz de trabalhar dia e noite com alegria. De agüentar dor e miséria por sua causa. Mas não há ninguém que sacrifique sua honra por aquele que ama.
NORA- Centenas de milhares de mulheres fizeram isso.
HELMER – Ah, você pensa e fala como uma criança insensata.
NORA- Talvez. Mas você não pensa nem fala como o homem a quem eu possa me unir. Uma vez passado o seu susto... não daquilo que ameaçava a mim, mas daquilo que ameaçava você mesmo, e quando todo o perigo tinha passado, era como se nada daquilo tivesse acontecido. Eu era sua cotovia, exatamente como antes, sua boneca, que você de agora em diante ia carregar com cuidado duplo nos seus braços, já que era tão frágil e delicada. (Ela se levanta.) Torvald... naquele momento me dei conta de que vivi durante oito anos com um homem estranho e que tive três filhos...ah, não aguento pensar nisso. Tenho vontade de me rasgar em muitos pedaços.
HELMER – (Com voz grave.) Estou vendo, estou vendo. Abriu-se um abismo entre nós dois. Nora, não seria possível cruzá-lo?
NORA- Como eu sou agora não posso ser sua mulher.
HELMER – Eu tenho força para ser outro.
NORA- Talvez... se lhe tirarem a boneca.
HELMER – Me separar de você... Não, não, Nora. Não posso aceitar essa ideia.
NORA- (Entra à direita.) Por isso mesmo tem que acontecer. (Ela volta com seu casaco e chapéu e uma pequena valise que põe na cadeira da mesa.)
HELMER – Nora, Nora, agora não. Espere até amanhã.
NORA- (Vestindo o casaco.) Não posso passar a noite na casa de um estranho.
HELMER – Mas não poderíamos viver aqui como irmãos?
NORA- (Segurando o chapéu.) Você sabe que não ia durar muito tempo. (Se envolve no xale.) Adeus, Torvald. Não quero envolver as crianças. Sei que estão em melhores mãos do que as minhas. Assim como sou agora, não posso ser uma boa mãe para elas.
HELMER – Mas algum dia, Nora, algum dia...
NORA- Como posso saber? Eu nem sei o que vai ser de mim.
HELMER – Mas você é minha mulher, assim como é agora e assim como será.
NORA- Escute, Torvald. Quando uma mulher abandona a casa do seu marido, como estou fazendo, o marido é liberado de todas as suas obrigações para com ela. É o que diz a lei, pelo que eu sei. Eu, pelo menos, libero você de qualquer obrigação. Não se sinta preso, que eu também não me sentirei. Deve haver liberdade total de parte a parte. Olhe, aqui está o meu anel. Me dê o seu.
HELMER – Isso também?
NORA- Também.
HELMER – Está aqui.
NORA- Então... agora acabou tudo. Deixo aqui as chaves. As criadas sabem tudo da casa melhor do que eu. Amanhã, depois da minha partida, Cristina virá juntar todas as coisas que eu trouxe de casa. Queria que me mandassem.
HELMER – Acabou tudo! Nora, você nunca mais vai pensar em mim?
NORA- Vou pensar em você muitas vezes, nas crianças, nesta casa.
HELMER – Posso lhe escrever, Nora?
NORA- Não, nunca. Eu lhe proíbo.
HELMER – Ah, mas posso lhe mandar alguma coisa...
NORA- Nada, nada.
HELMER – Ajudar você, se for preciso.
NORA- Não, já disse. Não aceito nada de estranhos.
HELMER – Nora, nunca vou ser mais do que um estranho para você?
NORA- (Pegando a mala.) Ah, Torvald, só se um prodígio...
HELMER – Que prodígio?
NORA- Que você e eu nos transformássemos tanto que... ah, Torvald, eu não acredito mais em prodígios.
HELMER – Mas eu quero acreditar. Diga, nos transformássemos tanto que...o que?
NORA- Tanto que a nossa vida, juntos, pudesse ser...um verdadeiro casamento. Adeus. (Sai pela antessala.)
HELMER – (Afunda numa cadeira ao lado da porta, pondo as mãos sobre o rosto.) Nora! Nora! (Olha para a frente e levanta-se.) Nada. Ela não está mais aqui. (Uma esperança aparece nele.) Um prodígio? (Escuta-se a porta fechar.)

FIM
 



sábado, 18 de novembro de 2017

The Handmaid's Tale

A série "O conta da aia", cuja a primeira temporada passou neste ano, para mim foi um impacto. Em 2019 tem a segunda temporada. A ver. Deixo as análises por conta da Clarrisa Wolff a seguir. Uma observação: o porquê do título deste post em inglês?  Porque handmaids (servas) tem significado diferente de aia (dama de companhia). Na série o termo em inglês tem mais sentido. Destaque no texto da Clarissa: as servas contemporâneas (Mais de 700 milhões de mulheres estão em casamentos forçados que aconteceram antes que completassem 18 anos...).

Quando me sinto uma personagem de "O Conto da Aia"
por Clarissa Wolff — publicado 11/11/2017

Memórias de um dia na UTI, das canções de Lou Reed e do livro de Margaret Atwood transformado em uma série de tevê

Elisabeth Moss

Foi em uma quarta-feira 13, no primeiro mês de 2016, que acordei zonza depois do procedimento. No meu sono de remédios e fraqueza, implorava a Deus pra essa dor agonizante no abdome passar.
O bipe da paciente ao lado não parava de apitar, e pelo que pareceram dias infinitos – mas foram mais ou menos 24 horas – na UTI do hospital, com cada um deles eu sentia que meu corpo inteiro ia desmanchar, cada um deles servindo de catalisador para a piora da enxaqueca, pro próximo vômito que fazia eu sentir os cortes na barriga se abrirem um por um de novo. É claro que nenhum estava se abrindo.
Se ela morrer, os bipes vão parar.
Oh, oh, what a feeling da canção “The Bed” de Lou Reed ecoava em um ritmo delirante na minha cabeça embaçada. Que sensação, realmente. O disco inteiro – “Berlin”, um dos meus favoritos – tinha sido a trilha sonora do avião que me levou até o hospital. Nessa música, a personagem dessa ópera rock acabava de cometer suicídio.
Se eu morrer, os bipes também vão parar.

Quando as cores frias marcadas pelo vermelho ocasional invadiram minha televisão, alguns anos depois, eu só conseguia pensar no dia em que perdi o útero, as trompas, os ovários, o peritônio. Eu não poderia ser uma aia em The Handmaid’s Tale.
Isso era bom?
Os Estados Unidos acabaram, e nesse novo mundo ser fértil é um presente. Gilead é seu nome, a nova nação criada em cima dos escombros do país da liberdade, após um golpe político religioso construído em cima de notícias falsas, da exploração do medo de terroristas islâmicos, de preconceitos fundamentados na Bíblia e de desastres naturais que causaram esterilidade em massa.
As semelhanças são meras coincidências.
Gilead é o fruto de um livro de 1985 que se tornou uma série do Hulu, serviço de streaming de vídeo concorrente da Netflix. Não havia um presidente nos Estados Unidos com uma página da Wikipedia inteira destinada apenas a alegações de violência sexual, com um vice que se tornou o mais poderoso fanático religioso do mundo. Nem mesmo Margaret Atwood, a autora dessa distopia que poderia ser ou é ou será realidade, poderia prever que Donald Trump e Mike Pence seriam eleitos presidentes.
A série localiza a história em 2017, ecoando Tinder, protestos feministas, ioga e smartphones no passado recente da protagonista, June, vivida pela espetacular Elisabeth Moss. Um dia, após correr pelo bairro com a melhor amiga, Moira (a também maravilhosa Samira Wiley), ela tem o cartão rejeitado ao tentar comprar um café. O vendedor é explicitamente agressivo no tratamento com elas.
Vamos sair daqui, vamos embora, ele não vale a pena, June fala para Moira, virando as costas, ficando em silêncio, desistindo da briga.
É naquele dia que ambas descobrem que perderam os empregos e a autonomia financeira. A partir daquele momento, mulheres não podem mais trabalhar ou ter posses, incluindo dinheiro, que automaticamente vira propriedade de seu parente homem mais próximo.
A partir daí se estabelece a nova sociedade divida em castas: as Esposas, mulheres dos comandantes políticos, as Marthas, mulheres inférteis destinadas a cuidar da casa, fazer a comida, limpar e lavar, e as Aias, as sortudas mulheres férteis protegidas e cuidadas por Tias, responsáveis por treinamentos do tipo Laranja Mecânica para que reaprendam sua única missão no mundo: procriação.
As aias são despidas de seus nomes. A protagonista vira Offred (Dofred, literalmente posse de seu Comandante chamado Fred, e que também se assemelha à palavra em inglês Offered, ou seja, oferecida) e de sua humanidade: viram úteros ambulantes, prontas para serem barriga de aluguel de uma família depois da outra, enquanto tiverem saúde para isso.
Nesse estupro institucionalizado, a Esposa é convidada a participar como uma forma distorcida de se manter a ilusão de fidelidade. Mas não se engane: a Esposa também não pode ler, dirigir, ter posses, escrever, construir amizades ou se relacionar com outros homens.

Infertilidade é palavra proibida nesse cenário. E é a minha realidade. Mas eu nunca exatamente tinha tido um desejo muito forte de ser mãe... Tinha?
Desde pequena as bonecas ficavam jogadas em um canto, enquanto eu me dedicava a planejar um futuro brilhante com Barbies que eram cantoras, atrizes, mulheres maravilhosas que representavam aquilo em que eu achava que ia me tornar. O bebê de borracha, os olhos eternamente abertos como se estivesse morto, eu tinha abandonado.
Mas quando eu recebi a análise patológica nas mãos com a sentença de que eu precisaria abortar todas as chances de ser mãe, tudo aquilo ainda parecia irreal. Eu não queria ser mãe, mas queria ter a experiência de gestar, queria parir, viver a dor e a maravilha de sentir uma vida crescendo e surgindo das minhas entranhas. Das minhas entranhas podres, sujas de genes defeituosos com síndromes de câncer e depressão. Pra qual infeliz eu ousaria entregar minha genética?
“They're taking her children away because they said she was not a good mother” é outro refrão da trilha sonora que acompanhou minha cirurgia. Lou Reed, ele sim, é um deus, e meu luto atrasado pela morte dele foi reavivado pela partida de David Bowie poucos dias antes da minha aventura na terra da vida-ou-morte.
Lou Reed morreu no fim de 2013, quando “Berlin” ainda não tinha caído nas minhas mãos e eu conhecia ele ainda como o muso do rock do Velvet Underground. Só depois de “Berlin” que vivo esse luto também, um pouco cada vez que escuto o disco, uma tristeza fria e raivosa de ter me apaixonado tanto por ele, que viveu contemporâneo a mim por tanto tempo, só depois de ele morrer e eu precisar abrir mão de qualquer esperança de algum dia vê-lo ao vivo. Sempre fui arrasada pelas experiências que fugiram de mim correndo e eu nunca mais poderia alcançar.

Em Gilead, todas as experiências morrem para que a humanidade não morra.
De onde vem essa obsessão em deixar algo para além da morte, em ser lembrado, em manter a raça humana viva? O instinto de sobrevivência, nosso traço mais animal, mesmo confundido com o cuidado da prole, faz parte do nosso comportamento como ser humano. Esse apego pela vida é parte da nossa existência, assim como a curiosidade pelo que acontece quando morremos. Existe um céu ou um inferno?
É nossa incapacidade em lidar com o fim da nossa existência que nos transforma em animais atrás de uma reprodução cega? Em algum momento deixaremos de existir e, filhos ou não, lembrados ou não, amados, odiados, esquecidos, nada disso fará parte da nossa consciência. De que importa o que acontece depois que morremos? De que importa se existirá mundo, civilizações, ou pessoas, se a tecnologia vai avançar tanto a ponto de criarmos carros que voam ou se todas as obras de arte do Louvre vão deteriorar e desaparecer, comidas pelo tempo?
Que joguem minhas cinzas no lixo, no mar, no chão. Se não existimos, não existimos. Por que é tão normal que se busque a continuidade eterna da nossa espécie?
Eu deveria entender isso. Ser mulher é sobre ser mãe, um refrão que desde pequena escutamos. Meu útero inexistente, nem mais estéril, é inútil nessa sociedade em que ser mãe é a maior dádiva e obrigação, em que até o filho não quisto, não planejado e não consentido é obrigado a nascer e se criar.

Em um país em que o aborto é crime, a esterilidade é cúmplice.
Me contaram que, quando nasci, minha bisavó de seis sobrenomes, supostamente de uma linhagem de condessas francesas, olhou para o meu pai e disse, com carinho, que ele ainda teria um filho para carregar o nome da família. Ela tinha razão: nenhum nome seria eternizado pelo meu ventre, e a flor com meu nome na árvore genealógica da família acabaria em mim.
No mundo fictício de "O Conto da Aia", existências inteiras são destruídas por essa obsessão por continuar a linhagem. A desumanização das aias é completa, invadindo até suas roupas: um uniforme vermelho com um chapéu de abas que as impedem de ver o que há em volta. A câmera da série também, em closes fechadíssimos, gerando no expectador a mesma ansiedade pelo entorno que a visão periférica da personagem não permite que ela enxergue e que a diretora, inteligentíssima, nos rouba.

A história evolui com ecos de revolução e resistência, e o reconhecimento de que é fútil tentar separar o pessoal do político. Carol Hanish tenta nos avisar isso há décadas. Aos poucos, com a voz roubada, June aprende a usar o silêncio como arma, e é ele a bomba que cai sobre a sua família nos minutos finais da série. No livro, ela é menos revolucionária, e mais testemunha.
Mas essa não é uma história sobre resistência, sobre mulheres, ou sobre ficção científica. É sobre horror. Ainda pior quando Margaret Atwood declara para o New York Times que uma de suas regras era apenas utilizar eventos que tivessem acontecido na história. “Nada de leis ou atrocidades inventadas. Deus está nos detalhes, eles dizem. O diabo também”.
Leio relato atrás de relato de amigas comovidas, ultrajadas, raivosas, nervosas com o que acabaram de assistir. E se isso acontecer?
Mas já acontece.

Mais de 700 milhões de mulheres estão em casamentos forçados que aconteceram antes que completassem 18 anos, e 250 milhões delas casaram antes dos 15. Duzentos milhões de meninas em 30 países diferentes tiveram, assim como a personagem de Alexis Bledel, o clitóris arrancado.
No Líbano, estupro marital é considerado um direito, e no Iêmen mulheres não podem sair de casa sem a permissão do marido. A pornografia no mundo inteiro é mais uma forma de estupro institucionalizado, disponível a um clique do mouse para a punheta do homem mais próximo.
A Chechênia cria campos de concentração para gays, traidores do gênero na nomenclatura de Atwood. Na Argélia e na Tunísia estupradores podem escapar do julgamento se casarem com as vítimas, e no Marrocos e na Arábia Saudita as vítimas de estupro podem ser processadas pelo crime. Ainda nesse último, mulheres precisam de permissão do seu guardião homem para casar, se divorciar, estudar, trabalhar, e até mesmo ter uma conta no banco. Elas são proibidas de votar e dirigir.
O Estado Islâmico faz rituais religiosos, com orações, antes estuprar as mulheres Yazidi da Síria e da Turquia, escravizadas para que possam engravidar e parir crianças que serão criadas como soldados da causa.
E, assim como na história, elas tentam fugir. Fogem para o que tem mais perto: a Europa. Na Alemanha, estima-se que existam 25 mil mulheres Yazidi. Só que, diferentemente de quando vemos na série, em vez de ficarmos emocionados e torcendo pela personagem, queremos expulsar os refugiados.
Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os números de refugiados acolhidos no Brasil têm diminuído, embora o número de pedidos aumente. Em um país em que políticos como Jair Bolsonaro, uma encarnação perfeita do poder da série, têm espaço, não é difícil entender os motivos.
Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. E não sou eu que estou dizendo, é a Simone de Beauvoir.
Apesar disso, ainda podemos resistir.
Ainda.
Porque a história se repete.

https://www.cartacapital.com.br/blogs/a-redoma-de-livros/quando-me-sinto-uma-personagem-de-the-handmaid2019s-tale   18/11/2017

Em tempo: Gênesis 30: 1- 9 

Vendo que não dava filho a Jacó, Raquel ficou com inveja de sua irmã e disse a Jacó: Ou você me dá filhos ou eu morro. Jacó ficou irritado com Raquel, e disse: Por acaso eu sou Deus para lhe negar a maternidade? Raquel respondeu: Aqui está minha serva Bala. una-se a ela, para que ela dê à luz sobre meus joelhos. Assim terei filhos por meio dela. Então Raquel lhe deu sua serva Bala como mulher, e Jacó uniu-se a Bala. Bala concebeu e deu a luz um filho para Jacó. Raquel disse: Deus me fez justiça; ouviu minha voz e me deu um filho. Por isso, o chamou Dã. Bala, a serva de Raquel, concebeu outra vez e gerou um segundo filho para Jacó. Raquel disse: Deus me fez competir com minha irmã, e eu venci. E ela o chamou de Neftali.

Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, Paulus, 1990.