terça-feira, 17 de dezembro de 2019

GRETA

Greta Thunberg foi recebida como heroína em Lisboa ao descer com outros cinco passageiros de um pequeno barco a vela com o qual tinham cruzado o Atlântico para não poluir. Mas nessa recepção, no dia 3, houve um viajante que não apareceu na entrevista coletiva no píer: o pai da ativista adolescente, Svante. Ele sempre a acompanha, mas fica em segundo plano. Tampouco manda em sua filha, dizem numerosas pessoas que convivem com a “personalidade do ano” escolhida pela revista Time, a adolescente sueca de 16 anos que inspirou um movimento global para lutar contra a crise climática.



A família Thunberg, no Natal de 2018


Desde que se tornou conhecida, há 15 meses, Thunberg é alvo de suspeitas de que alguém está por trás dela. Seus pais, agências de publicidade ou o bilionário George Soros foram apontados em teorias da conspiração que acabaram sendo desmanteladas. Seu entorno afirma que ela é “sua própria chefa” e sua desenvoltura em público transmite essa sensação.

Durante sua permanência em Madri, do dia 6 ao 11, para a Cúpula do Clima da ONU, Thunberg esteve rodeada de um punhado de pessoas de confiança. Além de Svante, foi acompanhada por Erika Jangen, uma amiga da família que a conhece desde que nasceu. Um grupo reduzido de assistentes, pessoas com experiência no mundo do ativismo climático, ajudou-a com a agenda. Sua mãe, Malena Ernman, e sua irmã, Beata, dois anos mais nova que Greta, permaneceram na Suécia.
Segundo o relato familiar, não são os pais que influenciam a menor, mas sim o contrário. Greta caiu aos 11 anos em uma forte depressão que a levou a parar de comer e de conversar com estranhos.

Diagnosticada com síndrome de Asperger, ela diz que sua paixão por salvar o planeta se deve em parte à forma de ver o mundo de uma pessoa autista, capaz de concentrar toda a sua atenção e todos os seus esforços em um único tema. Sua mãe, uma famosa cantora de ópera que representou a Suécia no festival Eurovision de 2009, e seu pai, um ator de teatro, mudaram sua forma de pensar graças a ela. Tornaram-se veganos, reduziram seu consumismo e pararam de viajar de avião. Relataram isso no livro Nossa Casa Está em Chamas, a versão em português de uma autobiografia familiar lançada na Suécia em 23 de agosto de 2018 com o título de Scener ur Hjärtat (Cenas do coração).

Três dias antes da publicação do livro, Greta tinha iniciado seu histórico protesto. Instalou-se sozinha diante do Parlamento sueco com um cartaz que dizia “Greve escolar pelo clima”, publicou sua foto nas redes sociais, e a revolução começou. A imagem de uma estudante de 15 anos que não ia às aulas para se manifestar em defesa do meio ambiente viralizou, e em poucas horas apareceram os primeiros jornalistas suecos, dos jornais Dagens ETC e Aftonbladet. Ajudou o fato de a Suécia estar a poucos dias da realização de eleições gerais. O jornal britânico The Guardian, que há anos dá uma atenção especial ao clima, foi o primeiro veículo de comunicação internacional a entrevistá-la, na semana seguinte. Depois vieram os convites para dar uma palestra TED em Estocolmo, ir a fóruns internacionais, as manifestações em massa e assim por diante até hoje.

No livro, assinado pelos quatro membros da família, mas narrado na voz da mãe, os pais de Greta se apresentam como duas pessoas que acreditam com firmeza na causa. Contam de maneira explícita as brigas, insultos e choros em um lar em crise devido à condição das duas pequenas. Beata foi diagnosticada com transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. As doenças mentais que proliferam no Ocidente são, como relatam, a manifestação em nossa parte do mundo da crise de sustentabilidade gerada por um modelo que gira em torno do crescimento sem limites. As consequências desse sistema em outros continentes seriam as secas, os deslizamentos de terras e o aumento do nível do mar.

Foi durante as férias que Greta teve a ideia de iniciar a greve escolar. Inspirou-se nos adolescentes americanos do movimento Zero Hour, frustrados pela passividade dos políticos em relação ao clima. Seus pais, meio reticentes no início, apoiaram-na ao ver o entusiasmo despertado por sua filha, até então triste e avessa a se relacionar com estranhos.
Greta já havia previsto que sua greve atrairia a atenção da mídia. Nos dias anteriores, sua energia aumentou e, durante suas férias, fazendo trilha na área do lago Trollsjön, na Lapônia sueca, não parava de perguntar ao seu pai como deveria fazer. Svante a orienta.

− Você vai ouvir toda hora: “Foram seus pais que lhe disseram que fizesse isso?”.

− Então vou responder a verdade. Que fui eu que influenciei vocês, e não o contrário.

Em seu primeiro discurso em público, na praça Nytorget de Estocolmo em 8 de setembro do ano passado, o público deu a Greta uma sonora ovação. Uma mulher ao lado de Svante lhe perguntou se ele estava orgulhoso. “Não, não estou orgulhoso, só muito feliz porque vejo que Greta está bem”.

“Só estou aqui como pai”

Em público, Greta já deu muitas amostras de estar no controle da situação, inclusive durante sua estadia na Península Ibérica. Quando os repórteres cruzavam com Greta em Lisboa ou Madri, nenhum adulto se interpunha. Em uma ocasião, enquanto tomava suco com seu pai e os companheiros da viagem de barco na Praça do Comércio, saiu sozinha do estabelecimento para pedir a alguns jornalistas que por favor não os gravassem no local.

“É ela que está interessada, que está motivada, que faz com que seu pai se mova, foi ela que teve essas ideias”, diz Riley Whitelun, o navegante australiano que ofereceu seu barco para levá-la dos EUA para a Europa. Durante 21 dias, conviveu com eles no catamarã e viu que as teorias de que ela seria uma marionete são falsas: “Não se pode esconder uma farsa dessa magnitude 24 horas por dia”.

Nem Greta nem Svante quiseram fazer declarações para esta reportagem. “Só estou aqui como pai”, limitou-se a dizer Svante na terça-feira, enquanto esperava que sua filha terminasse uma reunião na Cúpula do Clima com Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. “É ela que decide o que quer fazer, aonde vai e o que diz”, afirma Alejandro Martínez, um espanhol de 25 anos que participou de reuniões com Thunberg e sua equipe em Madri.
Thunberg também consulta um grupo de destacados cientistas climáticos, entre eles Kevin Anderson, professor da Universidade de Manchester, e Johan Rockström, diretor do Instituto de Postdam para os Estudos Climáticos.

Sua turnê pela América do Norte e Europa foi custeada pela família. Ela pode cobrir parte dos gastos graças a dois documentários que está gravando. Um deles é filmado por uma equipe da BBC que teve acesso exclusivo a ela em Lisboa e Madri.

Greta decidiu limitar sua exposição pública após sua chegada à Europa. Nos Estados Unidos, tinha aparecido em programas de televisão de grande audiência, como os de Ellen DeGeneres e Trevor Noah. Também se deixou ver com o ex-presidente Barack Obama e com os atores Leonardo DiCaprio e Arnold Schwarzenegger.

Se quisesse, teria aparecido em todo lugar em Madri. Autoridades, políticos, artistas e jornalistas quiseram aparecer com ela, segundo seu entorno, mas ela disse chega. A bola da mídia foi longe demais e ela sentiu que sua voz estava impedindo que fossem ouvidos outros ativistas do movimento contra a mudança climática, como cientistas ou pessoas dos países mais expostos a desastres naturais.
“A atenção da mídia é completamente desproporcional em relação à que deveriam ter os cientistas ou os líderes jovens do Sul global”, diz Luisa Neubauer, que apresentou juntamente com Greta dois painéis na Cúpula do Clima.

Greta, que tirou um ano sabático em sua escola secundária, ainda não anunciou seus planos para 2020. Agora ela está viajando para a Suécia com seu pai, de trem, ônibus e carro elétricos, para passar o Natal em família. Apesar do perfil mais discreto, seu círculo acredita que a ativista recarregará as energias para seguir em frente, porque, como ela disse mais de uma vez, esta luta deu à sua vida “um significado”.

Fernando Peinado
Madri, 14/12/2019
El Pais


domingo, 24 de novembro de 2019

Universidade e negócios


Como os Estados Unidos arruinaram suas universidades públicas

A transformação das universidades públicas norte-americanas em mais uma modalidade de negócios foi um “grande erro”, afirma professor da Universidade da Califórnia com livro sobre o tema

Enquanto no Brasil o governo federal pretende que as universidades terceirizem sua gestão e mesmo as atividades-fim sob comando de organizações privadas (OS), passem a depender cada vez mais de fundos de mercado, dirijam seus esforços para o empreendedorismo e ampliem a arrecadação própria com doações, cobranças de taxas e, futuramente, de mensalidades (como já demanda o Banco Mundial em seu último documento sobre o país), nos Estados Unidos, onde tudo isso já foi feito, o resultado foi amplamente negativo. A avaliação é de Christopher Newfield, professor da Universidade da Califórnia (a maior e mais prestigiosa universidade pública norte-americana) que lançou recentemente o livro The Great Mistake: How We Wrecked Public Universities and How We Can Fix Them (“O grande erro: como arruinamos as universidades públicas e como podemos recuperá-las”, Johns Hopkins University Press, 2016). Na entrevista a seguir, ele demonstra que a política neoliberal para as universidades norte-americanas foi também lá, no modelo original, um desastre.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Nas últimas décadas, enfrentamos um discurso dominante que colonizou o senso comum ao afirmar que as universidades devem fazer “entregas rápidas”, focadas em “resultados”, ser cada vez mais concebidas de acordo com modelos de negócios, produzir conhecimento como mercadoria e educar profissionais para ganhos privados. Alguma parte da ideia de “universidade” se perdeu ao longo do caminho?

CHRISTOPHER NEWFIELD – Isso não se perdeu, foi deliberadamente enterrado. As universidades fazem várias coisas que nenhuma outra instituição faz. Elas criam conhecimento como parte do mesmo processo pelo qual o espalham – a pesquisa é tão importante quanto o ensino. A pesquisa e o ensino universitário são autodirecionados e, quando as universidades estão funcionando corretamente, são exemplos de uma autogestão que é muito difícil de alcançar em um local de trabalho comum. O resultado desejado é triplo: o desenvolvimento pessoal-intelectual combinado do aluno (o que a tradição teórica prussiana chamou de Bildung); um novo conhecimento sobre todos os tópicos do planeta; e a prática do conhecimento como um processo totalmente social. Esta última não é bem compreendida, mas coloca o aprendizado e a pesquisa fora das estruturas de mercado. Nos últimos cinquenta anos, as empresas e seus aliados políticos tentaram controlar as universidades, por razões que não são tão diferentes das da Igreja Católica ou do Estado bonapartista em outras épocas.

Você apresenta uma imagem impressionante do desmantelamento das universidades públicas dos Estados Unidos e sua transformação em meros prestadores de serviços, orientada para o mercado. O que motivou essa transformação e em que momento histórico o ataque às universidades públicas dos Estados Unidos e a sua missão pública fundamental começou?

O motivo, em uma frase, era bloquear as ameaças aparentes das universidades aos poderes econômicos e políticos estabelecidos. Um momento decisivo foi a campanha de Ronald Reagan para governador da Califórnia em 1966. Seu oponente, o então ocupante do cargo Pat Brown, era um progressista popular do New Deal que construía obras e serviços públicos para pessoas comuns (brancas). Eleitores gostam de escolas, rodovias, hospitais, pontes e faculdades gratuitas; Reagan decidiu que não poderia concorrer contra Brown, mas poderia concorrer contra manifestantes estudantis de esquerda na UC Berkeley, e foi isso que ele fez. Ele derrotou Brown, em parte, apresentando as universidades de Brown como lugares que encenavam ataques a norte-americanos respeitáveis e tementes a Deus, que reverenciavam o sistema de livre-comércio. Um segundo evento importante ocorreu em 1970, quando o futuro juiz da Suprema Corte, Lewis Powell, então um moderado juiz republicano da Virgínia, enviou um longo memorando à Câmara de Comércio, pedindo às empresas que lutassem contra o sentimento anticapitalista alojado nos campi das universidades. Suas sugestões para financiar pesquisadores e think tanks que criariam e difundiriam visões conservadoras ajudaram a construir as redes políticas conservadoras que ainda dominam a política local.

Em seu livro, você diz que, durante 25 anos, trabalhou em um lugar privilegiado, testemunhando o esforço contínuo de tornar a universidade pública mais parecida com uma empresa. Você pode explicar melhor como isso aconteceu e o preço social pago por essa privatização indireta?

Nas décadas de 1980 e 1990, os gerentes das universidades aceitaram o novo argumento de consenso – tanto dos conservadores de Reagan quanto dos centristas de Clinton – de que bens como o ensino superior tinham benefícios fundamentalmente privados e não públicos, devendo assim ser pagos em particular. Quando comecei a trabalhar em comitês de planejamento e orçamento depois de 2000, fiquei surpreso com a perda de confiança no modelo de financiamento público e com a fé cega de que os contratos de filantropia e pesquisa tornariam as universidades públicas bem-sucedidas como suas contrapartes privadas. Isso criou dois problemas. A primeira foi que as universidades enfraqueceram sua reivindicação pelos altos níveis de financiamento público de que desfrutavam anteriormente. Se a graduação da universidade serve para aumentar os salários individuais, em vez de promover a sociedade, o público não precisa pagar o custo da educação por meio de impostos. Essa visão está incorreta: a maioria dos efeitos do ensino superior é não pecuniária, ou social, ou ambos. O segundo problema é que as universidades não ficam realmente ricas com fundos privados. Elas se tornam dependentes da renda proveniente da mensalidade do estudante, que agora atingiu seu limite. E elas perdem dinheiro com subsídios de pesquisa patrocinados e ganham muito pouco para operações gerais da filantropia. O preço social assume várias formas: as universidades têm problemas financeiros, os estudantes pagam demais e assumem dívidas educacionais e a sociedade recebe menos benefícios não monetários porque o ensino e a pesquisa gravitam em torno de assuntos monetizáveis. Observe também que os estudantes que possuem altas dívidas educacionais desejam uma renda mais alta para pagá-las. Eles são menos capazes de seguir seus compromissos políticos ou éticos no serviço social, uma vez que os salários mais baixos desses empregos dificultam o pagamento da dívida da universidade.

A missão e o amplo espectro de capacidades humanas da universidade estão diminuindo cada vez mais para formar Homo economicus, ou seja, animais de mercado?

A pesquisa é um bem público básico. Uma nova ideia ou descoberta não tem valor de mercado. Isso ocorre apenas mais tarde, com o desenvolvimento comercial, se é que ocorrerá. Descobrir algo novo não pode ser incentivado pela expectativa de um retorno de mercado incerto, remoto ou inexistente. As universidades existem em grande parte para apoiar a exploração que não dará dinheiro. E ninguém pode ser um bom pesquisador enquanto opera como Homo economicus: o “animal de mercado” sempre busca retornos monetários, e não benefícios não monetários ou que agregam à multidão, e não ao pesquisador ou empresa. Isso vale especialmente para as disciplinas de artes e humanas, nas quais um relato melhor da relação entre escravidão e capitalismo na década de 1820 tem um valor intrínseco e provavelmente político, mas não traz dinheiro. As disciplinas de engenharia e ciências aplicadas são exceções parciais. Mesmo assim, o dinheiro real será ganho por laboratórios corporativos focados no desenvolvimento de produtos, não nas universidades que exploram conceitos fundamentais.

Ainda assim, você demonstra que é uma falácia pensar que as universidades são apoiadas por recursos corporativos. Elas ainda são amplamente subsidiadas pelo governo, mensalidades e patrocínios. Sendo assim, por que o mercado está definindo cada vez mais as premissas e os resultados do ensino e das pesquisas?

Um dos mitos da privatização a meio caminho era que, se os acadêmicos fizessem um trabalho melhor na comercialização de suas pesquisas, o dinheiro corporativo chegaria. As universidades agora divulgam incessantemente suas start-ups e objetivos comerciais, mas o dinheiro nunca chegou. Na realidade, o financiamento corporativo representa entre 5% e 7% do total das despesas de pesquisa nas universidades norte-americanas há décadas; isso nunca substituiu os fundos federais.

Você diz que as universidades públicas dos Estados Unidos eram em sua maioria gratuitas, até começarem a cobrar uma taxa simbólica, e progressivamente esse valor aumentou de modo exponencial para compensar o investimento público em queda e as políticas de austeridade. Isso levou novamente a uma elitização do acesso. Isto é, o que pagou a conta para reduzir o orçamento público, no final, foram os próprios alunos e suas famílias, e não as empresas privadas, como é propagado?

Você está certo – os estudantes e suas famílias cobriram o financiamento público que os estados retiraram. O efeito mais visível é a dívida estudantil, que atingiu US$ 1,6 trilhão nos Estados Unidos. Aumentou muito mais rapidamente do que a renda necessária para atendê-la; mais de 10% dos empréstimos estudantis estão em inadimplência. Desde 1993, o financiamento estatal diminuiu 25% (corrigido pela inflação), enquanto as mensalidades líquidas (o valor que os alunos pagam do bolso após a aplicação de toda a ajuda financeira) dobraram. Isso sugere como a privatização é ineficiente.

Nos últimos quinze anos, nos Estados Unidos, o montante transferido para as universidades privadas passou de US$ 4,6 bilhões para US$ 26 bilhões por ano. Como o lobby privado funciona para capturar fundos públicos?

As faculdades com fins lucrativos têm as taxas mais baixas de graduação e emprego do país, com o custo mais alto para os alunos. Como no Brasil, elas existem apenas porque o governo federal concede empréstimos aos estudantes para que paguem as mensalidades para frequentá-las. O governo teve de aprovar uma regra de que não mais que 90% de sua receita total deve vir de empréstimos estudantis concedidos pelo governo, ou a maioria delas teria conseguido 100% de seu dinheiro dessa maneira. São as piores instituições de ensino superior da história. Não caia na alegação de que ampliam o acesso de estudantes pobres e de primeira geração! Como no Brasil, elas transmitem dívidas às pessoas pobres, não conhecimento.

No final do livro, você refuta as afirmações de que não haveria alternativa (Tina, no jargão neoliberal de Thatcher), de que não há mais recursos públicos e de que o que aconteceu era inevitável “como as leis da física”. Você poderia resumir aqui seus conselhos para “consertar isso”, como você diz ironicamente?

Desde que eu escrevi The Great Mistake, duas de suas principais soluções se tornaram parte do debate nacional. Muitos candidatos políticos democratas, liderados por Bernie Sanders e Elizabeth Warren, estão clamando por uma faculdade gratuita e pelo alívio da dívida estudantil. Os estudantes de baixa renda precisam ter suas despesas de moradia pagas, bem como todos os gastos educacionais. Os Estados Unidos tornaram o ensino médio gratuito no século XIX. Fizemos o mesmo para as universidades no século XX. De fato, vamos reverter o modelo de alto custo para as universidades públicas. É só uma questão de tempo.

Qual mensagem você gostaria de enviar aos brasileiros, considerando que o governo Bolsonaro está reduzindo violentamente os recursos das universidades públicas e agora está apresentando um projeto para a privatização indireta?

Três mensagens: seu modelo de ensino superior para o desenvolvimento social está certo. Seu modelo de ensino gratuito está certo, porque é a única maneira de ter acesso democrático. Se você cobra mensalidades que estabelecem barreiras de custo e restringem a alocação de bens educacionais (que é o que os mercados fazem bem), seu sistema universitário não será democrático – aumentará as desigualdades sociais em vez de reduzi-las. Segundo, não acredite que as universidades privatizadas serão mais ricas e mais estáveis: elas não serão. A maioria será mais pobre e dedicará mais dinheiro para angariar fundos. Terceiro, podemos proteger e promover as universidades como locais de formas autogovernadas de produção pós-capitalista. A ciência e os estudos avançam quando ideias e recursos são amplamente compartilhados. Dessa maneira, as universidades públicas reais esperam um mundo democrático e sustentável. Elas precisam de grande apoio e amor público.

Estão crescendo no Brasil e em outros países, que formam uma nova internacional de ultradireita, um claro projeto de poder baseado na desinformação e na intolerância, contrário ao esclarecimento e às evidências científicas e históricas. Como você entende o papel das universidades nesse contexto?

As crises políticas e ecológicas do mundo também são crises de conhecimento. Líderes autocráticos destrutivos, como Trump, Putin, Modi, Erdoğan, Duterte e Bolsonaro, abrem caminho para suas políticas insistindo que não há evidências ou argumentos válidos contra suas posições e fingem provar isso com ataques a disciplinas ou pesquisadores. Eles apresentam falsamente o fundamentalismo religioso e a civilização produtora de carbono como sendo vontade do povo, enquanto lotam as instituições com seus próprios partidários. Trump nomeia juízes que se opõem categoricamente aos direitos reprodutivos e à igualdade sexual das mulheres, assim como regulamenta uma técnica predatória de extração de energia etc. Receio que nosso presidente tenha agravado os problemas, como Bolsonaro no Brasil, ao estabelecer um ataque ao conhecimento e suas instituições. Todas essas figuras percebem que as universidades oferecem análises independentes que podem expor a intencionalidade de suas posições e oferecer conhecimento para fundamentar o dissenso em relação a elas. Essas figuras neocoloniais e antidemocráticas, portanto, se opõem à liberdade acadêmica e ao conhecimento popular ou do ponto de vista, e o fazem alegando que elas incorporam a sabedoria superior das pessoas comuns. Na realidade, ao longo dos anos, a universidade, mesmo com suas falhas, fez muito mais por pessoas comuns do que esses líderes fazem. Elas fizeram isso em parte aprendendo com a própria sociedade e oferecendo a criação de conhecimento independente a serviço de todos. Por isso, são mais importantes para as sociedades democráticas do que nunca, e espero que as universidades públicas e os movimentos sociais brasileiros agora se apoiem mutuamente, com foco e determinação.

Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, professor da Unifesp e pró-reitor de Planejamento.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

Edição 147 | EUA, por Pedro Fiori Arantes, 1 de outubro de 2019


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Dívida pública e a corrupção



Dois meses antes de o governo Dilma Rousseff anunciar oficialmente o corte de 70 bilhões de reais do Orçamento por conta do ajuste fiscal, uma brasileira foi convidada pelo Syriza, partido grego de esquerda que venceu as últimas eleições, para compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega com outros 30 especialistas internacionais. A brasileira em questão é Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil.

Mas o que o ajuste tem a ver com a recuperação da economia na Grécia? Tudo, diz Fattorelli. “A dívida pública é a espinha dorsal”.
Enquanto o Brasil caminha em direção à austeridade, a estudiosa participa da comissão que vai investigar os acordos, esquemas e fraudes na dívida pública que levaram a Grécia, segundo o Syriza, à crise econômica e social. “Existe um ‘sistema da dívida’. É a utilização desse instrumento [dívida pública] como veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro”, complementa Fattorelli.

Esta não é a primeira vez que a auditora é acionada para esse tipo de missão. Em 2007, Fattorelli foi convidada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para ajudar na identificação e comprovação de diversas ilegalidades na dívida do país. O trabalho reduziu em 70% o estoque da dívida pública equatoriana.
Em entrevista a CartaCapital, direto da Grécia, Fattorelli falou sobre como o “esquema”, controlado por bancos e grandes empresas, também se repete no pagamento dos juros da dívida brasileira, atualmente em 334,6 bilhões de reais, e provoca a necessidade do tal ajuste.

CartaCapital: O que é a dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli: A dívida pública, de forma técnica, como aprendemos nos livros de Economia, é uma forma de complementar o financiamento do Estado. Em princípio, não há nada errado no fato de um país, de um estado ou de um município se endividar, porque o que está acima de tudo é o atendimento do interesse público. Se o Estado não arrecada o suficiente, em princípio, ele poderia se endividar para o ingresso de recursos para financiar todo o conjunto de obrigações que o Estado tem. Teoricamente, a dívida é isso. É para complementar os recursos necessários para o Estado cumprir com as suas obrigações. Isso em principio.

CC: E onde começa o problema?
MLF: O problema começa quando nós começamos a auditar a dívida e não encontramos contrapartida real. Que dívida é essa que não para de crescer e que leva quase a metade do Orçamento? Qual é a contrapartida dessa dívida? Onde é aplicado esse dinheiro? E esse é o problema. Depois de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.

CC: E quem, normalmente, são os beneficiados por esse esquema? Em 2014, por exemplo, os juros da dívida subiram de 251,1 bilhões de reais para 334,6 bilhões de reais no Brasil. Para onde está indo esse dinheiro de fato?
MLF: Nós sabemos quem compra esses títulos da dívida porque essa compra direta é feita por meio dos leilões. O processo é o seguinte: o Tesouro Nacional lança os títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Como o Banco Central vende? Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12 instituições credenciadas. São os chamados dealers. A lista dos dealers nós temos. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes, essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú, HSBC…é por isso que a gente fala que, hoje em dia, falar em dívida externa e interna não faz nem mais sentido. Os bancos estrangeiros estão aí comprando diretamente da boca do caixa. Nós sabemos quem compra e, muito provavelmente, eles são os credores porque não tem nenhuma aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida brasileira. É a aplicação mais rentável do mundo. E só eles compram diretamente. Então, muito provavelmente, eles são os credores.

CC: Por quê provavelmente?
MLF: Por que nem mesmo na CPI da Dívida Pública, entre 2009 e 2010, e olha que a CPI tem poder de intimação judicial, o Banco Central informou quem são os detentores da dívida brasileira. Eles chegaram a responder que não sabiam porque esses títulos são vendidos nos leilões. O que a gente sabe que é mentira. Porque, se eles não sabem quem são os detentores dos títulos, para quem eles estão pagando os juros? Claro que eles sabem. Se você tem uma dívida e não sabe quem é o credor, para quem você vai pagar? Em outro momento chegaram a falar que essa informação era sigilosa. Seria uma questão de sigilo bancário. O que é uma mentira também. A dívida é pública, a sociedade é que está pagando. O salário do servidor público não está na internet? Por que os detentores da dívida não estão? Nós temos que criar uma campanha nacional para saber quem é que está levando vantagem em cima do Brasil e provocando tudo isso.

CC: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal, em curso hoje no Brasil?
MLF: Todo mundo fala no corte, no ajuste, na austeridade e tal. Desde o Plano Real, o Brasil produz superávit primário todo ano. Tem ano que produz mais alto, tem ano que produz mais baixo. Mas todo ano tem superávit primário. O que quer dizer isso, superávit primário? Que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias. Gasto primários são todos os gastos, com exceção da dívida. É o que o Brasil gasta: saúde, educação…exceto juros. Tudo isso são gastos primários. Se você olhar a receita, o que alimenta o orçamento? Basicamente a receita de tributos. Então superávit primário significa que o que nós estamos arrecadando com tributos está acima do que estamos gastando, estão está sobrando uma parte.

CC: E esse dinheiro que sobra é para pagar os juros dívida pública?
MLF: Isso, e essa parte do superávit paga uma pequena parte dos juros porque, no Brasil, nós estamos emitindo nova dívida para pagar grande parte dos juros. Isso é escândalo, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe o que se chama de anatocismo. Quando você contrata dívida para pagar juros, o que você está fazendo? Você está transformando juros em uma nova divida sobre a qual vai incidir juros. É o tal de juros sobre juros. Isso cria uma bola de neve que gera uma despesa em uma escala exponencial, sem contrapartida, e o Estado não pode fazer isso. Quando nós investigamos qual é a contrapartida da dívida interna, percebemos que é uma dívida de juros sobre juros. A divida brasileira assumiu um ciclo automático. Ela tem vida própria e se retroalimenta. Quando isso acontece, aquele juros vai virar capital.  E, sobre aquele capital, vai incidir novos juros. E os juros seguintes, de novo vão se transformados em capital. É, por isso, que quando você olha a curva da dívida pública, a reta resultante é exponencial. Está crescendo e está quase na vertical. O problema é que vai explodir a qualquer momento.

CC: Explodir por quê?
MLF: Por que o mercado – quando eu falo em mercado, estou me referindo aos dealers – está aceitando novos títulos da dívida como pagamento em vez de receber dinheiro moeda? Eles não querem receber dinheiro moeda, eles querem novos títulos, por dois motivos. Por um lado, o mercado sabe que o juros vão virar novo título e ele vai ter um volume cada vez maior de dívidas para receber. Segundo: dívida elevada tem justificado um continuo processo de privatização. Como tem sido esse processo? Entrega de patrimônio cada vez mais estratégico, cada vez mais lucrativo. Nós vimos há pouco tempo a privatização de aeroportos. Não é pouca coisa os aeroportos de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro estarem em mãos privadas. O que no fundo esse poder econômico mundial deseja é patrimônio e controle. A estratégia do sistema da dívida é a seguinte: você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai entregar patrimônio atrás de patrimônio. Assim nós já perdemos as telefônicas, as empresas de energia elétrica, as hidrelétricas, as siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder econômico mundial. E como é que eles [dealers] conseguem esse poder todo? Aí entra o financiamento privado de campanha. É só você entrar no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e dar uma olhada em quem financiou a campanha desses caras. Ou foi grande empresa ou foi banco. O nosso ataque em relação à dívida é porque a dívida é o ponto central, é a espinha dorsal do esquema.

CC: Como funcionaria a auditoria da dívida na prática? Como diferenciar o que é dívida legítima e o que não é?
MLF: A auditoria é para identificar o esquema de geração de dívida sem contrapartida. Por exemplo, só deveria ser paga aquela dívida que preenche o requisito da definição de dívida. O que é uma dívida? Se eu disser para você: ‘Me paga os 100 reais que você me deve’. Você vai falar: “Que dia você me entregou esses 100 reais?’ Só existe dívida se há uma entrega. Aconteceu isso aqui na Grécia. Mecanismos financeiros, coisas que não tinham nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap – espécie de seguro contra calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista ‘financeirizado’. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro, utilizando um instrumento de endividamento público para desviar recursos e submeter o País ao poder financeiro, impedindo o desenvolvimento socioeconômico equilibrado. Junto com esses bancos estão as grandes corporações e eles não têm escrúpulos. Nós temos que dar um basta nessa situação. E esse basta virá da cidadania. Esse basta não virá da classe politica porque eles são financiados por esse setor. Da elite, muito menos porque eles estão usufruindo desse mecanismo. A solução só virá a partir de uma consciência generalizada da sociedade, da maioria. É a maioria, os 99%, que está pagando essa conta. O Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central] disse isso em depoimento na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida, em 2009, quando perguntado sobre a influência das decisões do Banco Central na vida do povo. Ele respondeu: “Olha, o Brasil foi desenhado para isso”.

CC: Quanto aproximadamente da dívida pública está na mão dos bancos e de grandes empresas? O Tesouro Direto, que todos os brasileiros podem ter acesso, corresponde a que parcela do montante?
MLF: Essa história do Tesouro Direto é para criar a impressão que a dívida pública é um negócio correto, que qualquer um pode entrar lá e comprar. E, realmente, se eu ou você comprarmos é uma parte legítima. Agora, se a gente entrar lá e comprar, não é direto. É só para criar essa ilusão. Tenta entrar lá para comprar um título que seja. Você vai chegar numa tela em que vai ter que escolher uma instituição financeira. E essa instituição financeira vai te cobrar uma comissão que não é barata. Ela não vai te pagar o juros todo do título, ela vai ficar com um pedaço. O banco, o dealer, que compra o título da dívida é quem estabelece os juros. Ele estabelece os juros que ele quer porque o governo lança o título e faz uma proposta de juros. Se, na hora do leilão, o dealer não está contente com aquele patamar de juros, ele não compra. Ele só compra quando o juros chega no patamar que ele quer. Invariavelmente, os títulos vêm sendo vendidos muito acima da Selic [taxa básica de juros]. Em 2012, quando a Selic deu uma abaixada e chegou a 7,25%, nós estávamos acompanhando e os títulos estavam sendo vendidos a mais de 10% de juros. E eles sempre compram com deságio. Se o título vale 1000 reais, ele compra por 960 reais ou 970 reais, depende da pressão que ele quer impor no governo aquele dia. Olha a diferença. Se você compra no Tesouro Direto, você não vai ter desconto. Pelo contrário, você vai ter que pagar uma comissão. E você também não vai mandar nos juros. É uma operação totalmente distinta da operação direta de verdade que acontece lá no leilão.

CC: Por que é tão difícil colocar a auditoria em prática? Como o mercado financeiro costuma reagir a uma auditoria?
MLF: O mercado late muito, mas na hora ele é covarde. Lá no Equador, quando estávamos na reta final e vários relatórios preliminares já tinham sido divulgados, eles sabiam que tínhamos descoberto o mecanismo de geração de dívida, várias fraudes. Eles fizeram uma proposta para o governo de renegociação. Só que o Rafael Correa [atual presidente do Equador] não queria negociar. Ele queria recomprar e botar um ponto final. Porque quando você negocia, você dá uma vida nova para a dívida. Você dá uma repaginada na dívida. Ele não queria isso. Ele queria que o governo dele fosse um governo que marcasse a história do Equador. Ele sabia que, se aceitasse, ficaria subjugado à dívida. Ele foi até o fim, fez uma proposta e o que os bancos fizeram? 95% dos detentores dos títulos entregaram. Aceitaram a oferta de recompra de no máximo 30% e o Equador eliminou 70% de sua dívida externa em títulos. No Brasil, durante os dez meses da CPI da Dívida, a Selic não subiu. Foi incrível esse movimento. Nós estamos diante de um monstro mundial que controla o poder financeiro e o poder político com esquemas fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um mega esquema de corrupção institucionalizado.

CC: O mercado financeiro e parte da imprensa costumam classificar a auditoria da dívida de calote. Por que a auditoria da dívida não é calote?
MLF: A auditoria vai investigar e não tem poder de decisão do que vai ser feito. A auditoria só vai mostrar. No Equador, a auditoria só investigou e mostrou as fraudes, mecanismos que não eram dívidas, renúncias à prescrição de dívidas. O que é isso? É um ato nulo. Dívidas que já estavam prescritas. Uma dívida prescrita é morta. E isso aconteceu no Brasil também na época do Plano Brady, que transformou dívidas vencidas em títulos da dívida externa. Depois, esses títulos da dívida externa foram usados para comprar nossas empresas que foram privatizadas na década de 1990: Vale, Usiminas…tudo comprado com título da dívida em grande parte. Você está vendo como recicla? Aqui, na Grécia, o país está sendo pressionado para pagar uma dívida ilegítima. E qual foi a renegociação feita pelo [Geórgios] Papandréu [ex-primeiro-ministro da Grécia]? Ele conseguiu um adiamento em troca de um processo de privatização de 50 bilhões de euros. Esse é o esquema. Deixar de pagar esse tipo de dívida é calote? A gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é nula, que é fraude. No dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial.

CC: Em comparação com o ajuste fiscal, que vai cortar 70 bilhões de reais de gastos, tem alguma estimativa de quanto a auditoria da dívida pública poderia economizar de despesas para o Brasil?
MLF: Essa estimativa é difícil de ser feita antes da auditoria, porém, pelo que já investigamos em termos de origem da dívida brasileira e desse impacto de juros sobre juros, você chega a estimativas assustadoras. Essa questão de juros sobre juros eu abordei no meu último livro. Nos últimos anos, metade do crescimento da divida é nulo. Eu só tive condição de fazer o cálculo de maneira aritmética. Ficou faltando fazer os cálculos de 1995 a 2005 porque o Banco Central não nos deu os dados. E mesmo assim, você chega a 50% de nulidade da dívida, metade dela. Consequentemente para os juros seria o mesmo [montante]. Essa foi a grande jogada do mercado financeiro no Plano Real porque eles conseguiram gerar uma dívida maluca. No início do Plano Real os juros brasileiros chegaram a mais de 40% ao ano. Imagina uma divida com juros de 40% ao ano? Você faz ela crescer quase 50% de um ano para o outro. E temos que considerar que esses juros são mensais. O juro mensal, no mês seguinte, o capital já corrige sobre o capital corrigido no mês anterior. Você inicia um processo exponencial que não tem limite, como aconteceu na explosão da dívida a partir do Plano Real. Quando o Plano Real começou, nossa dívida estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela está em mais de três trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros.

CC: E isso é algo que seria considerado ilegal na auditoria da dívida pública?
MLF: É mais do que ilegal, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe juros sobre juros para o setor público. Tem uma súmula do Supremo Tribunal Federal, súmula 121, que diz que ainda que tenha se estabelecido em contrato, não pode. É inconstitucional. Tudo isso é porque tem muita gente envolvida, favorecida e mal informada. Esses tabus, essa questão do calote, muita gente fala isso. Eles tentam desqualificar. Falamos em auditoria e eles falam em calote. Mas estou falando em investigar. Se você não tem o que temer, vamos abrir os livros. Vamos mostrar tudo. Se a dívida é tão honrada, vamos olhar a origem dessa dívida, a contrapartida dela.

CC: Ao longo da entrevista, a senhora citou diversos momentos da história recente do Brasil, o que mostra que esse problema vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e passou pelas gestões Lula e Dilma. Mas como a questão da dívida se agravou nos últimos anos? A dívida externa dos anos 1990 se transformou nessa dívida interna de hoje?
MLF: Houve essa transformação várias vezes na nossa história. Esses movimentos foram feitos de acordo com o interesse do mercado. Tanto de interna para externa, como de externa para interna, de acordo com o valor do dólar. Esses movimentos são feitos pelo Banco Central do Brasil em favor do mercado financeiro, invariavelmente. Quando o dólar está baixo, e seria interessante o Brasil quitar a dívida externa, por precisar de menos reais, se faz o contrário. Ele contrai mais dívida em dólar. Esses movimentos são sempre feitos contra nós e a favor do mercado financeiro.

CC: E o pagamento da dívida externa, em 2005?
MLF: O que a gente critica no governo Lula é que, para pagar a dívida externa em 2005, na época de 15 bilhões de dólares, ele emitiu reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida com o FMI [Fundo Monetário Internacional] era 4% ao ano de juros. A dívida interna que foi emitida na época estava em média 19,13% de juros ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para uma de 19% ao ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao País. E a nossa dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada, correspondia a menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma dívida externa para o FMI que tinha juros baixo? Porque, no inconsciente coletivo, divida externa é com o FMI. Todo mundo acha que o FMI é o grande credor. Isso, realmente, gerou um ganho político para o Lula e uma tranquilidade para o mercado. Quantos debates a gente chama sobre a dívida e as pessoas falam: “Esse debate já não está resolvido? Já não pagamos a dívida toda?’. Não são poucas as pessoas que falam isso por conta dessa propaganda feita de que o Lula resolveu o problema da dívida. E o mercado ajuda a criar essas coisas. Eu falo o mercado porque, na época, eles também exigiram que a Argentina pagasse o FMI. E eles também pagaram de forma antecipada. Você vê as coisas aconteceram em vários lugares, de forma simultânea. Tudo bem armado, de fora para dentro, na mesma época.

CC: O que a experiência grega de auditoria da dívida poderia ensinar ao Brasil, na sua opinião?
MLF: São muitas lições. A primeira é a que ponto pode chegar esse plano de austeridade fiscal. Os casos aqui da Grécia são alarmantes. Em termos de desemprego, mais de 100 mil jovens formados deixaram o país nos últimos anos porque não têm emprego. Foram para o Canadá, Alemanha, vários outros países. A queda salarial, em média, é de 50%. E quem está trabalhando está feliz porque normalmente não tem emprego. Jornalista, por exemplo, não tem emprego. Tem até um jornalista que está colaborando com a nossa comissão e disse que só não está passando fome por conta da ajuda da família. A maioria dos empregos foram flexibilizados, as pessoas não têm direitos. Serviços de saúde fechados, escolas fechadas, não tem vacina em posto de saúde. Uma calamidade terrível. Trabalhadores virando mendigos de um dia para o outro. Tem ruas aqui em que todas as lojas estão fechadas. Todos esses pequenos comerciantes ou se tornaram dependentes da família ou foram para a rua ou, pior, se suicidaram. O número de suicídios aqui, reconhecidamente por esse problema econômico, passa de 5 mil. Tem vários casos de suicídio em praça pública para denunciar. Nesses dias em que estou aqui, houve uma homenagem em frente ao Parlamento para um homem que se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que estava entregando a vida para que esse plano de austeridade fosse denunciado.

CartaCapital nº 1079

8 de Novembro de 2019


domingo, 27 de outubro de 2019

Eliane Brum


Eliane Brum e a arte de escrever para não matar e para não morrer

Jornalista e escritora, que acaba de lançar coletânea de textos jornalísticos em inglês, aproxima-se da palavra através da escuta e conta com lirismo as histórias e detalhes da vida que (quase) ninguém vê


A jornalista Eliane Brum - Lilo Clareto


Aos oito anos, Eliane Brum (Ijuí, Rio Grande do Sul, 1966) virou uma assassina. Pelo menos foi o que sentiu no dia em que matou um filhote de barata. A culpa foi tamanha que a menina ficou imaginando a vida que aquela criatura já não teria. Assim nasceu A biografia de uma barata, o primeiro texto da jornalista, escritora e documentarista, escrito em primeira pessoa em um caderno de capa vermelha que ela conserva até hoje. A colunista do EL PAÍS conta, entre gargalhadas, que esse foi o jeito que encontrou para "dar memória e uma vida" ao ser que havia matado. De certo modo, essa continua sendo a motivação da sua escrita. "Sempre digo que eu escrevo para não matar e para não morrer", conta do outro lado do telefone, em Londres, em uma tarde cinzenta e de chuva fina.
Há poucas semanas, uma obra de Eliane entrou em um seletíssimo grupo de um dos mais prestigiosos prêmios literários dos EUA, ao lado do Pulitzer. The Collector of Leftover Souls (Graywolf Press), que reúne crônicas e reportagens produzidas entre 1999 e 2015, foi publicada nos Estados Unidos e no Reino Unido e entrou na lista das dez indicadas para o Prêmio Nacional de Literatura dos EUA (National Book Award) deste ano. A crítica especializada o define como uma coletânea de "vidas comuns tornadas extraordinárias por uma mestra em jornalismo que capta toda a sua perplexidade e rebelião silenciosa" e destaca a habilidade da autora em "habitar a vida de suas fontes enquanto suprime seus próprios preconceitos, julgamentos e visões de mundo". Enquanto isso, no Brasil, Eliane, que é finalista do Prêmio Comunique-se como melhor jornalista de mídia escrita, prepara-se para lançar, no mês que vem, um novo livro. Brasil, construtor de ruínas (Arquipélago), parte de reportagens e artigos de opinião escritos nos últimos anos, especialmente o EL PAÍS.
Filha de professores que trabalhavam de manhã, de tarde e de noite para sustentar a ela e seus dois irmãos mais velhos, Eliane apaixonou-se pela palavra através da escuta. "Antes mesmo de aprender a ler ou escrever, sempre gostei muito de escutar e de ficar ouvindo histórias. Eu botava um banquinho num canto e ficava ouvindo as histórias dos adultos e observando muito as coisas. Sempre gostei muito mais de escutar do que de falar". Ela lembra, no entanto, de uma sensação de "estar presa, um pouco encarcerada em um mundo pequeno", sentimento que só dissipou quando começou a juntar as letras e fazer sentido com elas.

"Ler me deu essa possibilidade de ser muitas coisas, de não ficar presa no meu corpo. Eu podia ser homem, monstro, fada, planta, alienígena, podia ser um monte de coisa. O meu mundo ficou muito maior". Foi assim que começou a trancar-se no quarto, ainda criança, com vários livros, sem querer sair sequer para comer. A escrita veio logo depois.
"Eu tinha nove anos quando acordei um dia, em uma manhã super melancólica. Estava chovendo, e eu me senti tão triste, tão sem saída, um sentimento insuportável... Aí escrevi minha primeira poesia, que era muito ruim", conta e ri. "Aquilo me mostrou que escrever era um ato de vida. Para mim, até hoje, escrever é um ato de vida, um ato de fazer viver, de poder estar viva e de lutar pela vida e por tudo aquilo que é vivo. Essa menina, essa experiência com a palavra, pariu a mulher que eu sou hoje".

Eliane fala com a voz suave e calma. Tem um jeito tranquilo que convive com o ímpeto de uma mulher determinada. Em 2017, mudou-se para Altamira, no Pará, para estar mais perto da pauta que tem motivado a maior parte de sua vida profissional e pessoal: a defesa da floresta e a vida (todo tipo de vida) no planeta. Ela conta que começou a ir para a Amazônia em 1998, quando trabalhava para o jornal gaúcho Zero Hora. Conheceu a floresta em cada Estado brasileiro onde ela nasce, cresce e é desmatada ou incendiada. Em 2011, começou acompanhar as histórias das pessoas que seriam afetadas pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, principalmente as populações ribeirinhas. Depois, decidiu instalar-se ali.
"Eu quis ficar mais perto. Coloco-me ao lado das pessoas que defendem que a Amazônia é o centro do mundo, principalmente no momento histórico em que o maior desafio da nossa espécie é a emergência climática. Aí eu pensava: se eu digo que ela é o centro do mundo, por que eu não estou lá? Resolvi ir para o centro do mundo e queria ter também essa experiência de ver o Brasil a partir da Amazônia, olhar de lá para o Sudeste, para Brasília, para o Sul, olhar da Amazônia para o mundo, mudar meu ponto de vista", diz.

Essa determinação já havia nascido com a menina que pariu a mulher. Quando tinha cinco ou seis anos, durante a ditadura militar, seu pai era presidente de uma faculdade comunitária em Ijuí, e um de seus projetos era uma escola "que tinha muito o espírito do Paulo Freire". Naquela época, a prefeitura achou aquela escola subversiva e, em uma reunião, Eliane viu o pai ser humilhado pelo prefeito. A escola foi retirada da administração da faculdade. "Aquela experiência foi tão chocante para mim, que voltei para casa e fiquei pensando em como eu ia responder àquela injustiça. E aí, na minha cabeça de criança, resolvi botar fogo na prefeitura", conta. De madrugada, antes de todos da casa acordarem, Eliane colocou uma caixa de fósforo dentro do bolso do vestido e atravessou a praça que separava sua casa da sede municipal. "Eu fui e acendi o fósforo. Na minha cabeça, era só acendê-lo que conseguiria queimar a prefeitura. É claro que gastei a caixa de fósforos inteira e não consegui. Aí, voltei para casa com uma mistura de humilhação e alívio. Meu primeiro ato revolucionário, rebelde, foi fracassado. Mas serviu para descobrir, aos poucos, que escrever era um jeito de lutar sem botar fogo".

Os desacontecimentos

Eliane tem muito "estranhamento", não acha normais as coisas. "Descobri que estranhar era ser repórter. E eu sempre estranhei e sempre me interessei menos pelo que está no palco iluminado e mais pelo que está na coxia, os detalhes ao redor. É o que me interessa. Os detalhes e as subjetividades às vezes contam mais". Para ela, são esses elementos que determinam o que chama de desacontecimentos e que são a principal matéria-prima do seu trabalho. As pessoas cujas histórias não são ouvidas ou contadas, as passagens do cotidiano que, de tão corriqueiras —mas não menos fantásticas, emocionantes ou importantes— não costumam aparecer nos noticiários. Foi com essas histórias que conquistou o prêmio Jabuti em 2007, com A Vida que Ninguém Vê, uma coletânea de textos sobre desacontecimentos diários que vão desde o mendigo que jamais pediu coisa alguma ou um álbum de fotografias encontrado no lixo até o carregador de malas do aeroporto que nunca voou.
"Nos primeiros anos de repórter, as pessoas diziam que eu fazia as pautas humanas. E eu sempre fiquei pensando: mas existem pautas não humanas?", gargalha Eliane. "Sempre foi difícil dizer sobre o que eu escrevo. Acabo dizendo que escrevo sobre direitos humanos, mas não acho que seja isso, até porque eu acho que as gentes não são só humanas. Os animais são gente, as plantas são gente, eu vejo o mundo de um outro jeito".

Autora de outros quatro livros —Coluna Prestes - O Avesso da Lenda (1994), O Olho da Rua (2008), A Menina Quebrada (2013) e Meus desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras (2014)—, Eliane também faz ficção. Publicou em 2011 o romance Uma Duas (LeYa), onde transforma em palavra, com a mesma força e sensibilidade de seus textos jornalísticos, a intrincada relação entre mãe e filha.
O romance nasceu em 2010 quando, depois de duas décadas como repórter, ela quis dedicar-se exclusivamente à ficção. Hoje, ainda escreve contos em algumas coletâneas, mas o plano foi adiado porque o Brasil aconteceu. "O país se convulsionou, digamos, e eu fui capturada por essa super realidade. Mas espero voltar para a ficção, porque tem realidades que a gente só consegue contar através dela. Há realidades que precisam ser inventadas para serem contadas", diz.

Para escrever, depois de anos acostumada a trabalhar em meio ao barulho das redações, ela constrói um mundo próprio em qualquer lugar. "Em meu processo, sinto que escrevo primeiro dentro, vou costurando as coisas dentro de mim. Aí, quando sento mesmo para escrever, sou bem rápida". Mantém o hábito da infância e tenta ler ao menos um livro por semana. Atualmente, está entregue ao romance Como ser as duas coisas, de Ali Smith, e Outras Mentes, de Peter Godfrey-Smith, que mistura história natural e filosofia. "Além dos que estou lendo, tenho meus livros de cabeceira. Nos últimos anos, são dois: Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, da Hertha Müller, que é um livro lindíssimo, que me ajuda a resistir em cotidiano de exceção. O outro é Teoria King Kong, da Virginie Despentes, um livro selvagem, que segue ecoando em mim e para onde volto muitas vezes", conta. 

Hoje, Eliane entra na floresta para contar seus acontecimentos e desacontecimentos. "Minhas reportagens são por minha conta e são de longuíssimo prazo, podem durar anos", ri. Ela conta que uma das melhores coisas de entrar na natureza é ficar sem conexão à Internet. "Só deixo uma mensagem no e-mail e aviso às pessoas mais próximas que eu vou sumir e depois volto. Isso é maravilhoso. Ainda bem que não tem Internet ainda por lá, porque aí dá para fazer realmente essa imersão profunda, que muda muito a gente". Eliane ainda prefere ouvir a si mesma, à floresta, à vida. Entre matar e morrer no turbilhão do mundo, ela continua a escrever.

Joana Oliveira, São Paulo 18/ 10/2019

Recomendação

Lula livre, sim, mas sem fraudar a história

O PT não contribuirá com a criação de um futuro melhor se seu maior líder seguir insistindo em apagar a memória de Belo Monte.

ELIANE BRUM, 24/10/2019

Luiz Inácio Lula da Silva, preso há mais de um ano, deve ser libertado. E isso provavelmente acontecerá, de um modo ou outro. Lula deve ser libertado porque o processo que o colocou na cadeia está povoado por abusos do poder judiciário e despovoado de provas. Como já escrevi neste espaço, a prisão de Lula não mostrou que até os poderosos são presos no Brasil, mas sim que até os poderosos podem ter seus direitos violados no Brasil. O que cada um acha sobre a culpa ou inocência de Lula não importa, o que importa são provas e o cumprimento do rito legal. É isso que nos protege a todos, é isso o que também separa a democracia da ditadura. É fundamental, porém, fazer uma distinção. Como qualquer brasileiro, Lula tem direito à justiça. Mas Lula não tem direito aos seus próprios fatos.

Mais perto da possível libertação, Lula já iniciou sua campanha num país dilacerado por ódios que seu partido também ajudou a produzir. Já anuncia o desejo de viajar pelo Brasil. É uma vontade legítima. Inclusive porque era ele o candidato em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018 e foi impedido pelo judiciário, que decidiu mudar de forma arbitrária os rumos do país. O PT não deve nem pode ser riscado do mapa eleitoral e do debate político do Brasil, como querem alguns grupos. Quem decide se o partido pode representá-los são os eleitores.

O problema que se anuncia é a tentativa de recuperar o espaço perdido pelo partido apagando as contradições do PT no poder. E, principalmente, tentando remover – ou pelo menos contornar – a pedra no meio do caminho chamada Belo Monte. Não vai dar para apagar Belo Monte. Esta pedra é grande demais.

Belo Monte não é um erro, mas o que os povos do Xingu chamam, e isso desde o governo Lula, de “um crime contra a humanidade”. É também o que o Ministério Público Federal chama de “etnocídio”. E, mais recentemente, também de “ecocídio” e de “genocídio”. É ainda onde se desenha aquela que pode se tornar a maior tragédia da Amazônia brasileira: a morte da Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, além de ribeirinhos, pela administração predatória da água por Belo Monte.

O autoritarismo destrói um país. Por todos os motivos óbvios. E também porque interrompe o debate público, assim como os movimentos em curso. Em cotidiano de exceção, como já vive o Brasil, as diferenças entre os projetos políticos são borradas em nome do objetivo maior, o de impedir a completa destruição da democracia. O processo de aprimoramento das instituições e de melhoria da sociedade é suspenso e toda a energia é consumida no gesto de bloquear a acelerada corrosão dos direitos.

O Brasil é um presente constantemente interrompido para que as elites econômicas e políticas (e às vezes também intelectuais) possam manter – ou recolocar – o passado. Em geral, o fazem aliando-se aos novos atores que nada querem mudar, apenas ter acesso ao restrito grupo dos que detêm os privilégios de classe, de raça e de gênero. Entre os novos atores deste momento estão, por exemplo, as lideranças evangélicas fundamentalistas.

"O autoritarismo mata a potência de uma geração, obrigando-a apenas a reagir."

A constante interrupção leva à perda de toda a energia de uma geração de brasileiros na criação do futuro. Barra também o protagonismo de grupos historicamente silenciados que tinham passado a disputar o presente, caso dos negros nos últimos anos. É assim que se mata a potência de um país. Obrigando as pessoas a esgotar suas forças no gesto de fazer barreira para perder menos, sem espaço para criar gestos para avançar mais. É o que o Brasil e outros países governados por déspotas eleitos vivem hoje.

Se o PT foi violentamente atingido pelas manobras autoritárias de forças com as quais fez alianças no passado e pode voltar a fazer nas próximas eleições, como setores do MDB, é também evidente que a truculência do bolsonarismo no poder abriu uma possibilidade para, mais uma vez, o partido operar para apagar suas digitais em crimes cometidos durante os 13 anos no poder. Pessoas que estiveram em governos do PT ou os apoiaram ativamente, nos últimos anos tiveram que encarar a dura realidade de um partido que se corrompeu. Mais recentemente, porém, parecem ter retornado ao estado de autoilusão: os abusos cometidos pelo judiciário na prisão de Lula deu um forte motivo para voltar a se sentirem no lado certo da história e promover o esquecimento dos atos arbitrários do PT. Mais uma vez se ouve de parte da esquerda que não é hora de criticar o PT. Nunca foi hora, como sabemos.

É da essência do maniqueísmo apagar as complexidades. Num país polarizado, o maniqueísmo serve aos dois polos. Ou é todo o mal, ou é todo o bem. A adesão à política pela fé, na qual os eleitores se comportam como crentes, mesmo quando ateus, atinge todo o espectro ideológico do Brasil. Da direita a esquerda.

A fragilidade da democracia brasileira é causada, em grande parte, pela impunidade dos crimes dos agentes de Estado na ditadura. Deste apagamento da memória nasceu uma democracia com alma deformada. Um dos principais objetivos dos grupos no poder, em especial o dos generais, é apagar suas digitais das violências cometidas durante o regime militar (1964-1985). Jair Bolsonaro tem se esforçado para torcer os fatos e reformular o passado ao seu gosto, convertendo torturadores em heróis e violências de Estado em atos de heroísmo. Em geral, governos autoritários investem no apagamento da história como primeiro ato, colocando no lugar sua mitologia. Os estados totalitários do século 20 são aulas completas sobre essa falsificação. É por compreender a extensão dessa violência que parcelas da sociedade brasileira têm se mobilizado para impedir a destruição da história da ditadura.

Já deveríamos ter compreendido o gravíssimo equívoco representado por compactuar com apagamentos em nome de oportunismos, ou, se preferirem palavras mais palatáveis, do pragmatismo político, da estratégia eleitoral, de governabilidades ou como queiram chamar. Já deveríamos ter aprendido que omissões e silenciamentos nos levam a lugares ainda mais sombrios. Deveríamos, mas tudo indica que não.

"É triste um país em que os homens públicos querem ser “mitos” – e não homens públicos."

Nas entrevistas que Lula tem dado para preparar sua possível saída da prisão, ele deixa claro que seguirá apostando no fortalecimento do próprio mito, inflado agora por uma injustiça. Tem dito a aliados que pretende rodar o Brasil e assumir o papel de “fio condutor da pacificação nacional”. A “pacificação”, palavra que também foi usada por Michel Temer (MDB) no início de seu governo, é palavra recorrente na história do Brasil. Como já testemunhamos, ela tem servido para apagar assimetrias, desigualdades raciais e iniquidades. É a proposta de conciliação sem justiça social. Uma das tragédias do Brasil é a obsessão por “mitos” quando o que precisamos tanto é de um homem ou uma mulher imbuído de espírito público suficiente para colocar o país acima de suas ambições pessoais.

Quando Lula deixar a prisão, estará num Brasil diferente. Com a crise climática se agravando em curso acelerado, a Amazônia vem ganhando rapidamente a centralidade que sempre deveria ter ocupado. Sem floresta em pé – e por floresta se compreende não só árvores, mas todas as vidas, porque tudo ali funciona de forma conectada – não há possibilidade de enfrentar o superaquecimento global. Neste contexto, a desastrosa política dos governos do PT para a Amazônia ficarão mais – e não menos evidentes. Esta política é marcada especialmente por grandes “monumentos à insanidade”, como costuma dizer Antonia Melo, a maior liderança popular do Médio Xingu: as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, e Teles Pires, no rio de mesmo nome.

Belo Monte, o símbolo maior desta política que violou sistematicamente os direitos dos povos da floresta, está programada para ser concluída neste ano. As consequências de sua construção apenas começaram. O pior ainda pode estar por vir, caso o Ministério Público Federal não consiga impedir que a Norte Energia S.A, a empresa concessionária, execute uma administração da água que poderá condenar a Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, à morte. Outros povos da região atingida por Belo Monte, os Parakanã, Araweté e Assurini, de recente contato, publicaram um documento em 22 de outubro “exigindo a suspensão da liberação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e um pedido formal de desculpas pelos problemas já causados às etnias”.

Como Lula trata Belo Monte, uma obra que nem a ditadura conseguiu construir devido à resistência dos movimentos sociais e dos povos do Xingu, mas o PT sim, porque traiu seus aliados? Em entrevista à BBC Brasil, no final de agosto, Lula declarou: “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Em outubro, numa entrevista ao UOL, Lula afirmou aos jornalistas Flávio Costa e Leonardo Sakamoto: “Eu não sei o que vou fazer quando eu sair daqui, mas eu tinha vontade de voltar ao Xingu, a Belo Monte, eu não conheci Belo Monte. Eu fui lá fazer um debate, mostrar que seria um bem para o desenvolvimento. Se você tem, depois de anos, a informação de que a coisa está desandando lá em Altamira, eu disse isso numa entrevista, é preciso ver o que está acontecendo agora. Se estas pessoas estão cumprindo o acordo feito em 2009, se as pessoas estão cumprindo todas as determinações. Então o que proponho para você é que poderia, até para me ajudar, a procurar os ministros que fizeram o acordo na época e pedir a eles irem junto com você para lá para saber o que não está sendo cumprido”.

Sério. Lula disse isso mesmo. Não há menção de que tenha ficado ao menos levemente ruborizado.

"Lula pode começar seu programa de estudos sobre Belo Monte lendo as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal."

Caso sua saída da prisão ainda demore um pouco, Lula pode organizar um programa de estudos para se aprofundar sobre as violações ocorridas na construção de Belo Monte durante os governos do PT. Pode começar pelo próprio leilão, arquitetado por ele com a ajuda do amigo e ex-ministro da ditadura Delfim Netto. Ganhou o consórcio formado às pressas, para simular uma disputa, com pequenas empreiteiras sem nenhuma experiência em projetos deste porte. Em seguida, as grandes empreiteiras – as que preferiram não disputar (Odebrecht e Camargo Correa) e a que disputou e perdeu (Andrade Gutierrez) – formaram o Consórcio Construtor Belo Monte. As pequenas também migrariam para este consórcio na sequência. É na construção que está os lucros – e também a propina. Esta parte da história está sendo investigada e documentada pela Operação Lava Jato.

Em seguida, Lula pode ler as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal denunciando todas as violações ocorridas para materializar Belo Monte no Xingu, algumas delas durante o seu próprio governo. Pode seguir seu plano de estudos lendo o livro “A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte”, organizado e publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 449 páginas, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas documentam as atrocidades cometidas e as consequências que vão desde a ameaça de extinção de espécies à destruição da saúde mental das pessoas que foram expulsas de suas terras, ilhas e casas.

Terminado este livro, o presidente que materializou Belo Monte pode aprofundar seu conhecimento sobre o próprio governo e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, estudando o Dossiê produzido pelo Instituto Socioambiental, no qual estão narrados como os povos indígenas foram corrompidos pela Norte Energia SA com uma “espécie de mesada de 30 mil reais em mercadorias”, fazendo com que mesmo indígenas de recente contato passassem a comer salgadinhos e refrigerantes em vez de alimentos da sua roça e peixes do rio. Poderá ler inclusive documentos com timbre do Ministério de Saúde do governo de Dilma Rousseff que dizem o seguinte:

“A partir de setembro de 2010 [último ano do governo Lula], com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012 [primeiro mandato de Dilma Rousseff], tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.

Em outro ponto do documento, o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 é relacionado à atuação da Norte Energia nas aldeias:

“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.

A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças estava então desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014 [ano da eleição de Dilma para o segundo mandato], técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, morressem de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.

Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014 [governo de Dilma Rousseff]. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil. (leia mais aqui).

Uma indígena do povo Araweté disse então ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”. Onde estava a Funai naquele momento? Ah, sim. Tinha sido convenientemente enfraquecida na região pelo governo do PT, com fechamento de postos justamente quando era mais necessária.

"Na construção de Belo Monte, os governos do PT converteram povos da floresta em pobres urbanos e enviaram a Força Nacional para reprimir greves de trabalhadores."

Como Lula está preocupado com a obra que impôs aos povos de Altamira e do Xingu, ele também pode ler os testemunhos dos ribeirinhos constrangidos a assinar com o dedo papéis que não eram capazes de ler, papéis que os condenavam a perder tudo. Quando milhares foram submetidos à “remoção compulsória”, não havia nenhuma assistência jurídica disponível para a população atingida, parte dela analfabeta.

Lula pode ainda refletir sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores colocaram a Força Nacional para reprimir as greves dos... trabalhadores. Neste caso, os operários da usina e também as manifestações dos atingidos. Quem sabe Lula siga adiante e investigue como foi possível que a Agência Brasileira de Investigação (Abin) tenha infiltrado, em 2013, um espião no movimento social Xingu Vivo Para Sempre. E, se tiver fôlego, pode rememorar a acidentada evolução das licenças de Belo Monte no Ibama durante os governos do PT, com algumas demissões escandalosas de presidentes que se negaram a assinar permissões inaceitáveis.

A obra é vasta. É impossível se aprofundar na destruição promovida pela “grande obra do PAC” sem acompanhar a explosão da violência urbana provocada por Belo Monte, que transformou Altamira na cidade mais violenta da Amazônia. Assim como a conexão desta violência com o segundo massacre carcerário da história do Brasil, ocorrido em julho deste ano, em que 58 pessoas foram decapitadas ou queimadas vivas, e outras quatro foram executadas no percurso da transferência. É essencial conhecer os efeitos de uma rotina de balas e de mortes sobre as crianças dos “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela Norte Energia para empilhar os expulsos por Belo Monte. Há mais, muito mais. Dá para ocupar anos de prisão com horrores.

E então, talvez, Lula possa compreender a frase dita por Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em 2012: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”.

"A exploração predatória da Amazônia não é ruptura, é continuidade."

O Brasil recente pode ser contado por rupturas. Mas pode ser contado também por pelo menos uma continuidade: a exploração predatória da Amazônia como política de Estado. Esta era a política dos governos da ditadura militar. E seguiu sendo a política dos governos da democracia, apesar dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988. Há semelhanças entre a política para a Amazônia desenvolvida pela ditadura e a política para a Amazônia implementada pelos governos do PT – de Lula, acelerada a partir da saída de Marina Silva do governo, a Dilma.

Com Bolsonaro, a exploração predatória atingiu níveis incomparáveis. Em velocidade inédita, ela é executada pela estratégia de desproteção da floresta e pela recusa à obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas. O bolsonarismo tenta desfazer inclusive o que foi feito de positivo pelos governos anteriores. O resultado já pode ser visto antes mesmo do final do primeiro ano de governo, com a explosão do desmatamento e dos incêndios que assombraram o mundo.

Sobre a Amazônia, parece não haver polarização. Estão todos afinados. Dilma inaugurou Belo Monte explodindo de orgulho pouco antes do impeachment, Bolsonaro prometeu abrilhantar a cerimônia em que será ligada a última turbina, os militares de antes e os de agora invocam a fake news da ameaça à soberania nacional para seguir explorando a floresta e, apenas algumas semanas atrás, Lula declarou-se orgulhoso do que os moradores do Xingu chamam de Belo Monstro.

A Lava Jato tem muitos significados. Sempre critiquei seus flagrantes abusos, assim como o comportamento inaceitável do então juiz Sergio Moro. Ele e o procurador Deltan Dallagnol são os maiores inimigos da Lava Jato. Por conta de sua falta de limites e da sua vaidade continental, comprometeram também o trabalho dos procuradores sérios da Lava Jato, que desnudaram como funcionava o esquema de corrupção entre partidos e empreiteiras no país e botaram na cadeia milionários que até então tinham a impunidade como direito de classe. Entre os trabalhos sérios em curso está o desvendamento do esquema de corrupção que garantiu a construção de Belo Monte contra todas as violências visíveis a olho nu. Esta violação do Estado de direito é definida por Thais Santi, procuradora federal em Altamira, de “o mundo do tudo é possível”.

Lula ironiza quem pede a ele e ao PT autocrítica. Acha que não deve nenhuma explicação a quem o colocou no poder pelo voto acreditando no discurso da ética feito pelo partido desde a sua formação. Devemos entender então que o projeto que se mostrou em toda a sua imensa destruição em Belo Monte segue sendo a proposta do partido para a Amazônia. Se Lula almeja se alçar a “pacificador” do Brasil, deve ter uma frase em mente: “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”.

Não haverá paz na Amazônia sem justiça. Não permitiremos o apagamento da memória. Não esqueceremos. E não deixaremos esquecer.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Ofensiva final contra os povos indígenas


Viveiros de Castro: “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”
Em entrevista à Pública, antropólogo diz que madeireiros e mineradores ilegais funcionam como “carne de canhão” para privatização da Amazônia

CIRO BARROS E THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA), EL PAIS - BRASIL
12 outubro 2019

Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro.
A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.



Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Pergunta. Um sujeito que o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?

Resposta. Essa frase está num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade, porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar, porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha, de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.

E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente, envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e, portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual, a mudança climática, a crise de todos os sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso. Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente, implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando, como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria, sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em 1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética. O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai terminar”, mas “está terminando”.

P. Em algumas entrevistas, já vi o senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?

R. Acho que sou pessimista, sim, em vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for, efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical, dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que, entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita, de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal potência mundial [os Estados Unidos], em breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos, sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?

P. É o que me pergunto todo dia.

R. Tem que chamar um psicanalista para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e psicanalista] fez do fascismo. Para analisar isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
P.  Em 2013, eu tinha 23 anos e foi um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise — principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.

R. Você tinha uma situação em que o PT se comportou de uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que o Lula é um personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata, enquanto chamar o PSDB de um partido social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e, ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões. A Carta aos Brasileiros do Lula, em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.

P. Tem uma entrevista que o Celso Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula [2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho? E Belo Monte?

R. Primeiro, eu queria fazer uma ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez, não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte, com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples: dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa maneira, na economia.

P. E Belo Monte?

R. Bom, uma das grandes divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região, pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor, gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.

Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte jamais.

P. O Governo Bolsonaro elegeu alguns inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais. Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo dos índios?

R. O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares: “Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.

P. E a Amazônia?

R. A Amazônia é um objeto imaginário, complicadíssimo no Brasil. Primeiro que a gente precisa sempre lembrar: a Amazônia não é brasileira. A Amazônia é de nove países.
As cabeceiras, as formadoras do Solimões e de grande parte dos afluentes da Amazônia, estão fora do território brasileiro. Se o Peru, a Colômbia, a Bolívia resolverem fechar a torneira, seca.
Vão sobrar os rios que são formados no Cerrado, no Brasil central, o Xingu, Tocantins, Araguaia, Tapajós… Que estão sendo destruídos. O Cerrado está sendo arrebentado, esses rios também estão ferrados.
O escândalo sobre a França falando da Amazônia… A Guiana Francesa é francesa. A França é amazônica, o que vão fazer com isso? Podemos fazer nada. Podemos tentar invadir a França, que nem a Argentina fez com as Malvinas, vai dar super certo…
E a Amazônia tem essa coisa: você, ao mesmo tempo, utiliza aquilo como um cartão de visitas, como um orgulho — “Olha só o verde, o paraíso, muitas árvores…” — e, de outro lado, você quer destruir a Amazônia para os outros não pegarem.
Então você tem aquela atitude de um infantilismo absurdo: “A Amazônia é nossa, e eu faço dela o que quiser. Então vou tocar fogo nela porque ela é minha”. Eu posso fazer que nem a criança que vai quebrar o brinquedo porque o brinquedo é dela, entendeu?
É um pouco isso que os militares falam, que não tem que se meter com a Amazônia, a Amazônia é nossa. Nossa pra fazer o quê?
Por que as Forças Armadas não quiseram intervir em três denúncias recentes de ataque de garimpeiros ao Ibama? Porque eles estão do lado dos garimpeiros.
Não é só essa admiração ridícula do Bolsonaro pelo garimpo, que vem desde a amizade dele, em Serra Pelada, com o Curió, não. Isso é só a parte mais, digamos assim, grotesca. Mas a ideia de utilizar a população pobre, miserável, desesperada, como carne de canhão, pra entrar lá, pegar malária, matar índio, ser morto, destruir, ferrar e tudo, é uma ideia que na verdade está na cabeça dos militares.
Na verdade, isso faz parte da ideologia nacional. O garimpeiro é mais brasileiro do que o índio para o militar. Agora, quando você chega nesse pessoal que está fora, tipo os índios, a população tradicional, os ribeirinhos, os caboclos, os sertanejos, o pessoal cujo modo de vida é contraditório, no sentido forte da palavra, a esse projeto de país, aí a coisa pega.
O que está acontecendo, também, é que em parte esse genocídio que está sendo praticado no Rio de Janeiro em cima das favelas, com a polícia atirando de helicóptero, é porque, em larga medida, o chamado “proletariado” se tornou meio dispensável. Não é preciso tanto trabalhador assim, e você tem uma quantidade de pessoas, hoje, que são consideradas supérfluas dentro do sistema econômico. E essas pessoas estão sendo massacradas.

P. Um grande traço desse governo que me parece diferente dos anteriores é essa coisa de apresentar lideranças e populações como “ah, olha aqui, os Paresi [etnia do Mato Grosso] querem plantar soja”. Essa narrativa do índio do século 21.

R. De um lado, acho que nós estamos assistindo a uma espécie de ofensiva final contra os povos indígenas.
É a grande onda agora, e vai por todos os lados. Se não for comprando eles com dinheiro, vai ser metendo os evangélicos malucos lá pra quebrar, pra proibir pajelança, fazer o diabo, acusar os índios das coisas mais loucas.
Porque é o seguinte: índio não é santo. Ninguém é. Tem filho da puta entre os índios, não sei se tanto quanto, mas eles não estão excluídos, digamos, do hall da filhadaputice humana. Então sempre vai ter algum índio, alguma pessoa indígena, que vai servir de traidor, como é o caso dessa moça, essa mulher Kalapalo que o Bolsonaro arrastou pra lá e pra cá e que foi, inclusive, renegada pela sua aldeia, pelo seu povo.
Sem contar outra coisa: os povos indígenas raramente possuem uma estrutura política que tem um porta-voz, uma pessoa que fala em nome da população. Então, o que acontece é que se tem um cara que fala alguma coisa, vai chegar outro que vai dizer o contrário, porque tem as lutas políticas internas. Se não é luta política interna, o fulano de tal se alia com o agronegociante pra ferrar o outro. Ele vai fazer isso.
Pra começar, os povos indígenas são trezentos e poucos no Brasil. Chamar todos eles de indígenas não diz muita coisa sobre eles, diz muito mais sobre a Constituição brasileira, sobre legislação, que chama de indígena uma coisa. A noção de indígena, na verdade, é uma palavra, principalmente, de significado jurídico.
Daí a confusão: isso é índio, isso não é índio, não sei o quê. Quando, na verdade, índio é uma forma de relação com o Estado. É claro, tem uma dimensão histórica, são populações descendentes, remanescentes, e que se pensam como ligadas às comunidades pré-colombianas. Mas são também comunidades que têm uma certa relação de exterioridade em relação ao Estado nacional e à etnia dominante, que é uma relação muito particular. E essa relação passa, principalmente, por uma certa relação com a terra.
E que, na verdade, é o nó do problema, porque o que acontece é o seguinte: a Amazônia é a parte do Brasil que representa o que era todo o Brasil em 1500. Não que ela seja exatamente igual, longe disso. Mas essa é a parte que ainda não foi destruída, que ainda não foi civilizada, que ainda não foi “conquistada”. E agora é: “Temos que acabar os serviços começados em 1500”.
E como a Amazônia virou um foco de atenção internacional por conta do fato de que é a maior floresta tropical do mundo, porque tem uma importância grande no equilíbrio geoquímico e termodinâmico do planeta, evidentemente está todo mundo olhando pra ela.
Esse seria o momento em que o Brasil poderia, se tivesse uma diplomacia menos alucinada do que a desses malucos que estão no ministério… Ela estaria naturalmente faturando, no sentido positivo da palavra, utilizando isso como um trunfo importante na sua posição no cenário internacional. Mas, ao contrário, eles estão batendo o pé, fazendo uma birra absolutamente ridícula. E vão sofrer as consequências. Agora eles têm um inimigo importante, que é o papa, que, evidentemente, não tem tantas legiões, como dizia o Stálin, não tem um exército, mas exerce um poder grande sobre a opinião pública.

P. O senhor falou da questão da liderança indígena, que não tem uma voz que fale por todos, mas a gente tem a figura do Raoni, por exemplo. Eu queria que o senhor comentasse o papel dele nesse processo da resistência indígena atualmente. E, sobre a questão da terra, queria que o senhor falasse do papel que tem a reforma agrária.

R. A reforma agrária é um caso especialmente importante. O Brasil não fez reforma agrária, e tudo o que acontece no Brasil, em parte, se explica por isso. Se optou por jogar a população rural nas cidades e entregar o campo à agricultura mecanizada e concentrada. O que acontece na Amazônia é que você ainda tem uma porção grande de população tradicional, ribeirinhos, que não sei o que vai ser dela, porque a soja já chegou na Amazônia faz tempo. A fronteira econômica está subindo e, à medida que ela sobe, vai expulsando gente, jogando fora árvore, colocando boi — o Brasil tem mais boi do que gente. E esse boi, evidentemente, não vai todo para a barriga da população brasileira. Então nós estamos, na verdade, alimentando o mundo. E o engraçado é que vejo, frequentemente, o governo se orgulhar de que o Brasil está alimentando o mundo. Devia estar alimentando os brasileiros, né? Pra começar.

P. A fome voltou…

R. É, a fome voltou, e nós nos orgulhamos de que estamos alimentando a China. Que orgulho é esse? Se a população brasileira inteira estivesse, de fato, em saúde nutricional espetacular, você poderia se dar ao luxo de se orgulhar de também estar alimentando outros países, né?
Na verdade, nós estamos queimando os móveis da casa para nos aquecermos, digamos assim. A gente está destruindo o Brasil, exportando água, exportando solo para fora do Brasil, e estamos mais ricos por causa disso? A desigualdade diminuiu depois de anos de destruição do Cerrado, da Amazônia? O ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo da soja, todos esses ciclos com a mesma estrutura, a saber: o Brasil como exportador de produtos primários para as metrópoles capitalistas. Estamos na mesma posição em que estávamos em 1500. É uma colônia de exportação de commodities.
Agora é commodities high-tech, né? Não é mais o braço escravo, não é mais o índio amarrado, agora é a colheitadeira, é o grande trator, é a feira de Barretos.
O Brasil continua sendo uma colônia que consegue o prodígio de ser uma autocolônia, colônia dos outros e a colônia de si mesmo.
Enfim, e a reforma agrária, o que aconteceu com o MST? Acho que o MST se deu mal no Governo Dilma. Ele perdeu o fôlego, perdeu o pique, perdeu a capacidade política, em parte porque ficou nas mãos da sua relação com o governo do PT.
Eu sou otimista numa coisa: acho que o Trump não vai ser reeleito. Mas eu falei que o Bolsonaro não ia ser eleito, e ele foi, né? Eu falei que, se ele fosse eleito, eu saía do país. Eu não saí, né?
Mas, se o Trump não for reeleito, a situação do Brasil vai mudar muito, porque não tem mais um outro maluco. Essa aposta total da Presidência numa relação carnal com os EUA do Trump é bem arriscada.

P. Essa extrema-direita mundial aflorando assim parece que é algo cíclico, né?

R. O fato é que isso está ligado, evidentemente, a uma crise econômica mundial, a crise do capitalismo. Não por acaso teve a crise de 1929, em seguida tem o fascismo. E hoje você tem a crise que começou em 2008 e que, na verdade, não acabou. Esse é um ponto de mudança: estamos numa crise econômica mundial, que está se manifestando no Brasil de uma maneira particularmente dramática — não se sabe o que vem depois dela. Essas reações de extrema-direita são claramente reações, parece que são movimentos reativos diante de uma crise, de uma precarização, em relação às condições de vida, e também uma reação à crise ambiental.
Boa parte dos refugiados que estão saindo dos seus países de origem estão saindo por causa de questões de destruição das condições materiais: secas brutais, enchentes. Então, são refugiados do clima, em larga medida. Esse pessoal que está indo para os Estados Unidos, tentando pular o muro de qualquer jeito, em grande medida, é refugiado do clima.
O que me preocupa mais de tudo é a crise ecológica. O problema é que ela atinge o que a gente pode chamar de condições realmente materiais de existência. Não é o salário; é o ar. Não é o emprego; é a água.
Então, são coisas que atingem um nível de fundamentalidade para animais reais, pessoas reais, como nós somos, que precisam de ar, de água, de uma porção de coisas materiais. É nesse nível que a crise se manifesta. No esgotamento dos recursos pesqueiros, na acidificação dos oceanos, na subida no nível do mar, no aquecimento da temperatura, que provoca secas, que provoca enchentes, que provoca furacão, que provoca refugiados.
Esse tipo de crise é uma crise que, para que se possa sobreviver a ela, você precisa de uma radicalidade nas mudanças da forma que se tornou hegemônica no mundo.
Mudanças muito radicais, que não vão ser três torres eólicas que vão resolver. Vai precisar de muito mais que isso, vai precisar de uma mudança radical nos padrões de consumo, das sociedades desenvolvidas, de uma redistribuição radical dos recursos pela população do planeta.
Mas é mais fácil, em vez de acontecer isso, que aconteça outra coisa, guerras genocidas, extermínios maciços de população, destruições gigantescas de meio ambientes inteiros… É por isso que eu não sou muito otimista, né?

P. No seu livro "Há mundo por vir?", que você escreveu com a Débora [Danowski, filósofa e companheira de Viveiros de Castro] se fala que essa catástrofe climática impõe ao ser humano uma mudança metafísica de não pensar o mundo inteiro a partir de si mesmo, com uma centralidade no homem.

R. Não basta ficar dizendo: “Ah, a culpa é do cristianismo, a culpa é de quem botou o homem acima de outras criaturas”. Isso tudo não deixa de ser verdade, mas acho que o fundamental não é isso.
Acho que o que marca a modernidade ocidental é uma certa confiança de que o homem, através da tecnologia, é capaz de resolver qualquer problema que surja, de que sempre haverá uma solução. O pessoal está cada vez mais aceitando que há uma crise ecológica, mas [pensa que] alguém vai dar um jeito nisso. E se não der? Por que tem que dar? Nem tudo tem solução.
Acho que a crise ecológica não tem solução no sentido de manter o status quo atual. Isso é fora de questão. E todo mundo sabe: se o mundo inteiro consumisse a quantidade de energia per capita que consome um cidadão americano, você precisava de cinco planetas Terra para sustentar a humanidade inteira. Qual é a alternativa?

P. Você falou que a gente deveria perguntar aos índios a respeito do fim do mundo porque o mundo deles está acabando desde 1500. Que lições concretas os povos indígenas podem nos dar a respeito dessa convivência com esse fim do mundo, que é gradual, não acontece de uma vez?
R. É evidente que os 7 bilhões de pessoas humanas que vivem no planeta Terra não podem viver como vivem, hoje, uma população de 500 pessoas na Amazônia. Mas os povos indígenas, em geral no mundo inteiro, e não só os povos indígenas brasileiros, têm uma relação com o resto da realidade, particularmente com a realidade biológica, viva, outros seres vivos, que é muito diferente daquela que está implícita no nosso modo de vida e explícita em várias doutrinas religiosas, filosóficas etc.
Qual é essa relação? Essas populações se veem como parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível que os demais seres. Não quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só se percebem como no mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas de existência, digamos assim.
O que acontece na modernidade ocidental é que o homem se considera como um ser de exceção. Ele é um animal, mas ele tem alguma coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de alma, agora é cultura, ciência, tecnologia… Mas é alguma coisa que torna o homem metade animal, metade anjo, alguma coisa assim. E o lado extra-animal, superanimal do homem, compensa, cancela, libera a espécie dessa imanência terrestre — transcende a realidade material.
Já os povos tradicionais, porque a história os conduziu a outra direção, não se veem acima das demais criaturas. Eles podem achar que os homens são mais inteligentes do que os jacarés, mas eles não acham que essa diferença é uma diferença de grau, não é uma diferença de natureza.
Para nós, é uma diferença de natureza. É uma espécie de hipocrisia. Porque a gente tem essa sensação de que a gente é dotado de alguma coisa que nos tira de qualquer problema, que as outras espécies vão se extinguir, mas a nossa não — quando a gente sabe que vai se extinguir também.
É como se a espécie humana fosse o único animal que, porque ela sabe que é um animal, ela não é um animal. Porque, como ela sabe que é um animal, isso a torna diferente de todos os outros animais e, portanto, não é animal.
O que é uma contradição em termos. Ao saber que é um animal, devia torná-la mais atenta às condições que a aproximam dos outros animais: da necessidade de um ambiente tolerável pela espécie.

P. O senhor até usou a expressão de que a espécie humana está se suicidando.

R. Num certo sentido. Talvez toda espécie se extinga porque se suicide, a menos que caia um meteoro na cabeça dela, é claro. Quando a gente fala “espécie”, também precisa ter cuidado, porque, quando a gente fala “espécie”, nove vezes em dez está falando é dos países superdesenvolvidos, seu modo de vida superdesenvolvido.
Essa é outra palavra que eu gosto de usar, que é superdesenvolvimento. O que a gente chama de [país] desenvolvido, na verdade, é superdesenvolvido, no sentido de excessivamente desenvolvido. No sentido de que consome muito mais do que é necessário, muito mais do que é razoável e muito mais do que é possível, dadas as condições materiais deste planeta. Então, esses países são países superdesenvolvidos.
Eles têm que se “desdesenvolver” para que outros países, outros povos, possam se desenvolver um pouco mais, de modo a equalizar um pouco as condições de existência de Bangladesh com a Califórnia.
Quer dizer que Bangladesh tem que virar a Califórnia? Não. Quer dizer que a Califórnia tem que virar Bangladesh? Também não. Mas tem que haver um meio-termo aí, tem que haver uma certa aproximação entre esses dois povos, entre o camponês de Bangladesh, a favela carioca e os condomínios de luxo de Miami e de Los Angeles. Porque, se não aproximar, o planeta vai explodir.
O Brasil é um país que está sendo usado pelo sistema econômico mundial para fazer um experimento científico, que é: o quanto você pode ferrar uma população sem produzir uma insurreição sangrenta? Até quando você pode ir tirando direitos, ferrando, explorando, expropriando, matando, jogando na informalidade, sem que isso produza um motim, uma revolução, uma explosão de violência popular? É quase como se fosse um experimento científico: o quanto eu posso torturar esse bicho antes dele morrer, sem que ele morra?
E a gente sabe que a humanidade aguenta muita coisa, então é difícil imaginar… Tem a famosa ideia de que um dia o morro vai descer… Mas e se não descer?

P. E tem a resistência indígena…

R. Você me perguntou do Raoni, esqueci de responder a isso. O que acontece é o seguinte: sim, o Raoni se tornou um símbolo, esse símbolo é capaz de catalisar a luta indígena, ele é um símbolo essencialmente para fora, um símbolo para os não índios, sobretudo. Em parte, por causa do visual que é muito marcado, em parte porque ele é um senhor, já está há muito tempo na luta, literalmente. E os índios estão se vendo obrigados a construir alianças, causas comuns. Eu me lembro de uma frase do Daniel Munduruku, que é um escritor: “Eu não sou índio, eu sou Munduruku. Índio é uma coisa de vocês, eu sou Munduruku”. Tem toda a razão.
Mas os Munduruku agora estão se juntando com, sei lá, Kayapó, com os Araweté, com os Parakanã… Para que todos esses povos, que não são uma coisa só, possam apresentar uma frente só diante de um outro lado, que, esse sim, é uma coisa só, nós, o Estado brasileiro, a etnia dominante, que é branca.
Por que eles nos chamam de brancos? Inclusive, palavra que, muitas vezes, pode ser aplicada a um negro? Porque o problema não é de cor. Uma metonímia, branco pra falar de brancos, negros, amarelos e azuis, mas ao mesmo tempo é porque o branco é de fato a figura central. O branco é uma coisa só pra eles: é o Estado.
As sociedades indígenas situadas no Brasil sempre foram sociedades com grande potencial anárquico. No sentido de que, dadas as condições demográficas e ecológicas do Brasil pré-colombiano, numa sociedade indígena, se você não está satisfeito com a aldeia, com o teu pessoal, você pega as tuas coisas, pega a rede e vai embora, faz a aldeia do outro lado. Ou seja, eram sociedades que não tinham necessidade de produzir sistemas políticos piramidais com um líder fundamental. Porque, se não está contente com o líder, vai embora e faz outra aldeia. Isso permanece nas sociedades indígenas como um impulso refratário a qualquer pessoa que fale em nome do todo, que, ao mesmo tempo, é contraditório com o que eles precisam agora, que são nomes que possam falar em nome deles todos contra esse Estado etnocida.
Os índios estão, de fato, numa situação complicada. Eles têm ao mesmo tempo que produzir lideranças, às vezes até supraétnicas. O Raoni, por exemplo, que é um Kayapó, mas não está falando ali em nome dos Kayapó. Ele está falando em nome dos índios, de todos os povos indígenas, e, ao mesmo tempo, isso é uma coisa que vai um pouco na contramão da própria sensibilidade política indígena. E eles têm que negociar isso, não vai ter outro jeito, porque eles estão enfrentando um inimigo que os obriga a se unir. Eles só estão unidos por causa dos brancos. São os índios que estão segurando a Amazônia da força destrutiva do agronegócio, do grande capital e desses malucos militares que acham que Brasil bom é criar um deserto, que governar é criar um deserto.

P. Hoje a gente vê um obscurantismo que chegou ao ponto de se questionar o formato da Terra.

R. Acho que tudo está naquela frase do Darcy Ribeiro, que todo mundo cita com razão, que é: a má educação no Brasil, a destruição, o péssimo sistema educacional no Brasil, não é um defeito, é um projeto. Acho que existe, sim, um projeto de deseducar a população brasileira, exceto quando se trata de formar mão de obra qualificada para certas funções específicas do mercado de trabalho capitalista. Mas, do ponto de vista do que a gente chama de cultura em geral, acho que existe um projeto de impedir o povo de aprender.
Por que esse ataque às universidades está se dando agora que a política de cotas entrou para valer? Tem cursinho de pré-vestibular na Maré, aprovando todo mundo no vestibular das universidades públicas. “Não pode isso. Se esse povo começar a pensar, vai dar um problema.” Tem que manter a população sob controle.
E agora você tem essas coisas loucas, tipo terraplanismo, revisionismo histórico, negacionismo climático. De onde é que vem isso? Principalmente dos Estados Unidos, vem do [Steve] Bannon, vem do alt-right, vem da nova direita. E vem junto com o quê? Com uma certa fantasia da Idade Média, cruzados e Deus-vult e não sei o quê. Então acho que existe uma espécie de projeto de regressão histórica alucinada, mítica.
Acho que não é por acaso que chamam o Bolsonaro de “mito”, porque existe aí uma mobilização de certas estruturas míticas que são politicamente reacionárias e que estão sendo difundidas, no meu entender, deliberadamente, por uma elite que, evidentemente, não acredita nisso. Você acha que o Olavo de Carvalho acha que a Terra é plana? Claro que não.
Acho que em parte tem um projeto deliberado de introduzir a confusão, o terraplanismo, negacionismo e tal, e que passa por um projeto político mais amplo, de regressão cultural antiliberal, antidemocrático.

Colaborou: Carolina Zanatta


Eduardo Batalha Viveiros de Castro (Rio de Janeiro, 19 de abril de 1951) é um antropólogo brasileiro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Formado em ciências sociais pela PUC-Rio, concluiu em 1977 o mestrado em antropologia social no Museu Nacional e em 1984 o doutorado, na mesma instituição.[1] Publicou inúmeros artigos e livros, considerados como importante contribuição para a antropologia brasileira e a etnologia americanista, entre eles: From the enemy's point of view: humanity and divinity in an Amazonian society, Amazônia: etnologia e história indígena e A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.
Lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade de Chicago e na Universidade de Cambridge. Uma de suas mais significativas contribuições refere-se ao desenvolvimento do conceito de perspectivismo amazônico.
Sobre ele, diz Claude Lévi-Strauss, seu colega e mentor: "Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual".